Quanta coisa mudou, de lá para cá! Porém, a consciência do grande destino, que a todos atrai com a precisão de um relógio, permanece aninhada na alma do homem. A ponto de Drummond situar o fim do mundo, no atropelo secular e sem coração da metrópole contemporânea:
Últimos pensamentos! últimos telegramas!
José, que colocava pronomes
Helena, que amava os homens
Sebastião, que se arruinava
Artur, que não dizia nada
embarcam para a eternidade
Tudo era irreparável
Ninguém sabia que o mundo ia acabar
(apenas uma criança percebeu mas ficou calada)
que o mundo ia acabar às 7 e 45.
(ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião - 10 Livros de Poesia. São Paulo: José Olympio. p. 30)
No entanto, a criação mais recente a respeito do tema fúnebre foi o “método de Jack”, consistente em acabar com o mundo por partes. Tornou-se moda o homem decretar o fim ou exterminar, parte por parte, setor por setor, a realidade conhecida por ele há séculos. Deus, a fé, a religião, a metafísica, a ideologia, a utopia, a história, o Estado, foram todos liquidados, por este ou aquele pensador, nos últimos séculos. Para não falar das classes sociais, do direito, do capitalismo, que são destinados à desgraça eterna de tempos em tempos, mas principalmente quando a crise atraca no cais ou se condensa nas nuvens de possibilidades dos pregões das bolsas.
Não há dúvida de que estamos diante de um modo nunca antes visto de pôr termo ao mundo. Estamos diante de uma escatologia por partes. E uma das partes mais importantes do mundo, que alguns se sentem incumbidos de exterminar, no apocalipse da descrença, é sem dúvida a alma humana. Soou a trombeta: o homem não tem, nunca teve, alma. Esta é uma invenção metafísica forjada para fundamentar a esperança ilusória de que a vida continuará após a morte. “Tirem do homem a ilusão, e tirarão a sua esperança!”
Porém, tal é o emaranhado, tal a barafunda das doutrinas céticas, que se ofertam no nosso tempo, que é preciso cuidado para discernir o que cada uma realmente propõe. No caso da alma humana, é preciso critério para discernir que entidade espiritual cada doutrina aniquila com ardor e convicção que chamaríamos crédulos se não se dissessem ateus. Há dois modos principais e ambos clássicos de entender a alma. O mais antigo é o que a concebe como princípio dos movimentos do corpo. Nesse sentido mais amplo, a alma não é concebida como imortal, nem como oposta à matéria. É simplesmente o que explica o fato de um ser possuir a capacidade de mover-se ou de mudar independentemente de causas exteriores. Porém, no segundo sentido, a alma se opõe não só ao corpo que habita, mas a todos os corpos. Ela é o que se opõe à matéria e que, por isso, é imortal. A obsessão moderna dirige-se contra essa segunda concepção. Dirige-se à alma imortal, já que a outra nunca foi concebida como indestrutível.
A defesa racional mais arguta da primeira concepção de alma foi-nos legada por Aristóteles, no seu livro De anima. A da segunda talvez seja a de Santo Agostinho, no diálogo A grandeza da alma, que sustenta que a alma não possui grandeza espacial, portanto é inextensa. Nas palavras do próprio Santo, "a alma não é nem extensa, nem larga, nem forte, nem possui alguma dessas propriedades que se costuma encontrar nas medidas dos corpos" (HIPONA, Agostinho de. A grandeza da alma. In Santo Agostinho. São Paulo:Paulus, 2008. p. 263). Esse segundo modo de pensar a alma atravessou os séculos e, após toda a Escolástica, foi justificado como inteiramente racional por Descartes, no século XVII.
As duas concepções de alma fizeram escola e tornaram-se clássicas. Neste texto, cuidarei preferencialmente da segunda, pois é a que tem sofrido os maiores ataques na atualidade. De todos os argumentos apresentados em favor da existência desse tipo de alma imortal, o mais inexpugnável talvez seja o que reconhece que "as faculdades superiores [do homem] podem compreender as subalternas, enquanto estas não podem jamais elevar-se ao nível das que lhes são superiores". Essa é a razão primeira por que "os sentidos não podem perceber nada além da matéria" (BOÉCIO. A consolação da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 144).
O argumento está implícito na doutrina dos sete graus de atividade da alma, que Santo Agostinho desenvolveu na sua obra citada acima (Ob. cit. pp. 339-344). Os dois primeiros graus são aqueles pelos quais conhecemos os corpos. É em parte possível explicá-los com base no movimento dos próprios corpos. Porém, por ser mais simples, a atividade dos dois primeiros graus não explica a dos outros cinco, que tem de ser produzida por um espírito imaterial.
Essa particular fundamentação da existência de uma alma independente do corpo atravessou os séculos. Tão tarde quanto “em 2004, onze eminentes neurocientistas alemães [...] publicaram um Manifesto sobre a realidade presente e futura da pesquisa do cérebro [...] Eles apresentam agora um sóbrio e diferenciado balanço de sua ciência [...] Foram conseguidos importantes avanços: por um lado, ao nível mais elevado – foram pesquisadas as funções e interações das áreas cerebrais mais extensas [...] por outro lado, ao nível menos elevado, entendemos hoje amplamente os processos em nível das células e moléculas individuais [...] mas não em nível intermediário – onde sabemos pouquíssimo o que acontece [...] Atualmente, a pesquisa do cérebro não tem a oferecer sobre a ligação entre cérebro e espírito, entre consciência e sistema nervoso, nenhuma teoria que possa ser empiricamente verificada.” (KUNG, Hans. O princípio de todas as coisas – ciências naturais e religião. Petrópolis: Vozes, 2007. pp. 245-247).
Essa citação deveria bastar para exibir as dificuldades do dilema mente-corpo. No entanto, o consenso que se delineia, não só na Alemanha, mas em muitos outros países, no sentido de que não é possível se refutar ou provar a existência da alma, tem servido de estímulo para os esquartejadores do mundo se erguerem, tomarem a trombeta dourada e anunciarem, do eirado, a consumação da alma. De fato, é impossível mencionar uma a uma as invectivas que têm sido dirigidas aos defensores da ideia de que o dilema alma-corpo não está resolvido. Uma avalanche de artigos com tal teor tem inundado a mídia. E o pior é que, no contexto de guerra de teorias que se criou, fica difícil entender a própria questão controvertida.
Não posso deixar de observar que o estado real da questão é muito diferente do que esses artigos sugerem. Recentemente, o neurocientista Giulio Tononi, da Universidade Wisconsin-Madison, propôs que a consciência é idêntica ao que costumamos denominar informação integrada (TONONI, Giulio. “Integrated information theory of consciousness: na updated account”. In Archives italiennes de Biologie. Dez/2012, nº 4, pp. 293-329). De acordo com essa teoria, a consciência depende de um substrato físico, mas não é redutível a ele. Por exemplo, a experiência da cor azul está ligada ao cérebro, mas é diferente dele.
Podemos perguntar por que é assim. A teoria de Tononi, que foi saudada por Christof Koch como "passo gigantesco para a resolução final do problema mente-corpo", responde que a integração é uma característica de certos sistemas físicos e não de outros. Ela não po-de ser quebrada, sem que a consciência desvaneça. Não po-demos nos forçar a ver um objeto azul em preto e branco, porque a consciência é a integração da cor com a forma e muitas outras informações, ao mesmo tempo. Eliminar um aspecto da experiência integrada (por exemplo, a cor) implica apagar a consciência.
A integração não decorre do aumento da informações. Ainda que a memória de um computador viesse a exceder a do cérebro humano, nenhuma informação dentro dele é integrada. Para que a integração se produza, é necessário que cada informação seja, desde o início, conectaa a outras. A qualidade integrada tem de estar presente, entre as menores informações, para que o sistema adquira autoconsciência. Do contrário, isso jamais acontecerá.
Em outras palavras, a consciência não é um fenômeno associado à organização essencial da matéria, vale dizer, ao que diferencia a matéria do que não o é, já que ela pode não ocorrer quando todos os elementos constitutivos da matéria estão presentes. É, antes, um fenômeno associado de modo não causal e imprevisto a certos corpos materiais.
Quero acrescentar duas palavras sobre a questão mente-corpo, do ponto de vista teológico. Em boa parte do Antigo Testamento, a ideia predominante a respeito da alma é a de uma entidade inseparável do corpo, enquanto o homem vive, e da sepultura, depois que ele morre. Porém, antes do século II a. C., os judeus não criam numa sobrevivência muito definida da alma à morte. Para eles, a alma era uma espécie de sombra. Não exatamente um nada, mas um ser pouco definido e que não se apartava da sepultura ao morrer.
Pouco a pouco, essa concepção mudou. Pouco antes do tempo de Jesus, porém, a maior parte do povo e a seita mais numerosa (a dos fariseus) passaram a crer numa sobrevivência mais definida da alma à morte. Vários ditos de Jesus o confirmam: “Não temais os que podem matar o corpo, porém não a alma” (Mt 10:28), “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso” (Lc 23:43) e assim por diante. A própria história do rico e de Lázaro não só pressupõe como ensina essa nova noção.
Foi essa a alteração mais importantes a que a noção de alma foi submetida, durante o período bíblico. Pode-se afirmar que ela se deveu à introdução da ideia de ressurreição em Israel. A princípio, a ideia assumiu uma variedade de significados. O conteúdo comum a boa parte deles era o de um despertar do sono da morte. Assim como criara as almas uma a uma, Deus era capaz de as ressuscitar, ou seja, de despertá-las e as vivificar.
Sob essa concepção, o sono usado tanto no Antigo como no Novo Testamento para descrever a morte é uma experiência muito mais da alma do que do corpo. Os judeus não eram obtusos de mente, a ponto de não perceberem que o corpo se decompunha com a morte. Para eles, o corpo realmente morria. Por isso, quando afirmavam que alguém descansou com os seus, ao morrer, os judeus não estavam a sugerir que os ossos dormiam, mas que a alma o fazia, até que Deus a despertasse pela ressurreição.
Porém, é preciso esclarecer que, apesar da introdução da ideia de imortalidade da alma, não há, no Novo Testamento, sinal explícito da separação radical, platônica, cartesiana, entre a alma e o corpo. A alma neotestamentária não se molda à concepção de alma imortal que depois se tornou clássica. Esta é a concepção platônico-agostiniana, que Descartes reafirmou, de alma inextensa e imortal. A alma bíblica é imortal, mas também é herdeira da doutrina judaica da inseparabilidade entre corpo e alma, que não se altera entre Gênesis e Apocalipse.
Voltemos um instante à ciência. Que arma tem ela nas mãos, para mostrar que a alma assim concebida não existe? A resposta mais coerente me parece a dos signatários do Manifesto citado acima: nenhuma. Claro que os próprios signatários do documento não esclareceram a que concepção de alma se referiam. Mas, até mesmo por isso, torna-se implícito que se referem a uma gama delas, sobretudo às concepções mais elásticas, dentre as quais a concepção primitiva da alma merece destaque. Esse fato é às vezes encoberto pela confusão que se faz entre as várias concepções de alma. Principalmente, entre as duas doutrinas clássicas a seu respeito. A segunda doutrina, platônico-agostiniana e cartesiana, de fato, foi refutada pelos dados da ciência. Não há mais lugar para a alma radicalmente inextensa, sem relação com o espaço-tempo, isto é, para a alma radicalmente distinta do corpo, nos quadros do pensamento mais adiantado. Porém, o mesmo não ocorre com a noção mais primitiva de alma, que não foi refutada pela ciência.
Boa parte do que os filósofos e cientistas céticos alegam para negar a existência da alma consiste em experiências que provam a relação entre o sistema nervoso e a mente. O que chamamos de alma sempre aparece em conexão com o cérebro ou com o sistema nervoso. Normalmente, essa relação é descrita em termos de causa e efeito. Por isso, até hoje, os que desejam reduzir a mente à matéria afirmam que a primeira é um efeito de causas cerebrais.
Porém, a ideia de relação é a de uma sucessão de ações e de reações, entre dois ou mais seres. Normalmente, não é possível predizer, numa relação, qual ser praticará a ação, e qual, a reação. Já na relação causal, essa ordem parece predeterminada, isto é, a causa deve vir antes do efeito. David Hume, porém, mostrou que apenas parece, sem vir realmente. A predeterminação pode resultar do hábito mental de simplificar excessivamente a observação e de generalizar para todos os acontecimentos o que se dá em alguns casos.
Quando parte dos cientistas afirma que o dilema mente-corpo não foi resolvido, portanto, uma das consequências é que não sabemos o que vem antes e o que vem depois, na experiência que chamamos pensar: se o cérebro ou a alma. A afirmação de que o cérebro vem antes não é mais do que ingênua, na medida em que considera causal uma relação muito mais complexa.
Mais poderia ser dito sobre este assunto. Mas vou concluir com o que nele interessa ao tratamento dos males da alma. Se por um lado a relação entre milhares ou mesmo milhões de reações que constituem a mente é indiscernível, por outro lado a natureza básica dos problemas psíquicos é mais fácil de se compreender. Pode até ser proposta por meio de observações empíricas. Refiro-me a fenômenos como o da possessão demoníaca. As mentes céticas consideram esses fenômenos meramente cerebrais. Reduzem os males espirituais associados à possessão à esquizofrenia e às psicoses em geral.
No entanto, as possessões descritas nos Evangelhos e observadas ainda hoje permanecem irredutíveis às psicoses. Nestas, o indivíduo não perde a noção de si. Pelo contrário, conserva uma forma modificada, mas nítida de noção de si. O esquizofrênico ouve vozes, vê vultos e interage com eles, mas sabe de quem são as vozes, de quem os vultos e quem é ele próprio. Isso é completamente claro tanto na observação como na literatura especializada.
O mesmo parece ocorrer nas outros transtornos e doenças psíquicas. Em todos eles, persiste o senso que o indivíduo doente possui de si. E nos estados inconscientes não patológicos, como o sono e as alucinações causadas por drogas, não é diferente. Na possessão e talvez apenas nela, impera a sensação de ser outro ente. O mínimo que se pode afirmar sobre essa terrível experiência é que, nela, a perda da noção de si é a regra, não a exceção, está presente todo o tempo, não se esvai rapidamente. Temos, pois, evidências empíricas importantes de transtornos que não seguem o figurino das doenças psíquicas e parecem ter raízes muito mais profundas.
Posso afirmar tudo isso com a autoridade do neurologista ou do psicanalista? Não. Posso fazê-lo apenas como investigador atento da religião e do mundo. Mas essas duas ciências, que juntas moem a alma, também a afirmam. E o fazem empiricamente, na medida em que mostram que certos eventos psíquicos possuem uma natureza exclusiva e inteiramente diversa de tudo o que tem causa cerebral aparente.
A verdade das mortes que o homem contemporâneo anunciou e das ezéquias que celebrou tem sido a ressurreição. Os fins revelaram-se novos começos, e as realidades aniquiladas retornaram. Eis o mundo de novo povoado delas. A alma, porém, vai adiante do séquito. E no seu estandarte se lê: “Pecca fortiter, sed fortius fide et gaude in Christo” (“Peca com ardor, mas com mais ardor confia e regozija-te em Cristo”) – carta de Lutero a Melanchton.