domingo, 21 de julho de 2013

O Jesus Católico

Estamos a poucos dias da chegada do Papa Francisco ao Brasil e do início da Jornada Mundial da Juventude, que aqui terá lugar. Os acontecimentos são parte da estratégia católica de apresentar a mensagem evangélica ao tempo atual de maneira nova e significativa. Na Europa como no Brasil, o Catolicismo enfrenta recuos sem precedentes do percentual de seguidores na população e, ainda mais, da adesão prática à sua fé. Mas nem uma crise tão profunda parece suficiente para subtrair à mensagem da Igreja o apelo que sempre possuiu. Problemas específicos do nosso tempo, como o uso disseminado de drogas, tornam a fé cristã uma alternativa fundamental à preservação do tecido social. Sem mencionar o poder intrínseco da mensagem evangélica, que continua a encantar tão intensamente o coração humano hoje quanto em qualquer outra época.
Tampouco há razão para acreditarmos que o Catolicismo tenha-se privado, recentemente, da extraordinária capacidade de incluir novos costumes, valores e modos de vida que tanto assinalam a sua História. Pelo contrário, devemos estar preparados para observar uma estonteante diversidade de práticas próprias da juventude atual, na Jornada que se inicia no Brasil, como sinal renovado daquela capacidade que, de tempos em tempos, se manifesta como verdadeiro sincretismo religioso.
Mas preparemo-nos, também, para reencontrar, na JMJ, a imutável adesão que a Igreja Católica sempre exigiu de seus adeptos, em questões de fé e moral. Nesses dois terrenos, continua a residir o que a Igreja considera sua missão específica no mundo. Por isso, não devemos esperar, na Jornada ou no pontificado de Francisco, qualquer disposição da hierarquia católica para transigir seja em  matérias de fé, seja em questões morais.
Dentre os pontos de fé essenciais à Igreja, a figura de Jesus permanece o mais nevrálgico. É como se, dois mil anos depois dos acontecimentos fundadores da nossa fé, ainda permanecêssemos perplexos ante a pergunta "Quem foi Jesus?" É, pois, útil, no contexto da visita do Papa e da JMJ, considerarmos essa pergunta e as tendências a respeito dela, no interior da Igreja. É o que os artigos abaixo, a respeito dos três livros sobre Jesus publicados por Bento XVI, durante o seu pontificado, pretendem realizar. Não há dúvida de que as correntes de pensamento apresentadas por Ratzinger representam o estado da cristologia, no seio da Igreja, e de que as posições defendidas por ele, nas questões cristológicas, são as majoritárias e dominantes, nas camadas superiores da Igreja.

UMA NOVA CRUZADA?

De 2010 até hoje, o Papa Bento XVI tem denunciado, insistentemente, o que se tornou o problema central do Cristianismo, na Europa atual: a perda da conexão entre a fé e o valor da verdade. Ao deixar de representar a verdade, em matéria de religião, o Cristianismo europeu não foi despojado de uma característica acessória; ele perdeu a sua natureza íntima, a sua própria essência fundamental.
Por essas graves razões, uma das marcas principais do pontificado de Bento tem sido conclamar os cristãos ao combate ao estado de coisas por ele apontado como existente na Europa. Uma verdadeira cruzada, de natureza espiritual e não militar, tem sido organizada, a respeito do tema.
Ratzinger apresenta o seguinte diagnóstico da situação espiritual na Europa:
“No início do terceiro milênio, e precisamente no âmbito de sua expansão original – Europa – o cristianismo se encontra imerso em uma profunda crise que é consequência da crise de sua pretensão da verdade [...] O cristianismo tem seus precursores e sua preparação interna no racionalismo filosófico, não nas religiões. Segundo Agostinho e a tradição bíblica, para ele decisiva, o cristianismo não se baseia nas imagens e ideias míticas [...] mas faz referência a esse aspecto divino que a análise racional da realidade pode perceber. Em outras palavras: Agostinho identifica o monoteísmo bíblico com as ideias filosóficas sobre o fundamento do mundo formadas em suas diversas variantes na filosofia antiga. A isso se faz referência quando, desde o sermão do Areópago de Paulo, o cristianismo se apresenta com o propósito de ser a religio vera [...] Partindo dessa premissa, o cristianismo foi entendido como um triunfo da desmitologização, como um triunfo do conhecimento e, com isso, da verdade; não como uma religião específica que ocupa o lugar de outras” (RATZINGER, Joseph e D'ARCAIS, Paolo Flores. Deus existe? São Paulo: Planeta, 2009. pp. 11-13).
Essa é, de fato, a alma do cristianismo. Sem a sua alma, sem a pretensão de verdade, que o anima e define, o cristianismo deixa de ser. Como Ratzinger afirmou, a pretensão especial de verdade liga a fé cristã mais fortemente à filosofia do que às religiões do primeiro século. Essa pretensão está tão presente em Paulo quanto em Agostinho. Em Orígenes como em São Tomás.
O racionalismo cristão não se confunde com o aristotélico ou o kantiano. Aproxima-se mais do racionalismo platônico, embora tampouco lhe seja idêntico. A maior diferença entre o cristianismo e os racionalismos filosóficos é a ligação visceral da ratio cristã com o amor. A soma da ratio e do amor divino, praticamente, equivale ao evangelho. Por isso, as vertentes cristãs que negam ou diminuem qualquer dos dois temas privam-se da própria essência da sua fé.
Desde o princípio, o cristianismo propôs-se como verdade sobre Deus (religio vera), assim como a filosofia pré-socrática propôs-se como indagação da verdade sobre a natureza. O cristianismo não disputou espaço, nem substituiu as religiões do primeiro século, porque a sua proposta era diferente. De acordo com o Papa, a questão e a tarefa fundamentais, que se colocam aos cristãos, nos nossos dias, não são como alterar essa proposta, mas como a preservar.
João Paulo II travou encarniçada batalha política e espiritual contra o Comunismo, sob o qual viveu na Polônia. Ele também condenou o Capitalismo Liberal. Essa cruzada política foi o empreendimento mais bem-sucedido daquele grande Papa. Já Ratzinger, tem apontado o problema do Cristianismo europeu com propriedade, dando a entender que ele será um dos maiores desafios do seu pontificado.
Embora distintas, as lutas dos dois últimos Papas têm em comum o propósito de combater os desvios da Modernidade, em relação ao cristianismo. No entanto, o problema da Modernidade é momentoso demais para se crer que a Igreja Católica ou as forças cristãs, em geral, se encontram próximas de solucioná-lo. Pelo contrário, apesar do triunfo de João Paulo contra o Comunismo e da denúncia dos males do Cristianismo europeu por Bento, até agora os problemas doutrinários à base da crise cristã moderna não foram atacados diretamente. Não creio que o combate ao Socialismo ou à modernização da Igreja devam ser considerados ataques dessa natureza.
O filósofo Flores d’Arcais afirmou, num diálogo com Ratzinger: “O catolicismo acredita que saldou definitivamente as contas com o ateísmo – desde Hume até Freud e Monod – só porque as encerrou vitoriosamente com o comunismo. Uma operação precipitada, baseada em uma série de arriscadas equivalências: dado que o comunismo se declara marxista e dado que Marx, por sua vez, se declara ateu, qualquer ateísmo desmorona junto com o muro dos comunismos” (idem. pp. 94-95).
D’Arcais tem razão. A derrota imposta ao Comunismo foi um triunfo lateral, na guerra contra os desvios introduzidos pela Modernidade. Nem o Socialismo, nem a própria Modernidade são inimigos do cristianismo. Inimigos são os desvios maiores, em relação às bases da fé cristã, que se introduziram em algumas vertentes da Modernidade, a exemplo do neoateísmo.
D’Arcais afirmou que “as objeções da tradição cética e ateia contra as provas racionais das verdades da fé foram tão escassamente refutadas” (idem. p. 91) que ainda constituem o horizonte implícito de todo o debate entre crentes e não crentes. Mais uma vez lhe assiste razão, embora a falta de refutação aludida encha os ateus de uma perigosa sensação do triunfo da sua ideologia.
Por essas razões, é preciso que as igrejas e os cristãos deem combate direto ao que d’Arcais denomina “objeções da tradição cética e ateia contra as provas racionais das verdades da fé”. Nem João Paulo II, nem Ratzinger, nem qualquer de seus representantes realizaram exatamente isso. Nenhum deles ofereceu contra-argumentos aos arrazoados ateus, sobre aqueles temas.
Pelo contrário, o discurso católico prima, cada vez mais, pela generalidade e vagueza. Trata-se de um discurso religioso, sobre o Deus pessoal, que paradoxalmente perdeu a força pessoal. O discurso da Igreja chega perto de nos apresentar Deus como uma força jurídica, que governa o mundo por preceitos gerais articulados num emaranhado complexo: os preceitos da própria Igreja. Há muito tempo, a mentalidade católica se distanciou do discurso profético e cristão primitivo, que era o de um Deus presente, que fala diretamente aos indivíduos de determinado tempo.
Quando se referia ao Deus de Israel, o Dêutero-Isaías pensava num ser, que se comunica diretamente com o seu povo. O mesmo se aplica a todos os outros profetas bíblicos. O mesmo é verdade, em relação aos apóstolos e aos pais dos primeiros séculos. Todos eles viam Deus como alguém que se relaciona com os seus seguidores, assim como um pai com o filho, uma pessoa com outra que lhe é próxima e um amigo com outro.
Quando a própria Reforma Protestante estourou, era esse o discurso de Lutero. Penso que a perda de tal discurso, pela Igreja Católica, explica parte do sucesso da Reforma. O discurso católico perdeu atrativo, por ter-se tornado vagamente pessoal, quando não impessoal. Um discurso basicamente jurídico.
Esse exato discurso é manejado, pela Igreja, agora, contra a Modernidade. Com inegável sabedoria, mas de modo impessoal, a Igreja aponta, mas não resolve o problema nuclear dos tempos atuais. Ela não refuta as premissas, em que a Modernidade se estriba, ponto por ponto. Portanto, se a Igreja fala por Deus, se o Papa é infalível, quando se pronuncia ex cathedra, temos de concluir que Deus passou a não se importar com a afirmação de erros, que negam frontalmente a fé cristã.
Para citar um exemplo da omissão que aponto, quando era Cardeal e Prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, Ratzinger escreveu pessoalmente três capítulos do livro Compreender a Igreja hoje (RATZINGER, Joseph. 2ª ed., Petrópolis: Vozes, 2005). A obra é altamente argumentativa, porém que matéria versa? Versa a “biblicidade” do primado e da sucessão de São Pedro, a unidade da Igreja sob a hierarquia católica, a ideia de que toda reforma deve abster-se de implantar o princípio democrático, a necessidade de um centro para o movimento ecumênico.
Não é difícil verificar que todas essas doutrinas são antimodernas, na medida em que se revelam altamente centralizadoras. Claro que algumas delas, como o primado de Pedro, são até bíblicas, embora não no sentido ampliado que Ratzinger lhes atribui. Porém, por que o Papa ou algum representante oficial da Igreja não refuta o que a Modernidade possui de mais abertamente anticristão: a descrença, o ateísmo e os desvalores que deles promanam?
João Paulo afirmou que a Evolução é um fato. Ratzinger, que nem a micro, nem a macroevolução podem ser negadas. Para ele, o grande erro contemporâneo consiste em erguer toda uma philosophia universalis, a partir desses dados. Pois bem: quais são os principais pontos dessa philosophia universalis? Quais os seus principais sofismas? Como se deve refutá-la? Que outra philosophia universalis devemos opor a ela? A de São Tomás? Essas questões são escassamente tratadas pela Igreja. Ainda que se argumente que o tempo, para a Igreja, se conta em séculos, por que o discurso argumentativo sobre outros pontos é tão imenso, e sobre esses, não?
O cristianismo sempre fez jus à sua autoconsciência de religio vera, combatendo as doutrinas contrárias. Que fizeram Ireneu, Orígenes, Eusébio, Agostinho? Que fez São Tomás? E Lutero? Para continuarem essa notável tradição racional, não basta as igrejas declararem falsa a consciência ateísta, que as esvazia na Europa. Tampouco lhes é suficiente um triunfo de Pirro, contra regimes como o Comunismo, já que não tem o condão de trazer os fieis de volta. É preciso dar combate direto aos erros, que afetam a essência da fé cristã.
Por outro lado, a cruzada de Bento XVI precisa ser entendida à luz do movimento total, que o corpo da Igreja Católica realiza hoje. Esse movimento é quase uma contrarrevolução. É uma reação à modernização eclesiástica iniciada, pelo Concílio Vaticano II. Embora profundamente distinta em espírito, a guinada tradicionalista dos últimos Papas e da Cúria romana não deixa de constituir a versão católica do fundamentalismo muçulmano, que reage à modernização, da cultura islâmica no caso, ocorrida no século XIX.
O combate de Bento XVI aos desvios principais da Modernidade é tímido, porque indireto. Ao mesmo tempo, o combate às contribuições políticas da Modernidade é acirrado. Há uma razão profunda para isso. A cruzada do Papa insere-se num movimento mais amplo de índole radicalmente antimoderna voltado à conservação da essência arcaica (o Papa diria divina) da Igreja Católica.
Tenho muitas concordâncias com a cruzada antiateísta que Bento XVI, do alto da sua iluminação, procura deflagrar. Porém, também nutro desacordos. Ao contrário das correntes reacionárias islâmicas, católicas, e por que não dizer pentecostais, entendo necessária uma modernização muito mais ampla da religião, com a preservação dos seus fundamentos atemporais. A necessidade de renovação não acabou, no século XIX ou com o Concílio Vaticano II. Ela está mais do que nunca presente. É preciso que a religião se renove. Para o fazer, sem perder sua essência, e assim corresponder aos anseios do homem e da mulher atuais, a religião precisa conversar com a Modernidade, com muito maior abertura, do que as suas instituições, até hoje, têm ensaiado fazer.

A VIRGEM CONCEBERÁ

O Natal nos expõe a uma abundância de mensagens que provam a sua transfiguração em frenética troca de bens. Porém, com as mensagens predominantemente relacionadas ao comprar e vender exaustivos de dezembro, aumenta também o fluxo de informações sobre a figura histórica de Jesus Cristo e o significado espiritual do seu nascimento, vida, morte e ressurreição.
Não só isso: o Natal também é uma oportunidade para ateus enviarem seus particulares votos de felicidade com ou sem fé no menino nascido em Belém (indagam se não terá sido em Nazaré; ou se terá mesmo nascido!), para autoridades eclesiásticas infalivelmente explicarem, e infalivelmente diminuírem, a importância de Jesus ter vindo ao mundo antes de Cristo (por que o recordar tanto, se o dado não tem importância?) e para fundamentalismos para todos os gostos anunciarem de telhados cada vez mais altos suas verdades definitivas.
No mês do Natal, historiadores, arqueólogos, biblistas são também convocados a recontar e, se possível, a reconstituir o tempo de Jesus. Produtos holywoodianos revivem-no em tantas versões quantas são demandadas pelos gostos submetidos à pasteurização cultural. Não podem faltar os lapsos imaginativos mais acariciados, que se transformam em despretensiosas mercadorias natalinas, assim como a descoberta do túmulo de Jesus, a interpretação gnóstica da traição de Judas e as cada vez mais presentes narrativas da paixão (e olhem que não é o sofrimento) de Jesus por Maria. Claro que tantos e tão diferentes discursos, articulados ao mesmo tempo, constituem uma síntese um tanto desvairada do que se pensa e se vê no fatídico mês de dezembro.
É o caso de perguntarmos por que, nos mundos cristãos atuais, os elementos da síntese acima devem existir do modo como os observamos. Por que a culminância do consumo deve ocorrer a pretexto da culminância da espiritualidade (o nascimento de Cristo)? Por que não arrumaram um outro motivo? Teremos sucumbido a uma nova tentação no deserto? À tentação de nos lançarmos do pináculo do Shopping para que os anjos de Deus nos sustenham? Cabe questionar se os ateus que nos votam felicidade dissociada do menininho de Belém podem prover-nos, com a boa vontade que lhes sobra, também o regalo de um mundo suportável sem fé. E se o evangelista que duvidou de que caberiam no orbe os livros com os feitos do Verbo algum dia pensou se nele haveria lugar para tantos Verbos quantos a humanidade se deu.
Todos esses questionamentos são justificáveis, em face do quadro que o Natal nos coloca, mas são tão numerosos que tentar tratar de todos ao mesmo tempo, e em tão poucas palavras quantas me é dado escrever, deve ser o mesmo que tratar de nenhum e fazer aumentar o desvario. Então, vou-me deter no que de mais sério encontro a circular, a propósito do controvertido nascimento.
No ano que finda, Bento XVI completou sua trilogia sobre Jesus, com a publicação de um livro sobre a infância em Nazaré. Chamou-o a antecâmara dos volumes lançados antes, que formam sua continuação lógica e cronológica. Em nenhum dos volumes, Bento se entrega à investigação do Jesus histórico. Tampouco ignora essa investigação. Todo o tempo se refere a ela, e todo o tempo o faz de passagem, sem aprofundar a análise das teorias críticas sobre os Evangelhos. Esse é um primeiro ponto que chama a atenção do leitor situado e que ele se tortura para explicar.
Em tantos aspectos, o livro recém-lançado de Bento reflete um estudo seriíssimo, uma erudição completa, uma piedade entranhada e, é claro, a disponibilidade infinita de recursos bibliográficos etc. do Vaticano. Reflete também a maturidade intelectual do seu autor, que explica, ao menos em parte, por que ele não se doa ao debate crítico, que afinal é o maior e o mais original do nosso tempo sobre a pessoa de Jesus.
Chego a pensar que não interessa ao Papa enquanto Papa resolver, talvez nem mesmo contribuir para a resolução do debate. Compete-lhe justificar a fé. Se, no primeiro século, Paulo pregou a justificação do pecador pela fé, Bento parece querer justificar a própria fé no XXI. E justificá-la por meio dela própria, pois só a fé pode ser a razão da fé. Por isso, abordando-o sempre e às vezes até parecendo atribuir-lhe o lugar central na discussão de determinados assuntos, o Papa jamais mergulha no tema do Jesus histórico. Mergulha, sim, todo o tempo, no mistério da fé em Jesus.
Mas seja-me permitido observar que, ao fazê-lo, ele parece atuar mais como justificador da fé da Igreja que da fé em Jesus, embora às vezes sustente retoricamente o contrário. Darei o exemplo do grande sinal do profeta Isaías. Com base em Stanislas Lyonnet e René Laurentin, Bento propõe que a saudação do anjo Gabriel a Maria atualiza a profecia de Sofonias 3:14-17, principalmente no trecho em que diz: “Rejubila, ó Israel [...] o Senhor está no meio de ti”.
Rejubila é o equivalente de “Alegra-te, muito favorecida!”, em Lucas 1:28. Bento explica: “Impressiona o fato de [o anjo] não dirigir a Maria a habitual saudação judaica shalom – a paz esteja contigo – mas a fórmula grega khaire, que se pode tranquilamente traduzir por Ave, como sucede na oração mariana da Igreja” (BENTO XVI. Joseph Ratzinger. A infância de Jesus. São Paulo: Planeta, 2012. pp. 30-31). Já “o Senhor está no meio de ti”, em Sofonias, “traduzida literalmente diz ‘está no teu seio’” (idem. p. 31). Obviamente, a interpretação do Papa faz de Israel uma prefiguração de Maria, em cujo seio o Salvador foi gerado.
Desse modo, Jesus e também sua mãe são postos no centro da nova dispensação. “Jesus é o novo Adão, um novo começo abintegro, ou seja, [a partir] da Virgem que está plenamente à disposição da vontade de Deus. Acontece assim uma nova criação, que todavia está ligada ao sim livre da pessoa humana de Maria” (idem. pp. 51-52). Afirma ainda, com base em Lucas 2:19,51, que "Maria aparece não só como grande crente, mas também como imagem da Igreja [obviamente a de Roma], que guarda a Palavra no seu coração e a transmite" (idem. p. 105).
Mas com Jesus e Maria no centro, algo inusitado transcorre: a nova ordem inaugurada por Deus se alarga extraordinariamente. Deixa de ser a ordem de uma nação, a ordem judaica, para passar a ser a humanidade. Como Bento o demonstra? Pelo sinal de Isaías: “Continuou o Senhor a falar com Acaz, dizendo: Pede ao Senhor teu Deus um sinal, quer seja em baixo nas profundezas ou em cima nas alturas. Acaz, porém, disse: Não o pedirei nem tentarei ao Senhor”. Ante a recusa de Acaz, "disse o profeta [...] O Senhor mesmo vos dará sinal: Eis que a virgem conceberá, e dará à luz um filho, e lhe chamará Emanuel” (Is 7:10-12-14).
O rei de Judá não quis pedir um sinal, como Deus lhe ordenou. Então, o próprio Deus lhe deu o sinal, sem que o pedisse. Não é preciso dizer que o sinal foi a concepção da virgem. Nem que o Papa vê, nessa concepção, a ordem centrada em Jesus e Maria, ou seja, a ordem católica. Para justificar essa ordem, ele mostra ainda mais que os intérpretes que identificaram a virgem como uma mulher da época do próprio Isaías fracassaram. Não há um só relato judaico, lendário que seja, que afirme que uma virgem tenha concebido.
E por não encontrar a virgem no Antigo Israel, Ratzinger passa a interrogar os pagãos, à procura dela. Como se o profeta tivesse anunciado uma diva. Busca-a no Egito, em Virgílio, entre os persas, mas só acha aproximações grosseiras e semelhanças remotas. “A diferença entre as concepções [judaica e gentia]”, conclui, “é tão profunda que – de fato – não se pode falar de verdadeiros paralelos” (idem. p. 49).
Enfim, tudo coopera para introduzir a conclusão de que “a afirmação relativa à virgem que dá à luz o Emanuel é uma Palavra à espera. No seu contexto histórico, não se encontra qualquer correspondência [nem em Israel, nem entre os pagãos], pelo que [...] não é uma Palavra dirigida apenas a Acaz, nem somente a Israel; mas dirige-se à humanidade” (idem. p. 47).
A afirmação de que a profecia é para a humanidade tem propósito claro. Serve para justificar uma Igreja Católica, isto é, global. E também para que o reino de Deus, que não é deste mundo, possa implantar-se em cada polegada da Terra, a partir de um centro, que faltou ao Papa afirmar que é Roma.
Como hábil argumentador, Bento encosta o remo nas pedras da problemática histórica, apenas para impulsionar o barco, sem permitir que ele se despedace de encontro a elas. Nenhuma pedra crítica é o destino para o qual ele navega. Mas é certo que tem um destino, e que ele é a justificação das coisas católicas.
Não menos habilmente, o Papa omite a bem estabelecida informação de que nenhum manuscrito original de Isaías 7:14 traz a palavra virgem (bethulah). Todos os originais grafam almah, que significa jovem. A versão a que Mateus e Lucas tiveram de recorrer para representar o nascimento virginal foi a Septuaginta, que é apenas uma tradução do original hebraico. Uma tradução acertada, pois na cultura hebraica não se esperava que uma jovem solteira (almah) conhecesse homem, mas fosse virgem. Porém, mesmo assim, virgem é apenas uma tradução do original almah.
Se mantivermos presente que o sinal prometido é a concepção de uma jovem, vários cumprimentos possíveis da profecia estarão à disposição. Uma possibilidade é que Emanuel fosse um dos filhos de Isaías. Só um Emanuel tão antigo poderia cumprir a seguinte predição: “Antes que esse menino saiba desprezar o mal e escolher o bem, será desamparada a terra, ante cujos dois reis tu tremes de medo” (Is 7:16).
Que terra é essa? É a dos dois reis mencionados no primeiro versículo de Isaías 7: “Sucedeu nos dias de Acaz, filho de Jotão, filho de Uzias, rei de Judá, que Rezim, rei da Síria, e Peca, filho de Remalias, rei de Israel, subiram a Jerusalém, para pelejarem contra ela”. A terra desses soberanos da Síria e de Israel foi desamparada, durante a infância de Emanuel, quando a Assíria conquistou os dois reinos, cerca de 11 anos após o oráculo ter sido proferido.
Nesse tempo, Emanuel comeu manteiga e mel (Is 7:15). Sabemos que, no Antigo Israel, o leite era tirado de uma cabra ou de um segundo animal que cada família mantinha em casa. O fato de terem leite significa que as casas permaneceram intactas. E o fato de serem capazes de processar o leite até se tornar manteiga ou coalhada transmite ainda mais essa ideia. Assim, apesar da infidelidade de Acaz, Deus protegeu Judá, quando Síria e Israel foram conquistados.
Estou a afirmar que Emanuel não é Jesus? De maneira nenhuma. Isaías 7:14 é uma daquelas profecias que se cumprem em dois tempos. O primeiro cumprimento se deu entre 733 e 722 a. C. Mas a segunda e mais forte realização do oráculo foi a concepção da virgem, no ano 4 a. C. De onde era essa virgem? De Nazaré, na Galileia. Portanto, o segundo Emanuel foi tão judeu quanto o primeiro. De modo que não há vestígio de que a profecia se referisse ao mundo todo ou a uma ordem mundial, como a que a Igreja Católica governou e governa.
Quando um profeta quer dizer nações ou o mundo todo, ele o diz. Em Isaías 7:10-16, não o disse. Disse, antes: “Ouvi, agora, ó casa de Davi” (Is 7:13). A profecia à casa de Davi cumpriu-se na própria casa de Davi, no tempo de Isaías e no de Jesus.
Como é difícil prover uma justificação da fé em Cristo, tendo de justificar a fé em algo mais! Espanta-me não encontrar, no livro do Papa, uma sólida interpretação da profecia das 70 semanas, que tanto se presta a recomendar a fé em Jesus. Mas só me espanta enquanto espero, credulamente, do Papa, uma justificação da fé em Cristo. Quando deixo de o esperar, quando vejo que o propósito prioritário dele é outro, deixo também de me espantar.
As 70 semanas serviam ao propósito dos primeiros cristãos, que era demonstrar que Jesus é o Cristo. Não podem servir ao do Papa, que é mostrar que a Igreja é o reino de Deus na Terra. A esse propósito ele devotou sua vida, seus muitos dons pessoais e continua a consagrar os seus livros. E olhem que o livro de Bento pode ser incluído no rol do que de melhor circula sobre a Natividade!

O JESUS ECLESIÁSTICO

A crise da fé no mundo ocidental foi, em grande parte, preparada pela pesquisa do Jesus histórico, a partir do final do século XVIII. O Papa Bento XVI parece reagir a essa crise, por meio do retorno à figura de Jesus estudada nos três livros que publicou sobre o tema, nos últimos anos. Mas, embora professe ter tentado “representar o Jesus dos Evangelhos como o Jesus real, como o Jesus histórico” (RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré – do batismo no Jordão à transfiguração. São Paulo: Planeta, 2007. p. 17) e ainda que essa intenção não esteja de modo algum em descompasso com os dados históricos, um outro Jesus assoma ao primeiro plano, nos livros do Papa, que denominarei o Jesus eclesiástico.
O capítulo sobre a tentação, no primeiro dos três livros, é um dos que mais tratam da crise da fé no Ocidente. “Onde Deus é considerado uma grandeza secundária”, diz Bento, “onde pode ser deixado de lado por algum tempo ou por todo o tempo por causa de coisas mais importantes, aí precisamente fracassam essas coisas pretensamente mais importantes. Não é só o desfecho negativo da experiência marxista que o demonstra” (ob. cit. p. 45).
A menção da experiência marxista não é casual. Sabemos o papel desempenhado pela Igreja Católica e João Paulo II, em particular, na derrocada daquele regime, na Europa. O retumbante sucesso da empreitada da época, à qual Ratzinger emprestou importante contribuição, como Prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, parece ter encorajado a hierarquia católica a intensificar o ataque hoje em andamento a outros artefatos políticos da Modernidade.
Embora a democracia seja em geral poupada de tais ataques, o simples fato de a Igreja ser uma monarquia absoluta relativiza, quando não invalida o apoio que possa emprestar àquele regime. As únicas defesas da democracia que, partidas de instâncias hierárquicas e não laicas, permanecem coerentes na Igreja Católica são, a meu ver, as pautadas no Concílio Vaticano II.
Esse Concílio e as ações que a ele se seguiram foram os mais vigorosos sinais de real abertura à Modernidade, na recente História da Igreja. Porém, os movimentos que se observam, na Igreja Católica, hoje, não excluídas publicações doutrinárias, dão notícia de uma orientação muito diversa, que parece relacionada ao insucesso da experiência comunista. A reorientação se funda no seguinte raciocínio: não há dúvida de que a experiência comunista constituiu um capítulo da Modernidade; portanto, o malogro dela deve significar que a abertura à Modernidade é insuficiente como orientação para a Igreja, que deve buscar uma inspiração distinta para a sua missão no mundo.
Essa orientação diferente é, precisamente, a que se vê emergir nos livros de Ratzinger sobre Jesus. Escreve ele: “A ajuda do Ocidente para o desenvolvimento com base em princípios puramente técnicos e materiais – que não só deixa Deus de fora, mas também força o homem a d’Ele se afastar com o orgulho do seu saber fazer melhor – foi precisamente o tipo de ajuda que criou o Terceiro Mundo no sentido que hoje se entende. Esta ajuda empurrou para o lado as estruturas religiosas, morais e sociais e instaurou no vazio a sua mentalidade tecnológica” (idem).
Preparada a cova do comunismo e cumpridas as suas exéquias, portanto, a Igreja volta-se contra o outro grande regime político-econômico da Modernidade, que Leão XIII já combatera na Rerum novarum. Embora Leão tenha criticado a variedade de capitalismo do seu próprio tempo (o liberal), Ratzinger anima-se a generalizar a crítica para o capitalismo em geral, definido como domínio do orgulho por saber fazer.
Ratzinger considera que o ideal católico medieval do “império cristão e o poder secular do Papa já não constituem tentações hoje” (idem. p. 53). Ótimo! Se Sua Santidade estiver certa, estaremos livres da sanha de dominação política da Igreja. Mas Bento vê “uma nova forma da mesma tentação” na tentativa de se “explicar o cristianismo como receita para o progresso e reconhecer como objetivo próprio da religião, e assim também do cristianismo, o bem-estar geral” (idem. p. 53). Isso pode ser entendido não só no sentido de que a fé cristã não pode ser aparelhada para fins políticos ou sociais, mas também como afirmação de que o capitalismo (pasmem-se!) é o império cristão medieval renascido.
Esse juízo é parte da estranha aversão da Igreja ao moderno e ao contemporâneo. Uma aversão que ela nutriu por toda a sua História, mas que parecia ter renegado após o Vaticano II. Não a renegou. A aversão está aí, talvez mais forte que nunca. Apenas não pretende mais exercer-se diretamente no plano secular, mas no religioso e moral.
Como exercê-la? Bento julga que a Igreja deve combater o movimento que “empurrou para o lado as estruturas religiosas, morais e sociais e instaurou no vazio a mentalidade tecnológica”. Na prática, isso importa combater costumes que a Igreja considera atentatórios aos valores da vida e da pessoa humana, assim como o aborto, a eutanásia, os métodos anticoncepcionais, a pesquisa com células-tronco, sem mencionar o casamento não monogâmico e as formas de vida sexual divergentes dele. A própria democracia parece na mira da reação conservadora católica.
Bento recorda a primeira frase do Diabo a Jesus, na tentação ocorrida no deserto: “Se és Filho de Deus”. E exclama: “Que desafio! Não se deve dizer o mesmo à Igreja: se queres ser a Igreja de Deus” (idem. p. 44). Mas não há, nesse paralelo entre o Filho de Deus e a Igreja, uma exaltação do homem semelhante ou pior que a que Bento critica no saber fazer capitalista? Essa exaltação não é tolerada ou santificada, quando vista na Igreja, e vilipendiada quando percebida em práticas seculares?
Ratzinger cita ainda Solowjew, em cuja obra intitulada “Breve narrativa do Anticristo”, esse ícone do mal “recebe o doutoramento honoris causa em Teologia pela Universidade de Tubinga; ele é um grande especialista em Ciências Bíblicas. [...] De fato, a explicação da Bíblia pode tornar-se um instrumento do Anticristo. Mas isso não é dito apenas por Solowjew: veja-se a afirmação presente na própria história da tentação. De aparentes resultados da exegese científica se entreteceram os piores livros que destruíram a figura de Jesus. A Bíblia é cada vez mais submetida ao critério da assim chamada visão moderna do mundo, cujo dogma fundamental é que Deus não pode agir na História” (idem. p. 47).
Tudo isso aponta para o mesmo resultado, a saber: o de que a crise da fé tem por causa o moderno em sentido bastante abrangente. Não custa lembrar que a Igreja não apresentou semelhante crítica ao elemento medieval, enquanto ele vigorou no mundo, pois sempre se beneficiou dele. Agora se insurge contra o moderno. Inclusive contra a pretensão moderna de elaborar uma Crítica Científica, Histórica e Literária das Escrituras.
Diz Bento: “Há no Deuteronômio uma alusão à história de como o povo de Israel esteve ameaçado de morrer de sede no deserto. Levanta-se uma rebelião contra Moisés, que é uma rebelião contra Deus [...] assim descrita na Bíblia: ‘Eles submeteram Deus à prova, ao dizerem: o Senhor está ou não está no meio de nós?” (Êx 17:7). Trata-se, portanto, daquilo que já foi antes recordado: Deus deve submeter-se à prova. Ele é provado, como se experimentam mercadorias. Ele deve submeter-se às condições que nós declaramos necessárias para a nossa certeza” (idem. p. 48).
Mas como? Paulo não escreveu: “Para que saias vencedor quando fores julgado”? Não há, na Bíblia, sinal de que o homem não possa pôr Deus à prova, de maneira sincera e pura. Deus mesmo ordenou que o rei Acaz lhe pedisse um sinal, isto é, que o provasse. O problema dos israelitas, no deserto, não consistiu em terem submetido Deus a uma prova, mas na intenção com que o fizeram.
Vejam que o Papa não só rejeita pautar sua exposição de Jesus nas categorias da Crítica Histórica e Literária. Ele se aproxima de imputar a essa Crítica uma relação estreita com Anticristo. Chama-a também tentação do Diabo. Assim, volta as costas para a modernidade teológica, em benefício de algum outro programa. E de qual programa? Entra aí, precisamente, a inspiração que o Papa busca, no passado da Igreja Católica. Entra aí a sua apresentação de Jesus em três livros. Com essa apresentação, o Papa esclarece em que parte busca inspiração para enfrentar a crise da fé católica.
Bento se refere ao Jesus dos seus livros como histórico, mas esse me parece muito mais um dado da sua consciência, da sua íntima convicção, do que uma conclusão que se possa extrair logicamente das obras. Rigorosamente interpretados, os livros do Papa mostram-nos outro Jesus, que emerge do fundo para o primeiro plano dos Evangelhos. E por que emerge? Porque os Evangelhos, fonte privilegiada do Jesus de Bento, não o retratam diretamente do modo como a Igreja o faz, mas sempre nas entrelinhas e de modo obscuro. Onde está o Jesus que fez Pedro Papa? Os católicos dirão que está em Mateus 16:16-18. Mas esse Jesus desaparece, nas passagens sobre o mesmo fato em Marcos e Lucas. Se a Igreja baseada no Papa é um item tão importante de fé, por que dois evangelistas o descartaram? Aliás, foram três. João tampouco o mencionou.
Esse é um exemplo da passagem do Jesus eclesiástico do segundo para o primeiro plano dos Evangelhos, onde Bento trata de o entronizar. Ele fornece outros e outros exemplos. Diz que o evangelho que Cristo anunciou não significava só boas-novas, como o termo grego indica. “A palavra pertencia [também] à linguagem do imperador romano, que se entende como senhor do mundo e como seu redentor, como seu salvador. As mensagens que vinham do imperador chamavam-se Evangelho” (idem. p. 57). Para o Papa, evangelho é uma palavra de dominação do orbe. Não se pode deixar de acrescentar: dominação tal qual a que a Igreja sempre quis exercer.
Mas o reino de Cristo não é deste mundo. Por isso, não pode constituir uma dominação do orbe. Nem mesmo uma dominação religiosa, como a que hierarquia romana até hoje exerce. Ou não exerce? Ou será o caso de que vemos homens como árvores, bispos como cedros?
Bento prossegue: “A questão acerca da Igreja não é a questão primária; a questão fundamental é, na realidade, a que diz respeito à relação do reino de Deus com Cristo” (idem. p. 59). Ótimo! Mas, na página seguinte, ele adota a interpretação segundo a qual o reino de Deus é expressão com sentido muito próximo do da Igreja. Explica que “o Reino de Deus e a Igreja são colocados de um modo distinto um em relação ao outro e mais ou menos aproximados um do outro. Esta última orientação [sobre o reino de Deus] se impôs sempre mais – tanto quanto me é possível ver – sobretudo na Teologia católica moderna” (idem. p. 60). Se eliminarmos os rodeios, Bento quer dizer que a Igreja Católica é o reino de Deus. Para lhe fazermos plena justiça, é certo que não pensa que as outras Igrejas não o sejam, mas que a Católica tem nas mãos a primazia e o governo desse reino na Terra.
O Papa reconhece que “o ideal [...] é a mensagem de Jesus se tornar verdadeiramente universal, sem que seja necessário missionar as outras religiões [...] No entanto, quando observamos [a cena da evangelização mundial] mais distanciadamente, ficamos perplexos: Quem é que nos diz propriamente o que é a justiça? O que é que nas situações concretas serve à justiça? Como é construída a paz? Mas, a uma observação mais atenta, tudo isto se mostra como um palavreado utópico sem conteúdo real” (idem. p. 63). Há alguma dúvida de que o “palavreado utópico” é o que Bento classifica como “o ideal”, isto é, a evangelização sem se pressupor a superioridade de uma religião a outra? Ou sobre como ele responderia as perguntas que faz sobre a justiça e a paz?
Enfim, sob todos os ângulos, observamos o mesmo, no conjunto constituído pelos livros do Papa: para ele, o Jesus real e histórico é o eclesiástico. Por isso, o tempo todo, eles se superpõem, aparecem como uma só figura: a figura com a qual a Igreja pretende substituir construções coletivas da Modernidade. Por isso também, o desafio principal do leitor de Bento passa a ser isolá-los, separá-los, a fim de mostrar que o Jesus eclesiástico não é a solução para a crise. É, antes, a própria crise.

A ÚLTIMA SEMANA

O segundo livro de Bento XVI sobre Jesus (RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré – da entrada em Jerusalém até a Ressurreição. São Paulo: Planeta, 2011) reforça o viés delineado na obra anterior, lançada em 2006, que consiste em procurar os principais traços teológicos de Jesus nos Evangelhos, sem aprofundar a análise das questões levantadas pela Crítica Histórico-Literária a respeito dele. A opção de Ratzinger, que coincide com a da Igreja, consiste em apresentar esse Cristo teológico, o Cristo da tradição bimilenar, de modo não alienado daquela Crítica, mas sem a abordar extensamente. Com isso, uma abordagem nova e problemática da figura de Jesus Cristo é claramente inserida na atual discussão histórica e teológica.
Para entender melhor o sentido da reflexão do Papa sobre Jesus, é útil recordar como o pensamento teológico formou-se, no seio do cristianismo. Os autores cristãos dos primeiros séculos enfrentaram o dilema consistente em recepcionar ou rejeitar as categorias filosóficas gregas, isto é, em tratar filosoficamente os temas teológicos ou considerar a herança filosófica inútil para os fins que buscavam.
Uma das formas de resolução do dilema consistiu em rejeitar totalmente a herança filosófica antiga. Porém, com o tempo, a tendência de recepcionar a Filosofia prevaleceu. Para os representantes dessa tendência, entre os quais se destaca Santo Agostinho, as conclusões teológicas não deviam ser determinadas pela Filosofia, mas podiam ser alcançadas com auxílio dela. Assim se formou a tendência medieval de tratar a Filosofia como ancilla theologiae (escrava da Teologia).
Bento XVI trata a Filosofia dessa segunda maneira. É nítida a sua vocação para problematizar com conceitos e categorias filosóficas. Na página 127 do seu livro, lemos: “A figura de Jesus [...] é qualificada com a expressão ‘pró-existência’, um existir não para si mesmo, mas para os outros; e isso não apenas como uma dimensão qualquer desta existência, mas como aquilo que constitui o seu aspecto mais íntimo e abrangente. O seu ser como tal é um ser para”. Não é preciso afirmar que esse modo de expressão manifesta o instrumental filosófico que Ratzinger coloca a serviço da sua reflexão teológica.
Porém, ao mesmo tempo em que desenvolve um trato específico com a Filosofia, o texto de Bento revela consciência profunda da função, pela qual a Teologia se distingue e até se separa daquela disciplina clássica. Enquanto a Filosofia é uma arte ou ciência crítica das concepções do senso comum, a Teologia é uma reflexão sobre o questionamento que se faz crise.
Ao apontar essa espécie de concepção em Ratzinger, sem dúvida o interpreto. Considero que a maneira de pensar do Papa depende, fundamentalmente, da sua concepção da Filosofia, da Teologia e da relação entre ambas. Nessa concepção, a Filosofia é tratada como um canteiro: seu papel é acolher e oferecer condições ideais para a germinação das sementes da crítica do senso comum. O trabalho do filósofo não é tanto oferecer respostas quanto aprimorar, incessantemente, as perguntas que cria, sobre essas concepções. Já a Teologia pressupõe a Filosofia, pois trabalha com questionamentos gerados por ela e ainda mais pela religião. Não certamente com todos aqueles questionamentos, mas com os que envolvem a divindade e têm o potencial de desencadear graves crises.
A Teologia que não utiliza as sementes do questionamento filosófico, que não as planta na sua própria seara e não colhe os frutos das crises que vem a produzir, permanece subdesenvolvida. Não que não seja possível se desenvolver uma Teologia apenas a partir da religião. Mas a Teologia que se serve, ao mesmo tempo, da Filosofia encerra um potencial de descoberta muito maior.
Quando se aninham na consciência sob forma de angústia, portanto, certas questões religiosas e filosóficas produzem crises. Para tratar dessas crises é que a Teologia existe. Em outras palavras, enquanto permanece um perguntar e responder sistemático, sobre as concepções do senso comum, a reflexão humana detém-se no campo da Filosofia mas, quando se transforma em crise, pela experiência da angústia, ela passa ao terreno teológico. A passagem ao teológico pode ocorrer, também, a partir da ciência, mas essa não é a regra, pois a própria ciência costuma nascer de um questionamento filosófico prévio. Não faz sentido pensar, por exemplo, que o imenso trabalho crítico exercido sobre os Evangelhos possa ter vindo à existência sem um prévio questionamento filosófico da história evangélica.
Não sei até que ponto os teólogos concordam com essas afirmações, mas não posso deixar de invocar os escritos deles como prova do que declaro. Principalmente os escritos de Ratzinger. Faço questão de afirmá-lo, pois é em relação a uma crise (a da compreensão de Jesus) que os livros ora comentados de Ratzinger revelam as suas deficiências. A compreensão tradicional de Jesus foi desintegrada em mil pedaços, pela Crítica Histórica e Literária. Com isso, um novo retrato do doce Mestre da Galileia passou a ser possível somente como mosaico, como colagem dos mil fragmentos. Essa é a crise da compreensão de Jesus, que há dois séculos atravessamos. Não cabe à Teologia ignorá-la ou evitá-la.
No entanto, os livros de Ratzinger sobre Jesus evitam tratar da crise. Todo o tempo, eles fazem referência à Crítica sem a enfrentarem. Citam a crise de compreensão de Jesus, mas não a encaram. Isso causa a impressão de que Ratzinger se coloca de lado para a crise. Ele não está de costas para ela, pois a aborda o tempo todo e tem consciência dela. Tampouco se pode propor que está de frente para a crise, já que não a enfrenta. Essa é talvez a deficiência maior dos seus livros.
Pode-se escapar ao problema, afirmando que o Papa tem o direito de definir como desenvolver os seus textos, como todo escritor o tem. Esse argumento com base na liberdade poderia ser aceito, se a opção de Bento não fosse contrária à índole da Teologia como tratamento de crises religiosas e filosóficas e se ela não divergisse da melhor tradição cristã. Que fez Santo Agostinho, a não ser enfrentar as crises da sua época? Tanto o conflito pelagiano como o donatista, para não falar de outros, foram por ele tratados. Ao fazê-lo, Agostinho comportou-se como teólogo e contribuiu para a resolução das crises. Os historiadores atestam que, após a sua intervenção, as controvérsias pelagiana e donatista serenaram quase completamente.
Na Sagrada Escritura, a passagem do questionamento à crise também costuma ser enfrentada. Caso típico é o dos textos messiânicos de vários Salmos e livros proféticos interpretados, no Novo Testamento, como referências a Jesus de Nazaré. O Evangelho de Mateus foi escrito para assentar essa exata interpretação profética. A pregação dos apóstolos não teve outro fim. E Hebreus faz uma longa defesa da interpretação cristã das profecias. É como se a compreensão dos textos messiânicos do Antigo Testamento tivesse entrado em crise, quando os judeus perceberam que o tempo para que o Messias fosse morto (Dn 9:26) se cumprira. Os apóstolos e os escritores do Novo Testamento entenderam essa crise, enfrentaram-na e a resolveram, pela demonstração de que as profecias cumpriram-se na vida e na morte de Jesus de Nazaré.
Ratzinger não trata da mesma maneira o problema da figura real de Jesus. Ele não enfrenta a crise desencadeada pela Crítica Histórica e Literária, nem se move nessa direção. Pelo contrário, em diversas passagens, ele desqualifica a atitude crítica, como ao afirmar: “Não [devemos] contrapor ao Novo Testamento de modo crítico-racional a nossa presunção, mas aprender e deixar-nos guiar [...] não falsear os textos segundo os nossos conceitos” (ob. cit. p. 115).
Para enfrentar realmente a crise, teria sido necessário ao menos indicar como a historicidade do Jesus apresentado e adorado pela Igreja Católica pode ser demonstrada. Ratzinger não o faz, como os líderes cristãos em geral não o fazem. Pelo contrário, em quase todas as igrejas, há um líder que adota posição semelhante à do Papa sobre o Jesus histórico. Um líder que sobe ao púlpito todas as semanas para ignorar, solenemente, os graves problemas que pendem sobre a interpretação dos Evangelhos. Esse discurso alienado e sem fim se tornou comum hoje. No entanto, no caso do Papa, que tem à disposição quase tudo o que já se escreveu sobre o tema, era de se esperar algo diferente.
Jesus de Nazaré, de Ratzinger, frustra essa expectativa, por não pronunciar uma palavra efetiva sobre a crise de compreensão do Jesus histórico, apesar de ter escrito, no livro anterior, que "quis tentar representar o Jesus dos Evangelhos como o Jesus real, como o Jesus histórico" (RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré - do batismo no Jordão à transfiguração. São Paulo: Planeta, 2007. p. 17). Não digo que não o apresenta, mas que o faz de um modo que pressupõe demais o dogma.
Com isso, o livro emite um sinal muito claro sobre a natureza do tempo presente, em que a Teologia ignora a crise, portanto agoniza e morre. A falta de uma palavra teológica sobre a incompreensão que se desenvolveu e se transformou em crise não pode ser suprida pelas manifestações dos historiadores sobre Jesus, já que o discurso destes é diferente do teológico e não pode cumprir a função dele. A palavra dos filósofos tampouco o pode. Nesse particular, os escritores patrísticos tinham razão: à Filosofia compete o perguntar e o criticar; a resposta à pergunta há de ser oferecida pela Teologia. Tendo funções distintas, uma não pode substituir a outra.
Vivemos como se a figura de Jesus se houvesse desintegrado (ou não, pouco importa), mas tudo seguisse perfeitamente bem. Como se pudéssemos continuar a sustentar o que sustentamos, durante séculos, exatamente da mesma maneira. Enfim, como se fingir ou sonhar bastassem para crer. Que é isso, a não ser fuga, inépcia ou hipocrisia? Jesus se apresentou como a verdade: como a solução de todas as dúvidas, a correção de todos os erros e a solução de todas as crises de compreensão. É possível ao cristão agir como se as dúvidas, os erros e a crise não existissem? Como se estivesse no mundo, mas não tivesse o mundo por contexto?

O QUE NOSSOS OLHOS VIRAM E NOSSAS MÃOS APALPARAM

Os livros do Papa sobre Jesus, lançados entre 2006 e 2012, se inserem num intenso debate que é urgente tratarmos como busca da verdade sobre Jesus. Porém, não de uma verdade teológica, mas da verdade no sentido original da palavra no idioma grego.
Sabemos que os quatro Evangelhos e o resto do Novo Testamento, com exceção de uma ou outra palavra, foram escritos em grego. Nesse idioma, o termo verdade (aletheia) significa desvelamento. Indica o ato de desencobrir algo que havia permanecido oculto. A melhor elucidação do sentido original da palavra a que pude ter acesso não foi fornecida por um teólogo, mas por Martin Heiddegger, no seu clássico Ser e tempo (15ª ed., Petrópolis: Vozes, 2005. Cap. 2). Embora não faça referência à variedade de grego (denominada koiné) em que o Novo Testamento foi escrito, boa parte do que Heiddegger ensinou sobre o termo aletheia permanece válido para os escritos dos apóstolos e seus seguidores, por duas razões: porque se baseia no sentido etimológico da palavra, que é o mesmo no grego clássico e no koiné, e porque o uso do Novo Testamento confirma amplamente os ensinamentos de Heiddegger.
Vou direto ao ponto que me parece principal, nesses ensinamentos. A crítica que Heiddegger delineia contra a maior parte das interpretações filosóficas da verdade baseia-se na vagueza atribuída à palavra. Não que os autores daquelas interpretações não saibam que aletheia significa desvelamento ou desencobrimento, mas eles pensam que a palavra se refere a qualquer ato de revelar. Na Filosofia, não são incomuns referências ao desvelamento de noções abstratas como se fossem aletheia. Heiddegger mostra que, no interior da cultura grega, que sempre supôs a realidade material, aletheia indica a revelação de algo físico e sensível. Nesse e só nesse sentido, é que a palavra pode e deve ser traduzida realidade.
Portanto, aletheia é, sim, realidade, como vários teólogos ensinam, mas não uma realidade mística, etérea, impalpável, como também costumam sugerir. É antes a realidade física, até mesmo material, se me for permitido lembrá-lo.
Isso é de extrema importância para a compreensão da verdade cristã. A começar pelo fato de que, no Novo Testamento, a verdade é considerada algo recém-revelado. Isso porque, se não houvesse estado encoberta e sido recém-revelada, não se poderia chamar aletheia. Nesse sentido, o Evangelho de João afirma que a graça e a verdade [aletheia] vieram por meio de Jesus Cristo (Jo 1:17). E nesse mesmo sentido, a 1ª Epístola de João interpreta a vinda da verdade como “o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos próprios olhos, o que contemplamos, e as nossas mãos apalparam, a respeito do Verbo da vida” (1 Jo 1:1).
A verdade só veio, foi vista, ouvida e apalpada, porque antes havia estado encoberta e porque a sua revelação foi de caráter material e sensível. Se não tivesse sido assim, nenhuma verdade teria sido revelada. Ainda estaríamos sem conhecer a verdade sobre Deus.
Por isso, em Romanos 1, a verdade de Deus, que os gentios rejeitaram, é descrita como a que se manifesta e até mesmo se pode ver na natureza. De novo é preciso lembrar: se assim não fora, não se trataria da verdade. Ou Deus se mostra na matéria, ou não se mostra de maneira alguma. Revelação abstrata, revelação do que Platão chamou mundo das ideias ou acontece por uma projeção na matéria, até mesmo por uma encarnação, ou não é revelação de verdade alguma.
Por isso, já a concepção grega de verdade exigia a encarnação de Deus. Ao menos o exigia, se algum passo havia de ser dado para além da revelação de Deus na natureza. Ou Deus ingressava na matéria, por assim dizer, ou a sua verdade não poderia ser revelada aos homens além do ponto em que já estava refletida na natureza. Não é preciso afirmar que, nas páginas do Novo Testamento, essa e somente essa é a verdade que veio por intermédio de Jesus Cristo.
As duas Epístolas de Pedro são hoje consideradas não autênticas. E de fato não foram escritas pelo próprio Pedro. No entanto, esse está longe de ser o ponto mais importante a respeito delas. O mais importante, o decisivo, é o testemunho que as epístolas transmitem sobre Jesus, que deu a conhecer Deus aos homens no sentido mais pleno. Por isso, o autor sagrado afirma: “Não vos demos a conhecer o poder e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo segundo fábulas engenhosamente inventadas, mas nós mesmos fomos testemunhas oculares da sua majestade [...] quando pela Glória Excelsa lhe foi enviada a seguinte voz: Este é o meu Filho amado em quem me comprazo. Ora, esta voz, vinda do céu, nós a ouvimos quando estávamos com ele no monte santo” (2 Pe 1:16-18).
A desgraça do tempo atual é haver abalroado essa verdade fundante e fundamental. De que adianta saber se Pedro escreveu ou não as cartas que lhe são atribuídas, se nos tornamos incapazes de compreender que a revelação física de Deus, se assim for possível dizer, é o ponto mais fundamental de todos sobre Jesus? Se abalroamos essa exata revelação, ao cancelarmos os testemunhos que possuímos dela, sem colocar outros de mesmo caráter em seu lugar? E se ainda nos tornamos capazes de extrair do vácuo de testemunhos físicos uma conclusão negativa?
Um testemunho físico só pode ser substituído por outro, jamais por um testemunho intelectual, abstrato, indireto ou não físico, sob pena de a verdade contida no primeiro se perder por inteiro. E o testemunho físico que temos sobre Jesus, com perdão da franqueza total, não está escondido em entrelinhas do Novo Testamento, onde o Papa laboriosamente o busca. A entrelinha bíblica só dá testemunho da verdade, quando nos fala com tanta clareza quanto as próprias linhas. Não é o que acontece com as entrelinhas em que o Jesus eclesiástico se oculta, de onde Ratzinger o retira para a luz. Essas entrelinhas são densas, cerradas, obscuras, como vimos na postagem anterior. E se o são, não podem conter revelação ou desvelamento.
O Jesus eclesiástico, que Bento nos apresenta, não é o Jesus real, embora o contenha, na medida em que aceita o testemunho físico dos apóstolos sobre Jesus, como o Novo Testamento o revela. Bento submete esse Jesus real a uma intervenção em que insere no seu interior e entretece com ele o que extrai das entrelinhas do Novo Testamento. E o Jesus da Crítica tampouco é o histórico, pois, embora se erga de entrelinhas mais claras que as de Bento, ele o faz de modo contrário ao testemunho físico sobre Jesus.
Esse testemunho é unicamente o dos apóstolos. Se compararmos 2ª de Pedro 1:16-18 com os discursos de Pedro registrados no Livro de Atos, perceberemos que não se contradizem. Pelo contrário, moldam-se um ao outro. E se cotejarmos os dois com o Jesus de Marcos, que a tradição mais próxima da verdade física sobre o livro afirma conter a memória de Pedro, a coincidência será ainda mais ressaltada. Então, por que cancelar o testemunho dos três versículos de 2ª de Pedro? Apenas porque Pedro não é o seu autor? Porque a verdade física que testemunhamos, dois milênios depois, nos informa que doentes não são curados por orações e mortos não ressuscitam? Acaso a verdade física de um tempo, transmitida por suas testemunhas, pode cancelar a de outro tempo e que foi transmitida por outras testemunhas?
Certamente não, embora uma verdade possa vir a ser enfraquecida, pela descoberta de contradição nos testemunhos a respeito dela. Mas não é esse o caso da verdade física sobre Jesus. A massa dos testemunhos sobre ela não se contradiz. O que a Crítica apurou de contradições e que merece mesmo esse nome insere-se nos detalhes, pode-se dizer até nas entrelinhas do texto bíblico. Nos pontos centrais, como é o caso de 2ª de Pedro 1:16-18, os testemunhos são sempre concordantes.
Mas há mais um ponto que se soma ao testemunho físico dos apóstolos sobre Jesus e que eles próprios tomaram em consideração. Trata-se das profecias messiânicas do Antigo Testamento. Os apóstolos e seus seguidores compararam o seu próprio testemunho sobre Jesus com aquelas profecias e concluíram que havia uma forte convergência entre eles. Por exemplo, o autor de Mateus comparou os dados de Marcos, que adotou como fonte ao compor o seu próprio Evangelho, com as profecias. E concluiu que os atos narrados em Marcos cumpriram uma série delas.
Porém, um dos textos mais claros sobre o Messias, em todo o Antigo Testamento, o oráculo de Daniel 9, não foi citado em Mateus ou em qualquer outra parte do Novo Testamento. Penso que a omissão não se explica pelo não reconhecimento do caráter messiânico da profecia por parte dos autores neotestamentários. Ao contrário, o oráculo parece ter sido omitido por ser messiânico demais. Além de se referir ao Messias literalmente, ele chega a datar a sua vinda. Portanto, aproxima-se perigosamente de escancarar quem vem a ser tal Messias, o que, no contexto do primeiro século, implicava conflitos e até a possibilidade de derramamento de sangue.
Basta saber fazer contas para entender que a profecia em questão aponta a vinda do Messias no século I d. C. Daniel 9:25 prediz: “Sabe e entende: desde a saída da ordem para restaurar e para edificar Jerusalém até ao Ungido [em hebraico, Messias], o Príncipe, sete semanas e sessenta e duas semanas”.
Três ordens de autoridades são conhecidas, para se empreender a restauração do Templo judeu e da cidade de Jerusalém: a de Ciro, a de Dario e a de Artaxerxes. As duas primeiras estão transcritas em Esdras 1:2-4 e 6:6-12. Aludem apenas à edificação da “Casa do Senhor”, não à cidade de Jerusalém. Apenas a terceira ordem, registrada em Neemias 2:1,3,5-6,8 e proferida em 445 a. C., foi para restaurar Jerusalém, como requer a profecia. Portanto, ela é o ponto de partida dos 483 anos da profecia.
Não são muitos os candidatos a Messias disponíveis 483 anos depois de 445 a. C. Robert Anderson provou que, descontadas as diferenças provenientes de o ano judeu ser de 360 dias (vide Dn 7:25; 9:27; Ap 11:3; 12:6,14; 13:5), as 69 semanas nos levam a 32 d. C., ano em que mais provavelmente Jesus entrou em Jerusalém, foi crucificado etc. (ANDERSON, Robert. El príncipe que ha de venir – la maravillosa profecía de Daniel com respecto al Anticristo. Barcelona: Espanha, 1980. p. 143).
A única dificuldade que a profecia de Daniel apresenta, no tocante à referência a Jesus, é a interpretação da palavra semana. Mas, se olharmos Levítico 25:8, a dificuldade será dissipada em parte. Diz esse verso: “Contarás sete semanas de anos, sete vezes sete anos: de maneira que os dias das sete semanas de anos te serão quarenta e nove anos”. Está claro que os judeus tinham o costume de empregar a figura de uma semana para representar sete anos. Ezequiel 4:5,7 e Números 14:34 sedimentam ainda mais esse costume.
Portanto, as 69 semanas contadas da ordem para reedificar Jerusalém podem ser 69 vezes sete anos, como em Levítico. Se não o forem, terão de ser 69 semanas literais, 69 vezes sete dias, isto é, um ano mais 118 dias. Ou o Messias veio um ano e 118 dias após 445 a. C., ou veio 483 anos depois, ou seja, na época de Jesus. Não há registros históricos da vinda de um Messias um ano e 118 dias depois daquela ordem. A conclusão a se extrair disso é bastante óbvia.
Não entendo por que Bento XVI não mencionou a profecia das 70 semanas, em qualquer dos três livros que publicou. As razões da lacuna devem ser muito distintas das que explicam a ausência do mesmo oráculo nos Evangelhos. Apresentar o Jesus profético, de modo tão claro, está fora do interesse imediato da Igreja. Para mim, essa é a impressão que permanece. Digo-o com grande respeito pelas obras notáveis que Sua Santidade nos presenteou e com reverência ainda maior pela própria figura do Pontífice. Mas tenho de dizê-lo de todo modo.
O Jesus real, muito diferente do eclesiástico, revelou-se fisicamente no primeiro século. Insisto em que ele só pode ser conhecido, no nosso próprio tempo, se preservarmos íntegro o testemunho direto dos apóstolos sobre ele. E esse testemunho é o que está encravado nas palavras claras e nas frases abertas, não em sutis entrelinhas, dos quatro Evangelhos.
Se não é o do Papa, o Jesus assim vestido da verdade tampouco é o da Crítica. Embora opostos, esses dois Cristos, o do Papa e o da Crítica, tangem-se nas entrelinhas de que procedem. Porém, se o primeiro não coincide com o testemunho físico sobre Jesus, o último arrebenta-se de encontro a ele. E esse ainda é o fato mais notável e mais de se lastimar no nosso tempo.