A frase Credo ut intelligam (Creio para entender) é um dos mais profundos enunciados da História do Pensamento. Do ponto de vista cristão, é o ponto nodal, a declaração mais reveladora do papel histórico de sua fé. Isso porque, ao contrário das outras frases, cujos autores são conhecidos, o Credo não tem emissor determinado. Sua autoria é atribuída, com razão, a Santo Anselmo, mas a frase é tão essencial ao cristianismo que os teólogos que prepararam o caminho para Anselmo a formular devem ser considerados precursores, quando não coautores dela.
Se o Credo é um dito de muitas pessoas, o que torna complexo o seu estatuto linguístico, seu sentido é mais simples de determinar. Crer para entender não significa acreditar de qualquer maneira para compreender um pouco. Significa crer com intensidade para compreender amplamente. Para dizê-lo de modo claro: significa um ato vigoroso de fé, ao qual se segue outro igualmente vigoroso da razão.
O Credo ut intelligam pode não se ajustar à experiência deste ou daquele cristão, mas corresponde com precisão à História do cristianismo. Por exemplo, o místico de convicções extremadas pensa que a fé deve redundar em comunicações diretas com Deus, em milagres, infusões espirituais pela administração de sacramentos, pela oração e por outras práticas. O racionalista, por sua vez, drena da fé a emoção e assim compromete a essência do crer. De modo que nem ele, nem o místico se ajustam ao Credo ut intelligam.
Porém, esses são mais desvios da fé cristã do que afirmações dela. Só na História, podemos apreender a natureza da fé, pois é ali que ela existe. Ser-na-História é algo próprio da fé. O místico e o racionalista extremados negam esse fato, quando tentam viver uma fé idealizada: o primeiro, uma fé que não depende do conhecimento; o outro, um conhecimento que não depende da fé. Nenhum desses objetos idealizados existe na História. O que a História revela é a fé e o conhecimento, lado a lado e integrados, tanto na sociedade civil como na igreja.
Não é difícil entender por quê. Desde o primeiro século, os cristãos cuidaram de aproximar, progressivamente, a tradição dos apóstolos e profetas do conhecimento mais elaborado que as civilizações clássicas tinham produzido, a saber: da Filosofia, da Literatura, da Gramática e da História. Conforme o fizeram, duas consequências de importância transcendental foram observadas: a cultura clássica se desintegrou, e o Império Romano se cristianizou.
A aproximação da fé em relação a elementos da Antiguidade Clássica, iniciada no período helenístico, não desapareceu na Idade Média. Pelo contrário, as combinações de obras cristãs e clássicas intensificaram-se nesse período, com dois resultados principais: uma parte da cultura grecorromana foi segregada em mosteiros e catedrais, onde sua combinação com o cristianismo prosseguiu; outra parte permaneceu em circulação, fora das instituições religiosas, até desintegrar-se.
Assim, no interior dos mosteiros e das catedrais e nas obras que circulavam sem impedimento, as disciplinas clássicas do Trivium (Gramática Lógica e Retórica) e do Quadrivium (Aritmética, Geometria, Música e Astronomia), que haviam sido ensinadas pelos gregos e pelos romanos como fins em si mesmas, continuaram a ser transmitidas, na Idade Média, banhadas pela luz da Teologia. Por exemplo, as lições de Ptolomeu sobre Astronomia continuaram a ser ministradas, após terem sido adaptadas à visão de mundo de Gênesis.
Contudo, ainda mais importante do que a adaptação das artes à fé foi a verificação pormenorizada dos pontos em que a cultura clássica deveria ceder ao cristianismo. Ela foi realizada por quatro escritores, que exprimem, de modo particularmente luminoso, a confluência do cristianismo com a cultura clássica. Na primeira metade do século III, o Tratado sobre os princípios e o Contra Celso, de Orígenes, depois a Preparação evangélica e a Demonstração evangélica, de Eusébio de Cesareia, a tradução latina da Bíblia e os outros textos de São Jerônimo e, ainda, os Comentários de Gênesis, as Confissões e A cidade de Deus, de Agostinho, realizaram tal façanha.
Desse modo e sob esses princípios, ocorreu a absorção da cultura clássica pelo cristianismo, nos cinco primeiros séculos. Sobre a base constituída por essa absorção, a conjugação dos dois saberes prosseguiu, na Idade Média. Pontos culminantes dela foram João Escoto Erígena, Anselmo de Aosta, Tomás de Aquino e Guilherme de Ockham. Os Lugares comuns, de Philip Melanchton, e as Institutas, de Calvino, embora situados no âmbito da Reforma Protestante, também constituem sínteses teológicas formalmente semelhantes às medievais.
Todavia, mencionar alguns nomes é perder de vista o diferencial específico dos Períodos Medievo e Moderno, que foi a proliferação de ordens religiosas para a preservação da fé e também do conhecimento. A produção de textos cristãos com elementos clássicos intensificou-se, do século XV em diante, no meio católico, e decresceu, no protestante, a partir do fim do século XVI, até a Teologia Liberal e as obras publicadas por Karl Barth, no século XX.
Infelizmente, a crise do liberalismo e as dificuldades enfrentadas pela escola de Barth para renovar, profundamente, a Teologia Protestante formam o contexto em que esta até hoje se insere. Contexto que pode ser descrito, sucintamente, como o da necessidade de uma Reforma tão vasta quanto a que o Protestantismo pregou, no século XVI.
Em síntese, como doutrina da salvação, desde o princípio, o cristianismo fez jus à palavra salvação, mas também à doutrina. Nele, o crer vem antes do entender, mas a precedência não é uma simples questão de antes ou depois. É um princípio epistemológico radicalmente novo, pelo qual um conhecimento robusto do Universo, do homem e de Deus se torna possível a partir da fé. Esse princípio foi posto em prática durante séculos, e só uma cegueira muito grande impede perceber com que grandiosos resultados.
Os místicos exaltados veem, nesse desenvolvimento intelectual, um princípio de desvio. Entendem que a fé deve ser mantida à parte, separada do saber profano, posto que o entretecimento delas viola a loucura da pregação, o caráter místico e irracional do evangelho.
No entanto, essa é uma interpretação equivocada das palavras de Paulo. Tanto em 1ª aos Coríntios 1:17-25, onde vemos a loucura da pregação mencionada, quanto nos escritos de Paulo como um todo, a sabedoria que os gregos buscavam era um composto de Filosofia e das disciplinas mais tarde reunidas no Trivium e no Quadrivium. Não é crível que o apóstolo, que disse que todas as coisas são lícitas e puras (1 Co 6:12;10:23), considerasse impuros saberes racionais ou até mesmo técnicos como esses.
O que Paulo ressalta, em 1ª aos Coríntios, não é isso. É antes que o evangelho é uma doutrina da salvação, que perde sentido e se converte em loucura, quando tomada como algo meramente racional. “A sabedoria de palavra” (1 Co 1:17), diz Paulo, anula a cruz de Cristo. No contexto da época, essa sabedoria era algo muito próximo do Trivium, que ensinava o manejo de palavras escritas (Gramática), pensadas (Lógica) e faladas (Retórica). Paulo não quis propor que essas disciplinas invalidam o evangelho, mas que moldá-lo às regras delas o anula. A Retórica, por exemplo, visava à persuasão: apresentar o evangelho para persuadir, a qualquer custo, era o mesmo que anulá-lo.
Se a loucura da pregação fosse a irracionalidade da doutrina do evangelho, Paulo não teria declarado aos coríntios: “Embora seja falto no falar, não o sou no conhecimento; mas, em tudo e por todos os modos, vos temos feito conhecer isto” (2 Co 11:5). Em tudo e por todos os modos, Paulo e seus colaboradores tinham feito conhecer o quê? Tinham feito conhecer que o apóstolo não era falto no conhecimento. Pode haver maior razão do que esta para crermos que Paulo usou normalmente o conhecimento que possuía para pregar aos coríntios?
Após ouvir Paulo anunciar o evangelho de Cristo, o governador Festo declarou: “Estás louco, Paulo! As muitas letras te fazem delirar” (At 26:24). A exclamação relaciona a pregação do apóstolo ao cultivo excessivo das letras, não ao desprezo delas. Perante o governador, o mesmo Paulo, que esteve em Corinto, pareceu utilizar grande quantidade de conhecimento ao pregar. E, ao ser interpelado sobre esse procedimento, confirmou: “Digo palavras de verdade e de bom senso” (At 26:25).
A grande diferença da fé cristã, em relação ao conhecimento mundano, nas suas várias etapas, é o sabor totalmente próprio que o ato de crer comunica ao entender. O homem pagão apenas conhecia. Seu saber era, por isso, mais simples. Arrancava-o, com puro suor, da rocha bruta dos séculos. O cristão não: para ele, o entender (intelligam) nasce do crer (credo). É, por isso, um conhecimento incensado pela oração a Deus. Um conhecimento, permitam-me dizê-lo, sublime, embora não incorruptível. Por isso, introduziu na História do Pensamento o totalmente novo.
Ao cristão importam a verdade e o conhecimento dos fatos. Importa o modo de ser das coisas. Como poderia não importar, se elas foram criadas por Deus e revelam facetas do ser divino? A revelação de Deus nas coisas criadas e sua providência na História são motivos suficientes de nos dedicarmos a conhecê-las. Não faz o menor sentido extrair o contrário da declaração de Lutero: “Manda às favas o conhecimento da natureza. É bastante que saibas que o fogo é quente, a água é fria e úmida. Sabe como deves tratar teu campo, casa, gado e filho, isto é para ti suficiente no conhecimento da natureza” (LUTERO, Martinho. Apud FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. Campinas: Papirus, 1988. p. 331).
Lutero viveu numa época em que a distribuição tradicional de funções entre os conhecimentos entrara em colapso. Desde os Pais da Igreja, a metafísica tornara-se a base de compreensão da física, ou seja, da natureza. Com isso, as afirmativas abstratas daquela tinham moldado todo o conhecimento natural. Lutero se insurgiu contra isso. Afirmou que o conhecimento da natureza não cabe à metafísica, mas ao senso comum e somente a ele. Pareceu-lhe melhor agarrar o mirrado pássaro do senso comum do que soltar as águias metafísicas para que voassem. Mais tarde, com o advento das ciências naturais, as competências dos vários saberes haveriam de ser redistribuídas, e a declaração de Lutero passaria a soar absurda, mas, no seu tempo, ela foi expressão de um sadio inconformismo.
Infelizmente, nem cientistas, nem filósofos jamais souberam o que fazer com a metafísica, depois que as ciências fizeram sua aparição. A alguns pareceu melhor sacrificar a grande ave; outros resolveram prendê-la; e ainda outros trataram-na como o precário pássaro do ditado. Poucos reservaram à águia a liberdade e o azul do céu.