terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Amarrar o Valente

Quando Jesus expulsou o demônio mudo de um homem, escribas provenientes de Jerusalém afirmaram que ele estava possuído por Belzebu e expelia demônios por meio deste (Mc 3:22).  De modo impressionante, Jesus refutou essa acusação sem investir contra o pano de fundo teológico da época, que considerava Belzebu um líder do mal distinto de Satã. Pelo contrário, ele afirmou que, se expulsava demônios por Belzebu, então Satanás combatia o próprio Satanás: Lúcifer digladiava com um grande demônio.
Na mitologia cananeia e filisteia, Belzebu era considerado a segunda ou terceira maior autoridade dos infernos. Um maioral dos demônios. Por isso, a afirmação dos escribas implicava que o reino do mal estava dividido. Mas a resposta de Jesus, diametralmente contrária à afirmação dos eruditos da época, significava que estes estavam errados, pois a divisão das forças do mal que preconizavam não era verdadeira.
Por um lado, com a sua resposta, Jesus confirmou a crença farisaica na existência de espíritos maus e mesmo de um reino do mal. Claro que não devemos pensar nesse reino como algo tão estruturado e perfeito quanto o de Deus. Longe disso. Porém, ainda assim, o mal não deixa de ser um reino, com líderes, principados, potestades e maiorais.
O Novo Testamento revela que o reino de Deus subjuga e conquista o do mal, assim como os romanos conquistaram a Síria, a Judeia e o Egito, entre muitos outros territórios. Isso se dá na medida em que os espíritos malignos são imobilizados por Cristo e seus seguidores movidos pelo Espírito Santo.
Infelizmente, nos nossos dias, tornou-se moda não crer no mal. Os que não aceitam a inexistência do mal como moda tomam-na como convenção científica. O resultado é a crença de que todo mal é humano. Não há mal sobre-humano. Esse é um dos fundamentos específicos e diferenciadores da cultura contemporânea.
O Novo Testamento revela algo diferente dessa moda e dessa convenção. Revela que ao reino de Deus opõe-se o do mal. Desvela outrossim que a vinda do reino de Deus subjuga as forças das trevas, como Jesus exprimiu na parábola: “Quando o valente [homem forte] bem armado, guarda a sua própria casa, ficam em segurança todos os seus bens. Sobrevindo, porém, outro mais valente [forte] do que ele, vence-o, tira-lhe a armadura em que confiava, e lhe divide os despojos” (Lc 11:21-22).
A parábola está associada aos versos seguintes: “Quando o espírito imundo sai do homem, anda por lugares áridos, procurando repouso; e não o achando, diz: Voltarei para minha casa, donde saí. E tendo voltado, a encontra varrida e adornada. Então vai, e leva consigo outros sete espíritos, piores do que ele, e, entrando, habitam ali; e o último estado daquele homem se torna pior do que o primeiro” (Lc 11:24-26).
Ao contrário do que pode parecer a um primeiro exame, o texto do espírito imundo é também uma parábola. Era comum Jesus pronunciar histórias consecutivas sobre um mesmo tema. É o que se passa aqui. Se a história do espírito imundo não fosse parábola, não deveria conter o solilóquio (próprio desse tipo de texto alegórico): “não o achando, diz: Voltarei para minha casa, donde saí”. De modo que, a uma parábola, se segue outra.
Vejamos, então, o que cada história traz e como elas se conectam. Na que é contada a princípio, um homem forte é amarrado por outro ainda mais forte que ele. Santo Agostinho identificou esse amarrar com o aprisionamento de Satanás, durante o reino milenar (Ap 20:2). A interpretação contém uma verdade profunda, porém não devemos ir ao ponto de aproximar ou fundir textos simbólicos tão distantes quanto a parábola do valente e as profecias de Apocalipse 20. O acorrentamento de Satanás, em Apocalipse, não é idêntico ao amarrar do valente, nos Evangelhos, pois este se passa agora, e o reino milenar ainda não é chegado. Quando chegar, o aprisionamento do Diabo será muito mais pleno, completo e irrestrito do que é hoje. Portanto, as imobilizações do mal na parábola do valente e em Apocalipse são acontecimentos distintos.
A segunda parábola ajuda-nos a entender isso. Ao ser expelido do homem, o espírito vaga por lugares áridos, até deparar-se com a ocasião de voltar à casa de onde saiu. Então, ele a acha varrida e adornada. As práticas de varrer e adornar não eram muito comuns em residências palestinas do primeiro século, cuja imensa maioria era rústica e dotada de piso muito irregular. Só por motivos especiais, como o retratado no texto da dracma perdida, uma residência era varrida. Tampouco era costume judeu adornar muito as casas. Isso leva a crer que a casa a que Jesus se referiu era mais sofisticada que uma residência. Era um edifício público ou mesmo um palácio.
Sob esse ponto de vista, a volta do espírito imundo à sua casa significa o retorno das forças do mal não a um indivíduo, mas a grandes coletividades, até mesmo a nações (no caso, Israel), que elas haviam possuído e de que tinham sido expulsas, por ocasião do advento do reino de Deus. Essa conclusão torna-se clara na versão de Mateus que, após afirmar que o último estado do homem veio a ser pior que o primeiro, conclui: “Assim há de acontecer também a esta geração perversa” (Mt 12:45). A casa não é um indivíduo; é a geração.
Assim conjugadas, as parábolas do homem forte e do espírito imundo formam um retrato da História espiritual da humanidade, da vinda de Jesus Cristo até hoje. Essa História é muito diferente da História social geralmente narrada nos livros. De acordo com ela, muitos povos abraçaram o evangelho, conheceram a verdade e foram libertados da escravidão às forças do mal, mas estas voltaram a possuí-los, e o último estado deles veio a ser pior que o primeiro. Esse é o testemunho bíblico.

“Nada disso é muito aceito hoje em dia. Uma orquestração se formou contra a História espiritual dos Evangelhos, o que é mau. Porém, o pior é que, a muitos dos que não creem em tais realidades, será dado um sinal diferente do de Jonas.”

A História espiritual implícita nas parábolas do valente e do espírito imundo mostra a alternância de períodos de maior luz e de prevalência das trevas, na trajetória dos povos. Quando João e Jesus começaram a pregar, subitamente, a luz dissipou as trevas (Jo 1:4-5). Porém, estas logo tornaram a prevalecer (Jo 3:19). Com a expansão do evangelho entre os gentios, de novo a escuridão recuou, em muitos lugares. Quando Graciano renunciou ao título de Sumo Pontífice das religiões pagãs, no fim do século IV, ela sofreu um revés poucas vezes visto. Mesmo quando essa condição especial se perdeu, a casa de muitos povos ainda permaneceu vazia, como Mateus acrescenta: “chegando, [o espírito imundo] acha-a desocupada, varrida e adornada” (Mt 12:44). No entanto, as trevas sempre refluíram, sempre voltaram a ocupar e governar o mundo. Este jaz no maligno (1 Jo 5:19) não por ser mau, mas por ter sido dominado por forças do mal.
Nada disso é muito aceito hoje em dia. Uma orquestração se formou contra a História espiritual dos Evangelhos, o que é mau. Porém, o pior é que, a muitos dos que não creem em tais realidades, será dado um sinal diferente do de Jonas.