O Templo de Salomão foi construído para ser um lugar de oração. As palavras de Isaías o confirmam: “Minha casa será chamada casa de oração” (Is 56:7). Porém, poucas vezes se diz que o santuário de Jerusalém foi consagrado a um só tipo de oração, o que é de certo modo verdadeiro, já que, na oração inaugural dele, Salomão aludiu somente às pessoas contritas, quebrantadas, vencidas da vida que ali haveriam de se dirigir a Deus: “Quando o teu povo Israel for derrotado diante do inimigo, por ter pecado contra ti [...] perdoa-lhe o pecado [...] Quando o céu se fechar e não houver chuva, por terem pecado contra ti [...] perdoa o pecado dos teus servos e do teu povo Israel” (1 Rs 8:33-34). E de novo: “Se houver na terra fome ou peste, se houver crestamento ou ferrugem, gafanhotos ou lagarta [...] toda súplica que qualquer homem ou todo o teu povo Israel fizer, conhecendo cada um a chaga do seu coração [...] perdoa, e age” (1 Rs 8:36-39).
Mil anos depois de Salomão, na parábola de Lucas 18:10-14, Jesus referiu-se a um fariseu que subiu ao Templo e orou: “Ó Deus, graças te dou que não sou como os demais homens, roubadores, injustos, adúlteros, nem ainda como este publicano. Jejuo duas vezes na semana, e dou o dízimo de tudo quanto ganho” (Lc 18:11-12). O homem da parábola é o oposto daquele a quem Salomão se referiu, na oração dedicatória do Templo. Ele agradece a Deus a sua retidão. Portanto, reconhece nele a fonte da sua justiça. Mas esse reconhecimento não é mais que uma capa teológica rota e andrajosa, que encobre o convencimento profundo do fariseu de que a fonte da sua retidão é o eu. Por isso, Jesus afirmou que o religioso tido como exemplar retornou para casa cumulado de pecados.
A parábola recorda a lição de que o Templo não existe para qualquer oração. Há oração que é pecado: “Quando ele for julgado, saia condenado; em pecado se lhe torne a oração” (Sl 109:7).
"Como Narciso morreu por não comer e beber enquanto mirava sua imagem, o homem religioso aniquila-se no abismo da piedade egocêntrica."
O pecado do fariseu, sua soberba, envolve frequentes comparações: “Não sou como os demais homens [...] nem ainda como este publicano”. A primeira comparação coloca o orante de um lado e o resto da humanidade do outro. O fariseu sente-se absolutamente só, por isso declara: "Não sou como os demais homens". Carl Gustav Jung ensinou que essa atitude pode resultar de uma doença que leva a pessoa a identificar-se sistematicamente com imagens arquetípicas, como a de profeta ou de mártir. A pessoa que se assimila ao profeta considera-se a única que se atreve a dizer a verdade. A que se identifica com o mártir pensa-se incompreendida e hostilizada, enquanto caminha em direção ao sofrimento. No fundo, essa assimilação heroica a figuras arquetípicas não passa de grave manifestação de soberba.
O hábito inveterado de se elevar rebaixando o próximo leva o fariseu a se comparar também com indivíduos. Ele encontra prazer especial em se diferenciar do publicano que ora ao seu lado. A parábola situa os dois num dos átrios do Templo de Jerusalém, quando diz que o fariseu não ousa erguer os olhos ao céu. Os átrios eram os únicos espaços do Templo, nos quais era possível divisar o céu. Ali estavam, portanto, o fariseu e o publicano. Mas, se estavam nos átrios reservados às pessoas comuns, eles não tinham de que se ufanar. A jactância do fariseu era de todo infundada. Por um grave erro de avaliação, ele não se via igual, mas superior ao publicano. Podemos pensar que esse erro consistia em encontrar uma espécie de justiça nas obras exteriores e nos rituais piedosos que o fariseu encenava.
A verdadeira justiça da lei consiste em enxergar o outro, em entender-lhe as razões e amá-lo. Porém, a religião do pecado trabalha o tempo todo para diminuir o próximo e torná-lo desprezível. O homem que, por estranha alquimia, transforma a justiça em atos mecânicos como os de jejuar e de dar o dízimo, passa a enxergar quem não os pratica como uma aberração. Torna-se, assim, uma aberração ele próprio.
Dois são os passos necessários para uma pessoa assemelhar-se ao fariseu da parábola: confiar na justiça inerente às suas atitudes e condenar o próximo. Esses passos se tornam o espelho, no qual a pessoa se torna capaz de enxergar-se sacrossanta. Como o jovem Narciso permaneceu vários dias curvado, a olhar seus traços formosos na água da fonte, o fariseu da parábola olha para o outro, mas vê-se a si mesmo. E, como Narciso morreu por não comer e beber enquanto mirava sua imagem, o homem religioso aniquila-se no abismo da piedade egocêntrica.
O transtorno conhecido como narcisismo pode manifestar-se em todas as áreas da vida humana: em qualquer relacionamento familiar, em qualquer profissão, entre amigos. Por que não apareceria no terreno da religião? Chego a me perguntar se não é exatamente nesse terreno que o narcisismo atinge o grau mais elevado. O fariseu envereda pelo narcisismo espiritual por se acreditar diferente dos outros homens. Essa frase desvenda o caminho interior que ele percorre até pronunciar a oração que o o faz um escravo da soberba. A demarcação da humanidade em dois campos, num dos quais está o fariseu e no outro, o restante dos homens, mostra que a identificação com figuras arquetípicas forja o narcisismo espiritual, que Jesus denunciou como o maior de todos os males espirituais.
Narcisismo é amor excessivo de si. Não, por certo, qualquer amor, mas amor de perdição. Se um conselho deve ser transmitido a todo ser humano com especial gravidade, é: "Não entre pela porta desse pecado. Não abrace o heroísmo espiritual indevido, pois pode não haver retorno dele".
Contudo, a parábola propõe outro exemplo, ao lado do fariseu: “O publicano, estando em pé de longe, nem ainda queria levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: ó Deus, sê propício a mim, pecador!” (Lc 18:13). Salomão orou com as mãos estendidas ao céu (1 Rs 8:22). E não menos do que cinco vezes pediu que Deus ouvisse “do céu” as orações feitas no Templo (1 Reis 8:30,32,34,36,39). No entanto, o publicano não se atreveu sequer a olhar para o céu. Deve ter fitado, ao contrário, o chão e nele encontrado uma imagem muito distinta da que Narciso avistou na face da água.
A esses dois olhares (dirigidos à terra e a si) correspondem duas formas de espiritualidade em tudo antagônicas. Quando olha para a terra (húmus), o homem se faz humilde. A virtude brota no seu coração com a espontaneidade com que a semente germina no solo. Mas, quando olha para a virtude que ele próprio forjou, com amor sazonado ao ponto da vaidade, o homem produz os frutos pútridos da autojustificação.
Kierkegaard formulou a pergunta ousada: quem pertence às fileiras da verdade: quem ora ao Deus verdadeiro com sentimento dobre ou quem ora a um deus falso em verdade? A pergunta é um paradoxo; a parábola do fariseu e do publicano não. Seu ensino é límpido e fácil de entender, uma vez detectado o seu foco. Não há graça ao alcance do homem que faz do ego um bezerro de ouro. A genuína graça sempre se tinge de verdade. E a verdade primaz da fé é a pobreza constitutiva do homem. A pobreza recordada na oração pungente do publicano.