Assim como contém a mais completa explanação da salvação de Deus, Romanos fornece a mais minuciosa exortação à prática da virtude, em todo o Novo Testamento. Os capítulos 12 a 16 da epístola têm por finalidade exortar à humildade, ao amor, à tolerância, à amizade e às demais virtudes cristãs. É o mais longo discurso ético do Novo Testamento, maior até que o Sermão do Monte, em Mateus.
E, dentre as virtudes de que Paulo trata, no seu protraído discurso, a que ele defende mais extensamente é a tolerância. Esse é um dado muito importante, pois, do modo como a imputação da justiça se encontra no centro da seção que trata da salvação, a prática da tolerância ocupa o lugar central na seção relativa à ética.
No Novo Testamento, nenhuma virtude tem o sentido exterior que, na velha aliança, era possível imaginar que possuísse. Paulo não diz, por exemplo, que não é bom comer ou deixar de comer carne, beber ou deixar de beber vinho, mas que não é bom fazer isso se levar nosso irmão a tropeçar. O foco já não está posto na conduta em si, mas no sentido que tem para o outro. Está no reflexo da conduta sobre o irmão.
Não é diferente com a tolerância. Paulo nos diz sobre ela que “é bom não comer carne, nem beber vinho, nem fazer qualquer outra coisa com que teu irmão venha a tropeçar” (14:21). O sentido profundo desse mandamento provém da relação com Deus. Tolerar é, para Paulo, estender ao próximo a tolerância que recebemos de Deus. Assim, como na primeira parte da epístola Paulo relaciona a salvação e a justiça ao que Cristo fez, na seção dedicada às virtudes não é diferente. Nela, Paulo fundamenta o justo na prática da virtude por Cristo.
No tocante à salvação, Cristo morreu para que morrêssemos com ele: “Fomos, pois, sepultados com ele na morte pelo batismo” (6:4). Do mesmo modo, ressuscitou para que ressuscitássemos com ele: “Como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós em novidade de vida” (6:4). “Se fomos unidos com ele na semelhança da sua morte, certamente o seremos também na semelhança da sua ressurreição” (6:5).
O paralelo ressurge, com modificações, no capítulo 14: ”Foi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu: para ser Senhor tanto de mortos como de vivos” (14:9). Não há, pois, dúvida de que o método de Paulo consiste em estabelecer paralelos entre a obra de Cristo e seus efeitos nos que creem. Desse paralelo, ele extrai a doutrina moral do evangelho. “Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor de mortos e de vivos” significa que mortos e vivos agem de acordo com o sentido transcendente daquela morte e ressurreição. Na prática, pois, a humildade que adotamos é a que Cristo viveu, ao esvaziar-se e assumir a forma de servo, e o amor que possuímos é aquele pelo qual ele se deu ao mundo infestado de pecado. Não é diferente com a tolerância. Também ela é a que Cristo teve para conosco. Portanto, nem a humildade cristã é de feitio humano, nem o amor é terreno, nem a tolerância que devemos exercer é algo humano. Todas essas virtudes são transcendentes. São divinas e não humanas. Elas se tornam humanas, apenas quando comunicadas por Deus ao homem.
Essa é a razão de o pináculo da subseção de Romanos sobre a tolerância localizar-se nos três primeiros versos do capítulo 15: “Nós que somos fortes devemos suportar as debilidades dos fracos e não agradar-nos a nós mesmos. Portanto, cada um de nós agrade ao próximo no que é bom para edificação. Porque também Cristo não se agradou a si mesmo; antes, como está escrito: As injúrias dos que te ultrajavam caíram sobre mim“. O ponto culminante das considerações de Paulo é a manifestação da tolerância de Cristo em nós. Por isso, ele conclui: “Acolhei-vos uns aos outros, como Cristo também nos acolheu para a glória de Deus” (15:7).
Inutilmente, buscamos na conduta do homem o padrão da virtude. E ainda mais inutilmente o procuramos na conduta humana exterior. A virtude não está no homem, mas em Cristo, o que tem as mais sérias implicações. E as tem, em primeiro lugar, no tocante à doutrina da salvação, já que Paulo está a afirmar que a tolerância deve ser praticada, na igreja, porque Cristo a praticou no Calvário. O paralelo de 15:2-3 guia-nos, com toda segurança, a essa conclusão: “Cada um de nós agrade ao próximo no que é bom para edificação. Porque também Cristo não se agradou a si mesmo; antes, como está escrito: As injúrias dos que te ultrajavam caíram sobre mim“.
Isso não implica apenas que a nossa tolerância deve ser perfeita, como é perfeita a de Cristo, mas que ele salva a todos por meio da sua perfeita tolerância. A multissecular discussão de calvinistas e arminianos sobre os aspectos da salvação (seu alcance, sua duração etc.) perde o sentido, ante tal observação. Cristo salva a todos ou apenas a alguns? Salva para sempre e completamente ou apenas de modo provisório? Que dúvida pode existir sobre esses pontos e os demais relativos à salvação, à luz da tolerância transcendente de Deus? No máximo, subsistem dúvidas consequentes de o Novo Testamento não desenvolver de modo completo o que, como princípio, apresenta com toda clareza.
A tolerância é um princípio não somente ético, não somente de sentimento e conduta, mas também soteriológico. É um princípio que rege a salvação de Deus. Cristo ter-se entregado por nós significa ter-nos tolerado à sua maneira, ou seja, à maneira eterna. Por isso, Paulo pôde afirmar, no fim da subseção sobre a tolerância: “Porque também Cristo não se agradou a si mesmo”. A palavra porque, nesse verso, indica uma consequência. Indica que o que foi mencionado antes se funda no que é mencionado em seguida. Em outras palavras: que a nossa tolerância se funda na de Cristo. Não em qualquer tolerância demonstrada por Cristo, mas na que ele praticou na cruz.
A cruz não é só um símbolo: é também o fundamento e a realidade da tolerância. Significa que Cristo tolera perfeitamente. E, se o faz, está claro que todos são perfeitamente perdoados nele. Não estou a extrair do perdão o que não se pode extrair. Não estou a sugerir que a salvação ignore ou cancele o livre arbítrio. Não é esse o caso. O livre arbítrio é uma força real, e isso muda muita coisa. Muda ou pode mudar, inclusive, o destino daquele que crê em Cristo, se pecar deliberadamente. Mas não pode, de modo algum, preponderar sobre a obra de Cristo na cruz. Admiti-lo seria abraçar voluntariamente a incompreensão do evangelho. De sorte que o livre arbítrio permanece real, tanto quanto subalterno à tolerância de Deus em Cristo.
Há livre arbítrio e tolerância, mas aquele sujeita-se a esta, como a lei à graça. Hagar é a lei. É escrava. Sara é a graça e é livre. Ambas têm lugar central na história de Abraão. Mas uma é superior à outra. Como a lei não funciona sem o pecado, e o pecado, sem o livre arbítrio, eles estão atrelados uns aos outros. Mas o mesmo não ocorre com as virtudes que exprimem a graça, entre as quais se encontra a tolerância.
Se as virtudes de Deus podem ser classificadas em imanentes e transcendentes, se elas podem ser discriminadas como de feitio terreno, umas, e de caráter celeste, outras, a palma cabe às últimas. Nisso consiste o cerne da revelação das Escrituras. Há tantas coisas na Bíblia, porém umas revelam as virtudes imanentes de Deus, outras, as suas virtudes transcendentes. O Dilúvio encontra-se no primeiro grupo. Ele exprime a ira de Deus sobre o mundo. O juízo final também. Não precisamos envergonhar-nos das virtudes terrenas de Deus. Mas não há dúvida de que o evangelho tem por finalidade abolir os motivos que as fazem necessárias e incrementar os que tornam prementes os valores celestiais.
Há, pois, uma hierarquia, uma ordem de antecedência entre as virtudes transcendentes e as imanentes. Isaías o proclama: “Por breve momento te deixei, mas com grandes misericórdias torno a acolher-te; num ímpeto de indignação, escondi de ti a minha face por um momento; mas com misericórdia eterna me compadeço de ti, diz o Senhor, o teu Redentor” (Is 54:7-8).
Nesses versos, vê-se o reflexo da discriminação das virtudes imanentes e transcendentes. O ímpeto de indignação de Deus e o abandono de Israel por ele são consequências da ira, que é uma virtude imanente. As “grandes misericórdias” e a “misericórdia eterna” de Deus são transcendentes. O Redentor, em pessoa, garante que o abandono e a ira são temporários, que eles passarão, assim como as profecias, as línguas e os outros carismas (1 Co 13:8). Porém o amor jamais passará. Paulo não afirma outra coisa (1 Co 13:8).
Não estamos diante de qualquer garantia, mas da maior de todas as garantias: “É para mim como as águas de Noé; pois jurei que as águas de Noé não mais inundariam a terra” (Is 54:9). Se a promessa à descendência de Noé permanece segura e inabalável, a grandeza, o alcance, a duração, enfim as características da libertação de Cristo não o fazem em menor medida. “Jurei que as águas de Noé não mais inundariam a terra, e assim jurei que não mais me iraria contra ti, nem te repreenderia. Porque os montes se retirarão, e os outeiros serão removidos; mas a minha misericórdia não se apartará de ti, e a aliança da minha paz não será removida, diz o Senhor, que se compadece de ti” (Is 54:9-10).
Na cruz, está a violência do amor. E ela está ali em plenitude, assim como a tolerância. Devemos acolher uns aos outros, porque Cristo nos acolheu no seu perfeito holocausto. A mensagem maior dessa afirmativa não é o acolhimento dos homens uns pelos outros, mas o de todos eles por Cristo. É a grandeza, o alcance e a duração eterna desse acolhimento.
“Não nos julguemos mais uns aos outros” (14:13). Eis o que prega Paulo. “Não julgueis para que não sejais julgados” (Mt 7:1). Isso prega Cristo. O primeiro mandamento está no cerne do discurso moral paulino; o outro é parte do maior de todos os discursos de Cristo. Nenhum dos dois deixa dúvida de que a tolerância de Deus é consequência absolutamente certa, porque jurada, da que temos uns para com os outros.