Em Mateus 4:18-22, Jesus chama quatro discípulos para segui-lo: primeiramente, Simão Pedro e André; em seguida, Tiago e João. Todos estão na praia, em plena faina do dia, pois são pescadores. Os primeiros lançam a rede ao mar. Os outros, consertam as suas. Àqueles Jesus diz: “Vinde após mim, e eu vos farei pescadores de homens” (Mt 4:18). Não há registro do que ele fala aos demais.
Em Lucas 5, o mesmo episódio é narrado com maior riqueza de detalhes. Porém, o foco é posto nos momentos que antecedem o chamamento dos quatro. Jesus percorre a margem do lago, quando avista dois barcos e os seus tripulantes na praia a lavar as redes. Então, ele manda Simão lançar as redes ao mar. Pedro entra no barco e, com ajuda de outros, o faz. Apanham tão grande quantidade de peixes que as redes começam a romper-se. Então, alguns companheiros vão até eles e, juntos, enchem dois barcos com o que haviam pescado.
Outro texto paralelo, o da parábola da grande pesca, em Mateus 13:47-50, ajuda a entender o significado simbólico de que o chamamento dos discípulos se reveste. A parábola não enfatiza o fato de os pescadores se utilizarem de um barco ou outros aspectos da pescaria, mas o lançamento da rede: “o reino dos céus é semelhante a uma rede que, lançada ao mar, recolhe peixes de toda espécie” (Mt 13:47).
Uma versão de Mateus 13:47 afirma que a rede apanha os peixes; outra, que ela os recolhe. Mas o significado mais básico do grego synagagousi é reunir e ajuntar. Syn significa junto, com. Ago é guiar, conduzir ou educar. Daí o substantivo sinagoga, que é um ajuntamento de pessoas para receberem instrução.
Na parábola da pesca, os peixes são transformados em sinagoga, em ajuntamento, pela ação da rede lançada ao mar. Por isso, a rede é a palavra de Deus, que ocupa o centro da era histórica da pescaria, situada entre a ascensão de Cristo e o dia de hoje. Pela mesma razão, é significativo que João e Tiago estejam a consertar as redes rompidas durante a pesca, quando Jesus os chama, como Watchman Nee mostrou.
O conserto das redes lembra-nos que a palavra do evangelho possui um elemento humano. Assim como Cristo era Deus e tornou-se homem, a palavra divina assume elementos humanos ao ser entregue ao homem. Isso é verdadeiro tanto em relação ao evangelho quanto às Escrituras. Ambos passaram por um processo de formação e transmissão que, quanto mais intenso, mais acrescentou elementos humanos à palavra de Deus.
Os 66 livros da Bíblia foram escritos por homens. Essa escrita não está isenta de características humanas, inclusive erros de cópia, embora os sentidos do texto sejam inteiramente divinos. Pode-se supor que o elemento humano assumido pela palavra de Deus, ao vir ao mundo, necessita ser consertado, apurado, assim como as redes precisaram ser remendadas por João e Tiago.
Dos doze apóstolos, Tiago é o único cujo martírio é narrado na Bíblia (At 12:1-2). Isso não deve ter sucedido por acaso. Ele deve ter prestado testemunho tão significativo da morte e ressurreição de Jesus que os líderes judeus o mataram. Sabemos também que a preservação das histórias e discursos do quarto Evangelho foi atribuída a João por uma tradição antiga. Juntando esses dados, é possível pensar que os irmãos Tiago e João acompanharam Jesus desde antes do chamamento de Mateus 4, presenciaram ensinamentos e atos que outros apóstolos não observaram e deram origem a uma tradição complementar à que eles propagaram.
Talvez os discípulos de João Batista que o ouviram exclamar “Eis o Cordeiro de Deus”, em João 2:35-37, tenham sido João e Tiago. O último verso afirma que “ouvindo-o dizer isto, [eles] seguiram a Jesus”. Se realmente se trata de João e Tiago, é possível que eles tenham “consertado as redes” dos fatos sobre Cristo, por exemplo, ao permitir a ampliação do período ministerial dos 12 a 15 meses retratados nos sinóticos para os três anos e meio do quarto Evangelho.
No entanto, a ênfase da grande alegoria da pesca não está no conserto das redes, mas na captura dos peixes, pela palavra de Deus. Essa captura retrata a total impotência do livre arbítrio para optar por Deus, antes da salvação. O homem pode tanto realizar esse ato, por suas próprias forças, quanto o peixe procura ser preso. Na realidade, ocorre o contrário: como o peixe tenta escapar da rede, o livre arbítrio do homem, corrompido e enfraquecido pelo pecado, afasta-o de tudo aquilo que é a sua salvação. Esse é o testemunho uníssono do Novo Testamento. O testemunho que Paulo como ninguém explicou.
Diferentemente da pesca com vara e anzol, aquela que se executa com redes não envolve, digamos, o ato de ludibriar o peixe. É muito mais um exercício de força. Os que acusam Deus de nada fazer para livrar o homem do sofrimento esquecem-se desse grande feito divino. A salvação do Novo Testamento é o ato de força de Deus contra o homem e a sua vontade, que só se deixa apanhar, só concorda, aceita e consente com a captura no último momento, assim como o peixe se debate até suas forças se esvaírem completamente e assim como Saulo recalcitrou contra os aguilhões até o derradeiro instante. Ele pensava exercer violência contra os cristãos, mas Deus, pela sua palavra, era quem caía sobre ele por todos os lados, com poder avassalador.
Jesus também afirmou que o reino de Deus é tomado por violência (Mt 11:12). Nessa frase, o reino de Deus é o povo do reino, os peixes capturados com violência pelos pescadores. Jesus pregou o evangelho com essa consciência e o mesmo fizeram os apóstolos. No ato da salvação, Deus dirige uma espécie de violência contra a vontade humana, isto é, contra o livre arbítrio tornado impotente pelo pecado. Por isso, a vontade não possui, nem pode possuir o menor mérito pela salvação.
Pelágio afirmou que o livre arbítrio pode acumular méritos que permitem ao homem salvar-se. Na época da Reforma, Erasmo de Roterdã publicou sua Diatribe sobre o livre arbítrio, em que afirmou que o erro de Pelágio consistira em atribuir grande mérito à vontade humana, na salvação, quando tudo o que ela pode alcançar é um pequeno mérito. Censurou, pois, em Pelágio, unicamente a medida do mérito humano que atua na salvação.
Lutero respondeu-lhe: “Pelo menos aqueles que dizem que o livre-arbítrio envolve um grande mérito (os chamados pelagianos) conferem um elevado preço à graça divina, porquanto concebem que um grande mérito é necessário para alguém obter a salvação. Todavia, Erasmo barateia a graça divina, podendo ser obtida por um débil esforço” (LUTERO, Martinho. Nascido escravo. São José dos Campos: Fiel, 1992. p. 23). Para Lutero, assim como para os principais reformadores, a vontade humana não é capaz de merecer a salvação seja em maior, seja em menor medida, porque está cativa.
Tudo isso se extrai da imagem do peixe preso na rede. É uma obra autenticamente divina tal verdade ter sido preservada e atravessado os séculos. Sim, o homem tem livre arbítrio, mas não se pode salvar por meio dele. Em tudo o que diz respeito a Deus, ele é totalmente incapaz. É um ser inerme, impotente e morto na sua agitação. Mas Deus prova o seu amor por ele, imobilizando-o na rede da sua palavra. Se é uma violência, esse ato é também a mais poderosa experiência de amor que uma criatura pode obter. Deus mesmo prende-a, enreda-a, submete-a contra a sua vontade e contra todo o poder do seu comportamento, a fim de tê-la para si.
Por que o pescador captura alguns e não outros? Sempre há quem acuse o evangelho de arbitrariedade, por insinuações como essa. Porém, a Escritura não sugere que Deus olhe para os homens e diga: “Este sim, este não; este outro sim, este outro não”. Ele não o faz e não o pode fazer, assim como o pescador não pode escolher que peixes pescar. Simplesmente, lança sua rede ali onde sabe que há muito peixe em condição de ser capturado. E quando o faz, nada ou quase nada lhe escapa, tudo ou quase tudo é reduzido ao cativeiro da palavra de Deus. A grande rede da misericórdia se enche a ponto de se partir.
quinta-feira, 29 de novembro de 2012
sábado, 24 de novembro de 2012
The Apes' Survey (4): At The Bear's Den
“So it was not possible
To reach the whole truth,
Because the half person who entered
Always brought the profile of half a truth "
(Carlos Drummond de Andrade)
The cold of the mountain kept terrible surprises in the pocket. And as twilight approached, he drew them with the most perfidious intentions. By five in the afternoon, a paralyzing wind began to blow with such force that Potsherd feared for the whole group. Who could bail – he thought – that the discoverers of the Mammoth and Man, by irony or coincidence, tomorrow would not become the discovery of others: a cube of water with four objects, that the spell of time would make more valuable than the rock they had found?
Potsherd had already thought of it, but when the north wind howled on the glacier, could not help reviewing his ideas of dropout. However, this time he did it in a light that made them irresistible as a mermaid and her singing in the ears of a castaway. So that he thought it definitely better to go back into the forest than to perish from cold there. Glass, however, uncovered his thoughts:
- Cheer up, cheer! said he with the rest of his strength and more to himself than to his companion. The love of truth has moved us to this inquiry. We can’t finish it by a waiver.
- Love, love! Potsherd exclaimed. The most inspiring and the highest of feelings, yet how faint reflections it casts on the will, simian or human! How often the next day of love comes to be disillusionment and betrayal! Only an oracle ironic, a contradictory decree of heaven may have determined that the noblest of feelings gave birth to the poorest of volitions!
- Potsherd, no! Monkey Glass said horrified. The commitment we contracted and made firm by an oath cannot be betrayed now! Let us join valour to love, and confidence to valour, brother. Let us go!
These words of Glass expressed more fidelity than wisdom, more constancy than true reason. They were imbued with the ineffable, which has the magic power to trim the burnt wicks and to rekindle, one by one, the extinguished torches of faith. It could be said that an invisible constellation thus lit, glowed with renewed ardor in the firmament of each one’s soul and was responsible for the restoration of that supremacy of the spirit over circumstances that leads to impossible winnings.
That burning allowed them to resume walking, although downwards, which means off the glacier. As they descended, a growing relief cheered them, but so slowly that seemed to trickle in their souls. Half way down, when the full moon bathed the way with its rays, they heard a hoarse loud sound coming from the sparse vegetation, and the silhouette of a Bear of swarthy fur emerged from the bushes.Meeting with a Bear at that time and that place was the height of bad luck, Potsherd thought, cruelty of Fortune, conspiracy of unloved Muses or whatever else but chance. Earthenware froze with fear when the Bear finished out of the woods and looked at the four guys with hunger. Desperate, he jumped around as Apes do in a multitude of situations. But seeing that the dramatic acting neither shook the Bear, nor inspired the group to confront him, Ware sat down and covered his eyes with his fingers, not to see the enormous beast attend his supper.
With more presence of mind, Tile risked the strategy of camaraderie. Undaunted, he went to the newcomer:
- Good night, Mr. Bear!
- Good evening, Simian, replied the brute.
- Where are you going at this hour?
- I'm going to play. And you?
– Seek the shelter we slept last night, but have not found it.
- Humm... did the Bear. Would you join me? I live in a spacious cave. There is straw enough for five beds. And also food. I was quite successful in hunting these days.
Upon hearing the last sentence, Ware froze again. Potsherd was more resigned, Glass had reservations, but Tile thought: "Won’t escape, if he wants us as a delicacy. We’d better accept his invitation.” And he did it immediately, on behalf of the whole group. So they went to the Bear's den.
In the shelter, as they talked, the four felt increasing confidence in their host. Helped them the discovery that the Bear was actually in possession of a vast supply of meat, that the low temperatures kept from the worms. So that they ended up regaining confidence, when the owner of the meat packing plant (for the deposit of mangled animals inside the den was no less than that) began to offer them all kinds of meats, accompanied by herbs of various qualities and colors. Only Ware continued to distrust. He thought: "What if he's a serial killer?" But as metabolism is capable of prodigies, along the feast he also relaxed.
After having regaled themselves with delicacies or interrupted dinner, according to the case (or the stomach size), the guests began to talk excitedly. Spoke about mild things and, in the end, the Bear asked his guests:
- What are you doing in so cold a place? Don’t you prefer the heat of the foot of the mountain?
- In terms of preference, we are inclined to the forest, responded Tile. But we were given a mission. That's why we're here.
- Mission? asked the Bear. Of what kind?
– One of a special kind: research of the origin of species.
– Humm... did the Bear intrigued. I understand. What do you think about Darwin's ideas on this subject?
- Ingenious, responded Tile. But we reserve thinking about the matter in a less pretentious manner, so to speak. We don’t have the intention to find an evolutionary explanation valid for all beings from the abiotic to Bears, Apes and Men.
There was flattery in that response. Tile continued:
- Take the case of the origin of life. Neodarwinism proposes that the first living being formed by spontaneous binding of molecules within a primitive broth. The explanation goes for the whole spectrum of life. According to scientists, all living things come from that spontaneous origin. I suspect an explanation of that broad scope is outside the realm of science. The greatest empirical discovery of all time could not rule it out.
The Bear owned a cryptic wisdom. Shortly speaking, he listened much and reflected even more. From time to time, he provoked the participants of the dialogue with shrewd questions. After listening attentively to Tile’s reasoning, he said:
– In the last four centuries, Men have noised the visible sky is much more miniaturized than they had thought. The actual size of the objects on its frame is much greater, because the distances that separate them are incalculable. I wonder if life started countless times in that cosmic scale.
A lot more at ease, Earthenware intervened:
- No doubt. If life was often engendered in many ways and on so vast a scale, why the spontaneous origin of it, which science describes, and its divine creation, proposed by religions, can’t be simultaneously true? I ask myself if, when acknowledging the immensity and eternity of the cosmos, scientists have not established the very premises that lead to the consequence of the divine origin of life.
- Theoretical physicists increasingly suggest the possibility of the universe being a multiverse, namely a concert of worlds, of which ours is just one, interrupted the Bear. Most think that these multiple universes are governed by different sets of natural laws, some more others less conducive to the formation of life as we know it.
- Let's lengthen the views of our intellect, said Ware, let’s lengthen them greatly, and we will clearly see that in a timeless multiverse, everything can happen. Therefore, if life can arise in various ways, all these different beginnings must have occurred. The divine origin of life is one of the possibilities: how not to take it seriously?
- Humm, did the Bear, prolonging the sound at the end a little further. The theme of the eternal universe reminds us of the ancient Greek philosophers, doesn’t it?
- Humm, Monkey Ware muttered, mimicking his caller without noticing. Unfortunately, it became common to mutilate the tradition of philosophers, when trying to retake it. The ancient Greeks thought the universe was eternal, but invariably found room for the divine within it. It's not what happens today. Man’s current obsession about deleting gods from the world somehow challenges the logical foundation of their science. After all, if the multiverse is eternal, a level of divine beings must have formed inside it.
And he inlaid in the speech the closing of anguish:
- To be or not to be: that's the question! To be or not to be like humans is the question! If we follow our human relatives, the investigation in which we engaged will have a direction and a conclusion. We will be seen by our community as little more than humanized Monkeys. If we divert them, the end of our investigation will be quite another. And we will finish as authentic Apes. We have our feet planted at this crossroad.
On the Bear’s mind, the discussion seemed to help the digestion of the appetizer. But he found the conversation much for little food. To the Monkeys it seemed little for much food. So, they continued to talk, while the Bear completed his meal. When all were satisfied, they went to the soft beds of straw that the Bear had provided.
The cold in the cave punished more the Apes than the Bear.
To reach the whole truth,
Because the half person who entered
Always brought the profile of half a truth "
(Carlos Drummond de Andrade)
The cold of the mountain kept terrible surprises in the pocket. And as twilight approached, he drew them with the most perfidious intentions. By five in the afternoon, a paralyzing wind began to blow with such force that Potsherd feared for the whole group. Who could bail – he thought – that the discoverers of the Mammoth and Man, by irony or coincidence, tomorrow would not become the discovery of others: a cube of water with four objects, that the spell of time would make more valuable than the rock they had found?
Potsherd had already thought of it, but when the north wind howled on the glacier, could not help reviewing his ideas of dropout. However, this time he did it in a light that made them irresistible as a mermaid and her singing in the ears of a castaway. So that he thought it definitely better to go back into the forest than to perish from cold there. Glass, however, uncovered his thoughts:
- Cheer up, cheer! said he with the rest of his strength and more to himself than to his companion. The love of truth has moved us to this inquiry. We can’t finish it by a waiver.
- Love, love! Potsherd exclaimed. The most inspiring and the highest of feelings, yet how faint reflections it casts on the will, simian or human! How often the next day of love comes to be disillusionment and betrayal! Only an oracle ironic, a contradictory decree of heaven may have determined that the noblest of feelings gave birth to the poorest of volitions!
- Potsherd, no! Monkey Glass said horrified. The commitment we contracted and made firm by an oath cannot be betrayed now! Let us join valour to love, and confidence to valour, brother. Let us go!
These words of Glass expressed more fidelity than wisdom, more constancy than true reason. They were imbued with the ineffable, which has the magic power to trim the burnt wicks and to rekindle, one by one, the extinguished torches of faith. It could be said that an invisible constellation thus lit, glowed with renewed ardor in the firmament of each one’s soul and was responsible for the restoration of that supremacy of the spirit over circumstances that leads to impossible winnings.
That burning allowed them to resume walking, although downwards, which means off the glacier. As they descended, a growing relief cheered them, but so slowly that seemed to trickle in their souls. Half way down, when the full moon bathed the way with its rays, they heard a hoarse loud sound coming from the sparse vegetation, and the silhouette of a Bear of swarthy fur emerged from the bushes.Meeting with a Bear at that time and that place was the height of bad luck, Potsherd thought, cruelty of Fortune, conspiracy of unloved Muses or whatever else but chance. Earthenware froze with fear when the Bear finished out of the woods and looked at the four guys with hunger. Desperate, he jumped around as Apes do in a multitude of situations. But seeing that the dramatic acting neither shook the Bear, nor inspired the group to confront him, Ware sat down and covered his eyes with his fingers, not to see the enormous beast attend his supper.
With more presence of mind, Tile risked the strategy of camaraderie. Undaunted, he went to the newcomer:
- Good night, Mr. Bear!
- Good evening, Simian, replied the brute.
- Where are you going at this hour?
- I'm going to play. And you?
– Seek the shelter we slept last night, but have not found it.
- Humm... did the Bear. Would you join me? I live in a spacious cave. There is straw enough for five beds. And also food. I was quite successful in hunting these days.
Upon hearing the last sentence, Ware froze again. Potsherd was more resigned, Glass had reservations, but Tile thought: "Won’t escape, if he wants us as a delicacy. We’d better accept his invitation.” And he did it immediately, on behalf of the whole group. So they went to the Bear's den.
In the shelter, as they talked, the four felt increasing confidence in their host. Helped them the discovery that the Bear was actually in possession of a vast supply of meat, that the low temperatures kept from the worms. So that they ended up regaining confidence, when the owner of the meat packing plant (for the deposit of mangled animals inside the den was no less than that) began to offer them all kinds of meats, accompanied by herbs of various qualities and colors. Only Ware continued to distrust. He thought: "What if he's a serial killer?" But as metabolism is capable of prodigies, along the feast he also relaxed.
After having regaled themselves with delicacies or interrupted dinner, according to the case (or the stomach size), the guests began to talk excitedly. Spoke about mild things and, in the end, the Bear asked his guests:
- What are you doing in so cold a place? Don’t you prefer the heat of the foot of the mountain?
- In terms of preference, we are inclined to the forest, responded Tile. But we were given a mission. That's why we're here.
- Mission? asked the Bear. Of what kind?
– One of a special kind: research of the origin of species.
– Humm... did the Bear intrigued. I understand. What do you think about Darwin's ideas on this subject?
- Ingenious, responded Tile. But we reserve thinking about the matter in a less pretentious manner, so to speak. We don’t have the intention to find an evolutionary explanation valid for all beings from the abiotic to Bears, Apes and Men.
There was flattery in that response. Tile continued:
- Take the case of the origin of life. Neodarwinism proposes that the first living being formed by spontaneous binding of molecules within a primitive broth. The explanation goes for the whole spectrum of life. According to scientists, all living things come from that spontaneous origin. I suspect an explanation of that broad scope is outside the realm of science. The greatest empirical discovery of all time could not rule it out.
The Bear owned a cryptic wisdom. Shortly speaking, he listened much and reflected even more. From time to time, he provoked the participants of the dialogue with shrewd questions. After listening attentively to Tile’s reasoning, he said:
– In the last four centuries, Men have noised the visible sky is much more miniaturized than they had thought. The actual size of the objects on its frame is much greater, because the distances that separate them are incalculable. I wonder if life started countless times in that cosmic scale.
A lot more at ease, Earthenware intervened:
- No doubt. If life was often engendered in many ways and on so vast a scale, why the spontaneous origin of it, which science describes, and its divine creation, proposed by religions, can’t be simultaneously true? I ask myself if, when acknowledging the immensity and eternity of the cosmos, scientists have not established the very premises that lead to the consequence of the divine origin of life.
- Theoretical physicists increasingly suggest the possibility of the universe being a multiverse, namely a concert of worlds, of which ours is just one, interrupted the Bear. Most think that these multiple universes are governed by different sets of natural laws, some more others less conducive to the formation of life as we know it.
- Let's lengthen the views of our intellect, said Ware, let’s lengthen them greatly, and we will clearly see that in a timeless multiverse, everything can happen. Therefore, if life can arise in various ways, all these different beginnings must have occurred. The divine origin of life is one of the possibilities: how not to take it seriously?
- Humm, did the Bear, prolonging the sound at the end a little further. The theme of the eternal universe reminds us of the ancient Greek philosophers, doesn’t it?
- Humm, Monkey Ware muttered, mimicking his caller without noticing. Unfortunately, it became common to mutilate the tradition of philosophers, when trying to retake it. The ancient Greeks thought the universe was eternal, but invariably found room for the divine within it. It's not what happens today. Man’s current obsession about deleting gods from the world somehow challenges the logical foundation of their science. After all, if the multiverse is eternal, a level of divine beings must have formed inside it.
And he inlaid in the speech the closing of anguish:
- To be or not to be: that's the question! To be or not to be like humans is the question! If we follow our human relatives, the investigation in which we engaged will have a direction and a conclusion. We will be seen by our community as little more than humanized Monkeys. If we divert them, the end of our investigation will be quite another. And we will finish as authentic Apes. We have our feet planted at this crossroad.
On the Bear’s mind, the discussion seemed to help the digestion of the appetizer. But he found the conversation much for little food. To the Monkeys it seemed little for much food. So, they continued to talk, while the Bear completed his meal. When all were satisfied, they went to the soft beds of straw that the Bear had provided.
The cold in the cave punished more the Apes than the Bear.
terça-feira, 20 de novembro de 2012
The Apes' Survey (3): Man and the Mammoth
"I visit the facts,
And don’t find you.
Where have you hidden, precarious synthesis,
Pledge of my sleep, light? "
(Carlos Drummond de Andrade)
In front of the forest where Monkey Glass and his peers had lived, staring it like an emerald sky harnessed by angels, stayed a mountain range that towered above all nature with its peaks dressed in white. Heaving, the group climbed the steep paths that led to the top of the range. A mist involved them, which thickened as the density of the air decreased.
The howling winds blew dark thoughts into Potsherd’s mind, as if they invaded the skull through the minutest breaches and implanted suggestions of dropout, states of depression and dismay. It was not different with the three others. The zeal that led the group to embrace the great enterprise seemed to fade to the tops of the mountains. Suddenly, they stopped like members of an interconnected body consumed by an endless walking. And looked at each other, asking without words what produced the devastated expressions they saw.
- We cannot take more walking. We’d better seek shelter, said Glass.
The others assented so unanimously that the slightest objection was not heard. No one deemed it necessary to add anything to the conclusion arrived at by Monkey Glass, for it mirrored the thoughts of all. Immediately, they began to look for a cave, a den, a covered, albeit meager, where they could take refuge. After sweeping the place as thoroughly as their strength allowed, they finally spotted a lair that seemed carved in the wall of a lift. Submitted and stooped by exhaustion, they plunged into it, without saying a word.
Soon, they were sound asleep. And as had been the rule since the beginning of the march, when woke up they feasted with a few fruits subtracted from the trees they found. They also drank mouthfuls of water. At the end, feeling as if they had swallowed courage, they started attacking the summit.
Under sunlight, they made more progress than in the whole day before. By noon, they had reached the largest glacier in the region and started to explore it. Meanwhile, Monkey Earthenware spotted something resembling a rock of ice, half a mile away. Changing his route in an oblique direction, he went steadfastly to the intriguing formation. But halfway, he suddenly shouted:
- Run! Come see whether I rave or there is a Mammoth in the ice!
At once, the four went on buck. They met at the foot of an icy rock with gradations of hue and brightness, that glittered as crystal bathed in light. It was more than a thousand times larger than the Apes. And to the stupor of all, at the heart of that colossus were a Man and a Mammoth.
- Heavens! exclaimed Monkey Glass. A Mammoth real! And a Man with him!
The Man inside the piece had his arm extended toward one of the Mastodon’s horn, as if he had seized it the moment he died.
Monkey Tile ventured:
- Must have been swept away by waters which froze. The Man clung to the Mammoth tusk as to a lifeline.
Earthenware lucubrated:
- May have died at different times: first the Mammoth, then the Man.
In an instant, Glass remembered and exclaimed:
- But Mammoths went extinct thousands of years ago! The frozen Man we see wears modern-day pants and coat. His aspect is fully current. No, it’s not possible that Mammoths lived with contemporary Man!
– How come it’s not possible, my brother, if we see them side by side? Potsherd asked. They could not have been frozen together, if they did not live and die at the same time.
The other Monkeys were silent, at the flawless logic of Potsherd. How could they deny it? It fell to Monkey Glass to draw the irrepressible conclusion:
- Potsherd, if you are right, this ice cube is the most important evidence of cultural evolution ever found. It shows that contemporary Man was also prehistoric.
- More than this, it shows that a culture similar to today’s existed thousands of years ago, Potsherd added.
- But no advanced culture may have existed thousands of years ago, said Glass. And he added, after thinking some more:
- If present-day artifacts existed millennia ago, where are the remains of cars, shuttles, buildings, bridges and other constructions of so ancient a civilization? And why so old people did not leave written records? Why they did not write about their fantastic achievements and even on the Mammoths of their time?
If Potsherd had expressed himself with property, the response of Monkey Glass was not inferior. The literary estate of all times attests to the absence of ultra-advanced artifacts in Prehistory. And no remains of those artifacts have been found. However, the evidence of the coexistence of today's Man and the Mammoths was within that block of ice, exposed to the gaze of the four friends. And it seemed irrefutable.
Glass said with wondering eyes:
- No animal from the past was as well preserved as the Man and the Mammoth before us. If we turn the world’s fossil deposits upside down, we won’t find one as conserved as these. And still, we don’t want to believe what our eyes see…
He continued:
- The idea that human culture evolved from simple to complex stages became a paradigm. The question is what is needed to contradict a paradigm. What evidence should be considered sufficient to support the abolition of a scientific model with the set of beliefs and assumptions it originates?
Earthenware intervened:
- This large block of ice seems to provide answer to your questions. It shows us that modern Man coexisted with Mammoths. This is well proven. But the proof is embedded in a body of evidence which is much larger and says exactly the opposite.
- Yes, Glass agreed, the body of evidence accumulated so far ensures us that modern Man and Mammoths never lived together. But should we believe in it or in the block right before us?
- I do not think the answer should be based on the number of proofs on each side, Potsherd replied. If so, there are thousands of proofs that modern humans did not coexist with Mammoths and only one in the opposite direction: the block of ice in front of us. However, empirical truth is not formed by the number of confirmations. On the contrary, it can be produced either by one or by many proofs. One piece of evidence of high value can disprove a heap of fragile ones.
The discussion thus initiated lasted long. If we say that the authors of the great discovery reached a conclusion, after discussing, we will miss the truth. But something related to the object of their investigation was laid on their minds: the larger the reach of a theory, the greater its resistance to refutation. Up to the point the belief in the theory becomes obsessive.
While plunged in these thoughts, the friends grew suspicious that evolution from simple to complex forms of culture were not to be shattered by the tremendous discovery they had made. Even though scientists investigated the ice block to the core, the paradigm of cultural evolution would not be threatened. It seemed the evolution of Monkeys, Men from common ancestors was one of these extremely broad ideas of human mind that cannot be proved or disproved. It means that all Men, Monkeys and the cultures of all times evolved from those ancestors. The Monkeys trembled at the thought that, under certain conditions, a theory so extended cannot be challenged by facts and becomes a truth a priori. A real creed.
These thoughts infused secret horror into the friends. Monkeys are accustomed to seek food, or more generally to think in terms of practical difficulties, such as deserving peanuts or popcorn from Men at the zoo. Of the three questions with which a human is tortured (Where do I come from? Who am I? Where am I going to?), only the latter interested to Monkeys in the last million years, yet in a direction a lot different from that in which Men have dealt with it. Even when exceeding all limits, Monkeys at most arrive at precarious syntheses. And soon they lose sight of them, as the prey which escapes the clutches the instant it falls on them.
For all this, in a dash of intuition, the friends judged unwise to join a science like that of Men, with claims of universal validity. It seemed more likely that the precarious synthesis they were looking for lay outside of the universal places of that science. It might not be safe to conclude that all Monkeys came or did not come from this or that ancestral species. The Simian could have different ancestral connections. They could derive from more than one species. As well as facts could comprise more exceptions to scientific laws than Men usually think.
And don’t find you.
Where have you hidden, precarious synthesis,
Pledge of my sleep, light? "
(Carlos Drummond de Andrade)
In front of the forest where Monkey Glass and his peers had lived, staring it like an emerald sky harnessed by angels, stayed a mountain range that towered above all nature with its peaks dressed in white. Heaving, the group climbed the steep paths that led to the top of the range. A mist involved them, which thickened as the density of the air decreased.
The howling winds blew dark thoughts into Potsherd’s mind, as if they invaded the skull through the minutest breaches and implanted suggestions of dropout, states of depression and dismay. It was not different with the three others. The zeal that led the group to embrace the great enterprise seemed to fade to the tops of the mountains. Suddenly, they stopped like members of an interconnected body consumed by an endless walking. And looked at each other, asking without words what produced the devastated expressions they saw.
- We cannot take more walking. We’d better seek shelter, said Glass.
The others assented so unanimously that the slightest objection was not heard. No one deemed it necessary to add anything to the conclusion arrived at by Monkey Glass, for it mirrored the thoughts of all. Immediately, they began to look for a cave, a den, a covered, albeit meager, where they could take refuge. After sweeping the place as thoroughly as their strength allowed, they finally spotted a lair that seemed carved in the wall of a lift. Submitted and stooped by exhaustion, they plunged into it, without saying a word.
Soon, they were sound asleep. And as had been the rule since the beginning of the march, when woke up they feasted with a few fruits subtracted from the trees they found. They also drank mouthfuls of water. At the end, feeling as if they had swallowed courage, they started attacking the summit.
Under sunlight, they made more progress than in the whole day before. By noon, they had reached the largest glacier in the region and started to explore it. Meanwhile, Monkey Earthenware spotted something resembling a rock of ice, half a mile away. Changing his route in an oblique direction, he went steadfastly to the intriguing formation. But halfway, he suddenly shouted:
- Run! Come see whether I rave or there is a Mammoth in the ice!
At once, the four went on buck. They met at the foot of an icy rock with gradations of hue and brightness, that glittered as crystal bathed in light. It was more than a thousand times larger than the Apes. And to the stupor of all, at the heart of that colossus were a Man and a Mammoth.
- Heavens! exclaimed Monkey Glass. A Mammoth real! And a Man with him!
The Man inside the piece had his arm extended toward one of the Mastodon’s horn, as if he had seized it the moment he died.
Monkey Tile ventured:
- Must have been swept away by waters which froze. The Man clung to the Mammoth tusk as to a lifeline.
Earthenware lucubrated:
- May have died at different times: first the Mammoth, then the Man.
In an instant, Glass remembered and exclaimed:
- But Mammoths went extinct thousands of years ago! The frozen Man we see wears modern-day pants and coat. His aspect is fully current. No, it’s not possible that Mammoths lived with contemporary Man!
– How come it’s not possible, my brother, if we see them side by side? Potsherd asked. They could not have been frozen together, if they did not live and die at the same time.
The other Monkeys were silent, at the flawless logic of Potsherd. How could they deny it? It fell to Monkey Glass to draw the irrepressible conclusion:
- Potsherd, if you are right, this ice cube is the most important evidence of cultural evolution ever found. It shows that contemporary Man was also prehistoric.
- More than this, it shows that a culture similar to today’s existed thousands of years ago, Potsherd added.
- But no advanced culture may have existed thousands of years ago, said Glass. And he added, after thinking some more:
- If present-day artifacts existed millennia ago, where are the remains of cars, shuttles, buildings, bridges and other constructions of so ancient a civilization? And why so old people did not leave written records? Why they did not write about their fantastic achievements and even on the Mammoths of their time?
If Potsherd had expressed himself with property, the response of Monkey Glass was not inferior. The literary estate of all times attests to the absence of ultra-advanced artifacts in Prehistory. And no remains of those artifacts have been found. However, the evidence of the coexistence of today's Man and the Mammoths was within that block of ice, exposed to the gaze of the four friends. And it seemed irrefutable.
Glass said with wondering eyes:
- No animal from the past was as well preserved as the Man and the Mammoth before us. If we turn the world’s fossil deposits upside down, we won’t find one as conserved as these. And still, we don’t want to believe what our eyes see…
He continued:
- The idea that human culture evolved from simple to complex stages became a paradigm. The question is what is needed to contradict a paradigm. What evidence should be considered sufficient to support the abolition of a scientific model with the set of beliefs and assumptions it originates?
Earthenware intervened:
- This large block of ice seems to provide answer to your questions. It shows us that modern Man coexisted with Mammoths. This is well proven. But the proof is embedded in a body of evidence which is much larger and says exactly the opposite.
- Yes, Glass agreed, the body of evidence accumulated so far ensures us that modern Man and Mammoths never lived together. But should we believe in it or in the block right before us?
- I do not think the answer should be based on the number of proofs on each side, Potsherd replied. If so, there are thousands of proofs that modern humans did not coexist with Mammoths and only one in the opposite direction: the block of ice in front of us. However, empirical truth is not formed by the number of confirmations. On the contrary, it can be produced either by one or by many proofs. One piece of evidence of high value can disprove a heap of fragile ones.
The discussion thus initiated lasted long. If we say that the authors of the great discovery reached a conclusion, after discussing, we will miss the truth. But something related to the object of their investigation was laid on their minds: the larger the reach of a theory, the greater its resistance to refutation. Up to the point the belief in the theory becomes obsessive.
While plunged in these thoughts, the friends grew suspicious that evolution from simple to complex forms of culture were not to be shattered by the tremendous discovery they had made. Even though scientists investigated the ice block to the core, the paradigm of cultural evolution would not be threatened. It seemed the evolution of Monkeys, Men from common ancestors was one of these extremely broad ideas of human mind that cannot be proved or disproved. It means that all Men, Monkeys and the cultures of all times evolved from those ancestors. The Monkeys trembled at the thought that, under certain conditions, a theory so extended cannot be challenged by facts and becomes a truth a priori. A real creed.
These thoughts infused secret horror into the friends. Monkeys are accustomed to seek food, or more generally to think in terms of practical difficulties, such as deserving peanuts or popcorn from Men at the zoo. Of the three questions with which a human is tortured (Where do I come from? Who am I? Where am I going to?), only the latter interested to Monkeys in the last million years, yet in a direction a lot different from that in which Men have dealt with it. Even when exceeding all limits, Monkeys at most arrive at precarious syntheses. And soon they lose sight of them, as the prey which escapes the clutches the instant it falls on them.
For all this, in a dash of intuition, the friends judged unwise to join a science like that of Men, with claims of universal validity. It seemed more likely that the precarious synthesis they were looking for lay outside of the universal places of that science. It might not be safe to conclude that all Monkeys came or did not come from this or that ancestral species. The Simian could have different ancestral connections. They could derive from more than one species. As well as facts could comprise more exceptions to scientific laws than Men usually think.
sexta-feira, 16 de novembro de 2012
Livre Exame de Romanos (1): O Evangelho de Deus
Muito se discute em que gênero literário os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas se enquadram. Seriam obras biográficas, teológicas ou uma mescla de história e teologia? Se reconhecermos conteúdo predominantemente teológico aos textos, deveremos considerá-los o registro de uma pregação semelhante à de Jeremias ou Daniel ou um gênero teológico inteiramente novo, que se originou e esgotou com a vinda de Cristo?
Na verdade, os Evangelhos sinóticos assemelham-se mais a testemunhos ou reconstituições de testemunhos sobre o ensinamento e os atos públicos de Jesus. Como testemunhos, eles não são biografias ou relatos de uma vida inteira. Pela mesma razão, pressupõem três apóstolos ou testemunhas diretas dos fatos que narram. Papias, Ireneu e Eusébio afirmaram que Mateus iniciou a transmissão dos discursos de Jesus no Evangelho que tem o seu nome, Marcos registra o testemunho de Pedro sobre Jesus, e Lucas, o de Paulo. É possível que esses testemunhos bastante antigos reflitam, aproximadamente, a realidade a respeito dos Evangelhos chamados sinóticos.
Embora não tenha seguido Jesus, durante os três anos e meio (para alguns) ou durante o único ano (para outros) do seu ministério, como judeu que era, Paulo deve ter comparecido a festas oficiais em que ele também esteve e nas quais ensinou no Templo. Por esse motivo, o conhecimento que Paulo tinha dos fatos narrados por Lucas não se limitava às aparições de Jesus a ele, mas incluía a observação do ocorrido naquelas festas, principalmente na Última Páscoa. É possível que, como fariseu proeminente, Paulo tenha até participado das sessões de julgamento de Jesus pelo Sinédrio narradas por Lucas, embora não como membro daquele tribunal.
Paulo denominou “meu evangelho” o seu testemunho a respeito do ministério de Jesus. Pouco se pode duvidar de que a parte principal desse “evangelho” esteja abrangida em Lucas. Porém, além desse texto, o apóstolo deixou-nos Atos (também escrito por Lucas) e as suas epístolas. O primeiro tem lugar de destaque entre os textos paulinos em sentido amplo, por nos mostrar o evangelho pregado e crido, após a ascensão de Jesus.
Porém, um terceiro escrito deve ser colocado ao lado desses, como fecho da exposição do evangelho por Paulo: a Epístola aos Romanos. Se Lucas é o evangelho narrado, Atos, o evangelho pregado e crido, Romanos é o evangelho interpretado. Mais do que isso, é a mais completa, concatenada e longa explicação do evangelho de Jesus Cristo, em toda a Bíblia, ao lado da Epístola aos Hebreus.
Claro que as outras cartas ditas de Paulo e dos demais apóstolos também explicam o evangelho, porém explanações completas só as encontramos em Romanos e Hebreus. A primeira é da autoria de Paulo; a outra provavelmente não, porém foi escrita sob influência ou a partir de um discurso dele.
Quanto ao Evangelho de João, pode-se questionar se deve ser considerado narração ou explicação das boas-novas de Cristo. Para mim, é um misto das duas coisas, com predominância da primeira. Claro que os sinóticos também contêm interpretações, porém não é esse o seu foco. Por exemplo, eles citam como Jesus morreu e apareceu aos discípulos depois de três dias, mas pouco ou nada aduzem sobre os efeitos salvíficos desses acontecimentos. Alias, os sinóticos não interpretam o que narram sequer na mesma medida de João.
O autor do quarto Evangelho enxertou (talvez tenha também expandido) discursos não incluídos nos três sinóticos numa estrutura narrativa baseada nas festas e, principalmente, nas Páscoas ministeriais, com o duplo objetivo de narrar e interpretar. Porém, ainda assim, seu propósito principal foi narrar. Daí a escolha da forma literária de evangelho.
Desse modo, as principais explicações do evangelho, no Novo Testamento, permanecem Romanos e Hebreus. Isso basta para nos advertir da importância do apóstolo Paulo para a fé cristã. Para entender o evangelho de Jesus Cristo, do modo como a parábola do semeador recomenda que ele seja entendido e crido, é indispensável voltar a esses livros, isto é, a Paulo.
Verdade é que a forma epistolar e a extensão de Romanos e Hebreus depõem contra a ideia às vezes propalada de que esses textos constituem tratados ou exposições sistemáticas. Porém, na Antiguidade, as exigências para enquadrar obras literárias na categoria do tratado não eram tão inalcançáveis quanto hoje. O tratado antigo era muito distinto do contemporâneo, já que textos relativamente curtos eram, às vezes, chamados tratados. Antes de Paulo, o filósofo grego Epicuro utilizou a forma epistolar para difundir suas ideias: é provável que algumas de suas epístolas tenham sido tratadas como tratados.
Devemos ter Romanos em idêntica conta. Se não é um tratado, essa epístola de Paulo pertence a um gênero literário semelhante. É, ao lado de Hebreus, a mais raciocinada e abrangente exposição do pensamento de um apóstolo, sobre o pecado e sua condenação por Deus. E, do lado positivo, é a mais completa explicação do evangelho, em toda a Bíblia. O que, por si só, lhe garante lugar único, na coleção sagrada.
Os versículos 15 a 17 do capítulo 1 de Romanos ajudam a entender para que fim o tipo literário do tratado foi utilizado por Paulo: “Quanto está em mim, estou pronto a anunciar o evangelho também a vós outros, em Roma. Pois não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego; visto que a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: O justo viverá por fé”.
O contexto desses versículos lembra que Paulo quisera ir a Roma anunciar o evangelho à igreja de lá, mas não pudera colocar em prática seu intento: “Não quero, irmãos, que ignoreis que muitas vezes me propus ir ter convosco, no que tenho sido até agora impedido” (Rm 1:13). Por meio da epístola, ele saldou o débito dessa pregação postergada.
Isso significa que Romanos é uma apresentação completa e, por vezes, até analítica do evangelho de Deus ou, para ser mais exato, dos efeitos da morte e ressurreição de Jesus Cristo. A característica mais importante do texto é o fato de relacionar o evangelho ao pecado. Daí os três primeiros capítulos da epístola, que formam um verdadeiro posfácio ao Antigo Testamento.
E por que o formam? Basicamente, porque a pregação dos profetas produzira, em Israel, um sentimento generalizado de morte e pecado. O autor de Gênesis expressou esse sentimento, ao encerrar sua narrativa com o homem, que Deus criara no capítulo 1, colocado num caixão, no capítulo 50. Não por acaso, o último verso do livro afirma: “Morreu José da idade de cento e dez anos; embalsamaram-no, e o puseram num caixão no Egito” (Gn 50:26). O verso expressa a consciência profunda de seu autor e de toda uma época.
A consciência do pecado, tão disseminada entre os judeus, foi o que levou Paulo a apresentar o “evangelho de Deus” (Rm 1:17). Romanos estende-a tanto aos judeus (de sangue ou convertidos) como aos gentios, embora de modos distintos: “Quando, pois, os gentios, que não têm lei, procedem, por natureza, de conformidade com a lei, não tendo lei, servem eles de lei para si mesmos. Estes mostram a norma da lei gravada no seu coração” (Rm 2:12-14).
Geralmente, o apóstolo se refere aos gentios como “gregos”, o que evoca pessoas que falavam grego ou latim. Em raros momentos, ele se referiu a um terceiro grupo de pessoas, além dos judeus (de sangue e prosélitos) e dos gentios de cultura grecorromana, a saber: os bárbaros. Ele o fez, por exemplo, quando se declarou “devedor tanto a gregos como a bárbaros, tanto a sábios como a ignorantes” (Rm 1: 14). Bárbaros e ignorantes eram pessoas que não pertenciam às culturas adiantadas da época.
Não devemos considerar que os bárbaros fossem as pessoas com a norma da lei inscrita no coração, a que o apóstolo se referiu em Romanos 2:12-14, embora essa afirmativa se aplique, em parte, a eles. Na estrutura de Romanos 1 e 2, tais pessoas eram, basicamente, gentios de povos cultos como os de Roma.
O veredito condenatório de Romanos 1:18—3:18, divide-se, pois, em duas seções: a do versículo 18 do capítulo 1 ao 16 do capítulo 2 e a do verso 17 do segundo capítulo ao 18 do capítulo 3. A primeira seção aplica-se aos povos gentios cultos, pois deles se diz que se tinham inculcado por sábios (Rm 1:22). A segunda seção trata dos judeus. Portanto, os bárbaros parecem excluídos do longo veredito condenatório das duas seções.
Não desejo afirmar que alguém (no caso, os bárbaros) não tenha pecado ou esteja isento da ira de Deus. Mas quero reafirmar que a condenação do pecado por Deus se revela de modos diferentes a grupos também diferentes. Em Romanos 5:13, Paulo afirmou que o pecado não é levado em conta onde não há lei: “Porque até o regime da lei havia pecado no mundo, mas o pecado não é levado em conta quando não há lei”. E em 4:15, escreveu: “pois a lei suscita a ira; mas onde não há lei, também não há transgressão”. Se, entre os seres humanos, os bárbaros são os que têm uma legislação menos desenvolvida e mais diferenciada da lei de Deus no Antigo Testamento, o princípio de Romanos 4:15 e 5:13 aplica-se a eles.
No Antigo Testamento, os profetas tinham vociferado contra os mais diferentes povos, inclusive contra alguns bárbaros. Nenhum desses povos foi proclamado livre do pecado. Essa é uma evidência robusta de que o pecado é universal e abrange tanto judeus como os gentios cultos e bárbaros.
Porém, abrange-os diferentemente. Nenhum profeta igualou totalmente os povos, no tocante ao pecado. Paulo tampouco o faz. Ele se refere a uma pecaminosidade universal, porém não homogênea. Sugere, ao contrário, que a pecaminosidade gentílica é essencialmente heterogênea, ao excluir os bárbaros do veredito condenatório dos três primeiros capítulos de Romanos. Esse é o quadro da pecaminosidade humana traçado por Paulo. O quadro no qual e para o qual ele apresenta o evangelho de Deus.
O tratado supõe a intenção ao de aprofundar e de refinar o pensamento. Não é concebível que Paulo se tenha dado ao trabalho de compor um tratado para afirmar a condenação dos seres humanos de todas as épocas exatamente à mesma pena. Isso ultrapassa muito o propósito do apóstolo. Romanos 1 a 3 descrevem a condição pecaminosa de todos os homens. Não conclui, entretanto, que essa condição seja identicamente desenvolvida em todos os homens.
terça-feira, 13 de novembro de 2012
The Apes' Survey (2): The Peackock's Tail
"This is a time of party,
Time of parted men"
(Carlos Drummond de Andrade)
The march undertaken by Monkey Glass and his group, after the hail of the stones, came to be epic. It exceeded even the Long March led by Mao-Tse-Tung, both in extension and grandeur. And it did not fail to overcome it also in painfulness. However, the beauty of the ways the friends trod, the exotic sensations they experienced and the extent of the discoveries they made redeemed all penalties. The reader will understand why.
When approaching a point where the trees began to thin and a bald plateau replaced the jungle, the four friends met with a Peacock showing its multicolored tail with all nattiness.
- Hail, eminence! greeted the Monkey Glass. What are you doing in these parts? Why are you not inside the forest, which has plenty of trees where you can hide?
- I don’t intend to hide. It never interested me. We, the Peacocks, impose ourselves by the exuberance of our size. The superiority of our plumage, its colorful feature are worth flaunting. Seven feet, I repeat, seven feet is the height we reach with this adornment!
–But what advantage can confer so heavy a tail? Don’t you feel oppressed by its weight? asked Monkey Potsherd, as if he himself cleft under that weight.
–Have you heard of sexual selection? A Man named Darwin showed that, in certain situations, animals have to fight for possession of the opposite sex. Mainly males for females. The result of that clash is sexual selection. Only the most beautiful can conquer the opposite sex, said the Peacock holding up his head with pride.
- Darwin, but Darwin, the great scientist! Potsherd remembered.
– Great, it’s true, retorted the Peacock, with an attitude that could be said of respect or of contempt. Anyway, he continued undaunted:
– Great indeed. But mostly hard working. Men deduce in a strange way. They fancy too much. Darwin was no exception. We, animals, are otherwise. We always think concretely. Therefore, what we conclude is invariably more useful than the vain human reasonings.
–You don’t do justice to men, opposed Monkey Tile. Humans and animals have different modes of reasoning. Neither is superior to the other. The perfection of human thinking is the abstract, the generic. The perfection of animal thought is the concrete and individual.
And he added in the same breath, not to allow the conversation drift from the chosen issue:
- Darwin showed the role of natural selection in evolution. But why is your tail an example of that process?
- Our tail is not preserved by natural selection, but by sexual, corrected the Peacock. They are different things. Some species gain advantage in the struggle for survival, while others are extinguished. Some of the advantages they gain are reproductive, as in the case of the Peacock’s tail, which is infallible in attracting females. That’s the meaning of sexual selection.
- Something intrigues me in your tirade, intervened Earthenware, who had been pondering the assertions and claims of the others. Don’t the species become extinct by major disasters like falling meteors, volcanism, gases released from sea sediments? What was the role either of natural or sexual selection in the definition of the species that survive, under such circumstances?
- In cataclysms, species loss does not occur in the same manner as that of individuals. Individuals are victimized instantly. Species become extinct much more slowly, not due to the disasters themselves, but to environmental changes that follow. So that selection, natural and sexual, not disasters, is what determines the species that survive and those that leave the scene.
- I understand, Earthenware said, just to shoot the discussion in an unexpected direction:
- If environmental transformations cause the extinctions, natural selection cannot work by the struggle for survival. That struggle implies that species deprive each other of the means of survival, as Darwin said: "More individuals are born than can survive." But environmental transformation does not work that way. It introduces mesological conditions unfavorable to all or almost all, which make livelihoods scarce and destroy the species, regardless of their struggle.
By now, the Peacock stated, with the air of one who dismisses a crowd at the conclusion of a ceremony:
– Evolution is conducted within a framework of harmony, not of fighting. The species compete, it’s true, but they also help each other. The forest on whose threshold we are is the best proof of what I say: the beings who live there are not dispersed throughout the world, because gathering together and cooperating with others lead them to thrive.
– The harmony which you mean is not seldom associated with the idea of a Creator, pondered Monkey Glass oblivious of the ceremonial visage of the Peacock. Nature is harmonious because it was designed, created and is maintained by God. But if so, why did men develop their idea of evolution apart from God, or with intent to deny his existence?
When faced with this question, all remained silent. Not only the Peacock and the Monkeys, but the entire nature observed silence. It seemed frozen or stalled out. Monkey Potsherd shivered, in the total absence of sound. After a moment, he thought convenient to tell the Peacock:
- Thank you for reminding us of these things. And for the lesson you taught us...
- You're welcome, the Peacock bluffed, hoping to be rewarded with some insects to devour as a pay for his lecture.
– My explanation was remarkable indeed, continued the Fowl. Honestly, don’t you think I am worthy of one of those honorific awards that human Universities are pleased to grant? I have done more for world culture than many PhD’s!
- Mr Peacock, better consider what you say. You do have merits, but do not grow them beyond the measure, corrected Monkey Tile.
– As a matter of fact, I’m notorious! replied the other.
Definitely, excessive humility was not a defect of the Peacock. As well as he compared his own plumage with that of other beings and found it superior, by a strange kind of extrapolation, he also compared his intellect with those of others and concluded exactly the same. That strange addiction somehow damaged his wits. It hindered him from reasoning, at least in certain directions. So that the Monkeys thought it useless to continue the dialogue with him. They preferred to say goodbye and continue their march.
When leaving, Glass whispered to another:
- The mission we're in is not for whole people. Those who are keep on the forest’s threshold.
And when he said it, they resumed marching.
The dangers of the icy regions peeped at them.
Time of parted men"
(Carlos Drummond de Andrade)
The march undertaken by Monkey Glass and his group, after the hail of the stones, came to be epic. It exceeded even the Long March led by Mao-Tse-Tung, both in extension and grandeur. And it did not fail to overcome it also in painfulness. However, the beauty of the ways the friends trod, the exotic sensations they experienced and the extent of the discoveries they made redeemed all penalties. The reader will understand why.
When approaching a point where the trees began to thin and a bald plateau replaced the jungle, the four friends met with a Peacock showing its multicolored tail with all nattiness.
- Hail, eminence! greeted the Monkey Glass. What are you doing in these parts? Why are you not inside the forest, which has plenty of trees where you can hide?
- I don’t intend to hide. It never interested me. We, the Peacocks, impose ourselves by the exuberance of our size. The superiority of our plumage, its colorful feature are worth flaunting. Seven feet, I repeat, seven feet is the height we reach with this adornment!
–But what advantage can confer so heavy a tail? Don’t you feel oppressed by its weight? asked Monkey Potsherd, as if he himself cleft under that weight.
–Have you heard of sexual selection? A Man named Darwin showed that, in certain situations, animals have to fight for possession of the opposite sex. Mainly males for females. The result of that clash is sexual selection. Only the most beautiful can conquer the opposite sex, said the Peacock holding up his head with pride.
- Darwin, but Darwin, the great scientist! Potsherd remembered.
– Great, it’s true, retorted the Peacock, with an attitude that could be said of respect or of contempt. Anyway, he continued undaunted:
– Great indeed. But mostly hard working. Men deduce in a strange way. They fancy too much. Darwin was no exception. We, animals, are otherwise. We always think concretely. Therefore, what we conclude is invariably more useful than the vain human reasonings.
–You don’t do justice to men, opposed Monkey Tile. Humans and animals have different modes of reasoning. Neither is superior to the other. The perfection of human thinking is the abstract, the generic. The perfection of animal thought is the concrete and individual.
And he added in the same breath, not to allow the conversation drift from the chosen issue:
- Darwin showed the role of natural selection in evolution. But why is your tail an example of that process?
- Our tail is not preserved by natural selection, but by sexual, corrected the Peacock. They are different things. Some species gain advantage in the struggle for survival, while others are extinguished. Some of the advantages they gain are reproductive, as in the case of the Peacock’s tail, which is infallible in attracting females. That’s the meaning of sexual selection.
- Something intrigues me in your tirade, intervened Earthenware, who had been pondering the assertions and claims of the others. Don’t the species become extinct by major disasters like falling meteors, volcanism, gases released from sea sediments? What was the role either of natural or sexual selection in the definition of the species that survive, under such circumstances?
- In cataclysms, species loss does not occur in the same manner as that of individuals. Individuals are victimized instantly. Species become extinct much more slowly, not due to the disasters themselves, but to environmental changes that follow. So that selection, natural and sexual, not disasters, is what determines the species that survive and those that leave the scene.
- I understand, Earthenware said, just to shoot the discussion in an unexpected direction:
- If environmental transformations cause the extinctions, natural selection cannot work by the struggle for survival. That struggle implies that species deprive each other of the means of survival, as Darwin said: "More individuals are born than can survive." But environmental transformation does not work that way. It introduces mesological conditions unfavorable to all or almost all, which make livelihoods scarce and destroy the species, regardless of their struggle.
By now, the Peacock stated, with the air of one who dismisses a crowd at the conclusion of a ceremony:
– Evolution is conducted within a framework of harmony, not of fighting. The species compete, it’s true, but they also help each other. The forest on whose threshold we are is the best proof of what I say: the beings who live there are not dispersed throughout the world, because gathering together and cooperating with others lead them to thrive.
– The harmony which you mean is not seldom associated with the idea of a Creator, pondered Monkey Glass oblivious of the ceremonial visage of the Peacock. Nature is harmonious because it was designed, created and is maintained by God. But if so, why did men develop their idea of evolution apart from God, or with intent to deny his existence?
When faced with this question, all remained silent. Not only the Peacock and the Monkeys, but the entire nature observed silence. It seemed frozen or stalled out. Monkey Potsherd shivered, in the total absence of sound. After a moment, he thought convenient to tell the Peacock:
- Thank you for reminding us of these things. And for the lesson you taught us...
- You're welcome, the Peacock bluffed, hoping to be rewarded with some insects to devour as a pay for his lecture.
– My explanation was remarkable indeed, continued the Fowl. Honestly, don’t you think I am worthy of one of those honorific awards that human Universities are pleased to grant? I have done more for world culture than many PhD’s!
- Mr Peacock, better consider what you say. You do have merits, but do not grow them beyond the measure, corrected Monkey Tile.
– As a matter of fact, I’m notorious! replied the other.
Definitely, excessive humility was not a defect of the Peacock. As well as he compared his own plumage with that of other beings and found it superior, by a strange kind of extrapolation, he also compared his intellect with those of others and concluded exactly the same. That strange addiction somehow damaged his wits. It hindered him from reasoning, at least in certain directions. So that the Monkeys thought it useless to continue the dialogue with him. They preferred to say goodbye and continue their march.
When leaving, Glass whispered to another:
- The mission we're in is not for whole people. Those who are keep on the forest’s threshold.
And when he said it, they resumed marching.
The dangers of the icy regions peeped at them.
sexta-feira, 9 de novembro de 2012
A Crítica Literária
No mundo protestante, é cada vez mais comum as pessoas ignorarem a Crítica desenvolvida, nos últimos 200 anos, à historicidade dos eventos centrais das Escrituras. Devido à gravidade dos temas suscitados pela Crítica, essa resolução tornou-se tão relevante, hoje, quanto a de Lutero ao rejeitar a venda de indulgências, no século XVI, embora com consequências opostas para o progresso do evangelho no mundo.
Tanto a Crítica Histórica como a Literária afirmam que muitos eventos bíblicos não ocorreram ou, ao menos, não ocorreram do modo como as Escrituras os apresentam. Por exemplo, para elas, não houve travessia do Mar Vermelho, talvez não tenha havido sequer um Êxodo ou um Moisés, Jesus não realizou milagres e assim por diante.
Claro que Críticas que reduzem de tal forma a grandeza da Bíblia devem ser tomadas com cuidados, mas isso não significa que se deva simplesmente desconsiderá-las.O silêncio acrítico das Igrejas só seria aceitável, se a identidade histórica do Protestantismo não estivesse tão relacionada às Sagradas Escrituras. Mas a consciência protestante, como se sabe, está enraizada no sola Scriptura e no sola fide como em seu duplo solo natural. Por isso, somos levados a indagar se a atitude de ignorar a Crítica às Escrituras não é, antes de tudo, alienada.
Duas justificativas costumam ser apresentadas para o silêncio das Igrejas a respeito dessa questão. A primeira é a justificativa da fé. As Igrejas creem na inspiração divina da Bíblia, não em descobertas científicas sobre a sua historicidade e autenticidade. A explicação seria aceitável, se a fé importasse a paralisação da razão. Mas não é esse o caso. Portanto, a explicação baseada na fé não convence.
A segunda justificativa consiste em sustentar que bons teólogos evangélicos já ofereceram respostas à Crítica, com o que o problema foi encerrado, do ponto de vista das Igrejas. Mas será que as respostas foram tão superiores às críticas que o tema pode ser desproblematizado ao ponto do silêncio? Não é o que pensam os maiores especialistas no assunto. Considero, portanto, escusado desconfiar também da segunda justificativa do silêncio protestante.
A suspensão da razão em questões cuja importância, no mundo atual, assemelha-se à do heliocentrismo, nos séculos XVI e XVII, é tão perigosa para a causa cristã quanto a abolição da própria fé. Faz tanto sentido ser cristão sem a razão quanto sem a fé. Sobretudo, quando um tópico racional se reveste de importância central, em certo momento histórico. É o caso da interpretação crítica das Escrituras. Se a Bíblia não fosse tão fundamental para a História, a Religião, a Teologia e a Filosofia, o hábito de ignorar a Crítica não seria tão grave. Porém, a importância da Bíblia faz com que modificações profundas na interpretação dela repercutam em áreas tão diversas quanto política, economia, costumes, arte e entretenimento. Consintamos ou não, sintamo-nos ou não confortáveis com isso, o mundo secularizado em que vivemos não deixa de ser consequência de certas releituras bíblicas.
Porém, é espantoso que, em culturas tão profundamente alteradas pela Crítica às Escrituras como as de hoje, pregadores subam ao púlpito para bradar com a veia saltada: “Sola fide!” E para dizer com o autor de Hebreus: “Pela fé, pela fé!”, num contexto em que a fé não tem mais o significado do século I. No entanto, tal estranha situação parece dever-se ainda mais ao povo do que ao púlpito, pois a alienação do trabalho crítico concentra-se no primeiro. Não que a decisão sobre essa primazia importe tanto, já que o povo e o púlpito se reforçam e confirmam mutuamente. O que realmente importa é perguntar se há fé nesse estranho sacrifício da verdade, nessa pura alienação, nesse holocausto da razão protestante. Se concluirmos que há, eis uma fé que mata e não vivifica.
O que se prega dos púlpitos é o que se crê no coração. E o que se crê no coração é o que se vive, bem ou mal. O que significa que a atitude alienada tornou-se a atmosfera protestante. É o ar que respiramos, por toda parte, o firme (ou nem tão firme) pilar dos nossos atuais valores comuns.
Já é tempo de os cristãos pararem de se esconder do fato de que a Bíblia foi desafiada. E de que o duelo em que a envolveram é para vida ou morte. A fé sabe como o duelo terminará. Mas sabe também que o Deus soberano, que o profeta avistou no trono, está a perguntar: ”A quem enviarei (à refrega)?” Sabe, por fim, que o combate que se fere com a espada da alienação não é o que o autor bíblico denominou bom combate. É, antes, o combate ilícito, vedado e interditado.
Os críticos mostraram que houve três Isaías. Três profetas que proferiram cada qual uma parte dos oráculos do livro que tem o seu nome. Há 50 anos, isso era ao menos objeto de menção e contra-argumentação, nas Igrejas evangélicas. Nos seminários, então, nem se diga. Era motivo de mais do que simples menção. Hoje, porém, não há mais preocupação com essas “coisas críticas”. Cobre-se o assunto com os pares de asas dos serafins de Isaías. Sem se perceber que, naquele profeta, as asas eram usadas para cobrir os pés e o rosto dos serafins, não Deus, que está assentado no trono. É o que nos diz o texto da fé. Pergunto-me, com efeito, se cobrir uma das mais autênticas discussões que a humanidade produziu sobre a Bíblia não é cobrir, de algum modo, Deus.
Na visão de Isaías 6, Deus está assentado num alto e sublime trono. Serafins voam acima dele a exclamar: “Santo, santo, santo é o Senhor dos Exércitos; toda a terra está cheia da sua glória”! Quando eles falam, as bases do limiar se movem, e a fumaça enche o templo em que estão. E à cabeça de toda a visão, lê-se: “No ano da morte do rei Uzias, eu vi o Senhor assentado” etc. (Is 6:1).
O contexto invocado pela inscrição não pode ser desprezado. Uzias foi um rei piedoso, mas que cometeu a loucura de entrar no Templo de Deus para queimar incenso, o que lhe era terminantemente vedado. Os livros históricos sugerem que Uzias arrependeu-se desse pecado. Pode parecer que isso encerrou os problemas espirituais da época, como de fato encerrou, mas apenas para ele, individualmente. Não para o povo, coletivamente considerado. Se o rei se transviara e se arrependera, “o povo continuava na prática do mal” (2 Cr 27:2).
O antídoto, o remédio, que Deus apresentou para essa dupla degradação foi a visão de Isaías 6. Qual é o conteúdo dela? É a exaltação de Deus e de mais ninguém. No templo em que Deus está, não há rei ou sacerdote algum. Os serafins não estão diante dele. E por que não estão? Para não o cobrir, pois a glória da cena emana de Deus e somente dele.
Deus não deve ser coberto, assim como tudo o que o expressa. Não é diferente com a interpretação das suas palavras. Ainda que ela pareça desafiar a glória de Deus, enquanto permanecer interpretação e não se tornar invenção, não haverá desafio algum. Quando muito, se houver, será um desafio benigno e consentido, pois o Deus verdadeiro não se importa em ser julgado por um reles homem. Se alguém se arvorar em juiz das palavras divinas, que problema causará a quem não é homem? A quem é a própria verdade? Por isso, “está escrito: Para seres justificado nas tuas palavras, e venhas a vencer quando fores julgado” (Rm 3:4).
O verso não diz: para não seres julgado, mas “para que venhas a vencer quando fores julgado”. É devido o homem julgar a Deus. Indevido é ele se apartar da verdade sobre o seu Criador. É erguer fortalezas contra o conhecimento de Deus. Como se erguem tais fortalezas? Pela incredulidade, dirão. Sem sombra de dúvida. Mas a incredulidade não é o único modo de se erguer fortalezas contra o conhecimento de Deus. A alienação é às vezes mais eficaz do que ela para esse fim. Especialmente a alienação sistemática para com interpretações bíblicas relevantes.
A verdade sobre Deus está na interpretação da Escritura. Se não fosse assim, Abraão não teria dito a Lázaro: “Têm Moisés e os profetas; ouçam-nos” (Lc 16:29). Porém, esse ouvir não é só interpretar. É também não aborrecer o que se descobre no texto interpretado. A desgraça do tempo de Jesus era os intérpretes da lei deterem a chave da ciência e não a usarem (Lc 11:52). Se eram intérpretes, como Jesus os denominou, é certo que interpretavam. Isso era deter a chave. Não abrir a porta com ela era outra coisa. Era alienar-se do que encontravam ao interpretar.
Alienar-se não é apenas se isolar de uma realidade. É ao mesmo tempo perder-se em outra realidade. A blindagem das mentes contra a Crítica Histórica e Literária não é só a perda do que esta descortina, mas a inserção da mente num mundo fantasioso que o sujeito acredita real. Esse desacerto, esse desencontro, entre a consciência e o real, é a alienação. Não vejo outro resultado da prática protestante corrente de se proteger obsessivamente contra a Crítica.
Faríamos melhor se aceitássemos toda luz que a verdade divina reflete, de todas as formas, como na cena de Isaías 6. Esse capítulo é o meio-dia do Antigo Testamento. É a glória divina, shekiná, sem ofuscamentos. Deixar essa glória brilhar em toda a terra não é entregar o templo de Deus a forças estranhas. Só precisamos entender que há uma glória crítica, se a razão humana é a imagem de Deus.
A Bíblia é a palavra de Deus por si só. Não precisou da nossa razão para vir a ser, nem precisará dela para continuar a ser tal palavra. Mas, precisamente por isso, devemos ter o destemor de exercitar a razão para interpretá-la. Se acharmos nela um erro, teremos achado um erro na palavra de Deus, não naquilo que não é a palavra divina. Erro nenhum tem o poder de cancelar essa palavra. Nada tem. É o que João 10:35 afirma. Ou não é? Portanto, independentemente do que façamos ou deixemos de fazer, do que critiquemos ou deixemos de criticar, passarão os céus e a terra, mas essa palavra não passará.
Por esses motivos, a genealogia da Crítica (quero dizer sua origem) não se reporta aos que perderam a fé ao desenvolvê-la, mas aos que ganharam mais fé por a terem desenvolvido. É um erro pensar que a Crítica começou com o Iluminismo. Ela principiou com Orígenes (sugestivo nome!), o mestre cristão do século III, que escreveu: “Uma vez que a finalidade [das Escrituras] é apresentar a coerência das realidades espirituais por meio dos acontecimentos que se produziram [isto é, da História], [...] onde a ação de tal ou qual [personagem], antes descrita, não concordava com ela por causa dos significados mais místicos, a Escritura teceu no relato aquilo que não se passou” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Tratado sobre os princípios. São Paulo: Paulus, 2012. 4º Livro, Cap. 2. p. 300).
Ao afirmar que a Escritura teceu no relato o que não se passou, Orígenes atestou que a Bíblia contém aquilo que os homens denominam erros históricos. E isso “não somente nos livros anteriores à vinda de Cristo [nos quais] o Espírito assim dispôs as coisas, mas, como ele é o mesmo Espírito e provém do mesmo Deus, agiu com os Evangelhos da mesma maneira, e com os [livros dos] apóstolos, pois também neles o relato é por vezes misturado com adendos que foram tecidos segundo o sentido corporal [literal], mas que não correspondem a acontecimentos reais” (idem. pp. 300-301).
Com toda razão, portanto, se deve pensar que o maior precursor e talvez o inventor do método crítico tenha sido Orígenes de Alexandria. Com base nesse método, ele concluiu que apenas um “tolo pensa que, como se fosse um homem agricultor, Deus plantou um paraíso no Éden do lado do Oriente, e nele fez uma árvore da vida visível e sensível, de tal modo que aquele que provasse da sua fruta com dentes corporais receberia a vida” (idem. p. 301). Descobriu ainda que, “se Deus é representado passeando à tarde no jardim, e Adão escondendo-se debaixo da árvore [...] não se pode duvidar de que tudo isso, exposto numa estória que parece que aconteceu, mas não aconteceu corporalmente [literalmente], indica certos mistérios” (idem).
Não se diga que os hereges gnósticos desenvolveram a Crítica antes de Orígenes. Os gnósticos eram ignorantes das Escrituras. Conheciam-nas muito mal. Estavam mais preocupados em devanear e inventar mundos espirituais do que em estudar a Bíblia. É verdade que eles escreveram uma multidão de Evangelhos alternativos, mas isso foi parte dos seus devaneios, não resultado de estudos sérios. Claro que, se confrontaram tanto as Escrituras, desenvolveram também uma crítica, porém não douta.
A Crítica em sentido elevado, profunda, bem informada e erudita, surgiu no contexto de um dos maiores e mais proficientes esforços de investigação da Bíblia de toda a História. Para se ter noção desse esforço, basta lembrar que Orígenes mandou copiar à mão seis versões diferentes do Antigo Testamento, alinhando verso a verso cada tradução, para melhor compará-las. Esse amor à Escritura está na genealogia da Crítica. É o título de propriedade original da fé sobre ela.
Eis, porém, que, nos dias atuais, estranhamente, retiramo-nos da arena onde ruge o combate. Entregamos a arca da Crítica nas mãos do primeiro filisteu que se disponha a levá-la aos seus templos. Alienamos a nossa propriedade e nos alienamos com ela. Que nos falta? Falta-nos a visão de Isaías. A visão de que devemos cobrir-nos, não cobrir a glória de Deus. E de que essa glória não se encontra apenas no templo, não é estreita ou particular, mas enche todo o globo terrestre.
Tanto a Crítica Histórica como a Literária afirmam que muitos eventos bíblicos não ocorreram ou, ao menos, não ocorreram do modo como as Escrituras os apresentam. Por exemplo, para elas, não houve travessia do Mar Vermelho, talvez não tenha havido sequer um Êxodo ou um Moisés, Jesus não realizou milagres e assim por diante.
Claro que Críticas que reduzem de tal forma a grandeza da Bíblia devem ser tomadas com cuidados, mas isso não significa que se deva simplesmente desconsiderá-las.O silêncio acrítico das Igrejas só seria aceitável, se a identidade histórica do Protestantismo não estivesse tão relacionada às Sagradas Escrituras. Mas a consciência protestante, como se sabe, está enraizada no sola Scriptura e no sola fide como em seu duplo solo natural. Por isso, somos levados a indagar se a atitude de ignorar a Crítica às Escrituras não é, antes de tudo, alienada.
Duas justificativas costumam ser apresentadas para o silêncio das Igrejas a respeito dessa questão. A primeira é a justificativa da fé. As Igrejas creem na inspiração divina da Bíblia, não em descobertas científicas sobre a sua historicidade e autenticidade. A explicação seria aceitável, se a fé importasse a paralisação da razão. Mas não é esse o caso. Portanto, a explicação baseada na fé não convence.
A segunda justificativa consiste em sustentar que bons teólogos evangélicos já ofereceram respostas à Crítica, com o que o problema foi encerrado, do ponto de vista das Igrejas. Mas será que as respostas foram tão superiores às críticas que o tema pode ser desproblematizado ao ponto do silêncio? Não é o que pensam os maiores especialistas no assunto. Considero, portanto, escusado desconfiar também da segunda justificativa do silêncio protestante.
A suspensão da razão em questões cuja importância, no mundo atual, assemelha-se à do heliocentrismo, nos séculos XVI e XVII, é tão perigosa para a causa cristã quanto a abolição da própria fé. Faz tanto sentido ser cristão sem a razão quanto sem a fé. Sobretudo, quando um tópico racional se reveste de importância central, em certo momento histórico. É o caso da interpretação crítica das Escrituras. Se a Bíblia não fosse tão fundamental para a História, a Religião, a Teologia e a Filosofia, o hábito de ignorar a Crítica não seria tão grave. Porém, a importância da Bíblia faz com que modificações profundas na interpretação dela repercutam em áreas tão diversas quanto política, economia, costumes, arte e entretenimento. Consintamos ou não, sintamo-nos ou não confortáveis com isso, o mundo secularizado em que vivemos não deixa de ser consequência de certas releituras bíblicas.
Porém, é espantoso que, em culturas tão profundamente alteradas pela Crítica às Escrituras como as de hoje, pregadores subam ao púlpito para bradar com a veia saltada: “Sola fide!” E para dizer com o autor de Hebreus: “Pela fé, pela fé!”, num contexto em que a fé não tem mais o significado do século I. No entanto, tal estranha situação parece dever-se ainda mais ao povo do que ao púlpito, pois a alienação do trabalho crítico concentra-se no primeiro. Não que a decisão sobre essa primazia importe tanto, já que o povo e o púlpito se reforçam e confirmam mutuamente. O que realmente importa é perguntar se há fé nesse estranho sacrifício da verdade, nessa pura alienação, nesse holocausto da razão protestante. Se concluirmos que há, eis uma fé que mata e não vivifica.
O que se prega dos púlpitos é o que se crê no coração. E o que se crê no coração é o que se vive, bem ou mal. O que significa que a atitude alienada tornou-se a atmosfera protestante. É o ar que respiramos, por toda parte, o firme (ou nem tão firme) pilar dos nossos atuais valores comuns.
Já é tempo de os cristãos pararem de se esconder do fato de que a Bíblia foi desafiada. E de que o duelo em que a envolveram é para vida ou morte. A fé sabe como o duelo terminará. Mas sabe também que o Deus soberano, que o profeta avistou no trono, está a perguntar: ”A quem enviarei (à refrega)?” Sabe, por fim, que o combate que se fere com a espada da alienação não é o que o autor bíblico denominou bom combate. É, antes, o combate ilícito, vedado e interditado.
Os críticos mostraram que houve três Isaías. Três profetas que proferiram cada qual uma parte dos oráculos do livro que tem o seu nome. Há 50 anos, isso era ao menos objeto de menção e contra-argumentação, nas Igrejas evangélicas. Nos seminários, então, nem se diga. Era motivo de mais do que simples menção. Hoje, porém, não há mais preocupação com essas “coisas críticas”. Cobre-se o assunto com os pares de asas dos serafins de Isaías. Sem se perceber que, naquele profeta, as asas eram usadas para cobrir os pés e o rosto dos serafins, não Deus, que está assentado no trono. É o que nos diz o texto da fé. Pergunto-me, com efeito, se cobrir uma das mais autênticas discussões que a humanidade produziu sobre a Bíblia não é cobrir, de algum modo, Deus.
Na visão de Isaías 6, Deus está assentado num alto e sublime trono. Serafins voam acima dele a exclamar: “Santo, santo, santo é o Senhor dos Exércitos; toda a terra está cheia da sua glória”! Quando eles falam, as bases do limiar se movem, e a fumaça enche o templo em que estão. E à cabeça de toda a visão, lê-se: “No ano da morte do rei Uzias, eu vi o Senhor assentado” etc. (Is 6:1).
O contexto invocado pela inscrição não pode ser desprezado. Uzias foi um rei piedoso, mas que cometeu a loucura de entrar no Templo de Deus para queimar incenso, o que lhe era terminantemente vedado. Os livros históricos sugerem que Uzias arrependeu-se desse pecado. Pode parecer que isso encerrou os problemas espirituais da época, como de fato encerrou, mas apenas para ele, individualmente. Não para o povo, coletivamente considerado. Se o rei se transviara e se arrependera, “o povo continuava na prática do mal” (2 Cr 27:2).
O antídoto, o remédio, que Deus apresentou para essa dupla degradação foi a visão de Isaías 6. Qual é o conteúdo dela? É a exaltação de Deus e de mais ninguém. No templo em que Deus está, não há rei ou sacerdote algum. Os serafins não estão diante dele. E por que não estão? Para não o cobrir, pois a glória da cena emana de Deus e somente dele.
Deus não deve ser coberto, assim como tudo o que o expressa. Não é diferente com a interpretação das suas palavras. Ainda que ela pareça desafiar a glória de Deus, enquanto permanecer interpretação e não se tornar invenção, não haverá desafio algum. Quando muito, se houver, será um desafio benigno e consentido, pois o Deus verdadeiro não se importa em ser julgado por um reles homem. Se alguém se arvorar em juiz das palavras divinas, que problema causará a quem não é homem? A quem é a própria verdade? Por isso, “está escrito: Para seres justificado nas tuas palavras, e venhas a vencer quando fores julgado” (Rm 3:4).
O verso não diz: para não seres julgado, mas “para que venhas a vencer quando fores julgado”. É devido o homem julgar a Deus. Indevido é ele se apartar da verdade sobre o seu Criador. É erguer fortalezas contra o conhecimento de Deus. Como se erguem tais fortalezas? Pela incredulidade, dirão. Sem sombra de dúvida. Mas a incredulidade não é o único modo de se erguer fortalezas contra o conhecimento de Deus. A alienação é às vezes mais eficaz do que ela para esse fim. Especialmente a alienação sistemática para com interpretações bíblicas relevantes.
A verdade sobre Deus está na interpretação da Escritura. Se não fosse assim, Abraão não teria dito a Lázaro: “Têm Moisés e os profetas; ouçam-nos” (Lc 16:29). Porém, esse ouvir não é só interpretar. É também não aborrecer o que se descobre no texto interpretado. A desgraça do tempo de Jesus era os intérpretes da lei deterem a chave da ciência e não a usarem (Lc 11:52). Se eram intérpretes, como Jesus os denominou, é certo que interpretavam. Isso era deter a chave. Não abrir a porta com ela era outra coisa. Era alienar-se do que encontravam ao interpretar.
Alienar-se não é apenas se isolar de uma realidade. É ao mesmo tempo perder-se em outra realidade. A blindagem das mentes contra a Crítica Histórica e Literária não é só a perda do que esta descortina, mas a inserção da mente num mundo fantasioso que o sujeito acredita real. Esse desacerto, esse desencontro, entre a consciência e o real, é a alienação. Não vejo outro resultado da prática protestante corrente de se proteger obsessivamente contra a Crítica.
Faríamos melhor se aceitássemos toda luz que a verdade divina reflete, de todas as formas, como na cena de Isaías 6. Esse capítulo é o meio-dia do Antigo Testamento. É a glória divina, shekiná, sem ofuscamentos. Deixar essa glória brilhar em toda a terra não é entregar o templo de Deus a forças estranhas. Só precisamos entender que há uma glória crítica, se a razão humana é a imagem de Deus.
A Bíblia é a palavra de Deus por si só. Não precisou da nossa razão para vir a ser, nem precisará dela para continuar a ser tal palavra. Mas, precisamente por isso, devemos ter o destemor de exercitar a razão para interpretá-la. Se acharmos nela um erro, teremos achado um erro na palavra de Deus, não naquilo que não é a palavra divina. Erro nenhum tem o poder de cancelar essa palavra. Nada tem. É o que João 10:35 afirma. Ou não é? Portanto, independentemente do que façamos ou deixemos de fazer, do que critiquemos ou deixemos de criticar, passarão os céus e a terra, mas essa palavra não passará.
Por esses motivos, a genealogia da Crítica (quero dizer sua origem) não se reporta aos que perderam a fé ao desenvolvê-la, mas aos que ganharam mais fé por a terem desenvolvido. É um erro pensar que a Crítica começou com o Iluminismo. Ela principiou com Orígenes (sugestivo nome!), o mestre cristão do século III, que escreveu: “Uma vez que a finalidade [das Escrituras] é apresentar a coerência das realidades espirituais por meio dos acontecimentos que se produziram [isto é, da História], [...] onde a ação de tal ou qual [personagem], antes descrita, não concordava com ela por causa dos significados mais místicos, a Escritura teceu no relato aquilo que não se passou” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Tratado sobre os princípios. São Paulo: Paulus, 2012. 4º Livro, Cap. 2. p. 300).
Ao afirmar que a Escritura teceu no relato o que não se passou, Orígenes atestou que a Bíblia contém aquilo que os homens denominam erros históricos. E isso “não somente nos livros anteriores à vinda de Cristo [nos quais] o Espírito assim dispôs as coisas, mas, como ele é o mesmo Espírito e provém do mesmo Deus, agiu com os Evangelhos da mesma maneira, e com os [livros dos] apóstolos, pois também neles o relato é por vezes misturado com adendos que foram tecidos segundo o sentido corporal [literal], mas que não correspondem a acontecimentos reais” (idem. pp. 300-301).
Com toda razão, portanto, se deve pensar que o maior precursor e talvez o inventor do método crítico tenha sido Orígenes de Alexandria. Com base nesse método, ele concluiu que apenas um “tolo pensa que, como se fosse um homem agricultor, Deus plantou um paraíso no Éden do lado do Oriente, e nele fez uma árvore da vida visível e sensível, de tal modo que aquele que provasse da sua fruta com dentes corporais receberia a vida” (idem. p. 301). Descobriu ainda que, “se Deus é representado passeando à tarde no jardim, e Adão escondendo-se debaixo da árvore [...] não se pode duvidar de que tudo isso, exposto numa estória que parece que aconteceu, mas não aconteceu corporalmente [literalmente], indica certos mistérios” (idem).
Não se diga que os hereges gnósticos desenvolveram a Crítica antes de Orígenes. Os gnósticos eram ignorantes das Escrituras. Conheciam-nas muito mal. Estavam mais preocupados em devanear e inventar mundos espirituais do que em estudar a Bíblia. É verdade que eles escreveram uma multidão de Evangelhos alternativos, mas isso foi parte dos seus devaneios, não resultado de estudos sérios. Claro que, se confrontaram tanto as Escrituras, desenvolveram também uma crítica, porém não douta.
A Crítica em sentido elevado, profunda, bem informada e erudita, surgiu no contexto de um dos maiores e mais proficientes esforços de investigação da Bíblia de toda a História. Para se ter noção desse esforço, basta lembrar que Orígenes mandou copiar à mão seis versões diferentes do Antigo Testamento, alinhando verso a verso cada tradução, para melhor compará-las. Esse amor à Escritura está na genealogia da Crítica. É o título de propriedade original da fé sobre ela.
Eis, porém, que, nos dias atuais, estranhamente, retiramo-nos da arena onde ruge o combate. Entregamos a arca da Crítica nas mãos do primeiro filisteu que se disponha a levá-la aos seus templos. Alienamos a nossa propriedade e nos alienamos com ela. Que nos falta? Falta-nos a visão de Isaías. A visão de que devemos cobrir-nos, não cobrir a glória de Deus. E de que essa glória não se encontra apenas no templo, não é estreita ou particular, mas enche todo o globo terrestre.
terça-feira, 6 de novembro de 2012
The Apes' Survey (1): A Ray of Light
"The door of truth
Was open
But it would let go
Only half a person at a time"
(Carlos Drummond de Andrade)
The morning shone like a diamond coming out of the hands of the goldsmith. The atmosphere was endowed with most perfect transparency. Crossing in an instant its vast parts as if they were unextended, sunlight reached the forest, where countless species shared the gifts of existence. Smells exotic and abundant fragrances scattered throughout the air of that idyllic place, as their inhabitants went ecstatic with the unspeakable splendor of the morning. A vigorous animation, an unusual élan filled up even the most languid beings, encouraging and almost ordering them that games were organized, exercises were performed, and all animals were engaged in dialogues, in order to crown with words the ultimate scene.
Of the animals who had built their home in the woods, only one enjoyed the prominence of a tacit royalty. And it was not the Lion, as one might guess, but the Monkey. The fine intelligence, the ability to think about life without getting lost in abstractions, together with the dexterity to perform what mind discovers, were the invisible scepter that lent the Monkey his undisputed royalty.
However, that morning, His Majesty contrasted with other inhabitants of the impressive green spaces that breathed in and out rhythmically. It is true that, like all other beings that lived in the woods, the thinker of the forest also felt inspired, even intoxicated, as one might say, by the spell emanating from every secret of the gigantic green. But unlike all other animals, the Monkey had a puzzled air, as he stared a beam of light, which materialized into a bundle of rays with an aspect of mist, which passed through the trees and reflected on the quiet surface of a puddle.
The Monkey said to the Nightingale, who had landed in a clearing next to him:
- Friend, you who are expert in the art of singing, but sing always hidden, tell me: why does light, which always displays itself in the firmament, hides like a Bird in this dark forest? What causes the being that reveals everything to conceal itself in the woods?
- Who calls me? Who speaks to me? Nightingale asked suspiciously. You, Monkey, you call me? What's your name?
- Monkey Glass is my name.
- How? Monkey what?
- Glass, noble singer. Monkey Glass.
- Oh, Glass! And who gave you such a weird name?
- My parents did. It could hardly be otherwise. It is an ancestral custom for Simian parents to nominate their children. Since the anthropoids differed from other primates, it has been so.
- Who were those other primates? asked the surprised Bird.
– Their name already tells us: they were primordial cousins to the Apes. But tell me why light which exhibits everything everywhere is pleased to hide in this forest? I'll simplify the question: why this beam of light hits the puddle?
- Oh, now I understand... You mean that puddle, don’t you? The light hits it, because it is on its way, said the Nightingale in a very meditative way.
- Of that I am deeply convinced, replied the caller. What encourages my intellect is not such things. It is rather the fluctuation of order. How can light, which sprinkles so freely in the ether, get trapped in the labyrinth of the woods?
- Oh, that I cannot answer, admitted the Nightingale. My flights are slow and low. I just can’t follow the light on its journeys, to unravel its mysteries and understand the whys of its trajectories.
At the sight of Monkey Glass discussing these things with the Nightingale, a group of Simian approached. Startled, the Nightingale flapped, and hid in a tree. The group was formed by three anthropoids: Monkey Tile, Monkey Earthenware and Monkey Potsherd. The first one asked:
- Brother, what were you talking with that Bird?
– How good it is you ask me! I really need to talk to you, said Monkey Glass. I'm in a dilemma. The other day I found a Monkey who had fled from the Research Center. He was beside himself. For a long time, he and other Monkeys were studied, even tortured by researchers who sought for drugs to combat human diseases.
– Really? exclaimed Monkey Tile. And why were they testing drugs for Men in Simian?
- Because of the genetic similarity between primate species, said Glass. Not to kill and torture other Men with dangerous drugs, they killed and tortured Monkeys!
– Blow me down! How can Men reach such extremes! How dare commit such atrocities! cried Monkey Tile in a fit of rage. Gradually, however, he softened and finished up:
- It is the old story of the genetic similarity between Men and Apes! They have cast this fame, this stigma, on us for almost 200 years! Still not enough and they begin to torture us and kill us, to understand how their organism works. That’s the limit! Human science has come to the apex of its contradictions...
- Exactly! I agree with what you say, interrupted Monkey Glass. I busied myself with these thoughts all morning. Enough of daydreaming about the similarity of Men and Apes! It's time to settle the issue. It's time to discover if Men and Apes have the same ancestry.
- Bravo! Monkey Potsherd shouted. They are totally unaware of the simian condition, of the hardships involved in being a Monkey. And regardless of it, they claim to be our relatives and start to kill us. Let's move to settle this matter, from beginning to end. Comrades, we must unite to investigate our origins!
Monkey Earthenware pondered:
- Men not even solved all the issue of their ancestry. They have discussed it for centuries, without reaching a consensus on important points. Cannot wait them do so. Let us do it ourselves. Let’s complete the survey they started.
- Bravo, bravo! shouted in unison the three other Apes.
At that exact moment, the stones that were around cried:
- It was time! It was time to do something, lest all animals in the world suffer the same abuses, lest the whole jungle is devastated!
The unexpected cry of the rocks shocked all forest dwellers. More than others, however, the four Monkeys were stunned. A few minutes later they recovered, and reflected about the scream that had hit their ears. They concluded that the stones actively supported their initiative, yet they censored the delay in taking it.
Then, the four beasts entered into a commitment. They vowed to spend all the effort they could to investigate and clarify, thoroughly, the riddle of their origin. Where did the Apes come from? How did they originate? Henceforth, those would be the questions they would strive to answer, at any cost.
And they devised a plan for that. They would go on a trip to the most diverse environments at their reach to seek answers to the questions just proposed. They would travel to a large glacier, a desert, a coastal forest and the seashore, to research and perhaps understand what causes life to arise and develop.
Thus, the door of truth opened to four new halves. Maybe they would become the first Apes to go through it. Anyway, our four friends dubbed "the great survey" the vast undertaking they had conceived. A typical human scholar would call it a Kafkaesque case.
Was open
But it would let go
Only half a person at a time"
(Carlos Drummond de Andrade)
The morning shone like a diamond coming out of the hands of the goldsmith. The atmosphere was endowed with most perfect transparency. Crossing in an instant its vast parts as if they were unextended, sunlight reached the forest, where countless species shared the gifts of existence. Smells exotic and abundant fragrances scattered throughout the air of that idyllic place, as their inhabitants went ecstatic with the unspeakable splendor of the morning. A vigorous animation, an unusual élan filled up even the most languid beings, encouraging and almost ordering them that games were organized, exercises were performed, and all animals were engaged in dialogues, in order to crown with words the ultimate scene.
Of the animals who had built their home in the woods, only one enjoyed the prominence of a tacit royalty. And it was not the Lion, as one might guess, but the Monkey. The fine intelligence, the ability to think about life without getting lost in abstractions, together with the dexterity to perform what mind discovers, were the invisible scepter that lent the Monkey his undisputed royalty.
However, that morning, His Majesty contrasted with other inhabitants of the impressive green spaces that breathed in and out rhythmically. It is true that, like all other beings that lived in the woods, the thinker of the forest also felt inspired, even intoxicated, as one might say, by the spell emanating from every secret of the gigantic green. But unlike all other animals, the Monkey had a puzzled air, as he stared a beam of light, which materialized into a bundle of rays with an aspect of mist, which passed through the trees and reflected on the quiet surface of a puddle.
The Monkey said to the Nightingale, who had landed in a clearing next to him:
- Friend, you who are expert in the art of singing, but sing always hidden, tell me: why does light, which always displays itself in the firmament, hides like a Bird in this dark forest? What causes the being that reveals everything to conceal itself in the woods?
- Who calls me? Who speaks to me? Nightingale asked suspiciously. You, Monkey, you call me? What's your name?
- Monkey Glass is my name.
- How? Monkey what?
- Glass, noble singer. Monkey Glass.
- Oh, Glass! And who gave you such a weird name?
- My parents did. It could hardly be otherwise. It is an ancestral custom for Simian parents to nominate their children. Since the anthropoids differed from other primates, it has been so.
- Who were those other primates? asked the surprised Bird.
– Their name already tells us: they were primordial cousins to the Apes. But tell me why light which exhibits everything everywhere is pleased to hide in this forest? I'll simplify the question: why this beam of light hits the puddle?
- Oh, now I understand... You mean that puddle, don’t you? The light hits it, because it is on its way, said the Nightingale in a very meditative way.
- Of that I am deeply convinced, replied the caller. What encourages my intellect is not such things. It is rather the fluctuation of order. How can light, which sprinkles so freely in the ether, get trapped in the labyrinth of the woods?
- Oh, that I cannot answer, admitted the Nightingale. My flights are slow and low. I just can’t follow the light on its journeys, to unravel its mysteries and understand the whys of its trajectories.
At the sight of Monkey Glass discussing these things with the Nightingale, a group of Simian approached. Startled, the Nightingale flapped, and hid in a tree. The group was formed by three anthropoids: Monkey Tile, Monkey Earthenware and Monkey Potsherd. The first one asked:
- Brother, what were you talking with that Bird?
– How good it is you ask me! I really need to talk to you, said Monkey Glass. I'm in a dilemma. The other day I found a Monkey who had fled from the Research Center. He was beside himself. For a long time, he and other Monkeys were studied, even tortured by researchers who sought for drugs to combat human diseases.
– Really? exclaimed Monkey Tile. And why were they testing drugs for Men in Simian?
- Because of the genetic similarity between primate species, said Glass. Not to kill and torture other Men with dangerous drugs, they killed and tortured Monkeys!
– Blow me down! How can Men reach such extremes! How dare commit such atrocities! cried Monkey Tile in a fit of rage. Gradually, however, he softened and finished up:
- It is the old story of the genetic similarity between Men and Apes! They have cast this fame, this stigma, on us for almost 200 years! Still not enough and they begin to torture us and kill us, to understand how their organism works. That’s the limit! Human science has come to the apex of its contradictions...
- Exactly! I agree with what you say, interrupted Monkey Glass. I busied myself with these thoughts all morning. Enough of daydreaming about the similarity of Men and Apes! It's time to settle the issue. It's time to discover if Men and Apes have the same ancestry.
- Bravo! Monkey Potsherd shouted. They are totally unaware of the simian condition, of the hardships involved in being a Monkey. And regardless of it, they claim to be our relatives and start to kill us. Let's move to settle this matter, from beginning to end. Comrades, we must unite to investigate our origins!
Monkey Earthenware pondered:
- Men not even solved all the issue of their ancestry. They have discussed it for centuries, without reaching a consensus on important points. Cannot wait them do so. Let us do it ourselves. Let’s complete the survey they started.
- Bravo, bravo! shouted in unison the three other Apes.
At that exact moment, the stones that were around cried:
- It was time! It was time to do something, lest all animals in the world suffer the same abuses, lest the whole jungle is devastated!
The unexpected cry of the rocks shocked all forest dwellers. More than others, however, the four Monkeys were stunned. A few minutes later they recovered, and reflected about the scream that had hit their ears. They concluded that the stones actively supported their initiative, yet they censored the delay in taking it.
Then, the four beasts entered into a commitment. They vowed to spend all the effort they could to investigate and clarify, thoroughly, the riddle of their origin. Where did the Apes come from? How did they originate? Henceforth, those would be the questions they would strive to answer, at any cost.
And they devised a plan for that. They would go on a trip to the most diverse environments at their reach to seek answers to the questions just proposed. They would travel to a large glacier, a desert, a coastal forest and the seashore, to research and perhaps understand what causes life to arise and develop.
Thus, the door of truth opened to four new halves. Maybe they would become the first Apes to go through it. Anyway, our four friends dubbed "the great survey" the vast undertaking they had conceived. A typical human scholar would call it a Kafkaesque case.
sexta-feira, 2 de novembro de 2012
O Romance da Filosofia (12): A Encarnação das Ideias
Ao giro copernicano proposto por Kant, no âmbito da Filosofia, seguiu-se outro, anticopernicano e reacionário, no da política europeia. Após a derrota de Napoleão, na campanha da Rússia, em 1812, e o fim da difusão dos ideais da Revolução Francesa que aquele estadista representou, uma onda de restaurações do Antigo Regime varreu a Europa.
Esses movimentos envolveram não só o retorno de dinastias antigas ao poder, mas o restabelecimento de um tipo autoritário de sociedade empregado com relativo sucesso para “manter a ordem”, durante milênios. É inegável que o uso da autoridade, nesses casos, infligiu um sacrifício brutal de vidas e de bem-estar às populações, mas não se pode deixar de notar que, embora comprada a esse preço, a “manutenção da ordem" continuou a parecer indispensável ao menos às pessoas que assistiram aos sacrifícios sem os padecer. É que a ordem sempre foi, para as sociedades, o que a sobrevivência é para a natureza. Assim como os animais lutam e não podem senão lutar pela sobrevivência, as sociedades combatem e têm de combater para não se romperem, ou seja, para manterem sua ordem interna.
No entanto, nenhuma condição histórica é como outra natural. Nenhuma condição histórica é eterna ou está fadada a um destino único e inevitável. Cedo ou tarde, soa sua hora final, e a vida tem de ser reinventada, pelos homens, senão com liberdade plena, ao menos sob condições históricas totalmente novas. A era moderna foi o início dessa hora, para a civilização ocidental. Nela, os povos começaram a notar a possibilidade de manterem a ordem sem o sacrifício de vidas e bem-estar oferecido durante tanto tempo. E compreenderam que valia a pena lutar por isso.
Mas como é difícil reinventar a vida humana! A cada grande avanço, seguem-se retrocessos. Foi o que se verificou na Europa, com o fim da Revolução Francesa, até que a modernização fosse retomada com os movimentos de 1848, a Comuna de 1870 e o avanço do pensamento socialista. Nesse intervalo encravado na Era das Revoluções, manifestou-se um violento movimento de reação às ideias de 1789 e à renovação da vida social. No campo da Filosofia, essa reação expressou-se de modo particularmente significativo no pensamento de Georg Wilhelm Friedrich Hegel.
Popper recorda: “O autoritarismo medieval começou a dissolver-se com o Renascimento. Mas, no continente europeu, a sua réplica política, o feudalismo medieval, não fora seriamente ameaçado antes da Revolução Francesa. (A Reforma apenas o fortalecera.) A luta pela sociedade aberta só voltou a começar com as ideias de 1789, e as monarquias feudais logo sentiram a seriedade desse perigo. Quando, em 1815, o partido reacionário começou a retomar o poder na Prússia, achou-se na extrema necessidade de uma ideologia. Hegel foi indicado para suprir essa necessidade” (POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. São Paulo: USP/Itatiaia, 1987. Tomo 2, p. 37).
O mesmo autor mostra que a filosofia política de Hegel foi moldada aos objetivos da dinastia no poder, na Prússia: “O coletivismo radical de Hegel depende tanto de Platão quanto depende de Frederico Guilherme II, rei da Prússia, no período crítico durante e após a Revolução Francesa. Sua doutrina é a de que o estado é tudo, e o indivíduo, nada, pois deve tudo ao estado, tanto sua existência física como espiritual” (idem. pp. 37-38). É algo evidente que essa doutrina foi forjada, por Hegel, para prestigiar as ambições de poder de Frederico.
Tal gênese política não é exclusiva da filosofia de Hegel. Pelo contrário, perpassa toda a Filosofia Moderna. Onde a separação entre Igreja e Estado implantou-se, a Filosofia deixou de derivar da fé para derivar do poder. A particularidade de Hegel foi a sua ligação com o soberano. Outros pensadores modernos associaram-se mais a instituições e partidos do que a líderes. Mas o comum a todos é que, ao se desconectarem da fé, aliaram-se ao poder. Não é demasiado cogitar que, sob essas novas condições, ao se emancipar da Teologia, a Filosofia não adquiriu o almejável status libertatis: antes, tornou-se escrava da política. E poucas vezes esse seu novo modo de ser foi visto em estado tão puro quanto em Hegel.
Cabe indagar, nesse caso: e o mérito interno da filosofia hegeliana? E o gênio desse pensador? Não foram determinantes para o enorme sucesso alcançado por ele? As opiniões variam muito a esse respeito. Schopenhauer, que o conheceu pessoalmente, declarou: “Hegel foi imposto de cima pelos poderes vigentes como o Grande Filósofo oficializado”. Notem bem as maiúsculas.
O contemporâneo de Hegel continua a descrevê-lo um tanto impiedosamente: “Era um charlatão de cérebro estreito, insípido, nauseante, ignorante, que alcançou o pináculo da audácia por garatujar e forjicar as mais malucas e mistificantes tolices” (SCHOPENHAUER, Arthur. Obras. Vol. II, p. 17).
O pior é que um filósofo como Popper, em vez de discordar desse parecer, ratificou-o. Para Popper, a mediocridade de Hegel como filósofo levou-o a lançar mão de uma linguagem às vezes impenetrável e propositadamente ininteligível. Motivada por mediocridade ou grandeza (não é o que mais importa), a ininteligibilidade permanece um fato. Popper deu dela o seguinte exemplo: “Escreve [Hegel]: O som é a mudança verificada na condição específica de segregação das partes materiais e na negação dessa condição; é meramente uma idealidade abstrata ou ideal, por assim dizer, dessa especificação. Mas essa mudança, em consequência, é imediatamente em si mesma a negação da subsistência específica material; o que é, portanto, a idealidade real da gravidade específica e da coesão, isto é, o calor. O aquecimento de corpos sonoros, assim como dos percutidos ou atritados, é a aparência de calor que se origina conceitualmente juntamente com o som” (POPPER, Karl. Ob. cit. p. 43). Uma verdadeira conversa de Caetano e Gil, nos bons tempos de Chico Anysio...
Mas é preciso pôr freio à muita radicalização. Às atribuições de mediocridade filosófica e às acusações congêneres, em que Schopenhauer e Popper incidem. Autor prolífico, dono de erudição incontestável e genuinamente interessado em questões metafísicas, Hegel foi grande a ponto de merecer sua inclusão na História da Filosofia, independentemente das relações que manteve com o poder em sua época. É preciso, porém, diferenciar grandeza de espírito do que se pode talvez denominar retidão filosófica. Não faltou grandeza intelectual a Hegel, mas lhe faltaram retidão e lisura. Hegel abusou conscientemente do hermetismo, do esoterismo, do solipsismo linguístico. Empregou toda sorte de artifícios para dobrar os espíritos. Teve lapsos de megalomania. E exerceu um poder brutal por meio do conhecimento.
Enfim, a proximidade do poder absoluto não caiu bem a Hegel. A frase de Lord Acton ressoa, nesse caso, como o grito abafado de um fantasma: “O poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente”. O poder absoluto parece ter corrompido absolutamente a filosofia do grande Hegel.
Examinemos, porém, mais de perto, as linhas mestras do pensar desse filósofo e sofista. O ponto de partida de Hegel, sua verdade inicial e inamovível são as ideias platônicas. Ele percebe que, concebidas à maneira de Platão, as ideias se tornam inconciliáveis com o materialismo que impregna tanto o senso comum quanto a ciência. Parte, pois, do velho pressuposto de que, se as ideias existem, a matéria não pode ser considerada a realidade fundamental. E, para combater os vícios materialistas arraigados em toda cultura, recomenda o remédio da dialética.
Que originalidade há nesse ponto de partida da filosofia de Hegel? Nenhuma. É platonismo puro. Que mérito há nele, além da inventividade palpável? Bem pouco, pois vimos que a atribuição de realidade às ideias não é mais que um vício do pensamento. E o método dialético: introduz algo novo? Sim, a contradição. Para Hegel, a contradição pode parecer ausente do mundo, somente quando o imobilizamos. No seu fluir, o real é pura e simples contradição, pois as coisas sempre fluem para o oposto: o que é quente esfria-se, o que se move, desacelera-se e tende ao repouso, o que vive caminha para a morte. Fluir é mover-se em direção ao oposto. Portanto, se a imobilidade é substancial, o movimento é dialético. Claro: esquecia-me de mencionar que Platão já dera essa descrição do movimento, na passagem do Fédon em que mencionou "o princípio geral da geração, segundo o qual das coisas contrárias é que nascem as coisas que lhes são opostas [...] O mesmo acontece com aquilo que se chama misturar-se, separar-se, aquecer, esfriar, e todas as outras coisas" (PLATÃO. Fédon. In Diálogos. São Paulo: Hemus. p. 118).
O problema é que o senso comum e a ciência baseiam-se no princípio de não contradição, que não pode ser aplicado ao que é precisamente contraditório. Isso não implica menos que a falsidade de todo o senso comum e de toda a ciência. De sorte que é preciso forjar outra lógica dos movimentos reais, que Hegel chama dialética.
Em que consiste essa lógica? Que procedimentos assinalam o pensar dialético? Hegel ensina que a dialética é o movimento em que as ideias (que ele denomina Absoluto) refletem-se em si mesmas. O primeiro momento dessa reflexão é a configuração das ideias em si. O segundo é o seu movimento para fora de si, que envolve a sua negação (contradição). Por fim, o terceiro momento é o retorno das ideias a si.
O primeiro momento dialético tem como resultado líquido o que Hegel denomina Ideia; o segundo gera a Natureza, em que as ideias adquirem um corpo, portanto se encarnam; por fim, o terceiro momento resulta no Espírito. Embora constitua um retorno da ideia a si mesma, o Espírito não se realiza numa sobrenatureza, mas na História (isto é, na Prússia!).
Hegel vai além. Enuncia três leis, que presidem os movimentos do real nos vários momentos dialéticos. A primeira lei é a da transformação da quantidade em qualidade e vice-versa. O aumento da quantidade de qualquer elemento de um ser, além de determinado limite, produz uma transformação qualitativa. Friedrich Engels deu o seguinte exemplo da atuação dessa lei: “Se três átomos [de oxigênio] se agruparem em uma molécula, em vez dos dois átomos habituais [que formam o oxigênio], teremos o ozônio, corpo muito diferente do oxigênio ordinário, quer por sua cor, quer por sua ação” (ENGELS, Friedrich. A dialética da natureza. 6ª ed., São Paulo Paz e Terra, 2000. p. 37).
A segunda lei, por sua vez, enuncia a interpenetração e a conversibilidade dos opostos. Isso porque, para passar de uma coisa ao seu oposto, é preciso que a primeira contenha o último e vice-versa. A segunda lei explica os movimentos atrativos dos opostos, assim como os das cargas que se atraem, por tenderem ao estado uma da outra.
Por fim, a terceira lei dialética assevera que a toda negação corresponde outra de sentido contrário. Não se pode deixar de ver, nessa lei, uma generalização da ação e reação enunciadas por Newton: a toda ação corresponde uma reação de mesma intensidade e sentido contrário. Com a única ressalva de que Hegel vê a ação como uma primeira negação destinada a ser, ela própria, negada. Devido à terceira lei, tudo tende a retornar à sua forma originária.
Não convém passarmos sem um exemplo da terceira lei: "Se [um grão de cevada] cai em solo adequado e sofre as transformações certas por influência da umidade e do calor, o grão em questão germina. Isso significa que o grão deixa de existir. Ele é negado. No seu lugar, surge uma planta, que é a negação do grão. Qual é, entretanto, o processo normal de vida dessa planta? Ela cresce, floresce, é fertilizada e, ao final, produz outros grãos de cevada. Tão-logo amadurecem, estes últimos grãos, por sua vez, também morrem. Também eles são negados. Em consequência desta negação da negação, temos de novo um grão de cevada, não mais, aliás, um grão individual, mas dez, vinte, trinta deles" (ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring. Chapter 13. Disponível em: http://www.marxists.org). O exemplo é tão eloquente quanto claro. E tem a indefectível vantagem do ar de parábola materialista...
Não há distância intransponível entre a realização dialética das ideias, em Hegel, e a processão de todas as coisas a partir do Uno, em Plotino. Pelo contrário, há imitação desta doutrina naquela. A Ideia resultante do primeiro momento dialético não é muito diferente do Espírito e da Alma plotinianos. A Natureza de Hegel é a matéria plotiniana. E o Espírito é o retorno das coisas ao Uno.
Verdade é que os esquemas também apresentam certas diferenças. Além dos nomes variantes que atribuem aos momentos do devir geral, para Hegel, todas as etapas do movimento dialético são positivas. Ou, para dizê-lo melhor, cada etapa representa uma autorrealização mais plena do ser. Já para Plotino, a processão é um movimento decadente, até o abismo da matéria. Só o retorno ao Uno é ascendente.
Mas essas diferenças perfunctórias escondem a similitude profunda dos dois esquemas. A criatividade da dialética de Hegel é a de Plotino, retocada aqui e ali. O único problema é que elas padecem de um mal idêntico ao de todos os grandes sonhos: não são reais. Pior: tomam a ilusão por verdade, o vulto por corpo, a sombra por luz. Se isso é admissível na arte, na ciência é fatal.
Verdade é que Plotino e Hegel têm a favor de si uma atividade criadora de mundos sem paralelo na História do Pensamento, uma vocação demiúrgica que lhes escorre dos poros. Enfim, um método de realização que parece assimilado da encarnação do Logos no cristianismo. Mas que haveremos de replicar a um velho marxista rebelde que, parodiando, sugerir que Cristo trouxe à luz a tragédia, Plotino, a farsa, e a Hegel restou matar-nos de rir com a comédia?
Em Hegel, a Filosofia faz-se comédia. Platão fornece a matéria da mais pura objetivação das ideias; como um novo Plauto, Hegel lhes sopra a forma que, na História, não lhes tinha sido antes atribuída.
Esses movimentos envolveram não só o retorno de dinastias antigas ao poder, mas o restabelecimento de um tipo autoritário de sociedade empregado com relativo sucesso para “manter a ordem”, durante milênios. É inegável que o uso da autoridade, nesses casos, infligiu um sacrifício brutal de vidas e de bem-estar às populações, mas não se pode deixar de notar que, embora comprada a esse preço, a “manutenção da ordem" continuou a parecer indispensável ao menos às pessoas que assistiram aos sacrifícios sem os padecer. É que a ordem sempre foi, para as sociedades, o que a sobrevivência é para a natureza. Assim como os animais lutam e não podem senão lutar pela sobrevivência, as sociedades combatem e têm de combater para não se romperem, ou seja, para manterem sua ordem interna.
No entanto, nenhuma condição histórica é como outra natural. Nenhuma condição histórica é eterna ou está fadada a um destino único e inevitável. Cedo ou tarde, soa sua hora final, e a vida tem de ser reinventada, pelos homens, senão com liberdade plena, ao menos sob condições históricas totalmente novas. A era moderna foi o início dessa hora, para a civilização ocidental. Nela, os povos começaram a notar a possibilidade de manterem a ordem sem o sacrifício de vidas e bem-estar oferecido durante tanto tempo. E compreenderam que valia a pena lutar por isso.
Mas como é difícil reinventar a vida humana! A cada grande avanço, seguem-se retrocessos. Foi o que se verificou na Europa, com o fim da Revolução Francesa, até que a modernização fosse retomada com os movimentos de 1848, a Comuna de 1870 e o avanço do pensamento socialista. Nesse intervalo encravado na Era das Revoluções, manifestou-se um violento movimento de reação às ideias de 1789 e à renovação da vida social. No campo da Filosofia, essa reação expressou-se de modo particularmente significativo no pensamento de Georg Wilhelm Friedrich Hegel.
Popper recorda: “O autoritarismo medieval começou a dissolver-se com o Renascimento. Mas, no continente europeu, a sua réplica política, o feudalismo medieval, não fora seriamente ameaçado antes da Revolução Francesa. (A Reforma apenas o fortalecera.) A luta pela sociedade aberta só voltou a começar com as ideias de 1789, e as monarquias feudais logo sentiram a seriedade desse perigo. Quando, em 1815, o partido reacionário começou a retomar o poder na Prússia, achou-se na extrema necessidade de uma ideologia. Hegel foi indicado para suprir essa necessidade” (POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. São Paulo: USP/Itatiaia, 1987. Tomo 2, p. 37).
O mesmo autor mostra que a filosofia política de Hegel foi moldada aos objetivos da dinastia no poder, na Prússia: “O coletivismo radical de Hegel depende tanto de Platão quanto depende de Frederico Guilherme II, rei da Prússia, no período crítico durante e após a Revolução Francesa. Sua doutrina é a de que o estado é tudo, e o indivíduo, nada, pois deve tudo ao estado, tanto sua existência física como espiritual” (idem. pp. 37-38). É algo evidente que essa doutrina foi forjada, por Hegel, para prestigiar as ambições de poder de Frederico.
Tal gênese política não é exclusiva da filosofia de Hegel. Pelo contrário, perpassa toda a Filosofia Moderna. Onde a separação entre Igreja e Estado implantou-se, a Filosofia deixou de derivar da fé para derivar do poder. A particularidade de Hegel foi a sua ligação com o soberano. Outros pensadores modernos associaram-se mais a instituições e partidos do que a líderes. Mas o comum a todos é que, ao se desconectarem da fé, aliaram-se ao poder. Não é demasiado cogitar que, sob essas novas condições, ao se emancipar da Teologia, a Filosofia não adquiriu o almejável status libertatis: antes, tornou-se escrava da política. E poucas vezes esse seu novo modo de ser foi visto em estado tão puro quanto em Hegel.
Cabe indagar, nesse caso: e o mérito interno da filosofia hegeliana? E o gênio desse pensador? Não foram determinantes para o enorme sucesso alcançado por ele? As opiniões variam muito a esse respeito. Schopenhauer, que o conheceu pessoalmente, declarou: “Hegel foi imposto de cima pelos poderes vigentes como o Grande Filósofo oficializado”. Notem bem as maiúsculas.
O contemporâneo de Hegel continua a descrevê-lo um tanto impiedosamente: “Era um charlatão de cérebro estreito, insípido, nauseante, ignorante, que alcançou o pináculo da audácia por garatujar e forjicar as mais malucas e mistificantes tolices” (SCHOPENHAUER, Arthur. Obras. Vol. II, p. 17).
O pior é que um filósofo como Popper, em vez de discordar desse parecer, ratificou-o. Para Popper, a mediocridade de Hegel como filósofo levou-o a lançar mão de uma linguagem às vezes impenetrável e propositadamente ininteligível. Motivada por mediocridade ou grandeza (não é o que mais importa), a ininteligibilidade permanece um fato. Popper deu dela o seguinte exemplo: “Escreve [Hegel]: O som é a mudança verificada na condição específica de segregação das partes materiais e na negação dessa condição; é meramente uma idealidade abstrata ou ideal, por assim dizer, dessa especificação. Mas essa mudança, em consequência, é imediatamente em si mesma a negação da subsistência específica material; o que é, portanto, a idealidade real da gravidade específica e da coesão, isto é, o calor. O aquecimento de corpos sonoros, assim como dos percutidos ou atritados, é a aparência de calor que se origina conceitualmente juntamente com o som” (POPPER, Karl. Ob. cit. p. 43). Uma verdadeira conversa de Caetano e Gil, nos bons tempos de Chico Anysio...
Mas é preciso pôr freio à muita radicalização. Às atribuições de mediocridade filosófica e às acusações congêneres, em que Schopenhauer e Popper incidem. Autor prolífico, dono de erudição incontestável e genuinamente interessado em questões metafísicas, Hegel foi grande a ponto de merecer sua inclusão na História da Filosofia, independentemente das relações que manteve com o poder em sua época. É preciso, porém, diferenciar grandeza de espírito do que se pode talvez denominar retidão filosófica. Não faltou grandeza intelectual a Hegel, mas lhe faltaram retidão e lisura. Hegel abusou conscientemente do hermetismo, do esoterismo, do solipsismo linguístico. Empregou toda sorte de artifícios para dobrar os espíritos. Teve lapsos de megalomania. E exerceu um poder brutal por meio do conhecimento.
Enfim, a proximidade do poder absoluto não caiu bem a Hegel. A frase de Lord Acton ressoa, nesse caso, como o grito abafado de um fantasma: “O poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente”. O poder absoluto parece ter corrompido absolutamente a filosofia do grande Hegel.
Examinemos, porém, mais de perto, as linhas mestras do pensar desse filósofo e sofista. O ponto de partida de Hegel, sua verdade inicial e inamovível são as ideias platônicas. Ele percebe que, concebidas à maneira de Platão, as ideias se tornam inconciliáveis com o materialismo que impregna tanto o senso comum quanto a ciência. Parte, pois, do velho pressuposto de que, se as ideias existem, a matéria não pode ser considerada a realidade fundamental. E, para combater os vícios materialistas arraigados em toda cultura, recomenda o remédio da dialética.
Que originalidade há nesse ponto de partida da filosofia de Hegel? Nenhuma. É platonismo puro. Que mérito há nele, além da inventividade palpável? Bem pouco, pois vimos que a atribuição de realidade às ideias não é mais que um vício do pensamento. E o método dialético: introduz algo novo? Sim, a contradição. Para Hegel, a contradição pode parecer ausente do mundo, somente quando o imobilizamos. No seu fluir, o real é pura e simples contradição, pois as coisas sempre fluem para o oposto: o que é quente esfria-se, o que se move, desacelera-se e tende ao repouso, o que vive caminha para a morte. Fluir é mover-se em direção ao oposto. Portanto, se a imobilidade é substancial, o movimento é dialético. Claro: esquecia-me de mencionar que Platão já dera essa descrição do movimento, na passagem do Fédon em que mencionou "o princípio geral da geração, segundo o qual das coisas contrárias é que nascem as coisas que lhes são opostas [...] O mesmo acontece com aquilo que se chama misturar-se, separar-se, aquecer, esfriar, e todas as outras coisas" (PLATÃO. Fédon. In Diálogos. São Paulo: Hemus. p. 118).
O problema é que o senso comum e a ciência baseiam-se no princípio de não contradição, que não pode ser aplicado ao que é precisamente contraditório. Isso não implica menos que a falsidade de todo o senso comum e de toda a ciência. De sorte que é preciso forjar outra lógica dos movimentos reais, que Hegel chama dialética.
Em que consiste essa lógica? Que procedimentos assinalam o pensar dialético? Hegel ensina que a dialética é o movimento em que as ideias (que ele denomina Absoluto) refletem-se em si mesmas. O primeiro momento dessa reflexão é a configuração das ideias em si. O segundo é o seu movimento para fora de si, que envolve a sua negação (contradição). Por fim, o terceiro momento é o retorno das ideias a si.
O primeiro momento dialético tem como resultado líquido o que Hegel denomina Ideia; o segundo gera a Natureza, em que as ideias adquirem um corpo, portanto se encarnam; por fim, o terceiro momento resulta no Espírito. Embora constitua um retorno da ideia a si mesma, o Espírito não se realiza numa sobrenatureza, mas na História (isto é, na Prússia!).
Hegel vai além. Enuncia três leis, que presidem os movimentos do real nos vários momentos dialéticos. A primeira lei é a da transformação da quantidade em qualidade e vice-versa. O aumento da quantidade de qualquer elemento de um ser, além de determinado limite, produz uma transformação qualitativa. Friedrich Engels deu o seguinte exemplo da atuação dessa lei: “Se três átomos [de oxigênio] se agruparem em uma molécula, em vez dos dois átomos habituais [que formam o oxigênio], teremos o ozônio, corpo muito diferente do oxigênio ordinário, quer por sua cor, quer por sua ação” (ENGELS, Friedrich. A dialética da natureza. 6ª ed., São Paulo Paz e Terra, 2000. p. 37).
A segunda lei, por sua vez, enuncia a interpenetração e a conversibilidade dos opostos. Isso porque, para passar de uma coisa ao seu oposto, é preciso que a primeira contenha o último e vice-versa. A segunda lei explica os movimentos atrativos dos opostos, assim como os das cargas que se atraem, por tenderem ao estado uma da outra.
Por fim, a terceira lei dialética assevera que a toda negação corresponde outra de sentido contrário. Não se pode deixar de ver, nessa lei, uma generalização da ação e reação enunciadas por Newton: a toda ação corresponde uma reação de mesma intensidade e sentido contrário. Com a única ressalva de que Hegel vê a ação como uma primeira negação destinada a ser, ela própria, negada. Devido à terceira lei, tudo tende a retornar à sua forma originária.
Não convém passarmos sem um exemplo da terceira lei: "Se [um grão de cevada] cai em solo adequado e sofre as transformações certas por influência da umidade e do calor, o grão em questão germina. Isso significa que o grão deixa de existir. Ele é negado. No seu lugar, surge uma planta, que é a negação do grão. Qual é, entretanto, o processo normal de vida dessa planta? Ela cresce, floresce, é fertilizada e, ao final, produz outros grãos de cevada. Tão-logo amadurecem, estes últimos grãos, por sua vez, também morrem. Também eles são negados. Em consequência desta negação da negação, temos de novo um grão de cevada, não mais, aliás, um grão individual, mas dez, vinte, trinta deles" (ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring. Chapter 13. Disponível em: http://www.marxists.org). O exemplo é tão eloquente quanto claro. E tem a indefectível vantagem do ar de parábola materialista...
Não há distância intransponível entre a realização dialética das ideias, em Hegel, e a processão de todas as coisas a partir do Uno, em Plotino. Pelo contrário, há imitação desta doutrina naquela. A Ideia resultante do primeiro momento dialético não é muito diferente do Espírito e da Alma plotinianos. A Natureza de Hegel é a matéria plotiniana. E o Espírito é o retorno das coisas ao Uno.
Verdade é que os esquemas também apresentam certas diferenças. Além dos nomes variantes que atribuem aos momentos do devir geral, para Hegel, todas as etapas do movimento dialético são positivas. Ou, para dizê-lo melhor, cada etapa representa uma autorrealização mais plena do ser. Já para Plotino, a processão é um movimento decadente, até o abismo da matéria. Só o retorno ao Uno é ascendente.
Mas essas diferenças perfunctórias escondem a similitude profunda dos dois esquemas. A criatividade da dialética de Hegel é a de Plotino, retocada aqui e ali. O único problema é que elas padecem de um mal idêntico ao de todos os grandes sonhos: não são reais. Pior: tomam a ilusão por verdade, o vulto por corpo, a sombra por luz. Se isso é admissível na arte, na ciência é fatal.
Verdade é que Plotino e Hegel têm a favor de si uma atividade criadora de mundos sem paralelo na História do Pensamento, uma vocação demiúrgica que lhes escorre dos poros. Enfim, um método de realização que parece assimilado da encarnação do Logos no cristianismo. Mas que haveremos de replicar a um velho marxista rebelde que, parodiando, sugerir que Cristo trouxe à luz a tragédia, Plotino, a farsa, e a Hegel restou matar-nos de rir com a comédia?
Em Hegel, a Filosofia faz-se comédia. Platão fornece a matéria da mais pura objetivação das ideias; como um novo Plauto, Hegel lhes sopra a forma que, na História, não lhes tinha sido antes atribuída.
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