terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

A Torre de Babel (1): Um Deus, Muitos Deuses

No Ocidente, a ruptura pós-moderna começa com o abandono da inspiração divina das Escrituras. Porém, essa ruptura não se deu, ao mesmo tempo ou na mesma intensidade, em relação a todas as partes do Antigo e do Novo Testamento. A rejeição da ideia de que as Escrituras são infalíveis, por terem sido inspiradas por Deus, começou com as dúvidas sobre o que se usa denominar Pré-História Bíblica, ou seja, sobre os 11 primeiros capítulos de Gênesis. Não vem ao caso quando isso aconteceu. Todos sabemos que aconteceu. Sabemos que o leite da ruptura se derramou. Trata-se de entender por que se derramou e, principalmente, como devemos viver numa cultura que se privou em tão grande medida dele.
Contraditoriamente com o que os céticos mais extremados sustentam, há poucas razões para duvidarmos de que a edificação da torre e da cidade de Babel (Babilônia) ocorreu, na Mesopotâmia, por volta de 2.500 a. C. A descoberta de zigurates (edificações em forma de torre), em escavações arqueológicas, tornam no mínimo plausível que o relato de Babel constitua a memória de um acontecimento real: "Robert Koldewey e Bruno Meissner puderam demonstrar que as grandes torres em degraus, os chamados zigurates (‘colinas do céu’, ‘montanhas dos deuses’) eram característicos dos templos e das cidades da antiga Mesopotâmia, como o são hoje as torres das igrejas e os arranha-céus" (LÄPPLE, Alfred. A Bíblia hoje – documentação de História, Geografia, Arqueologia. 2ª ed., São Paulo: Paulinas, 1981. p. 46.).
Läpple acrescenta que torres assim foram edificadas “em todas as grandes cidades da Mesopotâmia”. Mas o que chama muito a atenção é que a de Babilônia não foi descrita só em Gênesis, mas também nos escritos do historiador grego Heródoto, que viveu de 482 a 420 a. C. De acordo com Heródoto, a torre tinha cerca de 90 metros de cada lado. À altura de 33 metros surgia o primeiro patamar e, sobre ele, outros seis. O último patamar do edifício dedicado aos deuses foi revestido de azulejos azuis. Essa torre a que Heródoto se referiu foi edificada por Nabopolassar e Nabucodonosor, sobre a “gigantesca base” de uma outra (a torre bíblica), cujo nome tomou. Essa gigantesca base foi o monumento desenterrado por Koldewey e sua equipe.
A “primeira torre” a que Läpple aludiu, portanto, foi a edificação mencionada na Bíblia. Embora a data da sua construção não tenha sido estabelecida, por dados arqueológicos, o também historiador C. W. Ceram mostra que a sua existência é estreme de dúvidas: "Koldewey desenterrou a gigantesca base [da torre primitiva]. Mas as inscrições provaram-lhe que a torre existira. Pelo menos a torre de que fala a Bíblia (e que, sem dúvida alguma, foi construída) já devia ter desaparecido nos tempos de Hammurabi. Mas a mais recente fora erguida ali pelos sucessores em memória da antiga. Nabupolassar deixou estas palavras: “Naquele tempo, Marduk ordenou que se construísse a Torre de Babel, que tinha enfraquecido e desmoronado em tempos anteriores a mim” (CERAM, C. W. Deuses, túmulos e sábios – o romance da Arqueologia. 7ª ed., São Paulo: Melhoramentos, 1958. p. 252).
A convicção com que Ceram afirma que a torre foi construída não é gratuita ou destituída de fundamento histórico. Poucas linhas antes, ele se referiu às “informações que temos sobre a lendária Semíramis” como “duvidosas”. Percebe-se por essas palavras que Ceram não estava disposto a acreditar em qualquer documento ou a aceitar o depoimento de qualquer testemunha. Portanto, a existência da primitiva Torre de Babel é, historicamente, provável.
Comparemos essas informações com o que se encontra em Gênesis. Diz esse livro que o princípio do reino de Ninrode foi Babel, na terra de Sinear (Gn 10:10). A construção de Babel, por sua vez, aparece no capítulo 11 de Gênesis. Ninrode não é aí mencionado, porém a edificação de outras cidades lhe é atribuída (Gn 10:11).
Ninrode é, hoje, o nome de um lugar na Mesopotâmia. Como muitos nomes de cidades foram atribuídos em homenagem a personalidades destacadas do passado, é provável que Ninrode tenha realmente existido. Se assim for, ele deve estar relacionado não apenas com a construção de Babel e sua torre, mas também com o movimento religioso que inspirou essas notáveis obras da Antiguidade.
No seu clássico The two Babylons, Alexander Hislop propôs que esse movimento consistiu no abandono do culto ao Deus único (HISLOP,Alexander. The two Babylons. Disponível em www.biblebelievers.com/babylon/sect225.htm). Embora tenha levado longe demais essa intuição, é possível que Hislop estivesse correto ao relacionar a construção da torre bíblica à substituição do culto a uma divindade única pelo de vários deuses. Não que essa substituição tenha constituído uma simples transformação do monoteísmo em politeísmo. O que hoje denominamos monoteísmo não estava presente, no Oriente Médio ou em outro lugar do mundo, naquela época. É verdade que a história de Melquisedeque, em Gênesis 14, e a de Jó, no livro de mesmo nome, nos falam do culto ao Deus único, fora do povo de Israel. Sabemos da existência, nessa região, de muitos povos (chamados henoteístas) que adoravam um só Deus, mas não devemos pensar que o faziam do modo como Israel cultuava Iahweh. O culto monoteísta propriamente dito firmou-se em Israel, por volta da época de Moisés. De sorte que Melquisedeque, Jó e outras personagens bíblicas anteriores devem ter sido precursores desse monoteísmo, mas não exatamente monoteístas.
Sabemos que, quando Deus chamou Abraão para fora de Ur dos caldeus, não apenas a sua família, mas todas as tribos semitas daquela região adoravam outros deuses (Js 24:2). A exceção eram núcleos remanescentes do henoteísmo, não muito distintos dos de Melquisedeque e de Jó, espalhados pelo Oriente Médio. Gênesis explica essa situação como resultante do abandono do henoteísmo, a partir da construção da Torre de Babel.
Karen Armstrong informou que, no centro de Babilônia, o zigurate de Esagila era considerado a morada dos deuses na terra. De acordo com ela, “a cidade é chamada bab-ilani” (portão dos deuses), por esse motivo (ARMSTRONG, Karen. Breve história do mito. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 61). Através de Babilônia, o divino penetrava no mundo dos homens.
Armstrong chegou a afirmar que, no Período Paleolítico, pessoas de diversas partes do mundo passaram a representar o céu como um Deus Celeste ou Deus das Alturas único e sobranceiro, que criou todas as coisas a partir do nada. Sua opinião não se distancia da do filósofo do século XVIII David Hume, de acordo com o qual “o plano da natureza evidencia um autor inteligente, e nenhum investigador racional pode, após uma séria reflexão, suspender por um instante sua crença em relação aos primeiros princípios do puro monoteísmo” (HUME, David. História natural da religião. São Paulo: UNESP, 2004. p. 21). Embora essas palavras do cético Hume transpareçam alguma ironia, a posição que ele assume sobre a religião, na obra citada, não parece divergir da sua convicção íntima, a não ser por figuras de exagero (e ironia) empregadas aqui e ali.
Hume afirmou, por exemplo, que a mente humana só se fixa na ideia da existência de vários deuses, quando deixa “de lado as obras da natureza” e passa a observar “os sinais do poder invisível em diversos e contrários acontecimentos da vida humana”. Somente quando isso acontece, somos “levados ao politeísmo e ao reconhecimento de várias divindades”. A elevação da divindade “aos mais altos níveis de perfeição engendra enfim os atributos de unidade e infinitude, de simplicidade e espiritualidade. Esses conceitos sutis, que ultrapassam o alcance da compreensão comum, não conservam por muito tempo sua pureza original, mas precisam ser apoiados pela noção de intermediários inferiores ou de agentes subordinados que se interpõem entre os homens e a divindade suprema” (idem. pp. 30, 72).
Não se deve pensar que a História das Religiões tenha seguido um desenvolvimento único, do monoteísmo racional de Armstrong e Hume ao politeísmo posterior. O que a Pré-História Bíblica aponta é a existência do henoteísmo ao lado do politeísmo. Hans Küng resume de modo cristalino os estudos que levaram a essa conclusão: "Estudiosos do final do século 19 [...] como por exemplo Sir James G. Frazer (1854-1941), viam toda a história da humanidade dentro de um esquema preconcebido de estágios: primeiramente magia – em seguida religião – e hoje ciência [...] Na linha oposta, outros estudiosos, que em vez de seguirem a Darwin acreditavam na Bíblia – como por exemplo o Pe. Wilhelm Schmidt (1868-1954) e sua escola histórico-cultural – achavam que [...] os primitivos habitantes da Austrália teriam partido de um monoteísmo primordial. Só com o tempo este teria evoluído para um politeísmo, vindo por fim a degenerar em magia [...] Hoje estas duas teorias extremas estão abandonadas. Falta-lhes simplesmente a base empírica, porque na realidade as culturas dos diversos grupos tribais desenvolveram-se de maneira totalmente assistemática [...] Hoje os estudiosos estão convencidos de que os fenômenos e as fases [monoteístas e politeístas] se interpenetram. Por isso, em vez de se falar de fases e épocas (de uma sequência), prefere-se falar (de uma superposição) de camadas e estruturas, que podem se encontrar em estágios, fases ou épocas inteiramente diferentes [...] Em lugar algum se pode encontrar uma religião primordial" (KUNG, Hans. O princípio de todas as coisas. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 226-227).
Pode parecer que Küng exagera a importância do monoteísmo, ao mencionar a presença de elementos desse tipo de culto, ao lado de crenças e ritos politeístas tão remotos. Porém, a predominância do politeísmo é válida apenas do ponto de vista cultual. O reconhecimento de um Deus Supremo não cultuado é quase tão comum quanto o politeísmo. Armstrong se referiu a ele: "Quase todos os panteões têm seu Deus do Céu. Os antropólogos também O encontraram entre povos tribais, como pigmeus, australianos e habitantes da Terra do Fogo. Ele é a Causa Primeira de tudo e Senhor do céu e da terra. Nunca é representado por imagens, não tem templo nem sacerdotes, sendo sublime demais para o culto humano” (ARMSTRONG, Karen. Ob. cit. p. 23).
O que a história da Torre de Babel preserva é, portanto, a substituição do culto a um Deus único pelo culto a diversos seres divinos. Por que, no capítulo seguinte à história de Babel, Abraão deixa Ur dos caldeus? Sabemos que a sua migração está relacionada não só ao culto a Iahweh, mas à renúncia do que se tributava a outros deuses. “Então Josué disse a todo o povo: Antigamente vossos pais, Terá, pai de Abraão e de Naor, habitaram dalém do Eufrates, e serviram a outros deuses” (Js 24:2). Como surgiu esse culto, se a Mesopotâmia foi povoada pelos descendentes de Noé, que adoravam um só Deus? A resposta bíblica se centra em Babel e na construção da sua torre. Ali, embora não somente ali, o culto do único Deus foi traído e substituído pelo de muitos outros. Ali, o henoteísmo cedeu lugar ao politeísmo.
Porém, contra toda essa evolução da pesquisa bíblica e extrabíblica, o caráter lendário, quando não infantil e atrasado, dos relatos da Pré-História Bíblica é-nos proposto não só como provável, mas como certo. A ideia é sedutora, mas só para quem não conhece bem a estrutura dos textos bíblicos. Para quem compara com atenção as listas de personagens de Gênesis 5 e 10 com as de Esdras 2 e Neemias 7, cujo conteúdo é aceito como verdadeiro pelos críticos de Gênesis, a ideia do caráter lendário da Pré-História Monoteísta é que se afigura contraditória. Por que Adão, Sete, Enos, Cainã, Maalaleel, Jerede, Enoque teriram sido inventados, e Zorobabel, Jesua, Neemias, Seraías e outros não?
As simples palavras pós-moderno infundem impressão da mais alta inovação e do mais profundo poder crítico. Custa, porém, acreditar nesse ponto particular do grande movimento, cuja aceitação não cessam de nos demandar como se fosse o Everest diante do alpinista. Para propiciá-los ou simplesmente calá-los, só posso prometer que crerei no seu monte crítico no dia de São Nunca!

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Livre Exame de Romanos (25): Que o Evangelho Permite? Que Ele Proíbe?

Após ter apresentado o evangelho de Cristo, nos capítulos 1 a 11, Paulo se volta repentinamente, mas não de modo surpreendente, ao tema das virtudes. Tão claro e vigoroso é esse giro que somos levados a entender que as virtudes constituem o espelho em que a obra de Cristo se reflete. Cristo morreu por causa das nossas transgressões e ressuscitou para a nossa justificação (4:25): o resultado prático dessa obra eterna e extraordinária é, para Paulo, o reflexo da graça de Cristo no comportamento humano.
Ao tratar da condenação universal, da imputação da justiça por meio da fé e da situação de judeus e gentios, após a obra redentora de Cristo, nos capítulos anteriores, Paulo segue uma ordem e um método de exposição. Fala primeiro do negativo, depois do positivo. Ao final de cada seção, apresenta um balanço ou conclusão do tema tratado. E, em cada um desses passos, prova as suas afirmações por citações abundantes das Escrituras. Esse é o modo de proceder do apóstolo. Porém, Paulo estende a tal ponto o tratamento de cada assunto, por meio de exemplos (como os de Abraão e Adão) e séries de citações do Antigo Testamento que chega a dificultar a compreensão do leitor.
Essas características do texto paulino se tornam ainda mais saliente, quando ele passa a considerar as virtudes. Vai tão longe, nesse ponto, que escreve quatro capítulos, nos quais mistura o tratamento de virtudes diversas, como o amor (12:9-10), o bem, o zelo, o fervor (12:11), a alegria, a paciência, a perseverança (12:12), a generosidade, a hospitalidade (12:13), a bênção aos inimigos (12:14), a assistência devida a eles (12:20), a solidariedade com os que se alegram e com os que choram (12:15), a unanimidade, a humildade (12:16), a não retribuição do mal, a honestidade (12:17) e a paz (12:18). Trata, ao mesmo tempo, do oposto dessas virtudes, que compendia no mal (12:10,21). Tudo isso é desenvolvido, em poucos capítulos, o que causa a impressão de mistura de temas e cria a necessidade de esclarecimento das linhas principais do pensamento do apóstolo.
Um dos pontos a serem esclarecidos é o da hierarquia das virtudes, que o Papa Francisco reafirmou na Exortação Evangelii gaudium publicada recentemente. Hierarquia significa que as virtudes cristãs têm diferentes graus de importância. No entanto, ao lado da hierarquia, devemos reconhecer que as virtudes se dispõem também numa ordem de urgência. Isso porque, sem serem maiores ou mais importantes, certas virtudes podem ser mais urgentes que outras.
A hierarquia das virtudes é absoluta. Aplica-se a todos os casos, sem modificação. A urgência delas é relativa. Decorre das circunstâncias que as tornam mais ou menos necessárias, em determinado momento histórico ou em determinada situação de vida. De acordo com tais circunstâncias, é que as virtudes são menos ou mais urgentes.
Tanto a hierarquia como a ordem de urgência se evidenciam no tratamento que Paulo dispensa às virtudes. Por exemplo, em 1ª aos Coríntios 13:13, ele afirma que o amor é maior do que a fé e a esperança. Isso indica que há uma hierarquia entre as três virtudes. Do mesmo modo, em Romanos 12 e 13, embora trate de tantas virtudes, Paulo retorna com maior frequência ao amor (12:9-10; 13:8-10), em atenção à sua prioridade hierárquica.
Porém, outras vezes, Paulo enfatiza uma virtude, não por causa da sua superioridade em relação a outras, mas devido à situação histórica peculiar em que os romanos se encontravam. É o caso da submissão às autoridades civis (13:1-7). Paulo a encarece de modo peculiar, não porque fosse superior a outras virtudes, mas porque Roma era a sede do Império. Semelhantemente, a tolerância e a receptividade para com pessoas de diferentes convicções também são enfatizadas, nos capítulos 14 e 15, devido à igreja de Roma ser composta por judeus e gentios, pessoas cultas e bárbaras, enfim por indivíduos dessemelhantes no concernente à religião e à cultura.
Quando compreendemos que Paulo apresenta as virtudes cristãs, sob a ótica da hierarquia absoluta e da urgência relativa delas, o tratamento aparentemente confuso que ele lhes dispensa se desfaz, ao menos em parte. Paulo não é confuso. Pelo contrário, ele trata de várias virtudes ao mesmo tempo, sem definir e sem dizer de que modo cada uma deve ser posta em prática, porque entende que isso só é possível nas circunstâncias concretas de vida.
É temerário pensar que, na mente de Paulo, as virtudes estivessem dispostas de maneira caótica. Um homem com formação farisaica, como ele, era um fenômeno do pensamento ético, não um ignorante dessa disciplina da conduta humana. Por isso, o fato de Paulo tratar das virtudes ao mesmo tempo, sem as definir e sem esclarecer como as pôr em prática, nas diferentes situações de vida, não é um sinal de confusão ou vagueza, mas de uma orientação bem determinada em matéria de comportamento.
Coloquemo-nos na pele de Paulo, por um instante. Ele escrevia a cristãos da capital do Império. Portanto, a pessoas mergulhadas numa atmosfera política densa e em costumes pagãos. Poderia exigir que elas praticassem a humildade ou o amor de determinada maneira, enfim que adotassem comportamentos muito bem definidos, mas se contenta com recomendar a prática dos valores morais. Poderíamos dizer: a recomendá-la em abstrato.
Como já disse, a decisão de recomendar as virtudes em abstrato e não em concreto, assim como a opção por não as definir de maneira exata, não é casual. É um sinal fortíssimo de que as virtudes cristãs não se definem absolutamente em abstrato, mas em concreto. E se não podem ser definidas em abstrato, menos ainda podem ser praticadas. Portanto, para usar a linguagem dos jogos, Paulo deposita todas as suas fichas na abordagem abstrata dos valores.
Afirma que o amor, o bem, o zelo, o fervor, a alegria, a paciência, a perseverança, a generosidade, a hospitalidade etc. devem ser buscados. Negá-los é um grave erro. Por outro lado, os vícios que se opõem àquelas virtudes devem ser evitados. Notemos, porém, que, ao ensinar o que é propriamente o amor, em 1ª aos Coríntios 13, Paulo não tenta expressá-lo numa fórmula sintética. Não procura capturar a virtude do amor e prendê-la numa definição aristotélica. Pelo contrário, ele mostra o que o amor é, por meio do que ele faz. Devemos pensar o mesmo, em relação a todas as outras virtudes.
As virtudes só se definem em situações concretas. Fora delas, não sabemos o que elas são, nem o que é seu oposto: o pecado. Em abstrato, as virtudes são símbolos do coração de Deus. O amor, o bem etc. são sentimentos de Deus. Representam, portanto, Deus. Deus é amor, Deus é o bem. No entanto, em termos de atitudes humanas, só podemos definir o amor, o bem e todos as outros valores cristãos em situações específicas.
Claro que esse modo de ver as virtudes tem muitas consequências. A primeira delas é ampliar, extraordinariamente, o papel da dúvida no interior da Ética. Que é certo? Que é errado? Que Deus ordenou fazer? Que ordenou não fazer? Não podemos responder tais perguntas, no plano abstrato em que estão formuladas. Mais do que isso: as perguntas não têm respostas possíveis. E sabemos bem que perguntas sem respostas possíveis são absurdos.
A Ética como disciplina abstrata do comportamento comporta amplo espaço para a dúvida. É o que a história do patriarca Jó exprime. Depois que os sete filhos e as sete filhas dele se reuniam para banquetear, Jó “levantava-se de madrugada e oferecia holocaustos segundo o número de todos eles”. Não o fazia, porém, baseado em certeza, mas na dúvida: “Dizia: Talvez tenham pecado os meus filhos, e blasfemado contra Deus em seu coração” (Jó 1:5).
A palavra “talvez” indica que o patriarca tinha dúvida de que seus filhos houvessem pecado. E, como os intermináveis debates do Livro de Jó sugerem, suas dúvidas não se deviam à ignorância do que os filhos haviam feito, mas do que aquilo que eles tinham praticado significava para Deus. Jó sabia muito bem o que era o pecado cometido na adoração, mas não sabia com certeza o que era pecado moral. Por isso, disse: “Se olhei para o sol, quando resplandecia, ou para a lua, que caminhava esplendente, e o meu coração se deixou enganar em oculto, e beijos lhes atirei com a mão, também isto seria delito à punição de juízes” (Jó 26:10). A idolatria, o culto prestado ao sol ou à lua, eram pecados para Jó. Eram até mesmo pecados sujeitos à punição de juízes. Mas Jó não disse outro tanto dos pecados morais.
Não nos enganemos com a ideia de que as coisas se tornaram mais definidas depois. Não se tornaram. Jó se situa num tempo anterior a Moisés. Porém, as permissões e proibições que esse legislador entregou a Israel estão, em grande parte, envoltas na cláusula pela qual Jesus explicou o direito ao divórcio: “Por causa da dureza do vosso coração é que Moisés vos permitiu repudiar vossas mulheres”. E não nos esqueçamos do que ele afirmou em seguida: “Entretanto, não foi assim desde o princípio” (Mt 19:8). Se não só o divórcio, mas outras permissões cabem nessa interpretação de Jesus, a lei não define, muito menos define com exatidão o que seja o pecado moral. O que a lei define, como Jó também faz, é o pecado de adoração.
Jó está mais perto do “princípio” do que Moisés. Veio antes dele. Será que não podemos estender a dúvida que Jó manifestou à Lei de Moisés? Será que não devemos projetá-la no Novo Testamento? Que significa “Não julgueis, para que não sejais julgados” (Mt 7:1)? Que significa Jesus ter perdoado a pecadora que Moisés mandara apedrejar (Jo 8:11)?
Vejamos o caso do amor ao inimigo. Em Romanos 12, Paulo cita apenas dois versos do Antigo Testamento. Esses versos afirmam: “A mim pertence a vingança; eu retribuirei, diz o Senhor” (12:19; Dt 32:35) e “Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber, porque, fazendo isto, amontoarás brasas vivas sobre a sua cabeça” (12:20; Pv 25:21-22).
As citações escolhidas por Paulo indicam que o foco da argumentação do apóstolo está posto no amor ao inimigo. O amor é uma virtude suprema. Porém, dos amores, o que é dedicado ao inimigo é o maior, o que mais envolve a renúncia de si. Notemos que os versos citados atribuem conteúdo concreto a esse amor. Amar o inimigo é dar-lhe de comer e de beber. Não que a virtude esteja posta em atos mecânicos. Ela tem o seu lar no coração. Virtude não é o dispêndio de energia que realizamos ao agir. É o sentir humano e um modo especial de sentir. Mas Paulo define o amor ao inimigo e as outras virtudes sempre em circunstâncias concretas.
Devemos extrair disso que, em todas as circunstâncias, é nosso dever dar de comer e beber aos inimigos? Absolutamente não. Afirmá-lo seria subverter a ideia bíblica de que o virtuoso define-se e se ajusta a circunstâncias variáveis. Não podemos supor que as circunstâncias sempre nos permitirão dar de comer e beber aos inimigos. Pode ser que, em alguns casos, fazê-lo signifique provocá-los à ira. Então, não o devemos fazer. De sorte que o mandamento do amor ao inimigo significa que devemos dar-lhe de comer e de beber tanto quanto as circunstâncias permitam.
No capítulo 1, Paulo associou a rejeição de Deus pelos gregos à perversão sexual. Vivemos num tempo em que quase metade do mundo pensa que não há perversão sexual, e a outra quase metade acha que todo ato sexual é pervertido. O pensamento de Paulo distancia-se desses dois extremos. E, ao mesmo tempo, é mais profundo que eles, pois trata a perversão como manifestação da ira de Deus pelo pecado, não como o próprio pecado.
Isso exige que separemos bem as coisas. O pecado é um fato da vontade. É a resolução de abandonar a Deus ou, numa palavra: a idolatria. O que Paulo descreve como perversão, em Romanos 1, por outro lado, parece um fato da natureza e não da vontade, já que não é o próprio pecado, mas o juízo de Deus sobre ele. Com efeito, se o pecado reside na vontade, a perversão a que Paulo alude parece ser um dado da natureza, como uma doença ou imperfeição.
Mas isso contradiz a passagem em que Jesus afirmou que o cego de nascença não veio ao mundo sem ver, porque seus pais haviam pecado (Jo 9:1-3). A passagem impede considerar a cegueira o resultado físico de um julgamento de Deus. Por que a perversão que Paulo apresenta como consequência do pecado seria diferente? Se Deus não julga, usualmente, por meio de castigos físicos, é mais provável que Paulo se referisse ao juízo de Deus sobre os gentios como uma perversão da vontade. Voltaremos mais tarde a esse tema.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

História Hipotética da Igreja (2): As Divisões de Corinto

Clemente de Roma
Há cristãos que equiparam a revolta contra a autoridade espiritual à heresia. Mas, se olharmos atentamente, não é esse o ensino do Novo Testamento ou dos primeiros cristãos. As igrejas de Pérgamo e Tiatira tinham adeptos de doutrinas contrárias à dos apóstolos, como a dos nicolaítas, a de Balaão (Ap 2:14-15) e a de Jezabel (Ap 2:20-24). E as da Galácia não tinham só representantes de doutrinas heréticas como estavam a passar, em bloco, do evangelho de Paulo a outro de cunho legalista (Gl 1:6). Todas essas pessoas foram tratadas como hereges ou distorcedores do evangelho de Cristo, pelos autores do Novo Testamento.
Paulo, porém, aponta o pecado de divisão na igreja em Corinto, sem deixar de tratá-la como uma comunidade cristã. Um dos partidos daquela igreja seguia Paulo, outro, Pedro, outro, Apolo e ainda outro afirmava seguir a Cristo (1 Co 1:12). Contudo, as opiniões desses partidos estavam de acordo com o Novo Testamento, devido às fontes de que provinham. Isso os tornava negativos, mas não tão perigosos quanto as heresias mencionadas antes.
A carta de Clemente de Roma aos coríntios, escrita por volta do ano 95, ajuda a entender o sentido dos problemas existentes naquela cidade. Nela se lê: “Retomai a carta do bem-aventurado apóstolo Paulo. O que vos escreveu ele por primeiro, no início da evangelização? Na verdade, divinamente inspirado, ele enviou a carta para vós a respeito dele mesmo, de Cefas e de Apolo, porque já se formavam divisões entre vós. Contudo, tal divisão representava então pecado menor para vós, já que vos inclináveis para apóstolos autorizados e para um homem aprovado junto de vós. Agora, porém [...] a antiga Igreja de Corinto, por causa de uma ou duas pessoas, está em revolta contra os seus presbíteros” (ROMA, Clemente de. Clemente aos Coríntios. In Padres apostólicos. 4ª ed., São Paulo: Paulus, 2008. p. 57).
O autor dessa epístola é às vezes identificado com o Clemente de Filipenses 4:3. Mas não temos condições de afirmar com certeza que se trata da mesma pessoa, embora possa ser esse o caso. Sabemos que Clemente era um líder da igreja de Roma, pois não escreve em seu próprio nome, mas no dela. Abre, de fato, a carta com as seguintes palavras dedicatórias: “A Igreja de Deus que vive como estrangeira em Roma à Igreja de Deus que vive como estrangeira em Corinto” (idem. p. 23).
Mas o mais importante é que Clemente nos informa que o pecado dos coríntios tinha-se agravado, em relação ao tempo de Paulo. Tinha passado do orgulho por pequenas diferenças de ensino para a revolta contra homens santos e não censuráveis, a quem Deus tinha confiado o cuidado do seu rebanho. Porém, esse agravamento não havia convertido os coríntios numa igreja herética. Não é assim que Clemente os trata. Pelo contrário, ele dispensa o mesmo tipo de tratamento que Paulo dispensara àquela igreja. Isso mostra que a tradição apostólica considerava não só a divisão por doutrinas, mas também a revolta contra os presbíteros como pecados, porém não tão graves quanto a heresia.
É interessante que a revolta, na igreja em Corinto, como Clemente a descreve, não se dirigiu apenas à autoridade eclesiástica. Mais do que isso, foi uma rebelião “dos sem honra contra os honrados, dos obscuros contra os ilustres, dos insensatos contra os sensatos, dos jovens contra os anciãos” (idem. p. 25).
Essas palavras são reveladoras. Mostram dois níveis de dignidade que a rebelião atingiu. O primeiro é o nível dos atributos que sustentam a autoridade: a honra, o caráter ilustre, a sensatez e a idade. O outro é o da autoridade formal: o presbiterado propriamente dito. Se não discernirmos os dois níveis, não compreenderemos por que a revolta foi censurada por Clemente.
O ponto mais grave da revolta coríntia era o prejuízo que gerava para os atributos que sustentam a autoridade. Esses atributos são mais valiosos que a autoridade formal. Mas eles próprios são, em parte, também definidos formalmente. Vejamos o caso do caráter ilustre, que Clemente opõe à obscuridade. Parece referir-se senão ao nascimento, ao menos à posição de classe. Se assim não fosse, por que opor o ilustre ao obscuro?
E a honra a que Clemente se refere? Também ela parece um pouco formal. Não se opõe à desonestidade ou a outro vício do comportamento, mas à falta de honra como algo evidente e quase visível naquela época. De novo, somos levados a pensar num atributo de posição.
A idade é o apanágio mais claramente divorciado da conduta, dentre os que o autor menciona. É pura decorrência do tempo. Dos quatro atributos, portanto, só a sensatez está inequivocamente relacionada ao pensamento e à conduta.
Em suma, se a autoridade eclesiástica repousa em atributos que a antecedem e não pode existir sem eles, por outro lado, os atributos são entendidos de modo acentuadamente formal. Devemos perguntar se esse formalismo não é um sinal do que hoje denominamos conservadorismo. Penso que é. O conservadorismo antigo era, ao menos em parte, o hábito não só de estabelecer a ordem social, mas também de justificá-la por meio de valores morais baseados no nascimento, na posição, em títulos, enfim em requisitos formais.
A concepção de autoridade vigente na igreja primitiva, portanto, era semelhante, quando não idêntica, à que vigorava no mundo pagão. Comparemos o ensinamento de Clemente com a imagem que Marcos Agripa utiliza para descrever a sociedade secular de seu tempo. De acordo com ele, "Seria tolo as mãos, os pés ou os olhos se rebelarem contra o estômago; assim também, os plebeus não se devem rebelar contra os patrícios, mas aceitar a sua autoridade".
Contrariamente à ausência desse hábito no ensinamento de Jesus e à presença em forma mais branda, na lista dos requisitos do presbítero e do diácono em 1ª a Timóteo e Tito, notamos presença muito maior na epístola de Clemente aos coríntios. Não é de espantar, se Clemente escrevia da capital do Império, onde estavam situados o Senado e a Corte dos Césares, se escrevia em nome da igreja ali existente, que embora estrangeira, como ele diz, não podia escapar à influência do meio.
A epístola de Clemente é talvez o primeiro documento cristão que demonstra influência muito forte do conservadorismo social na estrutura da igreja. As alusões de Paulo à mulher e aos escravos eram sinais de conservadorismo, mas não se aplicavam à estrutura da própria igreja. Paulo recomendava a submissão da mulher ao marido e do escravo ao senhor, em respeito à ordem social. Não definia a ordem da igreja, com base nessas relações. Clemente, ao contrário, aceitou que se definisse a autoridade eclesiástica pela posição social.
Não chego a afirmar que Clemente escorasse a autoridade espiritual em títulos, cargos ou posições de governo. Pouquíssimos cristãos possuíam sinais de nobreza, no primeiro século. Exigi-los como fundamento para o presbiterado seria privar a igreja de presbíteros. Porém, a carta de Clemente transparece um pensamento formalista e conservador e o aplica à igreja. É, por isso, um marco muito importante das transformações por que a igreja passou, no seu primeiro século.
Podemos acompanhar as mesmas transformações em outros textos daquela época. Inácio escreveu várias epístolas a igrejas. Em cada uma menciona um bispo, presbíteros e diáconos. Portanto, na época desses escritos (cerca de 110 d. C.), o bispo, que no Novo Testamento era outro nome para o presbítero, se distinguira dele. Fora posto acima do presbitério. Nesse sentido, Inácio escreve à igreja em Filadélfia: “Há uma só carne de nosso Senhor Jesus Cristo [o pão da eucaristia] e um só cálice na unidade do seu sangue, um único altar, assim como um só bispo com o presbitério e os diáconos” (ANTIOQUIA, Inácio de. Inácio aos filadelfienses. In Padres apostólicos. 4ª ed., São Paulo: Paulus, 2008. p. 110). Ao se referir a várias igrejas, na mesma epístola, Inácio fala de bispos, no plural, e não mais de um só: “As Igrejas mais próximas enviaram seus bispos, outras seus presbíteros e diáconos” (idem. p. 113). E, de novo, à igreja em Esmirna considerada individualmente escreve: “Saúdo o bispo, digno de Deus, o respeitável presbitério, os meus diáconos” (ANTIOQUIA, Inácio de. Inácio aos esmirniotas. In ob. cit. p. 120).
Inácio já foi apontado como criador da hierarquia cristã e como o primeiro a diferenciar o bispo do presbítero. Mas a análise cuidadosa dos seus textos mostra que ele apenas se referiu a uma hierarquia já existente. Não foi o seu criador. Por outro lado, a diferença hierárquica entre o bispo e o presbítero não o antecedeu muito, já que Clemente sempre adotou a terminologia bíblica, segundo a qual os presbíteros são também bispos. Por exemplo, ao combater a destituição dos presbíteros, numa passagem, ele escreveu: “Não seria culpa leve se exonerássemos do episcopado [encargo de bispo] aqueles que apresentaram os dons de maneira irrepreensível e santa. Felizes os presbíteros que percorreram seu caminho e cuja vida terminou de modo fecundo e perfeito” (ROMA, Clemente de. Ob. cit. p. 55).
É provável que o desenho hierárquico da igreja, a que Inácio se refere, tenha surgido pelo aprofundamento da tendência conservadora já evidente na epístola de Clemente Romano. Se a autoridade era pensada em termos formais e se a família possuía o pater, o Império, o César, e os reinos, seus reis, por que não constituir um líder supremo da igreja?
A hierarquia eclesiástica é um dos traços mais evidentes do conservadorismo baseado em formas, títulos e outros atributos externos a que me refiro. É interessante observar como uma das mensagens mais avessas a ele que já foram pregadas (a de Cristo) tenha sido adotada como base para o estabelecimento de instituições tão nitidamente conservadoras. É que o mundo antigo não funcionava a não ser com base em valores e métodos conservadores. A opção a eles era a absoluta disfuncionalidade. Era não criar igreja alguma. Por isso, os cristãos bem cedo estabeleceram comunidades inspiradas no evangelho, porém moldadas à semelhança do mundo de sua época.
Outra é a situação do mundo hoje. A grande marca da Modernidade é ter produzido não apenas propostas, mas modos de vida que rompem com os valores do conservadorismo. Esses modos de vida foram postos em prática, testados e, ao menos alguns, mostraram-se funcionais. A ponto de podemos afirmar que o mundo de hoje é uma combinação de elementos antigos e tradicionais, de um lado, e elementos modernos, de outro.
Essa mudança do mundo oferece uma oportunidade extraordinária para a igreja mudar seus valores, para ela substituir as formas e instituições tradicionais por formas e instituições modernas. A começar  pelo formato hierárquico e pela ordem interna da igreja. Para isso, é necessário reconhecer que a hierarquia formal não é um legado do evangelho , mas do conservadorismo antigo, assim como a submissão da mulher ao marido e a do escravo ao senhor o são. Na verdade, a hierarquia eclesiástica nem sequer é ordenada como um valor neotestamentário, ao contrário do que ocorre com a submissão das mulheres e dos escravos que são valores mundanos recepcionados nas cartas do Novo Testamento. De sorte que a questão maior, que a História dos primeiros séculos coloca, não é a hierarquia, a submissão das mulheres ou a escravidão, mas o conservadorismo do qual as três são manifestações particulares.
Se a hierarquia mais rígida é um produto do conservadorismo antigo, a submissão das mulheres e a escravidão não têm outra origem, nem fluem de outro princípio. Se estamos livres da primeira, mas não da segunda, por estar na Bíblia, por que não praticamos a escravidão, que também está? Porque ela foi abolida, nas nossas sociedades, dirão. Sim, mas e a submissão das mulheres: não foi também abolida? Não é, pois, correto praticarmos uma consequência e não outra do mesmo princípio básico (o conservadorismo antigo), se as duas estão na Bíblia e foram abolidas na sociedade.
A fé tem uma estranha intimidade com o princípio conhecido como tertium non datur. Ou algo é, ou não é. Não pode ser e não ser ao mesmo tempo. Ou cremos, ou não cremos na Bíblia. Não podemos crer e não crer. Por isso, ou adotamos a escravidão, a submissão das mulheres e a hierarquia rígida, pois emanam do mesmo princípio, ou proclamamos a nossa libertação de todos como instituições prescritas de um tempo passado.
Se a revolta contra os presbíteros de Corinto está envolta em costumes conservadores é uma hipótese ou possibilidade hermenêutica. A História que escrevo é hipotética, porque profundamente interpretativa. Mas a fé não é hipótese. É antes certeza. Por isso, não é conforme a fé criar governos colegiados, libertar os escravos e manter as mulheres em submissão. É?

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

A Sociedade Líquida

O texto a seguir é um diálogo online, sobre uma entrevista em que o sociólogo Zigmunt Bauman explica que as sociedades contemporâneas têm como principal característica a extrema mutabilidade. Como é comum em conversas eletrônicas, a que agora compartilho foi interrompida (durante três dias) e, depois, retomada. Ou, para dizê-lo melhor, tentei retomá-la, sem sucesso. E, como também ocorre com frequência nessa espécie de comunicação, gerou um mal-entendido, imediatamente antes da interrupção. Enfim, essas características do diálogo não deixam de refletir ao seu modo a contínua metamorfose que se tornou o viver, ou seja, o tema da reflexão de Bauman. E o que mais poderia situar o leitor sobre o texto está posto logo na primeira linha.

“Renê: Pai, leia isso. http://www.istoe.com.br/assuntos/entrevista/detalhe/102755
Lobão: Desde sempre, metáforas foram usadas para explicar a sociedade. Mas, há algum tempo, elas passaram a proliferar como coelho. E não são poetas que as criam para poetizar, mas teóricos para teorizar. Querem explicar para valer o mundo do homem ou, como preferia Dilthey, compreendê-lo, por meio delas. Durkheim viu a sociedade como um organismo, Marx como um encaixe de estruturas (infra e super). Bauman vê o contemporâneo como um líquido. Não se afasta, pois, da tendência. Mas metáforas comunicam teorias?
Renê: Elas tentam ilustrar, tornar palpável, uma teoria. É mais didático do que filosófico. Esse negócio de mutação constante faz sentido pra mim. Uma metáfora tem um poder absurdo de explicar muita coisa, quando desenvolvida. Aquele exemplo das raízes das árvores, que crescem primeiro pra baixo, pra depois desenvolver os troncos é uma metáfora clássica da humildade, muito usada pelos cristãos. Pra mim ela explica muita coisa. O que você quer dizer com a pergunta?
Lobão: Quero dizer que desconfio do poder explicativo das metáforas. Ao menos na Sociologia, que tem pretensões científicas. Os cristãos não são sociólogos (longe disso). E, por falar em mutação constante, acabo de sair de uma audiência de 5 horas. Uma guerra. Isso, sim, é mutação: entra-se pobre e se sai rico. Meu papel é manter tudo como dantes, no quartel de Abrantes.
Renê: Heauhaeuea, não acredito. Justiça do trabalho: fique rico sem trabalhar.
Lobão: Para mim, você tem razão. O cara de hoje acreditava piamente que era empregado. Criou toda uma justificação, um mundo mental em que ele era explorado. Inventou um vínculo empregatício com neurônios. Neurônio com neurônio dá vínculo. Pura mistificação. Mas, como o sujeito que se cria Napoleão e, é claro, reivindicava o poder na França ou um professor que conheci, que entrou no STF e perguntou por Chicão (era o Ministro Francisco Rezek), o reclamante de hoje tinha a maior certeza de que o patrão lhe deve muitas (põe muitas nisso) mil pratas. Pergunto-me onde mora, de fato, a ganância. Tem ela um lugar social? Ou só um lugar psíquico, um ninho aquecido, sem cor, nem bandeira, nem ideologia: o coração humano?
Renê (repete os três últimos períodos): ‘Pergunto-me onde mora, de fato, a ganância. Tem ela um lugar social? Ou só um lugar psíquico, um ninho aquecido, sem cor, nem bandeira, nem ideologia: o coração humano?’
Renê (continua): Definitivamente não sei, mas vou tentar entender isso.
Lobão: Sigamos, então, a tentar entender. É sempre e muito melhor do que achar que entende. Minha funda desconfiança para com certa teoria (não me refiro à do Bauman), entenda-se para com a pretensão universitária ao monopólio da verdade, jorra do sentimento de que tentar entender é melhor do que achar que entende. O dito com que Aristóteles explicou suas divergências de Platão se fez célebre: ‘Amicus Plato, sed magis amica veritas’ (Platão é amigo, mas maior amiga é a verdade). Porém, hoje foi alterado. No frontispício da universidade-espetáculo deveria estar inscrito: “A verdade é amiga, mas maior amiga é a vanglória”. Expressaria melhor as coisas. Só não acho que a vanglória detenha a chave dos mistérios.
Renê: Aí voltamos à matéria sobre o Bauman. Talvez a vanglória traga aquela felicidade instantânea, daí uma opção. Ela tem o poder de transformar mais o homem em lenda. Quem não quer ser uma lenda? Ser lenda é uma tentação? Mas esse papo todo já foi falado há uns 2.000 anos, no deserto. Demonstrar as coisas é tarefa muito difícil pra um só homem, quando o terreno é a Filosofia. A verdade é amiga, mas por favor, ela é amiga de todos, não só de algumas pessoas. Aqui vou trazer aquela opinião (apesar de não gostar dela): acho que, no campo da Filosofia, tudo o que já foi produzido tem sua dose de verdade.
Lobão: Acho que sim, em termos. A conclusão de que, em Filosofia, tudo carrega uma dose de verdade é essencialmente intuitiva. É quase um julgamento da razão comum sobre a razão filosófica. Ocorre que pensar e analisar são coisas tão corriqueiras, para o homem, que ele tende a considerar que o pensamento comum lhe basta ou que pode julgar a reflexão mais metódica. Na verdade, pode muito pouco. A Filosofia não deixa de ser um método ou de ter um; a ciência idem. E, quanto mais desenvolvemos o uso desses métodos, mais percebemos que afastam a igualdade entre as teorias ou entre as filosofias. Não é diferente com a questão da verdade e da vanglória. Buscar uma ou outra, uma e outra, mais uma do que a outra ou mais a outra do que a primeira pode parecer decisão essencialmente relativa. Qualquer posição, sobre o tema, pode parecer igualmente justificada. Ou ao menos sempre pode aparecer alguém disposto a provar essa relatividade. Mas a observação atenta da vida e o pensamento metódico levam a concluir que as posições não têm o mesmo valor. A vanglória é, em geral, muito mais disfuncional para o homem e para a sociedade do que a verdade. É também, com frequência, mais uma traição da verdade do que a busca dela. E, como não se pode achar sem buscar, fica difícil concluir que o abandono da busca da verdade em favor da vanglória produza o que foi abandonado. Você acha que um desses corifeus da vanglória dará com o caminho que conduz às verdades ocultas, que tantas e tão grandes mentes buscaram sem jamais encontrar?
Lobão (propondo suspenderem o diálogo): Linda criança, os jovens devem ter a última palavra, e os velhos, a última audição. Vou ouvir o que escreveu.
Renê: Acabei de mudar de opinião.”

Três dias depois:

“Lobão: Renê, vou arriscar-me a continuar este diálogo. Você não entendeu bem minha última palavra acima. Quis dizer exatamente o que escrevi. E é claro: acredito no que escrevi. Precisamos ouvir muito os jovens, porque eles têm as (melhores e piores) paixões afiadas na pedra. Nos de mais idade, as paixões, muitas vezes, perderam o gume. Mas a vida ensina muito e, se somos capazes de aprender algo, deve ser antes de tudo a ouvir. Particularmente os mais velhos têm o dever de ser professores em ouvir, o que inclui ouvir muito bem os jovens. Deixar a faca deles cortar, quem sabe afiar a sua própria, se a encontrarem cega. Foi o que quis dizer. A ironia que você encontrou não estava contida no que escrevi.
Ainda sobre a metáfora de Bauman, quando um sociólogo se pronuncia, especialmente um imenso como ele, esperamos teoria. Mas não sei se há teoria nesse assunto do líquido. Teoria não é metáfora, e metáfora não é teoria. Claro: como você bem disse, a metáfora pode ilustrar uma teoria, mas é preciso lê-la com esse discernimento. Trata-se de uma ilustração. E é preciso catar a teoria para que a metáfora aponta, não muito diferentemente do modo como os discípulos e outros ouvintes se descabelavam para entender os ensinos que Jesus transmitia pelas parábolas. É o velho e tantas vezes renovado encontro entre o símbolo e o ensinamento.
O problema é que desconfio de que não haja teoria alguma, por trás do assunto do líquido. Bauman é considerado o teórico do mal-estar pós-moderno. Esse é, pois, o tema principal para que ele aponta, por meio da metáfora. Para dizê-lo rapidamente (se for possível): Freud referiu-se ao mal-estar na civilização, na sociedade considerada em todas as suas épocas. Para Bauman, porém, o pós-moderno não foi ou foi muito pouco observado por Freud. Mais do que isso, ele é diferente da sociedade que o antecede. O mal-estar civilizatório é o preço que a ordem cobra à alma humana; o da pós-modernidade é a insegurança que a busca irrefreável e irrefreada da liberdade traz. É, enfim, o fato de tudo ter de mudar tão velozmente.
Mas de duas uma: dizer que tudo muda é uma obviedade ou é filosofar. Filósofos nem sempre teorizam. O mais comum é não teorizarem. Não raro, apenas enrolam. Especialmente os filósofos de hoje. Se quiser constatá-lo, é só ir à Saraiva, à Cultura ou a outra livraria bem provida de obras filosóficas, fazer um "crediário pós-moderno" para comprar livros de Filosofia atuais e lê-los para valer. Você logo verificará que, a cada 100 páginas, ficarão poucas de conteúdo real. Isso não é teorizar.
Mas há grandes filósofos, inclusive sociais, que não caem nessa. Alçam de fato altos voos. Não chegam às alturas da arte imortal, é verdade, mas voam muito alto. Tão alto que passam do céu da teoria. E, ao passarem, riscam o ar e fraturam as teorias que encontram no caminho. Lembra o que Marx disse? “Tudo o que é sólido desfaz-se no ar”. É o caso das teorias situadas no céu que esses grandes filósofos cruzam. São sólidas: por isso são destruídas pelo voo vigoroso de homens alados.
Mas o destino do voo deles não é o céu teórico. É outro mais elevado. Por isso, riscam e destroem as teorias, sem se preocupar em reconstruí-las ou em criar outras com os restos delas. E assim, os caras continuam a voar para cima, para as alturas da crítica. Ali, sabedores de que as teorias se partem por serem sólidas, tampouco procuram teorizar. Não criam novas teorias, nem fazem ciência. Fazem crítica de teorias e da ciência. Acho que o Bauman faz isso, ao escrever e falar sobre a sociedade líquida.
Criticar é também desmontar, desfazer. Podem pensar que isso é fácil e até trivial, portanto sem valor. Mas não é o caso. Criticar não é destruir. O bom crítico não é um destruidor. Não destroi obras humanas, nem seus autores. O que é sólido tem a propriedade de se desfazer, destruir-se no ar ao só passarem perto dele. O que ninguém diz é que a máxima de Marx implica que o que não é sólido não se desfaz. Não é sólido o espírito. Por isso se desconstroi e reconstroi, o tempo todo, sem se destruir. Por isso também, o filósofo, que é desconstrutor e não destruidor, reconstroi ao desconstruir. Só que a sua arte se exerce muito lentamente. É o oposto da sociedade vertiginosa do nosso tempo. O trabalho filosófico não se conclui do dia para a noite. Às vezes demora anos, às vezes décadas. E às vezes não se conclui de maneira alguma.
Talvez o Bauman faça isso, com ajuda da metáfora do líquido. Mas exatamente por auxiliar, a metáfora não é o centro da sua construção filosófica. Remete-nos ao centro dela, que é o especial dinamismo da sociedade atual. Bauman parece procurar a intuição que nos coloque na pista, aí sim, de uma nova teoria da sociedade. Será a intuição de Heráclito, que refletiu altamente sobre a mudança? Não o creio. Será a dos filósofos de Eleia, que negaram toda mudança? Por certo não. A de Aristóteles? Tampouco me parece. Talvez Bauman não tenha, simplesmente, encontrado a intuição filosófica que nos forneça a chave de uma nova teoria da sociedade. O que nem de longe diminui o valor da sua reflexão. Nas alturas em que ele voa, achar ou não achar uma intuição não é questão de mérito. Intuições não se inventam; descobrem-se repentinamente. Só podem ser buscadas no sentido de que é preciso manter o voo para encontrá-las. Mas não se pode voar nessa ou naquela direção, a fim de encontrá-las. Topa-se simplesmente com elas. E talvez ele não tenha topado ainda. Como já disse, as descobertas dos filósofos não se sujeitam ao tempo.”