É natural que uma carta como Romanos, dirigida aos cristãos da capital do Império durante o primeiro século, se referisse ao poder secular do Estado e suas autoridades, em algum momento. É o que acontece nos versículos 1 a 7 do capítulo 13, nos quais Paulo não recomenda a oposição dos cristãos àquele poder, mas a sua submissão a ele.
A recomendação está permeada do sentimento não faccioso, nem preconceituoso, mas de santidade e separação com o qual a fé cristã veio ao mundo. Na iminência de ser preso, Jesus declarou: “O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros se empenhariam por mim, para que não fosse eu entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui” (Jo 18:36).
Declaração fortíssima de uma separação radical! Mas mesmo nela, está implícita a ausência de conflito entre o reino que é e o que não é deste mundo. Haveria conflito entre esses reinos se ambos fossem deste mundo: então, os cristãos teriam de pelejar com os que detêm o poder, no mundo, a fim de arrebatá-lo à força. Mas não é esse o caso, portanto o conflito secular está afastado.
A declaração de Jesus tampouco exprime uma espécie de conservadorismo político, já que não se traduz em posição política alguma. O que não tem relação com o poder terreno não pode ser conservador ou progressista. É diferente da política mundana, sem lhe ser favorável ou contrário. Por outro lado, a declaração de Jesus não implica que a fé cristã não possa inspirar posições políticas. Sem dúvida pode, mas não como a sua finalidade principal e sim como reflexo de seus princípios celestiais na ordem terrena.
Contudo, se a declaração de Jesus deixa claro que o seu reino é atemporal, quais devem ser as suas relações com a ordem temporal? Essa a pergunta que devia interessar sobremaneira aos cristãos romanos do primeiro século. Paulo não se interessa por respondê-la de modo completo, já que não era esse o objetivo da sua epístola. Mas propõe o que se pode considerar o núcleo de uma resposta ao escrever: “Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores, porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas”.
Se o reino de Cristo e o deste mundo constituem realidades diversas e inconfundíveis, por outro lado, ambos têm relação com Deus, pois foram por ele instituídos. E a origem da autoridade política em Deus, afirmada por Paulo, não implica que apenas ela seja divina, mas também o reino que ela governa. Se a autoridade é ministro do bem (13:4) e governa o mundo, segue-se que o mundo é bom.
O ensinamento cristão sobre o mundo não o apresenta como uma ordem descarada, na qual o mal impera sem limites e explicitamente. Assim como ocorre na igreja (embora em outra medida), as pessoas do mundo querem fazer o bem e não conseguem. Seu fracasso testemunha a vitória do elemento maligno no interior do mundo, mas demonstra ao mesmo tempo a operação de uma força oposta a ele. Essa força é a da lei secular, que atua por meio da autoridade.
Por isso, o mundo jaz no maligno (1 Jo 5:19), na medida em que a lei é sobrepujada pelo pecado. Ele não jaz no maligno sem que uma força benigna se oponha em certa medida a isso. Pelo menos, essa não é a descrição bíblica do mundo. É antes uma caricatura dela. O mundo, como a Bíblia o apresenta, foi criado por Deus e é um terreno no qual se fere a luta mortal entre a lei e o pecado. Enquanto a autoridade secular prevalece e consegue impor-lhe a sua ordem, o mundo permanece bom, pois a autoridade é ministro de Deus para o bem: “Porque os magistrados não são para temor quando se faz o bem, e, sim, quando se faz o mal. Queres tu não temer a autoridade? Faze o bem, e terás louvor dela; visto que a autoridade é ministro de Deus para teu bem” (13:3-4). Contudo, ali onde a autoridade não chega ou onde ela chega, mas não prevalece, o pecado tem a palma.
Paulo refere-se à autoridade que porta a espada. Apresenta-a com uma face severa e até mesmo cruel. A autoridade com a espada é a própria expressão da lei em transe, na sua luta contra o mal. Paulo não discute a justiça dos mandamentos romanos. Toma-a como um dado. Entende o direito romano como algo bom, assim como havia afirmado que a lei de Deus é santa, e o mandamento, santo, justo e bom (7:12). Chega a se referir à luta pela aplicação desse direito como o movimento febril do guerreiro que traz a espada, no campo de combate. Assim como o guerreiro trava uma luta de vida ou morte, a autoridade brande a sua espada, em transe contra as hostes do mal.
Observada por certo ângulo, a luta da autoridade poderia ser descrita como um esforço contra os que querem arrebatar-lhe o poder, o cetro, a coroa.Poderia ser descrita como pura e simples luta pelo poder e de fato o é. Mas Paulo vê nela algo mais. Vê na espada que se move por ordem do magistrado um sentido moral transcendente, uma relação com a ordem divina do mundo. A autoridade pune o mal, vinga a injustiça e, ao fazê-lo, se porta como ministro de Deus. Portanto, Deus é quem pune e vinga no seu lugar: “Se fizeres o mal, teme; porque não é sem motivo que ela traz a espada; pois é ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal” (13:4).
Alguém duvida de que os atos da longa lista que Paulo apresenta em 1:31 são maus? Alguém pensa que ele não considera tais atos passíveis de punição pelas autoridades romanas? E não devemos extrair disso que ele vê o castigo imposto pelas autoridades aos praticantes daqueles atos como manifestação da ira de Deus? Se Deus vinga e castiga, não é isso, afinal, a sua ira?
Paulo parece pressupor algo assim, ao ordenar: “Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores” (13:1); e ao acrescentar: “É necessário que lhe estejais sujeitos, não somente por causa do temor da punição, mas também por dever de consciência” (13:5). Se a consciência recomenda a submissão à autoridade, é porque ela é boa, não má.
Já se propôs que, por ser ministro de Deus, a autoridade deve ser obedecida em todas as situações: quando acerta e também quando erra. Essa conclusão é fruto de uma leitura desastrada de textos como Romanos 13:1-7. Há dois ensinamentos implícitos nesses versículos. O primeiro afirma que a autoridade é constituída por Deus. O outro informa que a autoridade constituída se faz ministro de Deus, quando pratica o bem e pune o mal. Não podemos operar a confusão dessas duas coisas. O fato de a autoridade ser dada de cima não a faz, imediatamente, ministro de Deus. É necessário algo mais que o poder para que a autoridade se torne um representante de Deus na Terra. Esse algo é a conformidade dela com a vontade divina: é o fato de praticar o bem e punir o mal.
Os versículos 1 a 7 foram escritos muito mais para nos mostrar o que é ser ministro de Deus do que para descrever a autoridade. A função de ministro depende da prática do bem e do combate ao mal. Alguém imagina Paulo a afirmar que a autoridade “é ministro de Deus, vingador, para castigar quem pratica o bem”? De modo nenhum, pois isso se opõe à intenção manifesta do texto, que é retratar a transformação da autoridade em ministro de Deus ao praticar o bem e punir o mal.
À autoridade que pratica o mal não se aplica Romanos 13:1-7. Aplica-se Oseias 8:4: “Estabeleceram reis, mas não da minha parte; constituíram príncipes, mas eu não o soube”. Se a situação mencionada nesse versículo está afirmada nas Escrituras, deve corresponder a uma real possibilidade. E notem que ela não se refere a um caso raro ou isolado. Não se refere sequer a um caso, mas a muitos, pois diz no plural: “estabeleceram reis”. E repete: “Constituíram príncipes”. Em outras palavras, o versículo mostra que não se levantaram um ou dois reis, nem um ou dois príncipes, mas toda uma sequência de reis e príncipes, sem que Deus tivesse a menor relação com eles. Isso nos leva a crer que a autoridade iníqua é, em princípio, tão possível quanto a boa autoridade.
Por que Pedro afirmou aos líderes judeus, que lhe ordenaram não falar de Jesus Cristo, “Antes importa obedecer a Deus do que aos homens” (At 5:29)? Não foi porque eles não representavam Deus? E por que Paulo escreveu que “nada podemos contra a verdade, senão a favor da própria verdade” (2 Co 13:8), a não ser porque a autoridade não se baseia no poder que alguém enfeixa nas mãos, mas na sujeição desse poder à vontade de Deus?
A autoridade ser ministro de Deus significa que Deus age por meio dela. Mas, se ela continua a ser ministro quando faz o mal, temos de concluir que Deus faz o mal por meio dela, já que o ministro é sempre um canal. Esse é, porém, o absurdo elevado à suprema perfeição! Deus jamais faz o mal. E, por uma razão tão simples quanto essa, o líder não representa Deus quando pratica o mal. Uma coisa é ser autoridade, outra é a autoridade ser ministro de Deus.
É, a meu ver, duvidoso o ensino propagado por Watchman Nee de que a submissão à autoridade é devida mesmo quando ela erra. Em Autoridade espiritual, lemos: "E se a autoridade estiver errada? A resposta é: Se Deus teve coragem de confiar sua autoridade aos homens, então precisamos de coragem para obedecer. Se a pessoa com autoridade está certa ou errada, não nos diz respeito, uma vez que é diretamente responsável para com Deus. Os obedientes só precisam obedecer; o Senhor não nos considerará responsáveis por qualquer erro devido à obediência" (NEE, Watchman. Autoridade espiritual. 3ª impressão, São Paulo: Vida, 1987. p. 85).
Nesse trecho, Nee sustenta que a autoridade (espiritual e secular) deve ser obedecida mesmo quando erra. Mas, em outros lugares, dá um passo atrás e reconhece que, quando o erro avulta além de certa medida, a obediência pode ou mesmo tem de ser dispensada. Porém, nesses casos extremos, a suspensão da obediência não autoriza a da submissão. Mesmo sem obedecer, deve-se continuar a ser submisso à autoridade. É o que Nee ensina.
Admito que a submissão possa ser concebida sem a obediência. Porém, o fato de podermos concebê-las separadamente no pensamento não quer dizer que seja fácil separá-las na vida prática, sem incorrer em incoerência. Qual é o sentido prático de uma submissão que não resulta em obediência? Ela só manterá a sua coerência, se a pessoa submissa não se furtar às consequências da insubordinação, ou seja, se não tentar escapar ao castigo dos desobedientes.
Devemos, porém, perguntar se a Bíblia nos ensina tal espécie de submissão. Se nos admoesta a aceitar as consequências da insubordinação à autoridade, quando ela nos tortura ou nos faz outra espécie de mal. Não encontro esse ensino nas Escrituras. Davi desobedeceu a Saul e passou a fugir dele. Os cristãos de Jerusalém desobedeceram às autoridades, ao continuarem a pregar o evangelho, e se dispersaram, quando perseguidos. Em nenhum desses casos, a entrega seguiu-se à desobediência. E no caso de Jesus? Vimos que ele se entregou, porém não desobedeceu às autoridades. Portanto, ou as Escrituras mostram que a desobediência esvazia a submissão, ou que a submissão importa a obediência.
Disso se conclui que a submissão às autoridades, ordenada em 13:1-7, não deixa qualquer espaço para a desobediência. Paulo está a ordenar submissão e obediência, não uma sem a outra, o que nos leva a concluir que, quando a autoridade se faz injusta, e a desobediência se torna a única opção, a submissão se esvazia. Quando se desalinha em relação à vontade de Deus, a autoridade deixa de ser seu ministro. E, quando deixa de ser ministro, ela perde o direito de reivindicar tanto obediência quanto submissão.
Por isso, o mandamento original e primeiro à autoridade é: “Quando se assentar no trono do seu reino, escreverá para si um traslado desta lei num livro, do que está diante dos levitas sacerdotes. E o terá consigo, e nele lerá todos os dias da sua vida, para que aprenda a temer ao Senhor seu Deus [...] Isto fará para que o seu coração não se eleve contra os seus irmãos, e não se aparte do mandamento, nem para a direita nem para a esquerda” (Dt 17:18-20).
Que deve fazer o rei? Deve ler o livro da lei, fonte de toda justiça. E onde deve encontrar esse livro? Com os levitas sacerdotes. Portanto, a regra consistente em governar com base no livro da lei se aplica não só ao rei, mas também ao sacerdote. Enfim, a toda e qualquer autoridade. Esse é o princípio da liderança. Esta, a verdade contra a qual não temos poder algum.
Por que a submissão é devida à autoridade? Ela é devida por causa da verdade e na medida em que a verdade se faz presente. Quando a verdade ocorre, quando ela se manifesta e se faz habitual, numa autoridade, então a submissão se torna a mais doce de todas as experiências. Isso porque a verdade deixa de estar num livro ou numa pregação e se encarna numa pessoa. Perde a consistência de palavras e ganha a de atos. Torna-se, assim, exemplo e permite que “o reino de Deus consista não em palavras, mas em poder” (1 Co 4:10).
Alguém perguntará: e se uma pessoa possuir a verdade, mas não a autoridade? Pergunto se isso é realmente possível. Os que afirmam que o é pensam no caso de alguém que obteve o depósito da palavra de Deus sem ter sido investido no seu ministério por um órgão ou poder central. Pensam nos casos de Jesus Cristo e de Paulo: não na ausência da autoridade, mas apenas do seu invólucro.
sexta-feira, 30 de maio de 2014
sábado, 17 de maio de 2014
História Hipotética da Igreja (4): Tertuliano e o Pensamento Radical
As obras de Tertuliano de Cartago revelam um homem dotado de convicções fortíssimas, inabalável fé na redenção de Cristo e dotes intelectuais insuspeitos.
Porém, como escritor, é que a familiaridade que possuía com o foro e o Direito Romano garantem a Tertuliano algo mais do que a proficiência: fazem-no um dos maiores argumentadores da Literatura Antiga. Em todo o Período Patrístico, o Apologético talvez seja o maior exemplar de literatura teológica e, ao mesmo tempo, forense, por um lado cristã, por outro lado embebida no pensamento clássico. Deparamos nela não só a eloquência, mas o uso do argumento como instrumento de poder e até como arma. Isso porque, ao defender os cristãos naquela obra, Tertuliano o faz por meio de ataques contínuos às injustiças, à contradição e à impiedade das autoridades romanas que os perseguiam. Tudo sem o menor traço de medo ou subterfúgio, dirigindo-se sempre diretamente às autoridades do Império.
O Apologético pertence ao que se costuma reconhecer como período católico de Tertuliano, em oposição à parte de sua existência que ele dedicou ao movimento montanista. Porém, a característica tanto da sua vida como do seu pensamento que pretendo destacar, neste texto, expressa-se mais na etapa montanista em que, pela primeira vez na História, alguém batizou e cristianizou o pensamento radical: exatamente Tertuliano, o tribuno.
O montanismo a que nosso autor aderiu foi um movimento iniciado, na Frígia, por volta de 165 d. C. Propunha a retomada da esperança no fim desta era, mediante o retorno de Cristo. Como preparação para esse grande acontecimento, o montanismo pregava o aumento da disciplina e um maior rigor nos costumes. Jejuns prolongados e abstinência sexual que, em alguns casos, chegava ao extremo da proibição do casamento eram enfatizados como modos de promover a santificação e preparar as pessoas para o retorno de Cristo.
Com o tempo, o montanismo se tornou cada vez mais separatista, o que lhe rendeu condenações por heresia. Porém, no princípio, isto é, na época de Montano, seu fundador, e de Tertuliano, foi reconhecido mais como um movimento em prol da disciplina do que como fonte de desvios doutrinários. É o que vemos confirmado nos escritos da fase montanista de Tertuliano, entre os quais se destaca A pudicícia.
Mesmo assim, Tertuliano permanece o mais eminente exemplo dos efeitos do pensamento radical na teologia dos pais. Foi ele quem introduziu esse pensamento na patrística, já que, até então, a teologia tinha somente ressaibos de radicalismo. De fato, em Paulo e nos mártires dos dois primeiros séculos, encontramos coerência de fé e conduta, não aquele grau de inflexibilidade e exclusivismo ou o estreitamento de vistas que constituem marcas características do pensamento radical. Coube, pois, a Tertuliano, mais que a qualquer outro líder cristão, realizar a transmutação doutrinária que instalou o radicalismo no seio da patrística.
Todavia, a propensão ao radicalismo estava presente, desde o princípio, na igreja primitiva. No texto sobre as divisões em Corinto, vimos que o conservadorismo já pairava ali. A radicalidade foi o sopro de vida necessário para que ele se exteriorizasse e se fizesse dominante na igreja. Sem ela, as instituições e os valores romanos tradicionais nunca teriam alcançado o prestígio que alcançaram e que lhes permitiu se impor a uma igreja perseguida e marginalizada pelo poder político.
Como a propensão ao radicalismo manifestou-se na igreja, ao longo dos primeiros séculos? O Tertuliano da etapa católica nos ajuda a responder tal pergunta. Sua proximidade do radicalismo já se percebe no Apologético. Ela se manifesta, antes de tudo, sob a forma da adesão inflexível e peculiar de Tertuliano ao princípio de não contradição. O radicalismo e o dogmatismo em que esse princípio irá traduzir-se, após a união da Igreja e do Império, são às vezes apresentados como contrassensos, mas isso é exatamente o que eles não são. Tanto um como o outro são frutos de uma lógica inflexível, não de uma ausência de lógica.
Daí o gosto particular de Tertuliano pela denúncia das contradições dos seus adversários. Algumas passagens do Apologético bastarão para percebermos isso, a começar pelas de cunho judicial: “Trajano [o Imperador] escreveu que os cristãos não deviam ser perseguidos, mas, se fossem conduzidos à sua presença, deviam ser punidos. Miserável livramento este que se subordinava à necessidade de um caso particular: uma contradição!” (TERTULIANO, Apologético. Cap. 2). E de novo: “Vós agis contra as formas legais, contra a natureza da justiça pública e até contra as próprias leis” (idem).
Às contradições dos pagãos, que duvidavam, em alguns casos, da existência dos deuses e continuavam a lhes prestar culto, Tertuliano opõe a coerência dos cristãos, que não creem nos deuses e, por isso, não os adoram: “Não adoramos os vossos deuses, pois sabemos que tais seres não existem” (idem. Cap. 10). Não é mais tolerante com as incongruências relacionadas aos efeitos práticos da piedade: “Quando as nuvens de verão não dão suas chuvas e o tempo se torna objeto de ansiedade, cheios de festas e jamais satisfeitos com vossos banquetes, banhos, tabernas e bordeis, ofereceis sacrifícios para que Júpiter vos conceda chuvas [...] enquanto nós secamos em jejuns, mantemos cativas nossas paixões, abstemo-nos tanto quanto possível dos prazeres ordinários da vida, vestimo-nos de saco e de cinzas, tomamos de assalto os céus com as nossas súplicas, tocamos o coração de Deus. E, quando a esse preço despertamos a compaixão divina, vós atribuis a Júpiter toda a honra!” (idem. Cap. 40).
Porém, a passagem em que expõe as contradições da religião romana com maior eloquência é a mais conhecida de todas as que saíram de sua pena: “Quanto mais somos ceifados por vós, mais aumenta o nosso número. O sangue dos cristãos é semente. Quantos dos vossos escritores exortaram a arrostar com bravura a dor e a morte, assim como Cícero nas suas Disputas, Sêneca em Fortuna, Diógenes, Pirro e Calínico! Contudo, as suas palavras não encontraram tantos discípulos quanto os atos dos cristãos” (idem. Cap. 50). Os romanos tinham o discurso sobre a coragem; os cristãos, o exemplo.
O tribuno tampouco perdoa as oposições que percebe entre as escolas filosóficas: “A partir de uma revelação simples de Deus, os filósofos põem-se a discutir não como ele lhes foi revelado, mas quais são as suas propriedades, sua natureza e morada. Alguns (os platônicos) dizem que ele é incorpóreo, outros (estoicos) que possui um corpo. Uns o pensam formado por átomos, outros por números: são as opiniões de Epicuro e Pitágoras. Ainda outros o consideram o fogo (Heráclito e sua escola). Os platônicos declaram que Deus administra os acontecimentos do mundo, os epicuristas afirmam, ao contrário, que é inerte e inativo. Os estoicos o representam fora do mundo, os platônicos, dentro dele” (idem. Cap. 47). Esse desfile de contradições está à base da rejeição pura e simples da Filosofia por Tertuliano.
Vemos que nosso autor tem horror entranhado à contradição. Denuncia-a continuamente, repudia-a, faz dela motivo de graves acusações, evita-a a todo custo. Mas esse horror o impede de entender a contradição como parte da conduta humana. Impede-o ainda mais de admiti-la como dado legítimo do pensamento que não abala o princípio de não contradição, mas apenas o torna uma regra sujeita a exceções como todas as outras.
Contudo, o trato da contradição é apenas o antecedente lógico do radicalismo. Não é ainda ele próprio. O terreno em que Tertuliano planta as sementes da radicalização não é o da lógica, mas o da moral. Insatisfeito com as contradições que encontra no meio cristão, entre as quais avulta o contraste entre a pregação do fervor e a frieza prática, nosso autor adere à pregação montanista. Toma-a como instrumento da transformação que julga necessária na doutrina e na prática dos cristãos. E elege a moral sexual como ponto de partida da sua empreitada.
Para entender essa guinada de posição, outra obra de Tertuliano (A pudicícia) é-nos de grande ajuda. Ela parece ter sido escrita com o propósito de denunciar o decreto pelo qual Agripino (218-222), bispo de Cartago, perdoou os pecados de adultério e fornicação de todos os que se haviam arrependido deles. Contra esse perdão e a ambiguidade consistente em concedê-lo e não perdoar o homicídio e a idolatria, é que Tertuliano se insurge.
No episódio do perdão dos pecados sexuais, a aversão de Tertuliano ao ambíguo chega à consumação. Ele delimita perfeitamente o objeto da sua indignação: o fato de o sentimento de pudor (pudicícia) ter-se tornado “não a renúncia, mas a moderação dos prazeres sexuais” (TERTULIANO. A pudicícia. Madrid, Ciudad Nueva, 2011. p. 165). Na prática, acrescenta ele, essa mitigação se revela como “permissão para casar quantas vezes quiser, a fim de não sucumbir ao adultério e à fornicação, tudo sob pretexto de que mais vale casar-se do que abrasar-se” (idem. p. 173).
Qual o fundamento de Tertuliano para entender tal atitude como atentatória à revelação divina? Seu fundamento são os mandamentos bíblicos, a lei de Deus ou, se preferirem, “aquele fundo dela que Cristo não aboliu, mas consumou” (idem. p. 201). O teólogo se agarra aos 10 Mandamentos. Mostra que a forma negativa ou de proibição que eles assumem os torna uma declaração dos pecados capitais. Como o adultério se encontra entre esses 10 pecados, Tertuliano abomina a prática de perdoá-lo e não perdoar outros pecados da mesma lista, como a idolatria e o homicídio. Vê nisso uma aberração.
O enquadramento de um ato como pecado capital tem significado especial para Tertuliano. Todo pecado capital é mortal, afiança-nos. Por isso, é irremissível. Não pode ser perdoado. Tal posição envolve, porém, uma vantagem e uma desvantagem. A vantagem consiste em dar a devida ênfase aos textos bíblicos que se referem a pecados imperdoáveis. A desvantagem, em inserir uma quantidade demasiada de condutas no molde genérico desses pecados.
1ª de João 5:16 nos diz: “Se alguém vir a seu irmão cometer pecado não para a morte, pedirá, e Deus lhe dará vida, aos que não pecam para morte. Há pecado para morte e por esse não digo que rogue”. O verso não poderia ser mais claro: “há pecado para a morte”. Por ele, Tertuliano entende um pecado imperdoável. E que pecado pode ser imperdoável, a não ser o que se caracteriza como capital? Se Deus outorgou 10 mandamentos negativos como declaração do que lhe repugna, ninguém está autorizado a escolher alguns dentre eles como mortais e concluir que os demais não o são. Todos os 10 pecados proibidos pelas tábuas da lei são mortais. São “pecados para a morte”, como nos diz 1ª de João, portanto são erros irremissíveis.
Falta, porém, em Tertuliano, uma prova robusta do conteúdo dos pecados ditos irremissíveis. A identificação com os 10 Mandamentos, que ele realiza, não é suficientemente clara. Em qual desses preceitos a blasfêmia contra o Espírito Santo, que Jesus declarou imperdoável (Mt 12:31-32), se enquadra? No primeiro, que diz “Não terás outros deuses diante de mim” (Êx 20:3; Dt 5:7)? Blasfemar não é o mesmo que cultuar outro deus. Tampouco equivale a construir um ídolo (Êx 20:4-5, 7). Pode-se indagar se é o mesmo que usar o nome de Deus em vão (Dt 5:8-9, 11). Mas, se o for, esse mandamento terá o sentido mais amplo (e vago) possível. Qual a aplicabilidade prática de um mandamento tão amplo e tão vago?
Vemos que os 10 Mandamentos não são condutas inteiramente definidas. Não temos uma lista dos comportamentos que se enquadram neles e não somos admitidos a escrevê-la por nossa própria conta. Os mandamentos devem, pois, ser tomados como linhas de comportamento, como orientações para a conduta, mais do que como condutas muito definidas. Seu sentido está sujeito a interpretações e variações, de acordo com as circunstâncias variáveis.
Mas, se dúvidas tão ponderáveis cercam a interpretação dos 10 Mandamentos e dos pecados irremissíveis, por que Deus se referiu a eles? Que mensagem quis transmitir-nos por meio deles? Tertuliano não hesita em afirmar que a mensagem é um rol muito bem definido de condutas abomináveis e imperdoáveis.
Para escapar a essa conclusão, falta-lhe o reconhecimento do antitético e do ambivalente, no interior da palavra de Deus. Para ser a palavra de Deus terão os 10 Mandamentos de excluir o antitético, o ambíguo, o duvidoso, todos eles inseparáveis da vida humana? Não permanecerão a palavra de Deus com aqueles elementos? Não o serão ainda mais por contê-los? Palavra não é comunicação? Pode alguém se comunicar sem dizer algo relativo à condição de quem o ouve? E os homens: não são ambíguos e contraditórios?
Grupos cristãos continuam a isolar-se de outros, até mesmo de todos os outros, em pleno século XXI. Não o fazem por motivo distinto do radicalismo e da obsessão pelo rigor isento de toda contradição. O radicalismo cristão de hoje se liga ao de ontem. São um só em princípio, mas nem por isso são justificados. No fundo, o radicalismo age como se o homem não fosse a oposição entre o pó da terra e o sopro divino. Como se ele não fosse a constante tensão entre essas duas naturezas. E como se a tensão não se tivesse complicado pela queda. Enfim, como se o homem não fosse exatamente aquilo que é. Seu problema é, enfim, coar as contradições menores e deixar passar a maior.
Porém, como escritor, é que a familiaridade que possuía com o foro e o Direito Romano garantem a Tertuliano algo mais do que a proficiência: fazem-no um dos maiores argumentadores da Literatura Antiga. Em todo o Período Patrístico, o Apologético talvez seja o maior exemplar de literatura teológica e, ao mesmo tempo, forense, por um lado cristã, por outro lado embebida no pensamento clássico. Deparamos nela não só a eloquência, mas o uso do argumento como instrumento de poder e até como arma. Isso porque, ao defender os cristãos naquela obra, Tertuliano o faz por meio de ataques contínuos às injustiças, à contradição e à impiedade das autoridades romanas que os perseguiam. Tudo sem o menor traço de medo ou subterfúgio, dirigindo-se sempre diretamente às autoridades do Império.
O Apologético pertence ao que se costuma reconhecer como período católico de Tertuliano, em oposição à parte de sua existência que ele dedicou ao movimento montanista. Porém, a característica tanto da sua vida como do seu pensamento que pretendo destacar, neste texto, expressa-se mais na etapa montanista em que, pela primeira vez na História, alguém batizou e cristianizou o pensamento radical: exatamente Tertuliano, o tribuno.
O montanismo a que nosso autor aderiu foi um movimento iniciado, na Frígia, por volta de 165 d. C. Propunha a retomada da esperança no fim desta era, mediante o retorno de Cristo. Como preparação para esse grande acontecimento, o montanismo pregava o aumento da disciplina e um maior rigor nos costumes. Jejuns prolongados e abstinência sexual que, em alguns casos, chegava ao extremo da proibição do casamento eram enfatizados como modos de promover a santificação e preparar as pessoas para o retorno de Cristo.
Com o tempo, o montanismo se tornou cada vez mais separatista, o que lhe rendeu condenações por heresia. Porém, no princípio, isto é, na época de Montano, seu fundador, e de Tertuliano, foi reconhecido mais como um movimento em prol da disciplina do que como fonte de desvios doutrinários. É o que vemos confirmado nos escritos da fase montanista de Tertuliano, entre os quais se destaca A pudicícia.
Mesmo assim, Tertuliano permanece o mais eminente exemplo dos efeitos do pensamento radical na teologia dos pais. Foi ele quem introduziu esse pensamento na patrística, já que, até então, a teologia tinha somente ressaibos de radicalismo. De fato, em Paulo e nos mártires dos dois primeiros séculos, encontramos coerência de fé e conduta, não aquele grau de inflexibilidade e exclusivismo ou o estreitamento de vistas que constituem marcas características do pensamento radical. Coube, pois, a Tertuliano, mais que a qualquer outro líder cristão, realizar a transmutação doutrinária que instalou o radicalismo no seio da patrística.
Todavia, a propensão ao radicalismo estava presente, desde o princípio, na igreja primitiva. No texto sobre as divisões em Corinto, vimos que o conservadorismo já pairava ali. A radicalidade foi o sopro de vida necessário para que ele se exteriorizasse e se fizesse dominante na igreja. Sem ela, as instituições e os valores romanos tradicionais nunca teriam alcançado o prestígio que alcançaram e que lhes permitiu se impor a uma igreja perseguida e marginalizada pelo poder político.
Como a propensão ao radicalismo manifestou-se na igreja, ao longo dos primeiros séculos? O Tertuliano da etapa católica nos ajuda a responder tal pergunta. Sua proximidade do radicalismo já se percebe no Apologético. Ela se manifesta, antes de tudo, sob a forma da adesão inflexível e peculiar de Tertuliano ao princípio de não contradição. O radicalismo e o dogmatismo em que esse princípio irá traduzir-se, após a união da Igreja e do Império, são às vezes apresentados como contrassensos, mas isso é exatamente o que eles não são. Tanto um como o outro são frutos de uma lógica inflexível, não de uma ausência de lógica.
Daí o gosto particular de Tertuliano pela denúncia das contradições dos seus adversários. Algumas passagens do Apologético bastarão para percebermos isso, a começar pelas de cunho judicial: “Trajano [o Imperador] escreveu que os cristãos não deviam ser perseguidos, mas, se fossem conduzidos à sua presença, deviam ser punidos. Miserável livramento este que se subordinava à necessidade de um caso particular: uma contradição!” (TERTULIANO, Apologético. Cap. 2). E de novo: “Vós agis contra as formas legais, contra a natureza da justiça pública e até contra as próprias leis” (idem).
Às contradições dos pagãos, que duvidavam, em alguns casos, da existência dos deuses e continuavam a lhes prestar culto, Tertuliano opõe a coerência dos cristãos, que não creem nos deuses e, por isso, não os adoram: “Não adoramos os vossos deuses, pois sabemos que tais seres não existem” (idem. Cap. 10). Não é mais tolerante com as incongruências relacionadas aos efeitos práticos da piedade: “Quando as nuvens de verão não dão suas chuvas e o tempo se torna objeto de ansiedade, cheios de festas e jamais satisfeitos com vossos banquetes, banhos, tabernas e bordeis, ofereceis sacrifícios para que Júpiter vos conceda chuvas [...] enquanto nós secamos em jejuns, mantemos cativas nossas paixões, abstemo-nos tanto quanto possível dos prazeres ordinários da vida, vestimo-nos de saco e de cinzas, tomamos de assalto os céus com as nossas súplicas, tocamos o coração de Deus. E, quando a esse preço despertamos a compaixão divina, vós atribuis a Júpiter toda a honra!” (idem. Cap. 40).
Porém, a passagem em que expõe as contradições da religião romana com maior eloquência é a mais conhecida de todas as que saíram de sua pena: “Quanto mais somos ceifados por vós, mais aumenta o nosso número. O sangue dos cristãos é semente. Quantos dos vossos escritores exortaram a arrostar com bravura a dor e a morte, assim como Cícero nas suas Disputas, Sêneca em Fortuna, Diógenes, Pirro e Calínico! Contudo, as suas palavras não encontraram tantos discípulos quanto os atos dos cristãos” (idem. Cap. 50). Os romanos tinham o discurso sobre a coragem; os cristãos, o exemplo.
O tribuno tampouco perdoa as oposições que percebe entre as escolas filosóficas: “A partir de uma revelação simples de Deus, os filósofos põem-se a discutir não como ele lhes foi revelado, mas quais são as suas propriedades, sua natureza e morada. Alguns (os platônicos) dizem que ele é incorpóreo, outros (estoicos) que possui um corpo. Uns o pensam formado por átomos, outros por números: são as opiniões de Epicuro e Pitágoras. Ainda outros o consideram o fogo (Heráclito e sua escola). Os platônicos declaram que Deus administra os acontecimentos do mundo, os epicuristas afirmam, ao contrário, que é inerte e inativo. Os estoicos o representam fora do mundo, os platônicos, dentro dele” (idem. Cap. 47). Esse desfile de contradições está à base da rejeição pura e simples da Filosofia por Tertuliano.
Vemos que nosso autor tem horror entranhado à contradição. Denuncia-a continuamente, repudia-a, faz dela motivo de graves acusações, evita-a a todo custo. Mas esse horror o impede de entender a contradição como parte da conduta humana. Impede-o ainda mais de admiti-la como dado legítimo do pensamento que não abala o princípio de não contradição, mas apenas o torna uma regra sujeita a exceções como todas as outras.
Contudo, o trato da contradição é apenas o antecedente lógico do radicalismo. Não é ainda ele próprio. O terreno em que Tertuliano planta as sementes da radicalização não é o da lógica, mas o da moral. Insatisfeito com as contradições que encontra no meio cristão, entre as quais avulta o contraste entre a pregação do fervor e a frieza prática, nosso autor adere à pregação montanista. Toma-a como instrumento da transformação que julga necessária na doutrina e na prática dos cristãos. E elege a moral sexual como ponto de partida da sua empreitada.
Para entender essa guinada de posição, outra obra de Tertuliano (A pudicícia) é-nos de grande ajuda. Ela parece ter sido escrita com o propósito de denunciar o decreto pelo qual Agripino (218-222), bispo de Cartago, perdoou os pecados de adultério e fornicação de todos os que se haviam arrependido deles. Contra esse perdão e a ambiguidade consistente em concedê-lo e não perdoar o homicídio e a idolatria, é que Tertuliano se insurge.
No episódio do perdão dos pecados sexuais, a aversão de Tertuliano ao ambíguo chega à consumação. Ele delimita perfeitamente o objeto da sua indignação: o fato de o sentimento de pudor (pudicícia) ter-se tornado “não a renúncia, mas a moderação dos prazeres sexuais” (TERTULIANO. A pudicícia. Madrid, Ciudad Nueva, 2011. p. 165). Na prática, acrescenta ele, essa mitigação se revela como “permissão para casar quantas vezes quiser, a fim de não sucumbir ao adultério e à fornicação, tudo sob pretexto de que mais vale casar-se do que abrasar-se” (idem. p. 173).
Qual o fundamento de Tertuliano para entender tal atitude como atentatória à revelação divina? Seu fundamento são os mandamentos bíblicos, a lei de Deus ou, se preferirem, “aquele fundo dela que Cristo não aboliu, mas consumou” (idem. p. 201). O teólogo se agarra aos 10 Mandamentos. Mostra que a forma negativa ou de proibição que eles assumem os torna uma declaração dos pecados capitais. Como o adultério se encontra entre esses 10 pecados, Tertuliano abomina a prática de perdoá-lo e não perdoar outros pecados da mesma lista, como a idolatria e o homicídio. Vê nisso uma aberração.
O enquadramento de um ato como pecado capital tem significado especial para Tertuliano. Todo pecado capital é mortal, afiança-nos. Por isso, é irremissível. Não pode ser perdoado. Tal posição envolve, porém, uma vantagem e uma desvantagem. A vantagem consiste em dar a devida ênfase aos textos bíblicos que se referem a pecados imperdoáveis. A desvantagem, em inserir uma quantidade demasiada de condutas no molde genérico desses pecados.
1ª de João 5:16 nos diz: “Se alguém vir a seu irmão cometer pecado não para a morte, pedirá, e Deus lhe dará vida, aos que não pecam para morte. Há pecado para morte e por esse não digo que rogue”. O verso não poderia ser mais claro: “há pecado para a morte”. Por ele, Tertuliano entende um pecado imperdoável. E que pecado pode ser imperdoável, a não ser o que se caracteriza como capital? Se Deus outorgou 10 mandamentos negativos como declaração do que lhe repugna, ninguém está autorizado a escolher alguns dentre eles como mortais e concluir que os demais não o são. Todos os 10 pecados proibidos pelas tábuas da lei são mortais. São “pecados para a morte”, como nos diz 1ª de João, portanto são erros irremissíveis.
Falta, porém, em Tertuliano, uma prova robusta do conteúdo dos pecados ditos irremissíveis. A identificação com os 10 Mandamentos, que ele realiza, não é suficientemente clara. Em qual desses preceitos a blasfêmia contra o Espírito Santo, que Jesus declarou imperdoável (Mt 12:31-32), se enquadra? No primeiro, que diz “Não terás outros deuses diante de mim” (Êx 20:3; Dt 5:7)? Blasfemar não é o mesmo que cultuar outro deus. Tampouco equivale a construir um ídolo (Êx 20:4-5, 7). Pode-se indagar se é o mesmo que usar o nome de Deus em vão (Dt 5:8-9, 11). Mas, se o for, esse mandamento terá o sentido mais amplo (e vago) possível. Qual a aplicabilidade prática de um mandamento tão amplo e tão vago?
Vemos que os 10 Mandamentos não são condutas inteiramente definidas. Não temos uma lista dos comportamentos que se enquadram neles e não somos admitidos a escrevê-la por nossa própria conta. Os mandamentos devem, pois, ser tomados como linhas de comportamento, como orientações para a conduta, mais do que como condutas muito definidas. Seu sentido está sujeito a interpretações e variações, de acordo com as circunstâncias variáveis.
Mas, se dúvidas tão ponderáveis cercam a interpretação dos 10 Mandamentos e dos pecados irremissíveis, por que Deus se referiu a eles? Que mensagem quis transmitir-nos por meio deles? Tertuliano não hesita em afirmar que a mensagem é um rol muito bem definido de condutas abomináveis e imperdoáveis.
Para escapar a essa conclusão, falta-lhe o reconhecimento do antitético e do ambivalente, no interior da palavra de Deus. Para ser a palavra de Deus terão os 10 Mandamentos de excluir o antitético, o ambíguo, o duvidoso, todos eles inseparáveis da vida humana? Não permanecerão a palavra de Deus com aqueles elementos? Não o serão ainda mais por contê-los? Palavra não é comunicação? Pode alguém se comunicar sem dizer algo relativo à condição de quem o ouve? E os homens: não são ambíguos e contraditórios?
Grupos cristãos continuam a isolar-se de outros, até mesmo de todos os outros, em pleno século XXI. Não o fazem por motivo distinto do radicalismo e da obsessão pelo rigor isento de toda contradição. O radicalismo cristão de hoje se liga ao de ontem. São um só em princípio, mas nem por isso são justificados. No fundo, o radicalismo age como se o homem não fosse a oposição entre o pó da terra e o sopro divino. Como se ele não fosse a constante tensão entre essas duas naturezas. E como se a tensão não se tivesse complicado pela queda. Enfim, como se o homem não fosse exatamente aquilo que é. Seu problema é, enfim, coar as contradições menores e deixar passar a maior.
quinta-feira, 15 de maio de 2014
Josué em Jericó (2)
As pessoas que, por motivos religiosos, aceitam os relatos bíblicos como verdadeiros explicam a presença do povo de Israel em Canaã pelas conquistas lideradas por Josué. Foram elas que permitiram a Israel apossar-se da terra que Deus prometera a Abraão, Isaque e Jacó. Porém, em oposição a esse ponto de vista tradicional, os historiadores críticos costumam negar que Israel tenha tomado posse de Canaã pela força. Afirmam, ao contrário, que penetrou ali pacificamente e passou a coabitar com os povos locais.
Essa diferença de posições sobre um ponto fundamental da História dos Judeus coloca-nos um grave dilema. Quem, afinal, está com a razão: os que creem no relato bíblico das conquistas do modo como está redigido ou os que postulam a penetração pacífica, com base em evidências arqueológicas?
A verdade sobre esse assunto parece envolver a combinação das posições tradicional e crítica. Por um lado, dispomos de abundantes confirmações das conquistas narradas na Bíblia; por outro, há evidências não menos significativas de que os israelitas penetraram, gradativamente, nos lugares que não puderam conquistar. Georg Föhrer escreveu sobre esse último processo: “Um exame das mais tardias localizações das tribos israelitas demonstra que eles frequentemente se estabeleceram naquelas regiões da Palestina que eram então desabitadas ou apenas escassamente povoadas. Naqueles lugares reivindicados e que não estavam ainda demarcados e, portanto, sem dono, seu estabelecimento foi essencialmente pacífico” (FÖHRER, Georg. História da religião de Israel. Santo André/São Paulo: Academia Cristã/Paulus, 2008. p. 76).
Föhrer está a sugerir que os israelitas fizeram seu lar nas terras fáceis de ocupar e, nas demais, penetraram lenta e pacificamente. As primeiras eram as regiões montanhosas e remotas; as últimas correspondiam às planícies e pequenas elevações. É importante lembrar que Föhrer admite as conquistas, porém, do relato acima, extraímos que, na sua concepção, elas foram mais exceções do que a regra no processo de ocupação de Canaã.
A questão a ser enfrentada é até que ponto esse entendimento de que as conquistas foram acontecimentos isolados, meros pontos na linha do tempo de Israel, pode ser prestigiado como verdadeiro. A penetração pacífica foi o método precípuo, pelo qual Israel obteve a posse da terra? Esse entendimento não colide com as informações do Livro de Josué, que descreve as conquistas de numerosas cidades e, em seguida, a partilha da Terra de Canaã entre as Doze Tribos?
A interpretação literal de Josué levou os estudiosos, ao longo dos séculos, a entender que os israelitas não só passaram a morar em Canaã, mas a controlá-la a partir das conquistas narradas na Bíblia. E ela não está errada, já que o controle hebreu é sugerido em Josué. Porém, uma leitura atenta dos livros históricos das Escrituras mostra que o testemunho bíblico não é exatamente esse. Juízes, por exemplo, afirma que os israelitas dominaram somente “as montanhas”, pois não lograram desalojar os cananeus de outros lugares, devido à superioridade militar destes: “Então disseram os filhos de José [...] todos os cananeus que habitam na terra do vale têm carros de ferro”; “Judá despovoou as montanhas; porém não expulsou os moradores do vale, porquanto tinham carros de ferro”; “Jabim tinha novecentos carros de ferro e, por vinte anos, oprimia duramente os filhos de Israel” (Js 17:16; Jz 1: 19; 4:3).
Por muito tempo, os intérpretes literais passaram por cima do verso que diz que Israel “não expulsou os moradores do vale” não, obviamente, por julgarem que contém uma informação falsa, mas um dado menor. Em conjunto e no todo, para aqueles intérpretes, Israel tomou conta de toda a Palestina, na época de Josué.
Porém, não é raro a Bíblia nos transmitir a verdade histórica a respeito de um fato em poucos versículos e reservar o grande número de linhas à apresentação da verdade religiosa, vale dizer, da grandiosidade do poder de Iahweh ao conceder ao seu povo bênçãos que aquela história contém. Nisso verificamos que não há, propriamente, conflito entre a verdade religiosa e a histórica, mas que esta é transmitida num número muito menor de versículos do que aquela.
Por todo o Período dos Juízes, os israelitas não dominaram ou não puderam realizar a fundição do ferro, como 1º de Samuel 13:19-20 atesta: “Em toda a terra de Israel nem um ferreiro se achava, porque os filisteus tinham dito: Para que os hebreus não façam espada nem lança. Pelo que todo o Israel tinha de descer aos filisteus para amolar a relha do seu arado, e a sua enxada, e o seu machado, e a sua foice.”
Mais uma vez, a inferioridade técnica dos israelitas aos filisteus (e, sem dúvida, também aos cananeus) não é, de maneira alguma, escondida ou dissimulada. Pelo contrário, ela é afirmada abertamente, mas em poucas linhas. E é claro que a inferioridade técnica implicava o poderio militar menor dos israelitas. Se não possuía carros, nem armas de ferro, quando entrou em Canaã, Israel era inferior aos moradores locais, do ponto de vista militar. Por isso, durante muito tempo, não os pôde desalojar pela força. Só na época de Davi isso começou a mudar.
A consciência do limite das conquistas implícita em todos esses versículos não foi conservada somente pelos autores bíblicos. Pelo contrário, ela parece ter sido bastante disseminada entre os hebreus. Só isso explica o limite reaparecer no Livro de Judite, composto no século II a. C. Diz esse texto incluído na Bíblia católica que os israelitas “expulsaram todos os habitantes do deserto, estabeleceram-se na terra dos amorreus e exterminaram vigorosamente todos os habitantes de Hesebon. Atravessaram o Jordão, tomaram toda a montanha [...] e habitaram ali por muitos dias” (Jd 5:14-16). “Tomaram toda a montanha”, não toda a terra. É o que nos diz o texto, pois a verdade histórica é a posse limitada de Canaã pelos israelitas que ali entraram vindos do Egito.
De algum modo, Föhrer atentou para as curtas, mas cruciais informações bíblicas sobre os limites da ocupação de Canaã por Israel. Werner Keller também, pois escreveu: “Quando penetrou na terra [...] Israel deve ter sido obrigado a contentar-se com as montanhas, pois não pôde derrotar os que habitavam no vale, porque estes tinham muitas carroças falcadas (Juízes 1-19)” (KELLER, Werner. E a Bíblia tinha razão – pesquisas arqueológicas demonstram a verdade histórica dos Livros Sagrados. 3ª ed., São Paulo: Melhoramentos, 1958. p. 146-147). Porém, a maioria dos intérpretes atribuiu àquelas informações um significado menor, no quadro geral das conquistas que, para eles, garantiram aos israelitas a posse imediata de todo o país.
Não são esses, porém, os únicos sinais que o Livro de Josué nos transmite sobre o método de ocupação de Canaã utilizado pelos filhos de Israel. Após a derrota sofrida, na primeira tentativa de conquistar a cidadela de Ai, Josué descobriu que Acã cometera um grave pecado e concluiu que Israel fracassara por esse motivo. Organizou-se, então, a sessão de julgamento do sacrilégio, no Vale de Acor: “Josué e todo Israel com ele tomaram a Acã, filho de Zera, e a prata, e a capa, e a barra de ouro, e a seus filhos, e a suas filhas, e a seus bois, e a seus jumentos, e a suas ovelhas [...] E todo Israel o apedrejou” (Js 7:24-25).
A posse de bois, jumentos e ovelhas por uma família, citada nessa passagem, não pode ter sido possível, durante a peregrinação no deserto, pois nela os israelitas não possuíam casas, apriscos, estábulos e outras instalações apropriadas à posse de pequenos rebanhos. Naquela época, os animais deviam constituir propriedade coletiva. A história de Acã indica, portanto, que a fixação dos israelitas na terra, caracterizada pela posse de rebanhos particulares, começou antes da partilha da terra e de quase todas as conquistas.
Podemos concluir desses versos que a penetração pacífica começou ao mesmo tempo que as conquistas. Talvez os filhos de Israel só tenham utilizado o método da guerra quando a ocupação gradual e pacífica se revelou impossível. Nos lugares não conquistados, ocorreu a coexistência pacífica de israelitas e cananeus, sob a preponderância destes.
Assim, ao terremoto das guerras e das conquistas seguiu-se a normalidade, e ao dilúvio, a bonança. Se as lutas corresponderam à vontade de Deus, a coexistência pacífica não teve outro significado. O homem pego a cortar lenha no sábado foi apedrejado por ordem de Moisés, porém os discípulos surpreendidos a colher espigas no dia santo não o foram. Sob a lei, os adúlteros deviam ser mortos, mas a mulher de João 8 não o foi. Por que não considerar que o fluir do tempo e a mudança do contexto histórico justificaram o abrandamento da lei? E por que não pensar que o reflexo disso, na ocupação da Palestina, foi a passagem das guerras à coexistência com outros povos?
Deus é justo ou amoroso? Sua justiça é arbitrária ou criteriosa? Que é justiça no Antigo Testamento? Acaso é extermínio e morte? Digam o que disserem sobre esse ponto, o que realmente importa é a consciência que os que viveram as conquistas possuíam. Vemos essa consciência ricamente retratada, no episódio de Acã. Por que ele teve de ser morto? Para satisfazer o gosto de Deus por exterminar? Não, mas para evitar o extermínio: “Aos vossos inimigos não podereis resistir enquanto não eliminardes do vosso meio as coisas condenadas” (Js 7:13), isto é, a "capa babilônica, e duzentos ciclos de prata, e uma barra de ouro do peso de cinquenta ciclos" (Js 7:21). Na Antiguidade, a prata e o ouro eram frequentemente usados para forjar ídolos e outros objetos sagrados. A condenação de Acã pode ter ocorrido por esse motivo implícito. De qualquer modo, o episódio retrata a importância de Israel combater os desvios individuais para evitar os coletivos.
O que se costuma apresentar, em forma de libelo, como injustiça de Deus, no Antigo Testamento, é de fato a transição da justiça coletiva à justiça exercida exclusivamente sobre o culpado. Se o preferirem, é o transe que essa passagem implica. Nas suas partes cruentas, o Antigo Testamento discorre sobre essa transição e esse transe. Os filhos de Israel tinham experimentado as consequências coletivas do seu erro em Ai. Deus os tinha abandonado ao inimigo. Deviam permitir que as consequências inevitáveis dos seus pecados desabassem sobre todos ou fazê-las recair sobre um só? A resposta que Josué oferece é que eles deviam fazê-la recair sobre um, isto é, sobre o culpado.
É verdade que foram necessários todos os outros livros, entre Josué e João, para que, finalmente, o Deus que é justiça se revelasse também como amor. Para que, no único momento em que a Jesus foi solicitado exercer o papel de juiz, e ele aquiesceu, finalmente se ouvisse: “Quem nunca pecou atire a primeira pedra”! Esses acréscimos foram necessários, porém a justiça do Deus que é amor já estava, desde o princípio, posta de maneira clara nos termos da fé de Israel.
Essa diferença de posições sobre um ponto fundamental da História dos Judeus coloca-nos um grave dilema. Quem, afinal, está com a razão: os que creem no relato bíblico das conquistas do modo como está redigido ou os que postulam a penetração pacífica, com base em evidências arqueológicas?
A verdade sobre esse assunto parece envolver a combinação das posições tradicional e crítica. Por um lado, dispomos de abundantes confirmações das conquistas narradas na Bíblia; por outro, há evidências não menos significativas de que os israelitas penetraram, gradativamente, nos lugares que não puderam conquistar. Georg Föhrer escreveu sobre esse último processo: “Um exame das mais tardias localizações das tribos israelitas demonstra que eles frequentemente se estabeleceram naquelas regiões da Palestina que eram então desabitadas ou apenas escassamente povoadas. Naqueles lugares reivindicados e que não estavam ainda demarcados e, portanto, sem dono, seu estabelecimento foi essencialmente pacífico” (FÖHRER, Georg. História da religião de Israel. Santo André/São Paulo: Academia Cristã/Paulus, 2008. p. 76).
Föhrer está a sugerir que os israelitas fizeram seu lar nas terras fáceis de ocupar e, nas demais, penetraram lenta e pacificamente. As primeiras eram as regiões montanhosas e remotas; as últimas correspondiam às planícies e pequenas elevações. É importante lembrar que Föhrer admite as conquistas, porém, do relato acima, extraímos que, na sua concepção, elas foram mais exceções do que a regra no processo de ocupação de Canaã.
A questão a ser enfrentada é até que ponto esse entendimento de que as conquistas foram acontecimentos isolados, meros pontos na linha do tempo de Israel, pode ser prestigiado como verdadeiro. A penetração pacífica foi o método precípuo, pelo qual Israel obteve a posse da terra? Esse entendimento não colide com as informações do Livro de Josué, que descreve as conquistas de numerosas cidades e, em seguida, a partilha da Terra de Canaã entre as Doze Tribos?
A interpretação literal de Josué levou os estudiosos, ao longo dos séculos, a entender que os israelitas não só passaram a morar em Canaã, mas a controlá-la a partir das conquistas narradas na Bíblia. E ela não está errada, já que o controle hebreu é sugerido em Josué. Porém, uma leitura atenta dos livros históricos das Escrituras mostra que o testemunho bíblico não é exatamente esse. Juízes, por exemplo, afirma que os israelitas dominaram somente “as montanhas”, pois não lograram desalojar os cananeus de outros lugares, devido à superioridade militar destes: “Então disseram os filhos de José [...] todos os cananeus que habitam na terra do vale têm carros de ferro”; “Judá despovoou as montanhas; porém não expulsou os moradores do vale, porquanto tinham carros de ferro”; “Jabim tinha novecentos carros de ferro e, por vinte anos, oprimia duramente os filhos de Israel” (Js 17:16; Jz 1: 19; 4:3).
Por muito tempo, os intérpretes literais passaram por cima do verso que diz que Israel “não expulsou os moradores do vale” não, obviamente, por julgarem que contém uma informação falsa, mas um dado menor. Em conjunto e no todo, para aqueles intérpretes, Israel tomou conta de toda a Palestina, na época de Josué.
Porém, não é raro a Bíblia nos transmitir a verdade histórica a respeito de um fato em poucos versículos e reservar o grande número de linhas à apresentação da verdade religiosa, vale dizer, da grandiosidade do poder de Iahweh ao conceder ao seu povo bênçãos que aquela história contém. Nisso verificamos que não há, propriamente, conflito entre a verdade religiosa e a histórica, mas que esta é transmitida num número muito menor de versículos do que aquela.
Por todo o Período dos Juízes, os israelitas não dominaram ou não puderam realizar a fundição do ferro, como 1º de Samuel 13:19-20 atesta: “Em toda a terra de Israel nem um ferreiro se achava, porque os filisteus tinham dito: Para que os hebreus não façam espada nem lança. Pelo que todo o Israel tinha de descer aos filisteus para amolar a relha do seu arado, e a sua enxada, e o seu machado, e a sua foice.”
Mais uma vez, a inferioridade técnica dos israelitas aos filisteus (e, sem dúvida, também aos cananeus) não é, de maneira alguma, escondida ou dissimulada. Pelo contrário, ela é afirmada abertamente, mas em poucas linhas. E é claro que a inferioridade técnica implicava o poderio militar menor dos israelitas. Se não possuía carros, nem armas de ferro, quando entrou em Canaã, Israel era inferior aos moradores locais, do ponto de vista militar. Por isso, durante muito tempo, não os pôde desalojar pela força. Só na época de Davi isso começou a mudar.
A consciência do limite das conquistas implícita em todos esses versículos não foi conservada somente pelos autores bíblicos. Pelo contrário, ela parece ter sido bastante disseminada entre os hebreus. Só isso explica o limite reaparecer no Livro de Judite, composto no século II a. C. Diz esse texto incluído na Bíblia católica que os israelitas “expulsaram todos os habitantes do deserto, estabeleceram-se na terra dos amorreus e exterminaram vigorosamente todos os habitantes de Hesebon. Atravessaram o Jordão, tomaram toda a montanha [...] e habitaram ali por muitos dias” (Jd 5:14-16). “Tomaram toda a montanha”, não toda a terra. É o que nos diz o texto, pois a verdade histórica é a posse limitada de Canaã pelos israelitas que ali entraram vindos do Egito.
De algum modo, Föhrer atentou para as curtas, mas cruciais informações bíblicas sobre os limites da ocupação de Canaã por Israel. Werner Keller também, pois escreveu: “Quando penetrou na terra [...] Israel deve ter sido obrigado a contentar-se com as montanhas, pois não pôde derrotar os que habitavam no vale, porque estes tinham muitas carroças falcadas (Juízes 1-19)” (KELLER, Werner. E a Bíblia tinha razão – pesquisas arqueológicas demonstram a verdade histórica dos Livros Sagrados. 3ª ed., São Paulo: Melhoramentos, 1958. p. 146-147). Porém, a maioria dos intérpretes atribuiu àquelas informações um significado menor, no quadro geral das conquistas que, para eles, garantiram aos israelitas a posse imediata de todo o país.
Não são esses, porém, os únicos sinais que o Livro de Josué nos transmite sobre o método de ocupação de Canaã utilizado pelos filhos de Israel. Após a derrota sofrida, na primeira tentativa de conquistar a cidadela de Ai, Josué descobriu que Acã cometera um grave pecado e concluiu que Israel fracassara por esse motivo. Organizou-se, então, a sessão de julgamento do sacrilégio, no Vale de Acor: “Josué e todo Israel com ele tomaram a Acã, filho de Zera, e a prata, e a capa, e a barra de ouro, e a seus filhos, e a suas filhas, e a seus bois, e a seus jumentos, e a suas ovelhas [...] E todo Israel o apedrejou” (Js 7:24-25).
A posse de bois, jumentos e ovelhas por uma família, citada nessa passagem, não pode ter sido possível, durante a peregrinação no deserto, pois nela os israelitas não possuíam casas, apriscos, estábulos e outras instalações apropriadas à posse de pequenos rebanhos. Naquela época, os animais deviam constituir propriedade coletiva. A história de Acã indica, portanto, que a fixação dos israelitas na terra, caracterizada pela posse de rebanhos particulares, começou antes da partilha da terra e de quase todas as conquistas.
Podemos concluir desses versos que a penetração pacífica começou ao mesmo tempo que as conquistas. Talvez os filhos de Israel só tenham utilizado o método da guerra quando a ocupação gradual e pacífica se revelou impossível. Nos lugares não conquistados, ocorreu a coexistência pacífica de israelitas e cananeus, sob a preponderância destes.
Assim, ao terremoto das guerras e das conquistas seguiu-se a normalidade, e ao dilúvio, a bonança. Se as lutas corresponderam à vontade de Deus, a coexistência pacífica não teve outro significado. O homem pego a cortar lenha no sábado foi apedrejado por ordem de Moisés, porém os discípulos surpreendidos a colher espigas no dia santo não o foram. Sob a lei, os adúlteros deviam ser mortos, mas a mulher de João 8 não o foi. Por que não considerar que o fluir do tempo e a mudança do contexto histórico justificaram o abrandamento da lei? E por que não pensar que o reflexo disso, na ocupação da Palestina, foi a passagem das guerras à coexistência com outros povos?
Deus é justo ou amoroso? Sua justiça é arbitrária ou criteriosa? Que é justiça no Antigo Testamento? Acaso é extermínio e morte? Digam o que disserem sobre esse ponto, o que realmente importa é a consciência que os que viveram as conquistas possuíam. Vemos essa consciência ricamente retratada, no episódio de Acã. Por que ele teve de ser morto? Para satisfazer o gosto de Deus por exterminar? Não, mas para evitar o extermínio: “Aos vossos inimigos não podereis resistir enquanto não eliminardes do vosso meio as coisas condenadas” (Js 7:13), isto é, a "capa babilônica, e duzentos ciclos de prata, e uma barra de ouro do peso de cinquenta ciclos" (Js 7:21). Na Antiguidade, a prata e o ouro eram frequentemente usados para forjar ídolos e outros objetos sagrados. A condenação de Acã pode ter ocorrido por esse motivo implícito. De qualquer modo, o episódio retrata a importância de Israel combater os desvios individuais para evitar os coletivos.
O que se costuma apresentar, em forma de libelo, como injustiça de Deus, no Antigo Testamento, é de fato a transição da justiça coletiva à justiça exercida exclusivamente sobre o culpado. Se o preferirem, é o transe que essa passagem implica. Nas suas partes cruentas, o Antigo Testamento discorre sobre essa transição e esse transe. Os filhos de Israel tinham experimentado as consequências coletivas do seu erro em Ai. Deus os tinha abandonado ao inimigo. Deviam permitir que as consequências inevitáveis dos seus pecados desabassem sobre todos ou fazê-las recair sobre um só? A resposta que Josué oferece é que eles deviam fazê-la recair sobre um, isto é, sobre o culpado.
É verdade que foram necessários todos os outros livros, entre Josué e João, para que, finalmente, o Deus que é justiça se revelasse também como amor. Para que, no único momento em que a Jesus foi solicitado exercer o papel de juiz, e ele aquiesceu, finalmente se ouvisse: “Quem nunca pecou atire a primeira pedra”! Esses acréscimos foram necessários, porém a justiça do Deus que é amor já estava, desde o princípio, posta de maneira clara nos termos da fé de Israel.
quinta-feira, 1 de maio de 2014
Livre Exame de Romanos (28): A Humildade
Os 20 séculos que nos separam da época de Paulo impedem-nos de compreender certas partes dos seus escritos. Dificilmente entendemos por que Paulo passa do culto (latréia) a Deus, em 12:1-2, à distribuição de dons e à exortação dos membros do corpo de Cristo à humildade, nos versos 3 a 8. Que relação pode haver entre o culto, os dons e a humildade, como Paulo os aborda?
Porém, quando olhamos a carta de perto, a relação aparece-nos bastante estreita. Qual é a síntese do pecado do homem grego, a não ser o abandono do culto a Deus, seguido do culto aos ídolos? E em que se resume a sua salvação, a não ser na adesão àquele primeiro culto? A igreja romana cultua Deus, em grave contraste com os gentios, que perseveram no abandono dessa adoração.
Mas o culto a Deus não é algo que o homem consiga realizar por si mesmo. Como a própria salvação, o culto é também uma dádiva. Isso significa que, para cultuar a Deus, não basta querer cultuá-lo. A vontade humana não é capaz, por si mesma, de adorar a Deus em espírito e verdade (Jo 4:24). Deve passar por um processo que a habilite para o culto, que Paulo chama transformação (metamorphósis) da mente por um novo tipo de pensar “com moderação, segundo a medida da fé que Deus repartiu a cada um” (12:3).
Esse pensar não é ocasional, mas um hábito. Poderíamos descrevê-lo como um pensar com humildade. Embora Paulo não use a palavra humildade, mas moderação e medida, a descrição que nos dá do pensar cristão corresponde ao conteúdo daquela virtude. Muitos pensam na humildade como algo exterior: um modo de trajar-se, de gesticular e, principalmente, de falar. Paulo a concebe como o hábito de pensamento a que a primeira bem-aventurança se refere: “Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus” (Mt 5:3).
A humildade do espírito é, pois, o cerne do culto prestado a Deus no Novo Testamento. “Digo a cada um dentre vós que não pense de si mesmo além do que convém, antes pense com moderação [sothroneín] segundo a medida da fé que Deus repartiu a cada um” (12:3). Nesse versículo, a preocupação do apóstolo e, poderíamos dizer, a de Deus por meio dele não recai em qualquer pensamento. Deus vela sobre todos os pensamentos do homem, mas não sobre todos da mesma maneira. O que mais lhe importa é o que pensamos sobre nós mesmos.
A palavra sothroneín, em 12:3, é a chave para entendermos o que torna pecaminoso o pensamento do homem sobre si. O homem perde a humildade, quando pensa imoderadamente nas suas qualidades. A ênfase da exortação de Paulo está posta na intensidade, não na verdade ou no erro do pensamento. Uma pessoa feia pode achar-se bonita e inchar-se de orgulho, mas o caso comum é os belos caírem na vacuidade do orgulho. O mesmo pode ser dito dos inteligentes e dos portadores de todas as outras virtudes.
O princípio do pecado não é, pois, o equívoco sobre si, mas o pensamento imoderado a respeito das próprias qualidades. Não é errado alguém entender-se belo ou inteligente. Porém, é pecaminoso entender-se assim além da conta. E qual é a conta? Qual a medida que Deus fixou para o pensamento a respeito das próprias qualidades? Paulo aponta dois limites: o reconhecimento da medida das nossas qualidades e da sua origem.
Todos temos carismas, mas carismas limitados: assim profecia como ministério, ensino, exortação, contribuição, liderança, misericórdia (12:6-8). Ninguém recebeu toda a palavra de Deus ou palavras de Deus sobre tudo. Muito longe disso. Ninguém é capaz de ensinar tudo, exortar em toda situação ou contribuir sempre. Embora divinos, os dons que nos foram repartidos são limitados.
Pensemos em Salomão. Ele podia discorrer sobre as plantas, desde o cedro que está no Líbano até o hissopo que brota no muro, e também sobre os animais, as aves, os répteis e os peixes (1 Rs 4:33). Era-lhe, portanto, lícito crer na extensão da sua sabedoria. Mas não lhe era lícito pensar que sabia mais do que realmente sabia ou ignorar o quanto não sabia. Conheça quanto conhecer, o homem ignora infinitamente mais do que conhece. Por isso, a diferença entre a verdadeira sabedoria e a sabedoria aos próprios olhos reside na profundidade desse último conhecer.
Mas Paulo não se contenta com traçar à arrogância o limite da extensão dos dons. Além de reconhecer que os dons têm medida, que alguém tem de Deus profecia, ministério, ensino, exortação e todas as outras capacidades em determinadas medidas, ele situa em Deus e não no homem a origem dessas medidas. Esse reconhecimento implica que as qualidades que possuímos são dádivas, não artefatos. Foram dadas por Deus, não construídas por nós. Nós cooperamos para que as qualidades se desenvolvam, mas essa cooperação não anula a presença no dom de tudo o que ele se torna, assim como a árvore está na semente.
No átimo em que reconhece a procedência divina das suas qualidades, o homem esvazia-se de toda exaltação. Coloca-se, por assim dizer, no seu verdadeiro lugar. E qual é esse lugar? É o lugar do barro de que ele é feito. Pois “temos este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus, e não de nós” (2 Co 4:7).
Esta é a lição primeira de toda a Escritura. A lição sem a qual não há lição segunda a aprender. É também o passo sem o qual não há segundo passo. Só reprovação e incapacitação. Na Bíblia, uma lição antecede o que ela ensina a respeito de Deus. É a lição sobre o homem. Sem aprendê-la, o homem não pode saber quem é Deus, já que este o criou à sua imagem, o que significa que fixou o espelho em que se mostrará.
“Que é o homem, que dele te lembres?” (Sl 8:4), é a pergunta primeira da Bíblia. E, como só Deus é capaz de responder o que pergunta, devemos buscar na própria Escritura a resposta dela. Encontramo-la, é certo, espalhada por toda parte, mas também concentrada em algumas passagens. Em sua máxima concentração, só a vemos, talvez, em Gênesis 2: “Formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra, e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente” (Gn 2:7). E também: “Tomou, pois, o Senhor Deus ao homem e o colocou no jardim do Éden para o cultivar e o guardar” (Gn 2:15).
O homem feito da terra foi dado à terra. Tem, pois, na terra a sua natureza física e, pelo trabalho, a sua natureza moral. Humus, em latim, é terra. A natureza terrena do trabalho que o homem realiza, ao arar o chão, ensina-lhe quanto ele é vil e humilde. Não há nisso rebaixamento algum. É antes a natureza e o ser do homem.
Porém, a história da natureza humana, em sua totalidade, é muito pior do que isso. Por ter, desde o início, uma essência física e outra moral, ao cair no pecado, o homem sofreu a corrupção de ambas as suas naturezas. É o que Gênesis 3 ensina e Paulo reafirma em Romanos. Que significa essa degeneração? Significa, em síntese, que a natureza moral do homem corrompeu-se totalmente, e a sua natureza física, parcialmente.
Como a natureza moral está associada ao trabalho e depende dele, Deus disse a Adão, quando este pecou: “Visto que atendeste a voz de tua mulher, e comeste da árvore que eu te ordenara não comesses: maldita é a terra por tua causa: em fadigas obterás dela o sustento durante os dias de tua vida. Ela produzirá também cardos e abrolhos, e tu comerás a erva do campo. No suor do rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste formado: porque tu és pó e ao pó tornarás” (Gn 3:17-19).
Tenho dificuldade em aceitar a doutrina da corrupção física e moral do homem, nos termos em que é geralmente afirmada. Não por causa da degeneração moral, que aceito inteiramente, mas da corrupção física como a apresentam. Defendi os motivos históricos disso, no post “Criação: o que é, o que não é”. Do ponto de vista teológico, o problema é que a alma e o corpo são incomensuráveis. Portanto, a corrupção de um não se compara à do outro, nem pode ser a paga dela. O que ocorre é, para mim, mais simplesmente, que a degeneração moral leva o homem a praticar atos tais que afetam o seu corpo.
A corrupção de que a Bíblia nos fala é, portanto, integral apenas no âmbito moral. E não o é em razão das palavras pronunciadas por Deus após a queda, que se limitam a afirmar que Adão passou a viver num novo contexto, mas em razão do que o próprio homem fez desde então. De fato, a confrontação com a natureza hostil, inexistente no Jardim do Éden, gerou para Adão a escassez, e a escassez fez multiplicar-se o pecado, principalmente em forma de violência e opressão. Nisso consistiu a corrupção da natureza moral do homem. Fisicamente, somos matéria; moralmente, somos o que pensamos e fazemos. A matéria é a nossa primeira natureza, dada; o que somos e fazemos é a natureza segunda, construída.
A degeneração moral gerou toda sorte de injustiça, mas teve por fastígio a violência e a opressão do homem pelo próprio homem. É o que vemos, não como outra lição, mas como a mesma, em Gênesis 4, quando Abel é morto por seu irmão. Reencontramos o princípio desse pecado no dito de Caim, que transborda sangue (Gn 4:14-15), e na sua descendência, que desenvolve ainda mais a violência: ”Disse Lameque às suas esposas: Ada e Zilá, ouvi-me: vós, mulheres de Lameque, escutai o que passo a dizer-vos: Matei um homem porque ele me feriu; e um rapaz porque me pisou. Sete vezes se tomará vingança de Caim, de Lameque, porém, setenta vezes sete” (Gn 4:23-24). A violência é ainda o motivo sintético e consumado do Dilúvio (Gn 6:11-13). Só não pensemos que pode ser descontextualizada ou desarraigada de sua relação com o trabalho: não pode, sob pena de a palavra de Deus a Adão nada valer.
A doutrina das duas naturezas, a anterior e a posterior à queda, é importante demais para ser saltada ou relegada ao museu como coisa conspícua, mas superada. Para dizer como Billy Graham, ela é tão atual quanto o jornal de amanhã. Enquanto houver céus e terra e natureza humana, aquela doutrina continuará atual. O pecado mudou totalmente a natureza moral do homem. De sua condição original inculpável, ele passou a outra degenerada. E é preciso fincar que a degeneração se dá no contexto do seu trabalho, não de uma tábua de leis que ele tenha transgredido, pois ela simplesmente não existia.
Encontramos, assim, o pecado por toda parte. Não foi Paulo quem o criou com a sua pregação, em Romanos. Foram os atos humanos. O corpo tampouco o criou, só sofreu as consequências dele. E a origem de todo esse mal, Gênesis a apresenta como a perda da natureza segunda do homem, da sua natureza moral. Essa natureza era originalmente humilde, por ser terrena: “Deus colocou [Adão] no jardim do Éden para o cultivar e o guardar” (Gn 3:15). Mas se corrompeu ao se tornar violenta e opressiva.
Num ponto, porém, Romanos parece desencaixar-se da história da origem da depravação adâmica: a epístola diz que o pecado tem como núcleo a idolatria, não a violência ou a opressão do homem. Apresenta, assim, o pecado como ofensa a Deus, não ao homem, como questão do culto (latréia) a ídolos e não a Deus. E relega a violência, a opressão e todos os outros males à condição de consequências do pecado. Mas por que é assim?
A resposta só pode ser que o culto aos ídolos está ligado à perda da humildade por parte do homem. Essa perda é o extravio humano. Os atos que se seguem são sua consequência. E, como o Novo Testamento coloca as coisas, nada exprime tanto aquela perda quanto a idolatria. Isso é bastante claro. Mas, se o é, o ídolo não pode ser apenas madeira, bronze, ferro ou ouro. Tem de ser também a projeção do eu humano. Tem de ser o eu alienado, o eu em forma de coisa. Quando o ferreiro forja o ídolo, forja a si mesmo, atribui àquele ser a sua condição, as suas qualidades. O ferreiro pensa, logo o ídolo pensa; sente, portanto sua obra sente. Ele exagera os seus atributos ao projetá-los no ser que plasmou e supô-lo mais poderoso que ele próprio. Pede, portanto, que o ídolo o livre. Mas o exagero não impede que o ídolo continue a ser o próprio homem, fortalecido e tornado imortal. Nesse ponto, Feuerbach está certo. Nesse ponto, sua tese se aplica. Pena que se trate do ponto em que a idolatria rouba o troféu do pecado à violência e leva a degeneração humana ao clímax da audácia.
Por isso, Paulo se preocupa tanto com o culto. Em todas as eras, o pecado é uma coisa só. Como o arcanjo orgulhou-se e atentou contra o culto a Deus, os descendentes de Adão procederam da mesma forma e chegaram ao mesmo resultado. Projetar-se no ídolo foi, para eles, um modo de passar de adorador a adorado, de crente ou devoto a deus. Foi e continua a ser a forma suprema da perda da humildade.
Mas a história da idolatria tem duas fases e não uma só. Elas se sucedem, ao mesmo tempo em que se interpenetram. A primeira coincide com o período bíblico, mas o ultrapassa. Declina à proporção em que o cristianismo faz seu avanço. Seu princípio regulador é a idolatria ou a adoração do homem em forma de ídolo. A segunda etapa, por sua vez, coincide com a História do Império Romano, mas também a ultrapassa. O princípio regulador dela é a antropolatria ou a adoração consciente do homem como deus. Embora a adoração de seres humanos após a morte tenha sido praticada em tempos remotas, a apoteose (divinização post mortem dos Imperadores) é que a tornou regular e até mesmo um direito. Por outro lado, se os primeiros a serem adorados em vida foram os soberanos selêucidas (Bíblia de Jerusalém. 5ª impr., São Paulo: Paulus, 2008. Jd 3:8, nota c), os Césares parecem ter sido os primeiros a contar com um culto regular. Com eles, portanto, a idolatria ingressou numa nova fase.
A cena central do filme “Noé” talvez seja aquela em que sua mulher o acusa de injustiça. Ao ouvirmos as acusações, temos a impressão de que não se referem só a Noé, mas a Deus como autor do Dilúvio. Nada no filme tem uma só natureza: nem os gigantes, nem os homens, talvez nem as coisas. Tudo tem duas: o bem e o mal, o amor e a violência. O filme depende tanto dessa oposição que beira o maniqueísmo, mas um maniqueísmo cujos polos se decidiram a coabitar. Deus não é exceção alguma. É só o maior exemplo. Ele é culpado da violências suprema, a do Dilúvio, e só ao se regenerar se transforma em amante. Quem o leva a regenerar-se é, porém, o homem, ou melhor, as mulheres. Que outra força, afinal, poderia mudar o Criador, se o homem o formou à sua própria imagem sanguinária?
É bem uma mensagem, mas uma de que o homem pode todas as coisas, pois pode dispor de Deus. Só não pode recuperar a humildade perdida. Só não pode reconciliar-se com a terra e evitar que sua história termine no culto a si mesmo. Só Deus o pode.
Porém, quando olhamos a carta de perto, a relação aparece-nos bastante estreita. Qual é a síntese do pecado do homem grego, a não ser o abandono do culto a Deus, seguido do culto aos ídolos? E em que se resume a sua salvação, a não ser na adesão àquele primeiro culto? A igreja romana cultua Deus, em grave contraste com os gentios, que perseveram no abandono dessa adoração.
Mas o culto a Deus não é algo que o homem consiga realizar por si mesmo. Como a própria salvação, o culto é também uma dádiva. Isso significa que, para cultuar a Deus, não basta querer cultuá-lo. A vontade humana não é capaz, por si mesma, de adorar a Deus em espírito e verdade (Jo 4:24). Deve passar por um processo que a habilite para o culto, que Paulo chama transformação (metamorphósis) da mente por um novo tipo de pensar “com moderação, segundo a medida da fé que Deus repartiu a cada um” (12:3).
Esse pensar não é ocasional, mas um hábito. Poderíamos descrevê-lo como um pensar com humildade. Embora Paulo não use a palavra humildade, mas moderação e medida, a descrição que nos dá do pensar cristão corresponde ao conteúdo daquela virtude. Muitos pensam na humildade como algo exterior: um modo de trajar-se, de gesticular e, principalmente, de falar. Paulo a concebe como o hábito de pensamento a que a primeira bem-aventurança se refere: “Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus” (Mt 5:3).
A humildade do espírito é, pois, o cerne do culto prestado a Deus no Novo Testamento. “Digo a cada um dentre vós que não pense de si mesmo além do que convém, antes pense com moderação [sothroneín] segundo a medida da fé que Deus repartiu a cada um” (12:3). Nesse versículo, a preocupação do apóstolo e, poderíamos dizer, a de Deus por meio dele não recai em qualquer pensamento. Deus vela sobre todos os pensamentos do homem, mas não sobre todos da mesma maneira. O que mais lhe importa é o que pensamos sobre nós mesmos.
A palavra sothroneín, em 12:3, é a chave para entendermos o que torna pecaminoso o pensamento do homem sobre si. O homem perde a humildade, quando pensa imoderadamente nas suas qualidades. A ênfase da exortação de Paulo está posta na intensidade, não na verdade ou no erro do pensamento. Uma pessoa feia pode achar-se bonita e inchar-se de orgulho, mas o caso comum é os belos caírem na vacuidade do orgulho. O mesmo pode ser dito dos inteligentes e dos portadores de todas as outras virtudes.
O princípio do pecado não é, pois, o equívoco sobre si, mas o pensamento imoderado a respeito das próprias qualidades. Não é errado alguém entender-se belo ou inteligente. Porém, é pecaminoso entender-se assim além da conta. E qual é a conta? Qual a medida que Deus fixou para o pensamento a respeito das próprias qualidades? Paulo aponta dois limites: o reconhecimento da medida das nossas qualidades e da sua origem.
Todos temos carismas, mas carismas limitados: assim profecia como ministério, ensino, exortação, contribuição, liderança, misericórdia (12:6-8). Ninguém recebeu toda a palavra de Deus ou palavras de Deus sobre tudo. Muito longe disso. Ninguém é capaz de ensinar tudo, exortar em toda situação ou contribuir sempre. Embora divinos, os dons que nos foram repartidos são limitados.
Pensemos em Salomão. Ele podia discorrer sobre as plantas, desde o cedro que está no Líbano até o hissopo que brota no muro, e também sobre os animais, as aves, os répteis e os peixes (1 Rs 4:33). Era-lhe, portanto, lícito crer na extensão da sua sabedoria. Mas não lhe era lícito pensar que sabia mais do que realmente sabia ou ignorar o quanto não sabia. Conheça quanto conhecer, o homem ignora infinitamente mais do que conhece. Por isso, a diferença entre a verdadeira sabedoria e a sabedoria aos próprios olhos reside na profundidade desse último conhecer.
Mas Paulo não se contenta com traçar à arrogância o limite da extensão dos dons. Além de reconhecer que os dons têm medida, que alguém tem de Deus profecia, ministério, ensino, exortação e todas as outras capacidades em determinadas medidas, ele situa em Deus e não no homem a origem dessas medidas. Esse reconhecimento implica que as qualidades que possuímos são dádivas, não artefatos. Foram dadas por Deus, não construídas por nós. Nós cooperamos para que as qualidades se desenvolvam, mas essa cooperação não anula a presença no dom de tudo o que ele se torna, assim como a árvore está na semente.
No átimo em que reconhece a procedência divina das suas qualidades, o homem esvazia-se de toda exaltação. Coloca-se, por assim dizer, no seu verdadeiro lugar. E qual é esse lugar? É o lugar do barro de que ele é feito. Pois “temos este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus, e não de nós” (2 Co 4:7).
Esta é a lição primeira de toda a Escritura. A lição sem a qual não há lição segunda a aprender. É também o passo sem o qual não há segundo passo. Só reprovação e incapacitação. Na Bíblia, uma lição antecede o que ela ensina a respeito de Deus. É a lição sobre o homem. Sem aprendê-la, o homem não pode saber quem é Deus, já que este o criou à sua imagem, o que significa que fixou o espelho em que se mostrará.
“Que é o homem, que dele te lembres?” (Sl 8:4), é a pergunta primeira da Bíblia. E, como só Deus é capaz de responder o que pergunta, devemos buscar na própria Escritura a resposta dela. Encontramo-la, é certo, espalhada por toda parte, mas também concentrada em algumas passagens. Em sua máxima concentração, só a vemos, talvez, em Gênesis 2: “Formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra, e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente” (Gn 2:7). E também: “Tomou, pois, o Senhor Deus ao homem e o colocou no jardim do Éden para o cultivar e o guardar” (Gn 2:15).
O homem feito da terra foi dado à terra. Tem, pois, na terra a sua natureza física e, pelo trabalho, a sua natureza moral. Humus, em latim, é terra. A natureza terrena do trabalho que o homem realiza, ao arar o chão, ensina-lhe quanto ele é vil e humilde. Não há nisso rebaixamento algum. É antes a natureza e o ser do homem.
Porém, a história da natureza humana, em sua totalidade, é muito pior do que isso. Por ter, desde o início, uma essência física e outra moral, ao cair no pecado, o homem sofreu a corrupção de ambas as suas naturezas. É o que Gênesis 3 ensina e Paulo reafirma em Romanos. Que significa essa degeneração? Significa, em síntese, que a natureza moral do homem corrompeu-se totalmente, e a sua natureza física, parcialmente.
Como a natureza moral está associada ao trabalho e depende dele, Deus disse a Adão, quando este pecou: “Visto que atendeste a voz de tua mulher, e comeste da árvore que eu te ordenara não comesses: maldita é a terra por tua causa: em fadigas obterás dela o sustento durante os dias de tua vida. Ela produzirá também cardos e abrolhos, e tu comerás a erva do campo. No suor do rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste formado: porque tu és pó e ao pó tornarás” (Gn 3:17-19).
Tenho dificuldade em aceitar a doutrina da corrupção física e moral do homem, nos termos em que é geralmente afirmada. Não por causa da degeneração moral, que aceito inteiramente, mas da corrupção física como a apresentam. Defendi os motivos históricos disso, no post “Criação: o que é, o que não é”. Do ponto de vista teológico, o problema é que a alma e o corpo são incomensuráveis. Portanto, a corrupção de um não se compara à do outro, nem pode ser a paga dela. O que ocorre é, para mim, mais simplesmente, que a degeneração moral leva o homem a praticar atos tais que afetam o seu corpo.
A corrupção de que a Bíblia nos fala é, portanto, integral apenas no âmbito moral. E não o é em razão das palavras pronunciadas por Deus após a queda, que se limitam a afirmar que Adão passou a viver num novo contexto, mas em razão do que o próprio homem fez desde então. De fato, a confrontação com a natureza hostil, inexistente no Jardim do Éden, gerou para Adão a escassez, e a escassez fez multiplicar-se o pecado, principalmente em forma de violência e opressão. Nisso consistiu a corrupção da natureza moral do homem. Fisicamente, somos matéria; moralmente, somos o que pensamos e fazemos. A matéria é a nossa primeira natureza, dada; o que somos e fazemos é a natureza segunda, construída.
A degeneração moral gerou toda sorte de injustiça, mas teve por fastígio a violência e a opressão do homem pelo próprio homem. É o que vemos, não como outra lição, mas como a mesma, em Gênesis 4, quando Abel é morto por seu irmão. Reencontramos o princípio desse pecado no dito de Caim, que transborda sangue (Gn 4:14-15), e na sua descendência, que desenvolve ainda mais a violência: ”Disse Lameque às suas esposas: Ada e Zilá, ouvi-me: vós, mulheres de Lameque, escutai o que passo a dizer-vos: Matei um homem porque ele me feriu; e um rapaz porque me pisou. Sete vezes se tomará vingança de Caim, de Lameque, porém, setenta vezes sete” (Gn 4:23-24). A violência é ainda o motivo sintético e consumado do Dilúvio (Gn 6:11-13). Só não pensemos que pode ser descontextualizada ou desarraigada de sua relação com o trabalho: não pode, sob pena de a palavra de Deus a Adão nada valer.
A doutrina das duas naturezas, a anterior e a posterior à queda, é importante demais para ser saltada ou relegada ao museu como coisa conspícua, mas superada. Para dizer como Billy Graham, ela é tão atual quanto o jornal de amanhã. Enquanto houver céus e terra e natureza humana, aquela doutrina continuará atual. O pecado mudou totalmente a natureza moral do homem. De sua condição original inculpável, ele passou a outra degenerada. E é preciso fincar que a degeneração se dá no contexto do seu trabalho, não de uma tábua de leis que ele tenha transgredido, pois ela simplesmente não existia.
Encontramos, assim, o pecado por toda parte. Não foi Paulo quem o criou com a sua pregação, em Romanos. Foram os atos humanos. O corpo tampouco o criou, só sofreu as consequências dele. E a origem de todo esse mal, Gênesis a apresenta como a perda da natureza segunda do homem, da sua natureza moral. Essa natureza era originalmente humilde, por ser terrena: “Deus colocou [Adão] no jardim do Éden para o cultivar e o guardar” (Gn 3:15). Mas se corrompeu ao se tornar violenta e opressiva.
Num ponto, porém, Romanos parece desencaixar-se da história da origem da depravação adâmica: a epístola diz que o pecado tem como núcleo a idolatria, não a violência ou a opressão do homem. Apresenta, assim, o pecado como ofensa a Deus, não ao homem, como questão do culto (latréia) a ídolos e não a Deus. E relega a violência, a opressão e todos os outros males à condição de consequências do pecado. Mas por que é assim?
A resposta só pode ser que o culto aos ídolos está ligado à perda da humildade por parte do homem. Essa perda é o extravio humano. Os atos que se seguem são sua consequência. E, como o Novo Testamento coloca as coisas, nada exprime tanto aquela perda quanto a idolatria. Isso é bastante claro. Mas, se o é, o ídolo não pode ser apenas madeira, bronze, ferro ou ouro. Tem de ser também a projeção do eu humano. Tem de ser o eu alienado, o eu em forma de coisa. Quando o ferreiro forja o ídolo, forja a si mesmo, atribui àquele ser a sua condição, as suas qualidades. O ferreiro pensa, logo o ídolo pensa; sente, portanto sua obra sente. Ele exagera os seus atributos ao projetá-los no ser que plasmou e supô-lo mais poderoso que ele próprio. Pede, portanto, que o ídolo o livre. Mas o exagero não impede que o ídolo continue a ser o próprio homem, fortalecido e tornado imortal. Nesse ponto, Feuerbach está certo. Nesse ponto, sua tese se aplica. Pena que se trate do ponto em que a idolatria rouba o troféu do pecado à violência e leva a degeneração humana ao clímax da audácia.
Por isso, Paulo se preocupa tanto com o culto. Em todas as eras, o pecado é uma coisa só. Como o arcanjo orgulhou-se e atentou contra o culto a Deus, os descendentes de Adão procederam da mesma forma e chegaram ao mesmo resultado. Projetar-se no ídolo foi, para eles, um modo de passar de adorador a adorado, de crente ou devoto a deus. Foi e continua a ser a forma suprema da perda da humildade.
Mas a história da idolatria tem duas fases e não uma só. Elas se sucedem, ao mesmo tempo em que se interpenetram. A primeira coincide com o período bíblico, mas o ultrapassa. Declina à proporção em que o cristianismo faz seu avanço. Seu princípio regulador é a idolatria ou a adoração do homem em forma de ídolo. A segunda etapa, por sua vez, coincide com a História do Império Romano, mas também a ultrapassa. O princípio regulador dela é a antropolatria ou a adoração consciente do homem como deus. Embora a adoração de seres humanos após a morte tenha sido praticada em tempos remotas, a apoteose (divinização post mortem dos Imperadores) é que a tornou regular e até mesmo um direito. Por outro lado, se os primeiros a serem adorados em vida foram os soberanos selêucidas (Bíblia de Jerusalém. 5ª impr., São Paulo: Paulus, 2008. Jd 3:8, nota c), os Césares parecem ter sido os primeiros a contar com um culto regular. Com eles, portanto, a idolatria ingressou numa nova fase.
A cena central do filme “Noé” talvez seja aquela em que sua mulher o acusa de injustiça. Ao ouvirmos as acusações, temos a impressão de que não se referem só a Noé, mas a Deus como autor do Dilúvio. Nada no filme tem uma só natureza: nem os gigantes, nem os homens, talvez nem as coisas. Tudo tem duas: o bem e o mal, o amor e a violência. O filme depende tanto dessa oposição que beira o maniqueísmo, mas um maniqueísmo cujos polos se decidiram a coabitar. Deus não é exceção alguma. É só o maior exemplo. Ele é culpado da violências suprema, a do Dilúvio, e só ao se regenerar se transforma em amante. Quem o leva a regenerar-se é, porém, o homem, ou melhor, as mulheres. Que outra força, afinal, poderia mudar o Criador, se o homem o formou à sua própria imagem sanguinária?
É bem uma mensagem, mas uma de que o homem pode todas as coisas, pois pode dispor de Deus. Só não pode recuperar a humildade perdida. Só não pode reconciliar-se com a terra e evitar que sua história termine no culto a si mesmo. Só Deus o pode.
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