quarta-feira, 9 de julho de 2014

José do Egito

Por todo o livro de Gênesis, encontramos relatos derivados de fontes antiquíssimas, umas escritas, outras orais, a respeito da Pré-História Bíblica. Essa derivação sugere que a base do texto é histórica, embora o autor interprete os acontecimentos narrados em termos da sua relação com Iahweh.
Quando chegamos à história de José, porém, tudo muda. As evidências de derivação de fontes antigas não desaparecem completamente, mas se tornam tênues. Por outro lado, a criação literária de narrativas e seus pormenores intensifica-se. De real, nessa história, permanece a menção de cargos egípcios típicos, como os de copeiro-chefe, padeiro-chefe (Gn 40:2), mágico (Gn 46:26-34), mordomo (Gn 39:4) e administrador do reino, posição ocupada pelo próprio José, assim como os costumes egípcios que menciona. Permanecem os pormenores que o texto cita e que se referem a fatos cuja existência foi comprovada por uma enorme coleção de fragmentos da época.
O arqueólogo John Thompson, de Cambridge, fornece elementos que permitem interpretar os relatos de José como ficção. De acordo com ele, “os reis hicsos formaram as dinastias XV e XVI [do Egito] e reinaram durante cerca de 140 anos. Eles estabeleceram uma segunda capital no delta oriental, em Avaris. Esses faraós semitas adotaram os costumes dos reis egípcios locais e usaram a administração egípcia de então, empregando oficiais egípcios de acordo com o antigo regime. No decorrer do tempo, oficiais semitas naturalizados ocuparam muitos desses cargos. Entre eles achava-se um certo Hur, que era uma espécie de chanceler” (THOMPSON, John Arthur. A Bíblia e a Arqueologia – quando a ciência descobre a fé. p. 60). As informações de Thompson permitem pensar que o costume hicso de empregar administradores semitas inspirou a criação de relatos parecidos com o de José.
Por outro lado, dados do texto bíblico, como a perfeição do caráter de José (tão destoante do de seus irmãos), a extensão dos dons sobrenaturais que possuía e a sua ascensão meteórica à testa do reino do Egito, indicam que a falta de informações precisas sobre esse patriarca pode ter sido preenchida com noções do imaginário judaico sobre o Período Hicso. Não é impossível que a criação tenha-se inspirado na figura histórica do chanceler egípcio Hur, mencionado por Thompson, ou em outra personagem semita que tenha ocupado cargo de destaque na administração do Egito, naquela época.
Não estou a afirmar que José viveu durante as Dinastias XV e XVI do Egito. A inspiração do relato bíblico em determinadas pessoas só indicará que José viveu na época delas, se os dados da sua história forem entendidos literalmente. Porém, não é essa a conclusão mais verossímil. Sabemos que os hicsos se estabeleceram, no Delta do Nilo, por volta de 1.790 a. C. A família de Jacó (Israel) tinha migrado para esse lugar, mais de dois séculos antes. Portanto, o José real, que foi filho de Jacó, viveu aproximadamente em 2.000 a. C. As narrativas bíblicas sobre ele, porém, ao que tudo indica, foram criadas mais de dois séculos depois, num contexto marcado pela presença dos hicsos ou pela lembrança deles.
Um dos motivos para a redação da história pode ter sido o fato de José ter arrebatado a primogenitura a Rúben, assim como seu pai, Jacó, a tomara a Esaú. A atribuição da primogenitura a José é comprovada pelo fato de seus filhos Manassés e Efraim terem recebido herança dobrada em Israel (Gn 48). Portanto, a história de José pode ter sido escrita, a partir de dados do Período Hicso, para explicar essa mudança inusitada.
Gênesis está longe de dissimular o caráter de ficção da história desse patriarca. Após ter narrado episódios da vida de Abraão, Isaque e Jacó e de os ter interpretado teologicamente, o autor do livro passa, repentinamente, a reproduzir uma série de padrões literários cujo caráter imaginativo não passa despercebido. Logo na primeira página da história de José, quando ele vai ao encontro de seus irmãos, que apascentam o rebanho e o avistam, eles têm tempo de discutir, traçar e pactuar um plano para tirar a vida do irmão mais novo, antes de ele chegar ao lugar em que estavam:
“De longe o viram e, antes que chegasse, conspiraram contra ele para o matar. E dizia um ao outro: Vem lá o tal sonhador! Vinde, pois, agora, matemo-lo, e lancemo-lo numa destas cisternas; e diremos: Um animal selvagem o comeu; e vejamos em que lhe darão os sonhos. Mas Rúben, ouvindo isso, livrou-o das mãos deles, e disse: Não lhe tiremos a vida. Também lhes disse Rúben: Não derrameis sangue; lançai-o nesta cisterna, que está no deserto, e não ponhais mão sobre ele; isto disse, para o livrar deles, a fim de o restituir ao pai (Gn 37:18-22).
A formulação, discussão e deliberação de um plano tão lógico estão, por si sós, muito além do que é razoavelmente possível, do ponto de vista cotidiano. Os irmãos de José estavam longe de ser figuras muito racionais ou calculistas. Alguns deles são descritos como pessoas sanguíneas e impulsivas. Ao menos é o que Gênesis coloca além de toda dúvida.
Porém, o livro não se limita a afirmar que os patriarcas criaram, discutiram e deliberaram adotar o seu plano perfeito, durante o tempo que José despendeu para chegar até eles. Acrescenta que eles realizaram a sua façanha deliberativa contra a vontade do primogênito Rúben, o que torna o relato ainda mais difícil de conceber, do ponto de vista dos costumes e instituições da época. Em 2.000 a. C., se existia uma chance de dez irmãos deliberarem uma pequena parte do que Gênesis 37 afirma que deliberaram, ela dependia da concordância do primogênito, negada expressamente pelo texto bíblico. Isso nos leva a concluir que o autor sagrado não tratou o relato da venda de José por seus irmãos como fato histórico.
Ainda mais impressionante é que o padrão deliberativo adotado pelos irmãos se repete, quando a caravana de ismaelitas se aproxima: “Olharam e viram que uma caravana de ismaelitas vinha de Gileade; seus camelos traziam arômatas, bálsamo e mirra, que levavam para o Egito. Então disse Judá a seus irmãos: De que nos aproveita matar o nosso irmão e esconder-lhe o sangue? Vinde, vendamo-lo aos ismaelitas; não ponhamos sobre ele a nossa mão, pois é nosso irmão e nossa carne. Seus irmãos concordaram. E, passando os mercadores midianitas, os irmãos de José o alçaram e o tiraram da cisterna e o venderam por vinte siclos de prata, aos ismaelitas; estes levaram José ao Egito. Tendo Rúben voltado à cisterna, eis que José não estava nela; então rasgou as suas vestes. E, voltando a seus irmãos, disse: Não está lá o menino (Gn 37:25-30).
Pela segunda vez, no mesmo capítulo, observamos a formulação de um plano complexo, sua discussão e a convergência de todos os irmãos contra a vontade do primogênito. Exatamente o que era inconcebível, no século XX e também depois. Claro que o imponderável pode ter ocorrido, mas não é comum as Escrituras o registrarem de modo tão diametralmente contrário aos costumes da época. Somos, pois, levados a concluir que o texto bíblico não dissimula o caráter imaginário dos pormenores da venda de José como escravo aos ismaelitas. Pelo contrário, admite-o implicitamente. E podemos acrescentar que essas mesmas características de criação repetem-se, nos capítulos seguintes da história do patriarca.
Não menos digno de nota é o fato de o verso 37:28, transcrito acima, identificar os viajantes que levaram José, sucessivamente, como midianitas e ismaelitas: "Passando os mercadores midianitas, os irmãos de José o alçaram e o tiraram da cisterna e o venderam por vinte siclos de prata, aos ismaelitas". Desde o desenvolvimento da chamada hipótese documentária, considera-se que a menção dos dois povos deve-se ao fato de a história de José sobrepor duas fontes (escritos originais) conhecidas como E (Eloísta) e J (Javista), que foram reunidas em Gênesis 37 a 50. Como considerava os dois relatos sagrados, o editor judeu utilizou-se delas, sem se atrever a apagar as suas contradições.
Essa interpretação de Gênesis leva-nos à conclusão de que José de fato existiu. Pode inclusive ter sido vendido como escravo por seus irmãos e ido parar no Egito, antes deles. Porém, ele não governou o país, já que os registros bastante completos daquele povo, relativos à época patriarcal, o calam completamente. A história de José registrada em Gênesis 39 a 47 foi criada para justificar a herança dobrada que os filhos desse patriarca receberam. Por isso, tem o nítido caráter de parábola bíblica.
A forma literária do relato imaginativo, cujas espécies são a lenda, o mito, a parábola, o apólogo, entre muitas outras, não é incompatível com o texto bíblico. Não há dúvida de que, nas Escrituras, prevalece o elemento histórico, porém o relato imaginativo não está ausente nelas. Quando se põe a ensinar por parábolas, Jesus não cria algo novo, renova uma prática antiga, até mesmo ancestral. O próprio conceito de parábola, para os judeus, era bastante elástico. Incluía numerosas espécies de textos imaginativos, como Joachin Jeremais mostrou numa obra que se fez clássica (JEREMIAS, Joachin. As parábolas de Jesus. São Paulo: Paulinas, 1976). O relato de José deve ser considerado um feixe ou conjunto de parábolas históricas, nesse sentido amplo do termo.
Porém, o relato é interceptado, após o episódio da venda de José aos ismaelitas, pela abrupta separação de Judá de seus irmãos (Gn 38). A intenção da interceptação pode ter sido relacionar a longa temporada de Judá numa família cananeia e a sua união a uma mulher local com a intervenção violenta dele na venda de José. O relato inserido nada tem de nobre. Está longe de exaltar Judá. Mas serve de elo inicial para a longa história posterior do desenvolvimento apartado da Tribo de Judá.
Nada há de ofensivo à inspiração divina da Bíblia, no emprego de textos imaginativos, como os encontrados na história de José. Até porque a intenção do escritor de Gênesis nunca foi iludir, alterar ou falsificar a verdade histórica, como ficou claro na discussão de Gênesis 37 desenvolvida acima. O desenvolvimento da pesquisa bíblica torna indispensável que o intérprete saiba reconhecer o caráter imaginativo de um texto, quando chega a ele, em vez de considerar que todas as narrativas têm o mesmo caráter. A atribuição de caráter histórico a todos os textos era típica do intérprete antigo. A atitude do moderno há de ser outra, mais consoante com o tempo atual e tanto mais necessária quanto a Teologia permanece carente de renovação nos nossos dias.