sábado, 30 de junho de 2012

As Dez Minas

A parábola das 10 minas, no Evangelho de Lucas, é semelhante à dos talentos, que aparece em Mateus. Em ambas, antes de se ausentar do país, um homem empresta considerável quantia de dinheiro aos seus servos. Nas duas, ele retorna, após longo tempo, e pede contas do dinheiro emprestado. Dois servos conseguem prestar as contas satisfatoriamente, porém um terceiro não.
Em Lucas, essa história básica é enriquecida com muitas informações. Além dos servos, nela aparecem rivais, inimigos que enviam uma embaixada após o homem que sai do país. O objetivo da embaixada é pleitear que o homem não venha a reinar sobre eles. Portanto, que ele não receba o reino que lhe está destinado.
Esse envio de embaixadores era comum, na época de Jesus. Líderes em luta pelo poder costumavam enviar representantes ou ir pessoalmente à corte dos soberanos que podiam constituí-los reis em suas regiões. Exemplo notável dessa prática ocorreu, quando Herodes, o Grande, adoeceu gravemente, e os candidatos à sua sucessão foram a Augusto reivindicar a realeza.
A parábola das minas narra duas viagens dessa espécie: “Certo homem nobre partiu para uma terra longínqua, a fim de tomar posse de um reino e depois voltar [...] Mas os seus concidadãos odiavam-no, e enviaram após ele uma embaixada, dizendo: Não queremos que este homem reine sobre nós“ (Lc 19:12,14).
Embora situada no pano de fundo da parábola, a luta entre os grupos que almejam o poder é mais importante do que o empréstimo das minas, que aparece em primeiro plano. Tão mais importante quanto a posse ou a perda do reino era mais valiosa para a personagem central da parábola do que o dinheiro emprestado aos servos.
Por outro lado, a negociação das 10 minas tem certa importância, por constituir o foco da parábola. A história começa com o empréstimo do dinheiro aos servos, prática tão antiga quanto a própria moeda. A mina a que a parábola se refere valia 100 denários ou dracmas, que era o salário médio de um dia de trabalho. Portanto, 10 minas correspondiam a 1.000 dias de trabalho.
A entrega das minas aos servos representa um empréstimo. A parábola não esclarece quanto cada servo devolve ao senhor, quando ele retorna. Diz apenas que um servo apresenta 10 minas, e outro, cinco. Porém, apresentar não significa devolver. Todo mútuo se realiza para que o mutuário possa embolsar uma parte do que obteve com o dinheiro. Não era diferente no primeiro século. Por mais injustas que as práticas produtivas fossem, o Direito Romano impunha limites mínimos de decência aos contratos. De acordo com os costumes da época, então, não certamente o servo que ganhou 10 minas devolveu as 10, nem o que ganhou cinco devolveu as cinco. Na verdade, a parábola não menciona sequer que tenha havido devolução, já que o seu objetivo não é a contabilidade exata que estava em jogo, mas o contraste entre os servos e os embaixadores.
A parábola quer transmitir que o senhor não incumbiu os servos de fazerem o mesmo que os embaixadores ou seja, lutar por poder. Os servos não deviam se comportar como integrantes de um partido político. Se não estava em suas mãos decidir quem receberia o reino, eles não deviam lutar para conquistá-lo. Porém, as 10 minas estavam efetivamente nas mãos dos servos. Por isso, o que lhes incumbia era negociá-las.

“Quando os cristãos lutam entre si [...] uma grave perda de foco acontece. O desvio não se dá do sucesso para o insucesso, pois muitos são bem-sucedidos na luta pelo poder. Mas os que lutam não não têm parte na negociação das minas.”

A História do Cristianismo é fortemente marcada pelo descumprimento dessa ordem de Cristo. Nos últimos 20 séculos, muita luta por liderança e poder se desenvolveu no meio cristão. Algumas vezes, essa luta se travou em torno do poder secular; outras vezes, em torno do eclesiástico. Em ambos os casos, foram lutas ferozes. Não se pode deixar de emprestar a esta constatação um tom de denúncia.
Quando os cristãos lutam entre si, quando opõem obra a obra, doutrina a doutrina, ministério a ministério, partido a partido, igreja a igreja, instituição a instituição, uma grave perda de foco acontece. O desvio não se dá do sucesso para o insucesso, pois muitos são bem-sucedidos na luta pelo poder. Consiste em subtrair os que lutam à tarefa de negociar as minas.
Vejamos em que consiste o trabalho de negociação confiado aos servos. As minas representam a palavra de Cristo. Todo cristão genuíno é depositário dessa palavra. Recebeu os Evangelhos canônicos e as Epístolas do Novo Testamento, cujo poder salvador experimentou. Porém, embora todos os servos os tenham recebido, alguns negociam o depósito, outros não. Uns multiplicam a palavra de Deus, espalham-na pelo mundo; outros simplesmente não o fazem.
O servo que não negociou sua mina tentou devolvê-la num lenço, quando seu senhor regressou. A afirmação soa estranha nos nossos tempos, mas não era assim no primeiro século. Naquela época, uma moeda valia o que pesava. Uma mina era a quantidade de prata encerrada nela. Se passava de mão em mão muitas vezes, a moeda sofria um desgaste físico, que a desvalorizava. Por isso, o fato de o servo ter envolvido sua mina num lenço indica que preservara o valor intrínseco dela.
O ato de guardar a moeda envolvida num lenço representa o esforço de preservação da doutrina cristã. Ao longo da História, as Igrejas mantiveram centros de controle da pureza doutrinária do seu rebanho. Códigos de disciplina, inquisições, tribunais foram laboriosamente criados, com esse propósito. Porém, a parábola deixa claro que, aos servos de Cristo, não basta preservar o valor intrínseco da palavra de Deus contra as mutilações da heresia, por mais que isso seja importante. Não basta não ser herege, blasfemo ou realizar qualquer outra forma de trabalho negativo. A comissão que Cristo deixou a seus servos não é de índole passiva. Não consiste em não fazer alguma coisa, mas em propagar ativamente a palavra de Deus.
Por isso, o senhor rejeitou a devolução da mina intacta. Ele não aceitou a justificativa do servo de que a cobrança de juros significava tirar o que ele não colocara e ceifar onde não semeara. O banco sempre estivera à disposição do mau servo, para tomar a moeda emprestada e devolvê-la com juros. Portanto, a restituição sem juros era inescusável.
O reempréstimo da moeda que o senhor exigiu de seu servo significa que, se alguém não deseja, não pode ou tem medo de multiplicar a palavra de Deus, por meio do ensino, da pregação e de outros trabalhos de propagação, pode “emprestá-la” a quem se dispõe a fazê-lo. Isso é depositar a mina no banco. É realizar um segundo empréstimo, em vez de deixar a moeda ociosa.
Esse ato mínimo representa o apoio que os cristãos menos ativos oferecem aos que se dedicam à propagação da palavra de Deus. O apoio não é financeiro. A moeda emprestada segunda vez não é literal. Representa o testemunho pessoal da pessoa, em apoio à palavra que os divulgadores do evangelho espalham pelo mundo.
Assim, a parábola das minas apresenta o inteiro espectro de condutas possíveis ao servo de Deus, que não faz sua a missão de lutar pelo poder eclesiástico, do mínimo aceitável, que é a confirmação do evangelho pelo testemunho pessoal, ao máximo da multiplicação da palavra pelo ensino e pregação ativos.

sábado, 16 de junho de 2012

O Inquérito dos Macacos (10)

“Por muito tempo achei que a
ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.”
(Carlos Drummond de Andrade)

O OCEANO DA VERDADE

As palavras de Patinho Feio, se era ele mesmo, trouxeram a mais palpável resposta às interrogações formuladas pelos Macacos durante o inquérito. Por isso, a revoada que se seguiu encheu o coração deles de ardente pesar. Foi sentida como a maior de todas as perdas que podem afligir a mente. Transcendia a própria perda de um ente querido.
Mas é impossível cruzar a floresta, escalar a montanha gelada, atravessar o deserto, descer a falésia até a mata e não adquirir resistência a uma falta. A heroica saga tornara os Macacos íntimos das carências de proteção, abrigo, calor, das faltas de água, sombra, alimento. E até das carências de paz. Cada passo que tinham dado, na longa marcha, havia acrescido o calo de um número imenso de privações, o que os acostumara ao não-ter de que a vida se anima. E pensaram se, num tempo como o atual, em que o ter se fez a medida de todas as coisas, a vida não se tornou, por reflexo, um fio suspenso entre os abismos vizinhos do ter e do não-ter.
No entanto, apesar do condicionamento sem paralelo que a marcha lhes valera, não sabiam como suportar aquela ausência devastadora, que é a mais básica de quantas podem existir: a ausência de Patinho Feio. Como, por que, para que ele os abandonara, após os ter ajudado, no lancinante transe daquela investigação? O amor, esse laço que ata as almas, por que é assim tão frágil, tão pronto a se desatar, a transformar a presença em ausência, o clímax em anticlímax, o tudo em nada?
Fustigavam-se com essas interrogações, quando sentiram ainda uma outra ausência: a de remédio imediato para a dor de viver. Embora na floresta, na geleira, no deserto e no bosque tivessem encontrado lenitivo para todo mal que os afligira, um deles parecia não comportar solução e era a dor aguda da ausência. Pensaram se, em tal estado, não lhes seria melhor recolher-se ao silêncio e retomar a caminhada até o mar.
Mas o dia ameaçava declinar e tiveram de aguardar melhor ocasião para o fazerem. Nesse entretanto, fartaram-se dos frutos da mata e dos anfíbios do lago. E como a lua andava arredia, adormeceram tão-logo os últimos raios de sol se dissiparam. Quando as árvores ainda destilavam a água da noite, como lágrimas vertidas do céu, e a alvorada não começara a se derramar sobre a imensidão do bosque, lépidos, os quatro devoraram alguns frutos, sorveram goles do bálsamo que a vegetação recolhera em seus cálices e recomeçaram a marchar. Contornaram a face da falésia que olhava para o lago e, em seguida, desceram para o mar.
Estavam prestes a sair da mata, quando ouviram o canto de um Galo. Olharam ao redor, mas a meia-luz ainda reinava, e nada encontraram. Outro pequeno lapso e ouviram de novo o canto. Dessa vez predispostos, descobriram que o som provinha de um ponto em que a penumbra adensava-se em sombra. E lobrigaram o contorno informe da Ave que o emitira.
-- Bom dia, Galo! exclamou Macaco de Louça, ligando o vulto aos sons.
-- Desejo-vos muito bom dia! Ou boa noite, dada a penumbra, respondeu a Ave, com voz receosa.
-- Será difícil ter um bom dia, mas te agradeço o voto, tornou-lhe Louça.
-- Por que difícil? perguntou o Galo, notando o olhar plangente de seu interlocutor.
-- Porque ontem encontramos um grupo de lindos Cisnes. Conversamos com um deles que, sem que lhe houvéssemos contado, disse-nos o que conversáramos longe daqui, nos dias anteriores.
-- Um Cisne vidente? admirou-se o Galo. Quem o crerá? E que relação pode isso guardar com vossa tristeza? Acaso o vidente previu-vos calamidades, desventuras, infortúnios? Vaticinou-vos a morte?
-- Não, nada disso, mas o modo como nos deixou, de chofre, depois de nos ter falado da evolução das espécies, chocou-nos profundamente.
-- Evolução! Admirou-se de novo o Galo, que se acalmara ao notar o sofrimento dos quatro. Tendes nisso interesse?
-- Muito e há muito tempo. E tu?
-- Indago-me a origem do mundo e o modo como os Galos surgiram.
-- Que ideias formaste sobre o assunto? quis saber Louça.
-- Vês essa mata? respondeu-lhe o outro. Milhares de espécies habitam nela. Se todas evoluíram, o DNA de cada uma registrou as mudanças por que passaram. Portanto, o DNA é a chave de todo o processo evolutivo.
A ponderação fazia sentido. De Vidro aceitou a premissa do Galo e indagou-lhe curioso:
-- Estás a sugerir que a análise do DNA permite desvendar o processo da evolução?
-- Sim, é o que penso. Essa análise já existe e é denominada sequenciamento genético. Por meio dela, confirmou-se que as espécies e os grupos maiores de seres vivos realmente descendem uns dos outros. Para fornecer um só dos motivos dessa conclusão, Elementos Repetitivos Antigos (ERA), pedaços de genes mutantes que trocam aleatoriamente de posição no DNA, foram encontrados quase nos mesmos lugares do genoma do Homem e do Camundongo. Francis Collins, que dirigiu o projeto internacional de sequenciamento do DNA humano, afirmou: “A menos que se queira assumir a posição de que Deus colocou esses ERA nessas exatas posições, para nos confundir e desviar, é praticamente impossível escapar da conclusão de que existiu um ancestral comum para humanos e camundongos”.
-- Certo, aplaudiu de Vidro. A evolução é um fato, mas o que nos preocupa é o alcance do fato. Há várias semanas, realizamos um inquérito para tentar entender esse alcance. Os seres vivos têm um único ancestral comum ou descendem de vários? E as espécies: têm múltiplos ancestrais? Se os têm, eles foram todos da mesma espécie ou de várias? A depender das respostas a essas perguntas, a árvore da vida será mais ou menos ramificada. Aliás, ela poderá deixar de ser árvore, para se assemelhar a uma teia. Do ponto de vista científico, até a criação dos seres vivos por Deus depende dessas respostas e não, como se propala, da existência ou não de uma evolução.
-- Infelizmente, os resultados da ciência a esse respeito, respondeu o Galo, ainda são controversos ou mesmo equívocos. Em 1986, o cientista australiano Michael Denton publicou a mais impressionante crítica à Evolução já produzida com base no sequenciamento genético. No livro intitulado Evolution: a theory in crisis, Denton argumentou que a Macroevolução (a evolução dos grandes grupos de seres vivos) está em crise. O principal argumento dele é a equidistância genética. O exemplo preferido de Denton é o do citocromo das bactérias, que difere 64% do do cavalo, 64% daquele do pombo, 65% do citocromo do tuna fish, 65% do que possui o bicho da seda, 66% do que o trigo apresenta e 69% daquele da levedura. Como a Teoria da Evolução sustenta que os genes que especificam as proteínas se alteram a taxas regulares, a equidistância entre grupos tão diferentes deveria indicar que eles surgiram ao mesmo tempo. Mas os fósseis mostram que isso não ocorreu, o que levou Denton a concluir que a Teoria da Evolução dos grandes grupos está em crise.
-- Mas Denton publicou outro livro, lembrou Macaco de Vidro, 12 anos depois daquele que mencionaste, em que explicou o processo pelo qual a Macroevolução ocorreu.
-- Sim, mas a tese central desse outro livro se estriba em ideias muito pouco aceitas pela comunidade científica. Além disso, consta que Denton não retratou o primeiro livro no que publicou mais tarde. Trata-se de obras harmônicas, não antagônicas.
Macaco de Telha interveio:
-- Os graus de comprovação das teses principais dos dois livros são muito distintos. Assim como o sequenciamento genético forneceu a prova definitiva da Evolução, o primeiro livro de Denton levantou o mais importante questionamento sobre essa teoria, desde os dias de Darwin. Por isso, ele pode ser considerado a obra central sobre o tema, da descoberta do DNA até hoje. A avaliação não é um casuísmo. Tampouco é fruto de preferências ideológicas ou informação incompleta. O cientista especializado em Genética e Evolução Gert Korthof declarou que “não se pode entender o Neodarwinismo sem se ler integralmente o livro de Denton, pois ele enuncia as implicações do Darwinismo em maiores detalhes do que jamais fizeram os meus professores e os livros a respeito do tema”. E olhem que Korthof discorda da consequência que Denton extrai da equidistância genética.
O silêncio que Telha guardara até então contribuiu para que redobrassem a atenção às suas palavras. Por isso, continuou:
-- O primeiro livro de Denton não propõe solução para a crise na Teoria da Evolução. Mas define o território em que será travada a batalha final sobre ela. Como a Genética Mendeliana explicou a Microevolução, a batalha da Macroevolução será travada no interior da Biologia Molecular. Mais particularmente, no território dos sequenciamentos de DNA.
-- Sim, concordou de Vidro. Nessa batalha, será também decidida a eventual participação de Deus no processo evolutivo, o que se costuma denominar criação dos seres vivos.
Nesse ponto, Caco adentrou na discussão:
-- Apesar de toda a controvérsia a respeito da equidistância genética dos grandes grupos, não há disputas sobre os exemplos que Denton fornece dela. A questão é se os exemplos bastam para refutar a Macroevolução ou são simples furos, que serão eliminados por novas descobertas. A maior parte dos cientistas trata-os como furos ou dubiedades, mas não há fatos que refutem os exemplos. E essa ausência de refutação empírica é, ela própria, outro fato. Denton acha que, por causa dela, os exemplos da equidistância autorizam concluir que a Macroevolução está abalada.
Repentinamente, uma ideia luziu na mente de Caco:
-- Quando nos disse que somos manuscritos, o Cisne não se referia ao DNA? Nossas células não são formadas com base no código genético que está dentro delas? Esse código não costuma ser representado por letras? E essas letras não formam um texto, um manuscrito?
Não se pode negar que a ideia era luminosa. Se admitirmos que uma inteligência interveio no processo de modificação das espécies, de modo a gerar a equidistância genética, o DNA não será só “semelhante”, mas efetivamente constituído por símbolos. E essa passagem da semelhança ao fato simbólico será o mais claro reflexo de Deus na ciência. Será a hipótese de um Deus que não lança dados, antes escreve manuscritos.
Ao longo de todo o inquérito, os quatro tinham repetidamente chegado à convicção de que a ciência e a Macroevolução, em particular, constituem um modo de pensar totalitário. A realidade é espremida no interior de teorias de alcance tão vasto que escapam à verificação. E essas teorias tão amplas que se fazem vagas moldam-nos a mente, para não mencionar os costumes.
Se é causa do sucesso explicativo da ciência, esse modo circular de deduzir e induzir, de tornar a induzir e de deduzir novamente, ad infinitum, não explica também as cegueiras da mente? Ao ouvirem o duplo canto do Galo e conversarem com ele, os Macacos fizeram-se todas essas perguntas. E ainda mais indagaram se a equidistância genética não pode ser tomada como um modo de se reduzir o caráter totalitário da Evolução.
-- A ciência, ao mesmo tempo, esclarece e obscurece, afirmou Macaco de Caco intrepidamente. Ela pode ser apropriada para fins libertários ou totalitários. Korthof rebateu Denton da seguinte maneira: “Denton apresenta a descontinuidade dos fósseis, dos organismos vivos, das proteínas e do DNA como confirmação do seu Modelo Tipológico, e a sua descrição é muito consentânea com a observação. Essa é uma boa coisa em ciência. Mas a ciência sem teorias é somente uma atividade descritiva. A proximidade em relação à realidade empírica é um critério importante, mas não é o único pelo qual devemos julgar teorias”. Vede que, com essas palavras, Korthof faz os fatos cederem à teoria. O velho ditado ressurge, então, para atormentar a ciência: "Se os fatos não confirmam a teoria, pior para os fatos". É justo perguntarmos: esse desprezo dos fatos em favor da teoria é a genuína sabedoria científica ou um vício lógico? Não o consideramos um vício, ao depararmos o Mamute e o Homem na geleira e ao encontrarmos o Trilobita no interior da pegada humana? Não concluímos diversas vezes que o vício é real e lhe discutimos as consequências? Não o fizemos ao conversar com o Pavão e com o Urso? O grande mal, o tormento inescapável, é que o vício torna a ciência ilusória.
Louça concordou imediatamente:
-- As pedras não nos disseram também que a fé em Deus tem sido negligenciada? E não sugeriram que a negligência se deve à ignorância do sentido prático dela? O Burro não afirmou a mesma coisa? Não vimos nos manuscritos que a descrição monoteísta da criação pode ter interpretação diversa da que foi refutada pela ciência?
A conversa estava animada, mas o sol ia alto, e os amigos despediram-se do Galo, que os saudou de um modo que soou estranho:
-- Lembrai-vos dos cantos da nossa estirpe!

Os Macacos cobriram, então, o escasso caminho que os separava do oceano. Em poucos minutos, chegaram à praia e depararam a enormidade das águas. O incrível cenário inspirou a Caco a pergunta:
-- A verdade que procuramos não é como o oceano?
-- E não conhecemos dela somente o que se pode tirar do oceano com uma cuia? completou de Vidro.
-- Que nos dirá sobre isso Patinho Feio? perguntou Louça.
-- Dirá que a verdade é o mar? ecoou Macaco de Telha.
-- Já não sinto que ele nos tenha abandonado, completou Caco. Sinto, ao revés, que voa sobre nós todos os dias. E nos olha com o mesmo carinho que nos dedicou na mata.
Então, todos os dias, sob o olhar vigilante de Patinho Feio e seu bando, os Macacos iam da mata ao oceano e, deste, de volta à mata. Até que o trajeto se lhes tornou usual. Na praia, brincavam com as conchas, as rochas e os animaizinhos que achavam. Porém, ao contrário do ir e vir, as brincadeiras nunca se tornaram usuais nem mecânicas.
Era impossível tornarem-se tais, pois o mar estava sempre lá para recepcioná-los, brindá-los com os seus mistérios e enchê-los de todo desvanecimento. Acharam, assim, no mar, a verdade total, absoluta, mas nunca se aventuraram nela. Somente brincaram à sua frente, miraram-na, até mesmo a saudaram e admiraram. E a porta dessa verdade permaneceu sempre aberta.

sábado, 9 de junho de 2012

O Inquérito dos Macacos (9)

“As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei.”
(Carlos Drummond de Andrade)

O JARDIM DO ÉDEN

Enquanto os Macacos conversavam sobre os manuscritos, a sentinela da fome enviava-lhes constantes avisos. A princípio, não lhe dispensaram atenção, mas, de tanto insistir, o atalaia os fez entender à força de repetições que a natureza circunscreve o pensamento, como o deserto à civilização, não o contrário.
Os avisos da fome acabaram por convencê-los de que já não bastava paliá-la com Insetos. Para continuarem o inquérito que haviam aberto, precisavam resolver o problema cada vez mais urgente da sua subsistência. O que, na situação em que estavam, significava alcançar a mata costeira.
Nesse entrementes, a ideia retornou ao cérebro de Caco: por que não tinham persuadido o Burro a lhes fornecer traslado? Tivessem-no feito e poderiam consumar a travessia do vasto elemento árido mais rapidamente e sem tantos padecimentos. Mas dessa vez, Caco opôs à sedução o pensamento oposto de que viver, para os racionais, envolve a necessidade de olhar para o outro e enxergá-lo. Ou para aplicar o princípio ao caso, por adversas que fossem as circunstâncias da peregrinação, os quatro não poderiam iludir o Burro, com lisonjas ou artimanhas, a fim de que os transportasse até a mata.
O arrependimento, porém, só se dissipou totalmente, quando retornaram aos manuscritos e descobriram adjutórios mais úteis que aqueles que o Burro poderia subministrar-lhes. O rolo em seis colunas falava de consolações, infundia esperança e capacitava a arrancar forças não só de outras forças, mas até da fraqueza. Assim, do modo como o vento os havia conduzido aos manuscritos, o logos que emanava destes, cravando-se na alma dos quatro, manifestou o poder supremo de elevar a sua energia pouca, conferindo-lhes um recurso inteiramente novo. De modo que se dispuseram a retomar a marcha, mesmo com o ventre abastecido apenas de Insetos que, juntos, sacudidos e recalcados, não igualavam a massa de uma única pluma. E após outra noite de sono, abandonaram as ruínas em direção à mata.
No trajeto, Vidro perguntou aos companheiros:
-- Essa energia incrível que nos propulsionou ao lermos os manuscritos, esse dínamo que nos fez bastantes para a travessia, não será o sentimento do sagrado?
-- Também o sinto mover-me, respondeu Telha. Mas não cesso de me indagar se o sentimento não é produzido por alguma ilusão. Pergunto-me se, assim como produz miragens de oásis e águas, o cérebro do viandante exausto não inunda o seu coração de consolos ilusórios e esperanças vãs. E se esse misto de engano e consolo não constitui o que os homens denominam religião.
Caco formava um parecer diferente e expressou-o:
-- Talvez, essas faces siamesas da religião, o consolo e a ilusão, sejam somente um momento dela. Tão longa é a existência da religião, no mundo, tão protraída, a adoração que os Homens elevam ao divino, que as pessoas têm dificuldade de apercebê-las exatamente. Tomam o momento como se fora a inteira extensão do fenômeno. Observação mais atenta permitiria entender que a religião muda de forma, e não a devemos julgar somente pelo instante primordial, em que seu poder de consolação e “ilusão” se concentra e dobra-se sobre si mesmo. Melhor é julgá-la com base no seu devir integral, isto é, no processo inteiro de transformação por que a religião passa.
-- E como é esse processo? indagou Telha.
-- Essa é a questão central a ser respondida sobre a religião. Todas as outras são colaterais, secundárias, em relação a ela. Porém, a religião é complexa demais, admitiu Macaco de Vidro, para que eu possa dar dela uma descrição sem carências ou falhas. Limitar-me-ei a afirmar que a ilusão religiosa é uma interpretação, não um dado. E como toda interpretação, não é a única conclusão que se pode extrair da experiência religiosa. Lembras dos sonhos que tivemos na noite passada?
-- Sim e me pergunto se a religião não é, ela própria, um sonho consciente, um sonho que se sonha acordado.
-- Penso que o é, replicou Caco, ou ao menos que é análoga ao sonho. Porém, nem este, nem a religião são propriamente ilusórios. Ao sonharmos, não nos iludimos, porquanto não vemos, ouvimos ou cheiramos algo e, a seguir, o representamos. As formas oníricas não têm a finalidade de representar objetos reais. Portanto, não são verdadeiras ou falsas. São antes respostas imaginativas da mente às necessidades emocionais do indivíduo. Ou por outra, os sonhos e a religião justificam-se por sua função, não pela representação que produzem do mundo. A função da religião é amparar a pessoa, no extremo risco de viver.
Enquanto discutiam essas coisas, os amigos iniciaram a descida da falésia entre o deserto e o mar. A parte inicial da gigantesca formação era constituída por rochedos nus, entre os quais solevavam arbustos. Naquele dia, porém, a escarpa estava envolta em brumas que aos Macacos parecia adentrar-lhes nos olhos. E, para dificultar ainda mais o descenso, chovia. Por isso, os amigos caminhavam com cautela e, de tempos em tempos, paravam para se localizar. Num desses momentos, Telha dirigiu-se a de Vidro:
-- Afirmaste que a religião não tem a finalidade de representar o mundo. Mas ela não produz representações de ojetos e fatos? Na mitologia hindu, por exemplo, o mundo não é descrito como uma Tartaruga chamada Kurma? Estás a propor que os hindus nunca entenderam esse mito como uma descrição do Universo?
-- Não. Com certeza eles o fizeram, e essa é uma das interpretações possíveis do mito em questão. Mas as mesmas mentes que criaram a interpretação duvidaram dela. Portanto, conceberam a interpretação alternativa de que a Tartaruga é uma metáfora, um símbolo, não uma descrição literal do mundo. O importante é que a religião, por si só, não evolui para fora do impasse que cria entre as interpretações literais e simbólicas do mito.
Nesse ponto, de Louça não se conteve e ingressou na conversa:
-- Da “ilusão” religiosa inicial, que as ajuda a vencer desafios de vida ou morte, as pessoas passam às representações do mundo. E o fazem porque a solução, o remédio que a religião provê para os problemas da vida, tende a tornar o mundo parte do próprio problema. O mundo se torna um lugar ameaçador, para aquele que se administrou a medicina religiosa. Ele parece contradizer a religião e, por isso, ameaçá-la. Então, para conciliar a religião e o mundo, as sociedades criam cosmovisões que denominamos mitos. Mas os próprios mitos, embora reduzam o descompasso entre a religião e o mundo, tendem a ser apropriados mais como novos remédios imaginativos do que como antídotos para a “ilusão”.
-- Sim, completou Caco. Porém, quanto mais desenvolvem as várias modalidades de pensamento racional (a filosofia, a matemática, a ciência natural e a humana, as técnicas), mais as pessoas avançam na crítica da “ilusão” religiosa. Nesse processo, elas tendem a superar o impasse entre as interpretações literais e simbólicas do mito, resolvendo-o em favor de umas ou outras, a depender das circunstâncias históricas.
-- Foi o que aconteceu com os filósofos gregos e os grandes escritores romanos, que questionaram os antigos mitos, lembrou de Louça. E também com os rabinos judeus e os teólogos cristãos, que aprofundaram o pensamento religioso em direções racionais.
-- Sem dúvida, concordou novamente Caco. A própria religião inicia o questionamento do mito, ao criar diferentes interpretações dele. Porém, a continuação do questionamento depende da ajuda de outras formas de pensamento racional. Esse processo, que pode ser denominado crítico, é extremamente cruel com a “ilusão” religiosa, pois a reduz a mil pedaços. Levado suficientemente longe, pode chegar a anulá-la. Então, só então, se completa o ciclo de transformação da religião.
Dessa vez, coube a Louça concordar com Caco:
-- Sim. Mas há coisas fora do ciclo que também são importantes para a compreensão dele. Por exemplo, a extinção dos grupos que não desenvolveram a religião. A piedade e os sentimentos ligados a ela foram tão bem-sucedidos, na História Natural, que só os grupos que os cultivaram chegaram até hoje. De sorte que é necessário observarmos as várias etapas de desenvolvimento da religião, sem negligenciar o contraste entre esse desenvolvimento e o das populações não religiosas.
Telha os ouvia com máxima compenetração. Ao final, observou:
-- Estais a sugerir que a religião deve ser julgada por seu inteiro processo de desenvolvimento e não só pelo momento em que a percebemos como ilusão...
-- Precisamente, respondeu Caco. Estamos num inquérito, talvez o mais árduo que já se realizou sobre as origens símias. Há muito, notamos que a origem das nossas espécies prende-se à de outros seres vivos e que essas origens todas, entrelaçadas, governam-se, em parte, por leis como a seleção natural. Porém, esse ponto de vista, que se costuma dizer científico, não torna a religião ilusória, antes a justifica, já que as populações religiosas alcançaram o mais alto grau de sucesso evolutivo. Vede o caso dos Homens. Eles surgiram muito antes da religião. No entanto, as populações que se voltaram à transcendência foram exatamente as que sobreviveram. A evolução humana permite concluir, portanto, que o abandono da religião que os Homens hoje preconizam constitui uma involução, uma reversão evolutiva que dificilmente terá sucesso.
Enquanto debatiam essas ideias, os Macacos chegaram a um trecho da falésia guarnecido de arvoredo viçoso e farto. Ao respirarem o ar fresco que o impregnava, um secreto prazer invadiu-os. Estava claro que, daquele ponto em diante, a fauna passaria a incluir animais cada vez mais diversos, multiplicar-se-iam as fontes, e as árvores tornar-se-iam pródigas em frutos. Lagos, rios e cachoeiras também seriam avistados com crescente facilidade. E para sorte ainda maior do grupo, a bruma rapidamente se dissipava. O que lhes pareceu significar que estavam a salvo do risco diuturno de morte, que os acompanhara na geleira e no deserto. E tanto folgaram que, inspirados por Gênesis, denominaram o lugar Jardim do Éden.
Retomaram, então, a descida, cada vez mais animados. Duas horas mais caminharam e chegaram a um lago de águas serenas, onde deslizava um punhado de Cisnes. De Vidro abordou-os:
-- Salve! Em que lindo lugar habitais! É vossa casa?
-- Sim, respondeu uma das Aves. É nossa casa, na medida em que somos uma família. Se não o formos, não o será.
-- Como assim? perguntou o Símio.
-- A exuberância deste ambiente só perfaz uma casa, um paraíso, se vivermos como família. Esta é a minha família, completou, referindo-se aos pares que singravam com ele as águas.
-- Bem, entendo-o... respondeu de Vidro. Tão galante família deve ser um dos píncaros da evolução das Aves!
-- De que ancestral evolutivo provindes? perguntou Telha, sem poder evitar o tema inquietante.
-- A descendência é assunto por demais complexo, para ser abrangida em pergunta tão restritiva, respondeu-lhe a Ave. Não estamos obrigados a concebê-la como sinônimo de origem de um único e mesmo tronco ancestral.
Essa última frase soou familiar aos Macacos, especialmente a de Vidro, que indagou:
-- Mas não é lá possível citar, ao menos, os mais fortes candidatos a terem sido vossos ancestrais?
-- Vede: se a vida engendrou-se muitas vezes e de muitas maneiras, por que a origem espontânea dela, como a ciência a descreve, e a criação divina, que as religiões propõem, não podem ser ambas verdadeiras? E se o forem, a resposta a vossas perguntas não será jamais encontrada numa investigação limitada aos quadros da Evolução.
De novo a resposta da Ave soou conhecida. Ao ouvi-la, Louça não se conteve. Exclamou:
-- Alarguemos as vistas do nosso intelecto, alarguemo-las extremamente!
Nesse momento, os outros compreenderam, como Louça já tinha feito, que o Cisne citava frases pronunciadas durante o inquérito.
-- As regras do pensamento conceitual, continuou o habitante da mata, submetem-se a um imperativo prático de ordem superior. Os antigos fizeram da Astronomia uma Astrologia. Deram-lhe, pois, um sentido prático. Mas o Homem atual perdeu o contato com essa harmonia entre o conhecimento e seu princípio prático.
Os Macacos estavam paralisados de repentino estupor. Já eram frases do Burro que tinham sido citadas!
-- Quando a ciência se torna bazófia, de pedras, Deus costuma suscitar filhos a Abraão, acrescentou o Cisne.
Assim, do encontro dos quatro com os Cisnes se fez a exibição do inteiro filme do inquérito. Ou ao menos de algumas cenas. Naquele paraíso, os quatro sentiram-se então tocados pelo mais fundo sentimento de verdade. Um sentimento como o que o vento lhes comunicara no deserto.
-- O diapasão do vento, continuou o Cisne, é como a voz de um profeta, que ecoa quando todas as bocas foram amordaçadas, e a ordem cultural oscila. Já a paixão da ciência e a paixão em geral...
-- Não são elas a falsa lira? completou Macaco de Vidro, que passara do estupor ao êxtase; e perguntou-lhe:
-- Que conclusão, que remate, essas frases sugerem para o inquérito que desenvolvemos?
-- Por que não a de que a evolução tem múltiplas fontes, que a ciência, por suas limitações (ou achais que não as possui?), conhece somente em parte? E por que não também a de que, entre as fontes, há uma que guia o processo evolutivo? E que sois manuscritos compostos por essa fonte suprema? Sim, manuscritos como os que achastes e tanto vos inspiraram...
De Vidro estava aturdido com a penetrante ciência e a sabedoria superior que encontrara naquele Animal. Ousou perguntar-lhe ainda uma vez:
-- Por que não proclamas ao mundo essas coisas?
-- Porque o mundo se rege pela aparência. E ao olhar para a minha e a de meus pares, não gosta. Acha-nos feios.
De Vidro olhou ao redor e só viu formosura. A névoa se dissipara completamente. O tempo se abrira em flor. Embeveceu-se de novo com a cena dos Cisnes brancos a vogar nas águas negras do lago. Percebendo que eram sete, o Macaco pediu-lhes:
-- Dizei-nos como vos chamais.
Nesse momento, o Cisne alçou elegante voo. E os outros debandaram após ele.
-- Patinho Feio! exclamou Caco.
-- Sim, Patinho Feio! gritaram os outros, como quem desperta de um sono.
E continuaram a gritar: “Patinho Feio, Patinho Feio!” Mas o Cisne não retornou. E todos se entristeceram.
O chão estava coberto de lírios dos mais lindos matizes.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

O Inquérito dos Macacos (8)

“Em vão percorremos volumes.”
(Carlos Drummond de Andrade)

UMA PALAVRINHA

Os Macacos tiveram de interromper a discussão para caçar. Se é que se pode denominar assim o tentar abater as raras Aves que pousavam nas ruínas em busca de Insetos. Pois as carreiras e saltos que os amigos deram, no esforço de capturar os voláteis, as tocaias que lhes armaram, os pios que arremedaram jamais alcançaram o objetivo e só vagamente imitaram o ato de caçar. No fim, tantos botes foram tentados quantos malograram. E, em vez de abater os Pássaros, de Vidro e seus companheiros tiveram de compartilhar os Insetos locais com eles. Cada um, pois, os tragou como pôde e tentou aproveitar o resto do dia.
Mas nem isso lograram, pois a lua não se alteara no céu e, embora muitas, as estrelas não deram para dourar a noite. Tão grande sequestro de claridade suprimiu a chance de boas conversas e brincadeiras. E para tudo perder, o lúgubre do lugar expandiu-se, como metal no crisol. De sorte que os quatro ficaram ao redor taciturnos. Por fim, vendo não haver conserto para o oco do estômago e o enfado da noite, foram dormir.
E se o jantar fora parco, e a noite, insípida, o repouso subsidiou-se da fraqueza que os Macacos tinham acumulado. Um sono pesado caiu sobre todos. E sonharam que Anfíbios ofereciam-se a eles como refeição, árvores brotavam espontaneamente do solo, e as rochas deitavam água em abundância. Comeram e beberam, pois, nos seus sonhos, tudo o que lhes faltara por longos dias naquele deserto.
Ao despertarem, comentaram os sonhos que haviam sonhado. Mas pronto se lembraram do conselho que as rochas lhes tinham transmitido para que estudassem os manuscritos e se puseram a fazê-lo.
Tomando o rolo maior, de Vidro leu o latim “In principio creavit Deus caelum et terram”. E o traduziu:
-- “No princípio criou Deus os céus e a terra”.
Como os quatro sabiam que o verso original tinha sido escrito em hebraico, de Vidro imediatamente saltou para o verso naquele idioma:
-- “Bere’sit bara elohim et hasamayim we’et ha’ares”.
E como todos se calaram ao ouvi-lo, o Macaco continuou a ler os versos seguintes, sobre os dias da criação. Quando entrou no trigésimo-quinto, que é o quarto do capítulo 2 de Gênesis, seus olhos reluziram de um modo diferente, ao se encontrarem com as palavras “Istae sunt generationes caeli et terrae, quando creata sunt”. De Vidro leu-as para os outros, assim como o verso correspondente em hebraico: “eleh toledot hasamayim weha’ares behibare’am”.
-- Essas palavras significam “Eis as origens dos céus e da terra, quando foram criados”, explicou ao concluir.
E emendou no mesmo fôlego:
-- O último verso é muito semelhante ao primeiro que lemos.
Caco aproximou-se do irmão que tinha o rolo nas mãos para comparar os dois versos. Viu novamente que o primeiro dizia: “No princípio criou Deus os céus e a terra”; e o outro: “Eis as origens dos céus e da terra, quando foram criados”.
-- As palavras céus e terra aparecem nos dois versículos, observou de Vidro. E o verbo ligado a elas é o mesmo: bara, que significa criar. O sujeito que pratica a ação de criar também é idêntico: Deus. Portanto, os dois trechos formulam a mesma afirmação.
-- Estamos diante de uma repetição? perguntou Caco.
-- De certo modo... respondeu o outro, relativizando sem convicção o que recém dissera.
-- Quero dizer... É sem dúvida uma repetição, completou.
-- Mas o adjunto do versículo 1, “no princípio”, não aparece no outro verso, replicou Caco.
-- O adjunto não, mas a locução que está no seu lugar, eleh toledot, tem o mesmo significado de origem ou princípio. Portanto, o sujeito, o verbo, o objeto e as locuções de tempo dos versos equivalem-se.
-- Bem, disse Caco, se é uma repetição do último verso, o primeiro não se refere aos dias da criação, como faz aquele?
-- Foi a impressão que tive e abalei-me, ao ler o quarto versículo do capítulo 2, ainda há pouco. Quando pensam que “No princípio criou Deus os céus e a terra” refere-se a um tempo anterior aos sete dias, as pessoas negam a equivalência entre esse verso e o que se inicia com as palavras “Eis as origens”. Isso introduz a ideia de uma criação em dois tempos. Há séculos, as principais correntes da teologia cristã enveredaram por esse caminho interpretativo.
Caco atalhou:
-- Mas os teólogos podem ter-se confundido, na medida em que o cristianismo se universalizou e perdeu o contato mais íntimo com a língua hebraica. Um indício desse desvio pode residir no fato de a criação em dois tempos não ser facilmente encontrada, na literatura judaica antiga. O judeu Flávio Josefo, por exemplo, interpretou “no princípio” como no primeiro dia da criação. Assim ele expôs o primeiro versículo de Gênesis, no início de sua obra sobre as Antiguidades judaicas. E é natural que o tenha feito, se o texto da criação em hebraico equipara os versículos que analisamos.
De Vidro lembrou:
-- A criação em dois tempos era uma ideia grega. Tanto a religião primitiva como a olímpica ensinavam que primeiro se formou um Caos, depois a ordem. Para os gregos, a criação desdobrava-se nessas etapas. Porém, os judeus não adotaram semelhante ideia. O autor do 2º Livro dos Macabeus é um exemplo, pois admoestou: “Meu filho, olha para o céu e para a terra e para todas as coisas que há neles, e pensa bem que Deus as criou do nada, assim como todos os homens”. A criação do céu e da terra, no primeiro verso de Gênesis, e a de tudo o que neles há, inclusive os homens, narrada nos sete dias, são mencionadas sem distinções ou nuanças, como uma só sequência.
Enquanto os dois dialogavam, de Louça tinha os olhos pregados no manuscrito. Era evidente que estava num ápice de concentração. De repente, gritou:
-- O verbo hebraico, bara! Aparece nos dois versículos e também nos de números 21 e 27!
Os outros imediatamente releram os trechos citados por Louça.
-- Tens razão, reconheceu Caco. Mas aonde nos queres levar com a afirmação?
-- Bara é o mesmo que criar. Embora o capítulo 1 inteiro trate da criação, o verbo criar só aparece nos versos 1, 21 e 27.
-- Admito que é um uso bastante parcimonioso, disse de Vidro. Especialmente se considerarmos que bara é o termo que melhor exprime a ideia de criação.
Caco tornou a intervir:
-- Se nos afastarmos um pouco de Josefo, poderemos concluir que os sete dias não começam no versículo 1, mas no 3. Assim como o verso “Eis as origens dos céus e da terra” é um fechamento geral, as palavras “No princípio criou Deus os céus e a terra” formam uma introdução geral, um preâmbulo. Não descrevem ainda os sete dias.
De Telha permanecera em silêncio, até então, pois despendia um esforço particular: tentava entender e reunir as ideias dos outros num quadro geral. Mas a intervenção de Macaco de Louça levou-o a antecipar seu balanço:
-- Dois importantes pontos do texto atraíram-nos a atenção esta manhã. O primeiro é a equivalência entre o verso “No princípio criou Deus os céus e a terra” e o que diz “Eis as origens dos céus e da terra, quando foram criados”. Bara aparece nos dois. Para os judeus antigos, a obra da criação abrangida nesses versos foi realizada em sete dias. Por outro lado, nos versos 21 e 27, bara é empregado para descrever a origem de seres particulares dos céus e da terra: os grandes animais marinhos, as Aves e o Homem.
-- Esse modo de sintetizar é muito apropriado! concordou Caco. Induz à compreensão. Entre as palavras de abertura e de fechamento, que se referem à obra geral da criação, os sete dias descrevem os atos particulares de Deus. Neles, o verbo bara só aparece duas vezes. E em ambas é associado à bênção de Deus.
Caco indagou:
-- Isso não forma um... padrão? Se isolarmos os sete dias, deixando de parte a introdução e a conclusão introduzidas por “No princípio” e “Eis as origens”, os verbos haver, separar, ajuntar, aparecer, fazer, povoar são usados para descrever os atos criadores de Deus, com a exceção dos que aparecem associados às bênçãos divinas. A estes, só o verbo bara é ligado.
Caco tirara do texto a ilação extrema: a obra dos sete dias revela um padrão consistente no uso de verbos sempre variados para os seres não abençoados por Deus e de um único verbo (bara) para os seres abençoados.
De Vidro lembrou:
-- Os estudiosos mostraram que o termo toledot (“eis as origens”) aparece muitas outras vezes no texto hebraico de Gênesis. O verso 4 do capítulo 2 é uma dessas menções: a primeira delas. Em todas, o termo serve para delimitar uma história originalmente transmitida em separado. Portanto, toledot é um termo de ligação, um gonzo, no qual as partes de Gênesis giram. Se o primeiro verso do livro e o quarto do capítulo 2 têm valor idêntico, ele deve ser o de um toledot.
-- Sim, e a história dos sete dias foi originalmente autônoma em relação à que começa no verso 4 do capítulo 2, confirmou Caco. Cada qual foi escrita por autor diferente, em época também diferente. Até o nome usado para designar Deus numa delas é Elohim, e na outra, Iahweh ou Iahweh Elohim. Essa radical autonomia dos capítulos 1 e 2 nos permite pensar em diferentes nuanças da ideia de criação, num e no outro texto. Aliás, se for mesmo assim, o padrão que acabamos de identificar, no primeiro capítulo, pode não se repetir na obra do segundo autor.
A ideia de Caco causou algum estremecimento. Podiam dois autores de fontes bíblicas terem concepções diferentes sobre a criação? Não havia remédio para essa dúvida, a não ser lerem o capítulo 2 de Gênesis, com muita atenção. Os quatro entregaram-se, então, a essa tarefa. Leram todo o capítulo, do modo como tinham lido o primeiro. Notaram que os seres cuja criação é designada pela palavra bara, no capítulo 1, foram “formados” (wayiser, em hebraico) por Deus, no 2. É o caso do Homem, “formado do pó da terra” no verso 7, das Aves, “formadas da terra” no 19, e da Mulher, formada da costela do Homem no 22. Não lhes pareceu, portanto, haver dúvida: o padrão do capítulo 1 não se reproduz no 2, o que confirma a origem autônoma dos textos originais.
Verificaram mais que a associação de bara à bênção de Deus tampouco aparece em trechos esparsos da Bíblia sobre a criação. O que levou Caco a sugerir:
-- Se o padrão não se repete, deve ter sido adotado exclusivamente pelo autor do capítulo 1. Ele pode ter pretendido transmitir algo que nenhum outro autor bíblico afirmou. Pensemos: se o padrão tem por base a bênção, a ideia que introduz é de que criar, para Deus, é criar e abençoar. Portanto, os seres criados, mas não abençoados, nos sete dias, foram criados antes, quando também foram abençoados.
-- Mas isso não nos remete a uma criação em duas etapas, que vimos ter sido estranha ao pensamento judeu da época? perguntou Telha; e tinha boas razões para isso.
-- Remete, sim, admitiu Caco. O autor de Gênesis 1 foi uma voz dissonante, no que tange às duas etapas. Exatamente por isso, pode ter sido um precursor dessa ideia entre os judeus. E pode não a ter divulgado, para não ser hostilizado por pessoas que pensavam diferentemente.
-- Admitamos, disse de Telha. Mas a que parte essas conclusões nos levam? De que nos servem?
-- Se Gênesis 1:1-2 equivalem ao toledot do capítulo 2, verso 4, os sete dias começam quando eles terminam. Assim, o padrão um único verbo para os seres que recebem a bênção divina, vários verbos para os que não a recebem ressalta ainda mais. O padrão é uma mensagem implícita, um testemunho tácito, nas entrelinhas do texto, pois não pôde ser manifesto. Em termos de História Natural, ele indica que a criação foi precedida por outros atos originadores. É preciso considerar esses atos implícitos, para se entender a mensagem da criação em Gênesis. E se os considerarmos, o testemunho bíblico passará a ser de que o mundo foi criado muito antes do quarto ou quinto milênio antes de Cristo, em que Adão é situado.
-- A palavrinha bara... murmurou Caco. Não é ela a chave do texto que lemos? E a chave não abre a porta da sua verdade?
-- Queres dizer que esconderam a chave durante milênios? indagou Louça.
À pergunta de Caco e Louça, Telha pegou várias outras:
-- O discurso da ciência, não contradiz o da Bíblia? Não é a religião a miragem de benefícios como os dos sonhos que tivemos na última noite? E a paixão da ciência: não remove a que inflama o coração crente?
O próprio Vidro acompanhou-os nesse perguntar que era também catarse:
-- A paixão da ciência... murmurou. A paixão em geral... Não são elas a falsa lira? Não percorremos em vão os volumes de uma ciência que se perdeu?