A Bíblia apresenta-nos Deus como alguém dotado de virtudes. Mas uma leitura minimamente atenta dela mostra que as virtudes divinas são essencialmente diversificadas e até opostas. Deus é capaz de ira, como Romanos afirma abertamente, mas também de amor. É capaz de perdão, mas também de vingança, de liberalidade e de severidade. Essas são virtudes opostas que Deus possui.
É possível, pois, dividir as virtudes divinas num grupo baseado na força, a exemplo da ira, do ódio, da indignação e da vingança, e outro que emana da compaixão. Nesse segundo grupo, estão o amor, a misericórdia, o perdão, a graça, a bondade, a generosidade e a justiça. Se as virtudes baseadas na força são imanentes, por pertencerem a Deus e ao homem, as que se fundamentam na compaixão afiguram-se transcendentes, já que a sua natureza é divina, embora possam ser comunicadas ao homem.
Ética é o cultivo dos dois grupos de virtudes. Porém, nenhuma ética minimamente aplicável e funcional permite o cultivo de todas as virtudes ao mesmo tempo. Devemos, por isso, entender toda ética filosófica e toda teologia moral como propostas de cultivo de um dos dois grupos de virtudes. Os sistemas éticos antigos, por exemplo, favoreciam o cultivo das virtudes da força; a ética cristã privilegia as virtudes transcendentes, baseadas na compaixão.
Mas, se a ética cristã é transcendente, por basear-se na compaixão, que só Deus possui originariamente, seus valores não se confundem com os que reconhecemos sob os nomes de amor, perdão, misericórdia etc. Os valores transcendentes se diferenciam das virtudes humanas correspondentes pela grandeza de que se revestem. Todo homem é capaz de amar, mas o amor divino é o amor revestido de grandeza. É o amor que levou o Logos a não se aferrar à própria glória, mas a se esvaziar, encarnar-se e assumir a forma de servo (Fp 2:6-7). Esvaziar-se da igualdade com Deus e tornar-se servo não é somente amar: é amar de modo tão grandioso que excede o próprio entendimento humano.
O mesmo se aplica a todas as outras virtudes transcendentes, que são as que costumamos designar pelas palavras graça, misericórdia, perdão etc. adicionadas a uma grandeza que não só as fortalece como as torna exclusivas da deidade. Porém, embora exclusivas de Deus, pela origem, essas virtudes comunicam-se ao homem por meio da fé.
Nas Escrituras, as virtudes transcendentes aparecem associadas à fé. Abraão é um ótimo exemplo. Ele creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça (Gn 15:6). Porém, a sua experiência não parou aí. Se seguirmos os passos do patriarca, em Gênesis, veremos que o amor que manifestou desde então não foi comum. Foi o amor que o levou a oferecer o seu filho Isaque em sacrifício. O próprio Deus declarou sobre esse ato de Abraão: “Jurei por mim mesmo, diz o Senhor, porquanto fizeste isso e não me negaste o teu único filho, que deveras te abençoarei e certamente multiplicarei a tua descendência como as estrelas dos céus e como a areia na praia do mar” (Gn 22:16-17).
A lealdade que Abraão demonstrou aos seus contemporâneos tampouco foi de um tipo comum. Quando Ló foi capturado, Abraão se envolveu numa guerra contra vários reis para libertá-lo (Gn 14). Seu empenho é sinal não apenas de amor, mas do compromisso que teve para com seu sobrinho, embora se tivessem separado e não vivessem mais juntos.
Sempre que alguém propôs a Abraão um pacto, recebeu dele a mais decidida e inflexível oferta de lealdade e amizade. Quando Sara faleceu, e os filhos de Hete ofereceram a Abraão uma de suas melhores sepulturas, para que nela depositasse o corpo de sua mulher, ele não foi só leal aos seus aliados. Diz a Escritura que, ao ouvir a oferta daqueles homens, “se levantou Abraão e se inclinou diante do povo da terra, diante dos filhos de Hete” (Gn 23:7). Esse ato de profunda reverência indica algo mais que fidelidade comum.
Do mesmo modo, a generosidade de Abraão não foi uma manifestação qualquer dessa virtude. Não vemos Abraão fazer a alguém uma oferta movido por necessidade. Abraão doa quando não precisa absolutamente fazê-lo. E, em várias ocasiões, se recusa a receber, quando outros lhe fazem uma dádiva. É o que ocorre, na guerra para libertar Ló, quando ele não aceita que o rei de Sodoma lhe faça uma doação. Diz o patriarca: “Levanto a mão ao Senhor, o Deus Altíssimo, o que possui os céus e a terra, e juro que nada tomarei de tudo o que te pertence, nem um fio, nem uma correia de sandália, para que não digas: Eu enriqueci a Abraão; nada quero para mim, senão o que os rapazes comeram e a parte que toca aos homens Aner, Escol e Manre [aliados de Abraão]” (Gn 14: 22-24). E, como se não bastasse essa liberalidade, a Melquisedeque, rei de Salém, Abraão dá “o dízimo de tudo” (Gn 14:20).
Esses atos têm mais que generosidade. Têm generosidade dilatada pelo livre oferecimento de si e do que é seu. Poderíamos dizer o mesmo das outras virtudes que Abraão demonstra. Nenhuma delas é a virtude em suas manifestações comuns, mas ela somada a uma grandeza que a transforma intimamente e a faz reluzir com um brilho particular.
Como a fé implica uma ética, mas não toda a ética, o cultivo das virtudes transcendentes tende a produzir a ausência das virtudes da força. A prontidão de Abraão para fazer guerra aos reis não nos engana. É exceção e não regra: um caso mais ou menos isolado. Em regra, Abraão nada tem de guerreiro. É o mais pacífico dos homens, o mais pronto a fazer concessões, a dar em vez de receber, a cumprir o seu dever do modo mais estrito possível. De um modo que lembra, até mesmo, o amor ao dever a que Kant se refere. Portanto, em Abraão, o crescimento das virtudes da compaixão leva ao fenecimento das virtudes associadas à força.
Se a ética é, pois, um cultivo, e o homem não pode cultivar todas as virtudes ao mesmo tempo, frequentemente acontece de a fé conduzir às virtudes transcendentes, não às da força. A fé cristã já foi acusada de falta por esse motivo. Nietzsche foi o mais implacável denunciante da sua propensão a produzir a atrofia das virtudes da força. Se a acusação é ou não totalmente justa é coisa a ser sopesada mais longamente. Que ela corresponde à bifurcação das virtudes em imanentes e transcendentes parece-me fora de dúvida.
Isso não significa que as virtudes da compaixão sejam destituídas da sua própria espécie de força. A compaixão é, no fundo, uma grande força. É, porém, força humilde, não arrogante, nem altiva. É força que brota da humildade, mas força de toda maneira. No capítulo 12, Paulo não nos exorta à fraqueza, mas à força ao dizer “Não torneis a ninguém mal por mal” (12:17) e “Não vos vingueis a vós mesmos [...] se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber” (12:19-20). Para praticar essas coisas, não é preciso fraqueza, mas força, ainda que força humilde e não arrogante.
O amor ao inimigo é uma força oposta à implacável vontade de poder. Isso tem consequências. Se as virtudes associadas à força não estão proscritas, sob o regime da fé, elas são deixadas à míngua até morrerem. É o que significa “Não vos vingueis” (12:9) e também “Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber” (12:19-20). Consequência da aplicação dessas máximas é a mortificação das virtudes da força.
O investimento das energias do sujeito no cultivo da compaixão leva ao não investimento nas virtudes da força. E o não investimento nessas virtudes tem como consequência “sermos fracos nele”, isto é, em Cristo (2 Co 13:4). A relação da fé com a fraqueza é, pois, inegável e inevitável. Trata-se de determinar o resultado prático dela. De acordo com Paulo, esse resultado é a lenta mortificação das virtudes associadas à força.
Nietzsche riu-se da teoria da seleção natural, que conquistava as consciências na sua época. Pareceu-lhe que a vida não pode ser uma luta por coisa tão básica quanto a sobrevivência, como Darwin tinha proposto. Pensou que o homem de fato luta, mas sua luta se fere por algo mais que a sobrevivência: "O verdadeiro instinto fundamental da vida, que tende à expansão do poder [...] sacrifica a autoconservação". Portanto, "a luta pela existência é apenas uma exceção, uma temporária restrição da vontade de vida" ((NIETZSCHE, Friedrich. Gaia ciência. 3ª reimpressão, São Paulo: Companhia das Letras, 2005. Livro V, nº 349, pp. 243-244). O homem luta pelo poder sobre o outro homem: "A luta grande e pequena gira sempre em torno da preponderância, de crescimento e expansão, de poder, conforme a vontade de poder, que é justamente a vontade de vida" (idem. p. 244). Só os fortes, os resistentes, os violentos, os empapuçados de vontade de poder estão aptos a vencer essa luta.
A doutrina de Nietzsche choca-se frontalmente com a ética cristã, não porque esta seja contrária à força, mas porque pressupõe que a vida não é só ou primordialmente luta pelo poder, embora também o seja. A vida está cheia de luta, mas não é essencialmente luta. Talvez ela possa ser definida do modo proposto por Vinícius de Moraes, ao afirmar que “a vida é a arte do encontro, embora esteja tão cheia de desencontros”. Mais do que luta, a vida é cooperação; mais do que desencontro, é encontro. Por isso, as virtudes associadas à compaixão têm mais a oferecer que as da força. E, como os dois grupos coexistem apenas enquanto o homem permanece contraditório, a ética cristã importa o declínio gradual da ética da força.
Para Paulo, “quem ama o próximo tem cumprido a lei. Pois isto: Não adulterarás, não matarás, não furtarás, não cobiçarás, e, se há qualquer outro mandamento, tudo nesta palavra se resume: Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (13:8-9). O amor é uma virtude transcendente de Deus. Só Deus é capaz de amar, em princípio e originariamente. O homem torna-se capaz de amar, por meio da fé. Quando ele crê, “o amor de Deus é derramado no seu coração pelo Espírito Santo” (5:5). Por isso, o amor não é posse originária dele, mas lhe é comunicado pelo próprio Deus.
A primeira tábua dos Dez Mandamentos enuncia o dever do homem para com Deus; a segunda, seu dever para com o próximo. Os preceitos citados, em 13:9, estão todos na segunda tábua. Tratam, pois, do dever do homem para com o próximo. Esse dever não é apenas externo. Não é mais um dever de conduta que de sentimento. Por isso, ao homem não basta fazer o que é certo. Deve fazer o que é certo com o sentimento certo, com amor, com compaixão que edifica.
O amor é a virtude violenta, a virtude revolucionária, a virtude que põe fim a um regime ético e introduz outro regime, que Jesus denominou reino de Deus. A finalidade da lei é o amor (13:10). Mas, se o amor cumpre a lei e exclui a força, a lei da força é ao mesmo tempo excluída. A ética da força é condenada à abrogação. Ser cristão não é ser forte, no sentido terreno. É até mesmo ser fraco. É deixar morrer as paixões da força. É não as alimentar, pois não há lugar para os dois grupos de virtudes. Ou os mansos herdarão a terra, ou os violentos. Não há, no canteiro do mundo, um palmo de espaço em que ambos possam coexistir.