Muitas passagens bíblicas afirmam que somos servos (em grego, douloi: escravos) de Deus. Mas só em Lucas 17:7-10, o estatuto dessa servidão é proclamado. Só esse texto expõe à luz do meio-dia em que consiste ser servo de Deus: “Qual de vós, tendo um servo ocupado na lavoura ou em guardar o gado, lhe dirá quando ele voltar do campo: Vem já e põe-te à mesa? E que antes não lhe diga: Prepara-me a ceia, cinge-te, e serve-me, enquanto eu como e bebo, depois comerás tu e beberás. Porventura terá de agradecer ao servo por ter este feito o que lhe havia ordenado? Assim também vós, depois de fazerdes tudo quanto vos for ordenado, dizei: Somos servos inúteis, porque fizemos apenas o que devíamos fazer.”
As parábolas de Lucas contêm solilóquios. A do filho pródigo é o clássico exemplo. O anti-heroi não abandona, apenas, a velha vida. Antes de o fazer, ele cogita: “Quantos empregados de meu pai têm abundância de pão, e eu aqui pereço de fome! Levantar-me-ei, irei ter com meu pai”. Nessa e em outras parábolas, a comunicação da personagem consigo mesma despe a sua alma, mostra quem realmente ela é. O mesmo se dá no texto em exame, com a só diferença de que, aqui, o monólogo surge ao final, quando Jesus exorta: “Dizei: Somos servos inúteis, porque fizemos apenas o que devíamos fazer”.
Não exagera quem reconhece, nesse tanto de solilóquio, nesse dizer de si para si, o centro da parábola e da própria vida de fé. Ter fé é dizer-se essa frase. É dizê-la do fundo de si e para si mesmo. É até mesmo pregá-la, mas pregá-la para si, com a verve com que Antônio pregou aos peixes: “Aos homens deu Deus a razão sem o uso; aos peixes, o uso sem a razão”. É convocar-se ao arrependimento e arrepender-se. É comparecer livremente ao tribunal da consciência, nele erguer-se e confessar a própria inutilidade. Mas só vale confessá-la de modo sentido. Com os olhos baixos e a alma desnuda. Sem esse fundo reconhecimento, pode haver serviço a Deus, mas não há reino de Deus.
O monólogo de Lucas 17:10 é o que constitui o servo de Deus. Sem o dizer íntimo, o dizer de si para si, o servo-por-fora é apenas um falso servo. Alguém pronto para o passo da traição. Ele só se torna um servo verdadeiro, quando se faz servo-também-por-dentro. Ecoando essa lição, Paulo disse a Filemon que o escravo Onésimo antes lhe fora inútil (Fm 11). Pode-se distinguir nessas palavras o aroma de Lucas 17:10. Onésimo fora escravo de Filemon, portanto lhe fora inútil. Esse o conceito bíblico de servidão.
Lutero foi homem colérico. Historiadores católicos tentaram, de todas as formas, retratá-lo como pecador contumaz. Só não é possível negar que Lutero tenha alcançado sensação profunda da própria miséria e da acabada inutilidade humana. Num texto famoso, ele resumiu nossa condição nas palavras: “Somos mendigos: esta é a verdade”. É preciso desconhecer totalmente a condição humana para negar tal veredito.
No entanto, o mundo está cheio de pessoas que pensam servir a Deus, sem se pensarem inúteis. Quantos sabem tudo sobre tudo! Quantos estavam ao lado de Deus, quando ele lançou os fundamentos da terra, quando lhe pôs medidas e estendeu sobre ela o cordel, quando as bases do mundo foram esquadrinhadas, e as estrelas da alva cantavam de júbilo (Jó 38:4-7). Quantos têm respostas prontas sobre esses e todos os outros mistérios. Sobre o passado remoto e a eternidade futura. Sobre Gênesis e Apocalipse. Sobre tudo o que é preciso para consertar os outros e a própria igreja de Deus. Só não sabem uma coisa: que são totalmente inúteis.
“A criação consistiu em formar tudo o que existe e dizer 'É bom'; a nova criação consiste em o homem, coroa da criação, pronunciar o bom solilóquio.”
E o mais espantoso é que, não raro, esse enxame de presunçosos não está disposto a mover uma palha para buscar a sabedoria. Eles não querem ir para o campo. Muito menos voltar exaustos, preparar a ceia e servir a mesa. Claro que, assim, permanecem infinitamente longe da condição necessária para proclamarem “somos inúteis”. A parábola nem os exorta a dizê-lo, mas a irem para o campo, derramarem suor, conhecerem o que é fadiga e só então se reconhecerem miseráveis, pobres, cegos e nus.
Uma coisa é alguém nada fazer e dizer-se inútil; outra muito diferente é tudo fazer, completar uma obra extenuante, talvez esplendorosa, e dizer sobre ela: “Senhor, sou servo inútil, pois fiz apenas o que devia fazer”. Essa é a obra-prima do Espírito de Deus no homem. A criação consistiu em formar tudo o que existe e dizer “É bom”; a nova criação consiste em o homem, coroa da criação, pronunciar o bom solilóquio.