domingo, 15 de janeiro de 2012

O Juiz Iníquo

Assim como a parábola da figueira se segue ao discurso sobre Jerusalém sitiada, no capítulo 21, versos 7 a 28 de Lucas, a história do juiz iníquo vem logo depois do texto sobre a segunda vinda de Cristo, em 17:20-37. Esse dado é importante para entendermos que a parábola do juiz não se refere somente à oração, mas à oração escatológica.
Jesus afirmou que “os dias do Filho do homem” seriam como os de Noé e Sodoma, antes do julgamento de Deus desabar sobre ela (Lc 17:26-32). Os dois episódios formam o pano de fundo da parábola do juiz. Nos dias de Noé, as pessoas não apenas “comiam, bebiam, casavam e davam-se em casamento” (Lc 17:27). Se isso fosse tudo a ocorrer, o juízo divino não teria arrasado aquela civilização. Semelhantemente, quando Ló residia em Sodoma, os habitantes locais não apenas “comiam, bebiam, compravam, vendiam, plantavam e edificavam” (Lc 17:28). Por trás desses atos legítimos, ocultavam-se pecados terríveis, que os homens de então praticavam e que selaram a sua condenação.
Para se ter ideia da gravidade das violações ocorridas antes do Dilúvio, basta lembrar que os filhos de Deus uniram-se com as filhas dos homens que mais lhes agradaram (Gn 6:1-2). Dois autores do século XIX (G. H. Pember e G. H. Lang) mostraram, com bons argumentos, que os filhos de Deus daquela época eram seres angélicos. Portanto, as uniões ilegítimas deles com as filhas dos homens serviram para interligar o mundo humano e a esfera angélica. A separação instituída por Deus, entre essas duas ordens da sua criação, foi totalmente desrespeitada. Esse foi o pecado que inaugurou o caos anterior ao Dilúvio.
A mesma tendência à anomia e à mais aguda desordem manifestou-se em Sodoma, cujos habitantes pretenderam abusar dos anjos que Ló recebera em sua casa (Gn 19:1-5). Portanto, não estamos a falar de pecados comuns, mas de violações gravíssimas, de verdadeiras subversões da ordem instituída por Deus para a vida humana e angélica. Foi esse tipo de pecado que Jesus predisse que aconteceria, de novo, “nos dias do Filho do homem”, inclusive antes da sua segunda vinda.
A parábola do juiz iníquo coloca os atos do adversário da mulher enviuvada, em paralelo com os pecados da época de Noé e dos sodomitas. A viúva roga ao juiz que lhe faça justiça contra essa laia, contra essa “raça” ímpia. Devemos interpretar seus rogos insistentes e às vezes desesperados como clamores por sobrevivência. A mulher ergue sua voz, como Noé ergueu a sua quando a violência encheu a terra, em seus dias (Gn 6:11), como Ló insistiu com os anjos para que entrassem na sua casa e como os israelitas clamaram a Deus, sob a cruel opressão de Faraó. Esses clamores mudaram a história, nas suas respectivas épocas. Jesus assegurou-nos que o da viúva a mudará ainda hoje.
Ele usou a figura do juiz iníquo, não porque Deus seja mau, mas porque os juízes romanos da sua época o eram. Essa era a figura que estava à disposição. Ela calha perfeitamente para ilustrar o que mais estarrece os crentes na face da Terra: a injusta prosperidade dos ímpios. Não é incomum homens maus, com o perfil do adversário da viúva, levarem vida regalada, terem poder sobre os justos, comandarem instituições públicas e o próprio mundo. Não é incomum eles fazerem tudo isso, enquanto nutrem as mais pérfidas intenções para com os justos. O paralelo com as épocas de Noé e Sodoma mostra que isso se dá, porque o adversário da frágil viúva vive em promiscuidade com espíritos maus, anjos caídos e demônios, que o influenciam e impelem.

“Muito pode, por sua eficácia, a súplica do justo” (Tg 5:16): a da viúva é a súplica por excelência, a oração exemplar, paradigmática, o rogo incendiado, que faz Deus erguer diques na História.

A esse terrível estado de coisas, Jesus ensinou-nos a opor a oração da viúva. A oração é o antídoto para a prosperidade dos ímpios. É instrutivo como a parábola afirma que as constantes súplicas da mulher infelicitada forçam o juiz a realizar o que não pretende. Mais uma vez, a lição ministrada não deve ser extraída literalmente. Não se trata de que Deus não deseje livrar o seu povo das garras do adversário, mas de que ele não o pretende fazer, no momento em que a oração o desperta. No entanto, paradoxalmente, é isso que ele faz.
Deus não antecipa a vinda de Cristo, para socorrer os seus. Ele os socorre antes daquela vinda, para que não sejam consumidos pelo adversário que ruge como leão. Porém, uma ressalva há ser feita: a parábola ensina que Deus só intervém, após a viúva derramar suas súplicas. “Muito pode, por sua eficácia, a súplica do justo” (Tg 5:16): a da viúva é a súplica por excelência, a oração exemplar, paradigmática, o rogo incendiado, que faz Deus erguer diques na História.