Ao longo dos seus 87 anos de vida, John Wesley travou cerrada luta contra o antinomianismo, a saber, a doutrina de que o crente em Cristo é livre de toda espécie de lei. Algumas vezes, essa luta rendeu-lhe a acusação de desvio da graça, entre outras. Porém, um olhar retrospectivo permite entender que ela foi importante para moderar os excessos do hipercalvinismo daquela época.
No Antigo Testamento, toda outorga importante de mandamentos é seguida de sérias exortações para que eles sejam observados (Dt 6:6-7; 32:46-47). Seguindo esse costume, no sermão do monte, após interpretar e aplicar os mandamentos do Antigo Testamento a várias situações de vida, Jesus admoestou seus ouvintes a praticá-los, mediante a parábola da casa edificada sobre a rocha: “Todo, pois, que ouve estas minhas palavras, e as pratica, será comparado a um homem prudente, que edificou a sua casa sobre a rocha [...] e todo aquele que ouve estas minhas palavras e não as pratica, será comparado a um homem insensato, que edificou a sua casa sobre a areia” (Mt 7:24,26).
As palavras que devem ser ouvidas e praticadas, de acordo com a exortação de Jesus, são as do seu discurso, em Mateus 5 a 7. Nessa longa passagem, Jesus basicamente interpretou a lei de Moisés (capítulo 5) e a aplicou à vida de adoração, ao trato com recursos materiais (capítulo 6) e ao relacionamento com o próximo (capítulo 7). Por isso, entender o sermão do monte à parte da legislação mosaica é retirá-lo do contexto histórico. É esquecer que Jesus era um mestre judeu ensinando discípulos também judeus. Em hebraico, a palavra torá (lei), na verdade, significa instrução. Como mestre, tudo o que Jesus transmitia era torá, instrução, portanto não estava desvinculado da Torá de Moisés.
À luz desses fatos, é surpreendente que o zelo pela Torá seja considerado descabido em um crente em Jesus. Não foi esse o ensinamento do mestre da Galileia. De acordo com ele, quem ouve e pratica a sua interpretação da lei (Torá) é como o homem que constroi a sua casa sobre a rocha; quem a ouve e não a pratica é como o que a edifica sobre a areia. Portanto, antes de tudo, edificar a casa na rocha não é considerar a Torá abolida, como muitos fazem, mas tomá-la como importante parâmetro para a própria vida.
Ter a Torá em alta estima é uma preocupação tão atual e pertinente, sob o Novo Testamento, quanto sob o Antigo. Vejamos como Jesus ensinou a interpretar esse monumento legislativo. No sermão do monte, ele mostrou que os mandamentos de Deus, na Torá, são antes de tudo elásticos, que eles se alongam, conforme os inserimos nas nossas situações de vida. A santidade daquele que disse “Não matarás” exige entendermos que a proibição significa também “Não te encolerizarás” (Mt 5:21-22). E a santidade daquele que disse “Não adulterarás” importa não olhar para uma mulher com intenção contrária a esse mandamento (Mt 5:27-28). Em síntese, Jesus mostrou que cada mandamento da lei contém muito mais do que as suas palavras exprimem.
Por outro lado, o Novo Testamento mostra que a observância da Torá nunca foi demandada de não judeus. Quando a contenda sobre a circuncisão e o cumprimento da Torá, pelos gentios, foi suscitada pelos judaizantes, em Atos 15:1,5, os apóstolos e anciãos de Jerusalém, reunidos com Paulo, Barnabé e outros mais, escreveram-lhes que os únicos mandamentos (ditos essenciais) que os gentios deveriam guardar eram: abster-se de coisas sacrificadas a ídolos, do sangue, da carne sufocada e das relações sexuais ilícitas (At 15:28-29).
Esses mandamentos não foram selecionados arbitrariamente. Os três primeiros reproduzem leis que Deus prescreveu aos descendentes de Noé (Gn 9:4). Os gentios cristãos do primeiro século eram descendentes de Noé. Portanto, deviam observar os mandamentos entregues a ele. Além disso, deviam abster-se apenas das relações sexuais ilícitas, uma expressão com significado não totalmente claro. Assim, os gentios foram dispensados do cumprimento da Lei de Moisés.
Não foram, porém, dispensados da observância dos mandamentos que Jesus entregou a seus discípulos. Esses mandamentos, denominados lei de Cristo (1 Co 9:21), obrigam tanto judeus como gentios. Eles nada mais são que a legislação de Moisés interpretada de acordo com o coração de Deus e depurada das concessões devidas ao coração do homem. Jesus afirmou, por exemplo, que o direito de dar carta de divórcio às mulheres fora introduzido, na Lei de Moisés, como concessão à dureza do coração do povo judeu (Mt 19:8). Certamente, essa não foi a única concessão à dureza humana, na legislação mosaica, Porém, sob o reino dos céus, essa lei é tomada de acordo com o coração de Deus, não mais com o do homem, e as concessões são retiradas.
"Ainda hoje, a aversão aos mandamentos de Deus e de Cristo continua a constituir o velho erro, que Wesley denominou antinomianismo. Ainda hoje, “aquele que diz: Eu o conheço, e não guarda os seus mandamentos, é mentiroso” (1 Jo 2:4)."
Em passagens como as citadas acima, Jesus deixou muito claro o modo como interpretava a Lei de Moisés. Não deixou menos claro que essa lei permanece em vigor, embora deva ser interpretada de maneira nova. A rocha sobre a qual nos cabe construir nossa casa são os ensinamentos legislativos de Jesus. O sermão do monte é o texto mais importante a respeito deles. Porém, o Novo Testamento e os escritos joaninos, em particular, estão repletos de alusões a essa lei (Jo 14:15,21; 1 Jo 3:22; 1 Jo 5:2-3).
Ainda hoje, a aversão aos mandamentos de Deus e de Cristo continua a constituir o velho erro, que Wesley denominou antinomianismo. Ainda hoje, “aquele que diz: Eu o conheço, e não guarda os seus mandamentos, é mentiroso” (1 Jo 2:4). Jesus colocou essas coisas de modo bem simples: “Se me amais, guardareis os meus mandamentos” e “aquele que tem os meus mandamentos e os aguarda, esse é o que me ama” (Jo 14:15,21). “Porque este é o amor de Deus, que guardemos os seus mandamentos” (1 Jo 5:3).