Por muitos séculos, os cristãos julgaram os conflitos entre grupos com posições opostas, com base na doutrina que cada qual professava. Recentemente, tornou-se comum os conflitos serem pensados por um novo critério: a prática espiritual de cada partido. Em ambos os casos, pressupõe-se a existência de um indicador (a doutrina ou a prática espiritual) da situação das pessoas diante de Deus.
No fundo, a relação do ser humano com Deus ocorre no coração e é impenetrável. Nem a doutrina, nem as práticas espirituais a desvendam adequadamente. Por isso, a Bíblia apresenta um critério mais confiável, com base no qual devemos julgar os conflitos. 1ª de João 4:20 afirma: “Se alguém disser: Amo a Deus, e odiar a seu irmão, é mentiroso; pois aquele que não ama a seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê”. 1ª de João 3:18 completa: “Não amemos de palavra, nem de língua, mas de fato e de verdade” (1 Jo 3:18).
As palavras “não pode amar a Deus, a quem vê”, no primeiro versículo, tornam falsa toda espiritualidade calcada apenas no relacionamento com Deus. Sejam quais forem as práticas espirituais de uma pessoa ou grupo, eles não podem amar a Deus, sem amar os irmãos por atos concretos e consistentes. Certamente é possível ao homem orar, entoar cânticos e oferecer sacrifícios a Deus, a quem não vê, sem amar seu irmão a quem vê, mas não lhe é possível amar a Deus sem amar o irmão. O amor é diferente de palavras e sacrifícios. Estes podem ser realizados pelo homem; o amor a Deus nasce do próprio Deus, que não o concede a quem odeia seu irmão.
Quantas vezes nos deparamos com a pregação de uma espiritualidade assentada na base exclusiva do relacionamento com Deus. Quantas vezes ouvimos que quem busca a Deus em oração encontra-o e se santifica, independentemente de qualquer outro fato. Não é assim. Quem busca a Deus recebe-o e se santifica, se ama o seu irmão. Se não ama, não o recebe, nem se santifica. E se insiste em afirmar que o faz, não passa de mentiroso, pois Deus não concede o amor mais sublime a fratricidas.
Impossível é ao homem, situado no plano do ver, do tocar, enfim no plano da corporeidade, amar a Deus, a quem não vê, sem amar o irmão, a quem vê. A espiritualidade somente vertical é falsa como uma nota de três reais. Não menos falsa é a espiritualidade vertical e horizontal, que coloca a verticalidade acima da horizontalidade. A Bíblia nos dá uma única e irrevogável definição do amor a Deus: o amor ao irmão. E diz mais: esse amor deve ser dirigido ao irmão que pode ser visto, não à pessoa distante ou ao irmão abstrato. Para o homem, não há irmão abstrato ou distante que ele possa amar.
Em Mateus 21:33-41, Jesus proferiu a parábola do homem que plantou uma vinha, cercou-a com uma sebe, cavou um lagar, edificou uma torre, arrendou-a e se ausentou do país por longo tempo. No momento oportuno, esse dono da vinha enviou vários servos para receberem a paga do arrendamento, em forma de frutos. Porém, em vez de entregarem o pagamento devido, os lavradores que receberam a vinha surraram os enviados do dono e os despediram de mãos vazias. Por fim, o homem enviou o seu próprio filho, para tentar receber os frutos, e os lavradores o mataram.
Desnecessário é lembrar que os lavradores de Mateus 21 representam os líderes religiosos de Jerusalém, os servos enviados à vinha, os profetas do Antigo Testamento, e o filho morto pelos lavradores, o próprio Cristo. Quase todos os comentadores do Novo Testamento o reconhecem. Falta-nos perceber que a parábola é um verdadeiro resumo prático da Sagrada Escritura. Jesus declarou aos fariseus e aos escribas que sobre eles recairia “todo o sangue justo derramado sobre a terra, desde o sangue do justo Abel até ao sangue de Zacarias, filho de Baraquias, a quem matastes entre o santuário e o altar” (Mt 23:35). Abel foi morto em Gênesis 4. O assassinato de Zacarias é narrado em 2º das Crônicas (20:14), o último livro da Bíblia judaica. Com isso, Jesus quis dizer que a perseguição dos enviados de Deus atravessa a Escritura e é o seu tema prático mais importante. Ela é o reverso do amor aos irmãos, que 1ª de João prega.
Não é demasiado pensar que a parábola continua, na era do Novo Testamento. Só pode continuar, já que a perseguição está inscrita no DNA humano. Ela está implícita no fato de haver filhos de Deus e filhos do maligno, filhos do arrependimento e filhos da justiça humana em constante conflito. A vinha foi retirada dos lavradores judeus e entregue aos que creem em Cristo (Mt 21:41,43). Estes são chamados santos, mas não estão isentos do DNA de seus predecessores. Por isso, ao se encontrar com os presbíteros de Éfeso antes do seu aprisionamento, Paulo advertiu-os de que, “depois da minha partida, entre vós penetrarão lobos vorazes que não pouparão o rebanho. E, dentre vós mesmos, se levantarão homens falando cousas pervertidas para arrastar os discípulos atrás deles” (At 20:29-30). A profecia cumpriu-se à risca. Mais do que isso, o ocorrido em Éfeso foi uma amostra do que se passou no mundo inteiro, durante quase 20 séculos.
Eis, no entanto, que o sangue justo derramado tem sido esquecido. O clamor erguido por ele, de Abel até hoje, tem sido pouco escutado pelos cristãos, para não falar do mundo. Importam as doutrinas. Importam as “práticas gloriosas”, as experiências arrebatadoras. Enquanto isso, porém, a voz dos que foram perseguidos por causa da justiça continua a ressoar e a ser lembrada no céu: “Até quando, ó Soberano Senhor, santo e verdadeiro, não julgas nem vingas o nosso sangue dos que habitam sobre a terra?” (Ap 6:10).