A parábola do filho pródigo inicia-se com o pedido dele para que o pai lhe antecipe a herança. A antecipação era um costume legítimo, na época de Jesus. Por ela, o sucessor recebia o quinhão hereditário antes da morte do pai.
Significa isso que, embora tenha concebido o plano de usar os bens de seu pai para usufruir os prazeres da vida, o filho mais novo do texto não estava errado ao pedir a antecipação. Ele não caiu em pecado apenas por usar ou pretender usar o que o mundo lhe oferece. “Todas as coisas são lícitas” (1 Co 6:12; 10:23). O pecado só surge, só mostra sua silhueta, quando o homem dá o passo seguinte. Quando ele junta o que é seu por direito e se aparta de Deus. E lhe volta as costas, quiçá para sempre.
A saída da casa paterna simboliza o abandono de Deus pelo homem que convive com ele e o conhece, ainda que não de maneira vital, que é somente a maneira do amor. Para descrever esse abandono voluntário, a parábola acrescenta um termo que não aparece nos textos da ovelha e da dracma: morte. Mais de uma vez, o pai afirma que aquele seu filho esteve morto e reviveu, esteve perdido e foi achado (Lc 15:24,32).
Temos aqui dois males, duas consequências do abandono do lar, por parte do homem que conhece a Deus. A primeira é a morte, a outra é a perdição. As parábolas da ovelha e da dracma focalizam a perdição; a do filho pródigo descreve a morte. Apresenta-a como separação voluntária de Deus. O filho morre ao abandonar o seu pai, revive ao retornar para ele.
Em Gênesis 2, a palavra de Deus ao homem criado para relacionar-se com ele foi: “No dia em que dela comeres, certamente morrerás” (Gn 2:17). De fato, ao pecar, Adão e Eva foram apartados da presença de Deus. A palavra divina cumpriu-se, dramaticamente, na experiência da morte como abandono.
A parábola do filho pródigo não nos fala de outra experiência.
O drama do filho é muito mais grave que o da ovelha ou o da dracma. É o drama maior, pois leva não só à perdição, mas à própria morte. Nos termos da parábola, morte é a ida a um país distante, é a adoção de um viver dissoluto, por meio do qual o homem se imola, desconstitui-se para Deus e para todas as outras coisas. Nenhuma experiência merece tanto os nomes mais repugnantes, nenhuma merece tanto ser colocada sob o emblema da morte, e da morte de Adão, quanto essa. Ao escolher abandonar a Deus, seja ele uma figura viva ou um feixe de obrigações, o homem se acaba para ele.
O verbo dissipar-se, empregado pelo evangelista, traz na raiz a palavra essência, de funda significação na época. O pródigo não só dissipou os seus bens. Ele dissipou a sua própria essência. Dissipou-se a si mesmo. Acabou-se, morreu a morte mais consumada, a morte que mais faz jus a esse nome: a morte da separação de Deus.
E repito que não importa que pai, ou que Deus, seja aquele do qual o homem se aparta. Para o pródigo, o pai não era mais do que era para o segundo filho. Não era, de maneira alguma, uma figura sublime. Era apenas um feixe de obrigações legais, uma lista de regras a serem observadas. Era talvez, como na canção popular, um escuro inferno do qual o filho, na sua alucinação, sentia arrepios. Tal pai não podia ser, e de fato não era, o amor. Então o filho foi procurar o amor tão longe quanto pôde encontrar-se do pai. Foi ao real inferno, à procura da luz mais intensa, sem perceber que as trevas não estavam ao redor, mas na sua consciência e haveriam de segui-lo por toda parte.
A morte do filho pródigo não é consequência só do abandono do lar paterno, mas da sua dissolução. O filho não percebe que gasta a si próprio, ao gastar sua fortuna. Então, a fome se abate sobre ele. Esse é o estágio final da alma que troca Deus por prazeres.
Duas ideias lhe ocorrem, nesse contexto: agregar-se a um cidadão do país longínquo em que está e retornar para o pai. Primeiramente, põe em marcha o propósito de se juntar a um cidadão local, tornando-se membro de uma família típica da terra estrangeira em que vive. Ao apartar-se de Deus, o pecador não se contenta em viver como forasteiro. Tem de multiplicar a ojeriza ao pai, agregando-se a um sistema exatamente contrário à vida no lar paterno. Tem de pedir os juros das suas blasfêmias no banco do mundo.
O problema é que, apesar de seu brilho, tudo o que o sistema ao final lhe oferece é escravidão e comida de porcos. No contexto da época, o trabalho a que o filho acaba reduzido, o cuidado de porcos, era típico de um escravo. Não era remunerado. E pior: a só contrapartida que lhe proporcionava eram as alfarrobas dadas aos porcos. Aliás, a contrapartida mal lhe era oferecida. Tudo o que o filho tinha era o desejo de obtê-la. Era um suspiro por alfarrobas.
Se algo é inferno, é isso. Não sei se alguma representação do Tártaro, imagem grega do inferno no primeiro século, era pior do que isso. Mal o creio. Mas, nesse anticlímax, o filho se lembra do oposto. Lembra-se da casa do pai: “Quantos trabalhadores de meu pai têm pão com fartura e eu aqui morro de fome!” (Lc 15:17). Compara, também, seu estado tardio com o que possuía na casa paterna.
Todo homem tem duas e apenas duas opções na vida: abraçar o mundo, com o brilho que tem no início e a escravidão e a vida de porcos do fim, ou viver da palavra que sai da boca de Deus. O superdesenvolvimento atual do mundo embriaga as pessoas e as faz viver como se houvessem descoberto uma terceira opção. A viver como se a ciência, a tecnologia e as instituições democráticas lhes houvessem facultado desprender-se de Deus, sem incidir no modo de vida brutal dos porcos. Mas, como sempre ocorreu, o sonho dessa terceira posição também terminará num delirante anelo por alfarrobas.
O fim de todas as eras do mundo é amargar, é transformar-se no anseio enlouquecedor por comida suína. Não será diferente, quando a cortina do tempo cair sobre o palco da ciência, da tecnologia e das instituições democráticas. Felizes os que caem em si e o percebem. O grego do Novo Testamento chama esse despertar um "entrar em si". O filho entrou em si, depois de ter saído, depois de se ter alienado. Na Bíblia, alienar-se de Deus é alienar-se de si. Por isso, entrar em si é o que se chama conversão. Não é melhora moral. Tampouco é uma experiência mística desorientada ou qualquer. É antes um achar-se e um achar a Deus.
Felizes são, pois, os que têm Moisés e os profetas e não apenas os guardam e os cumprem, mas os ouvem. Felizes os que têm o Novo Testamento e o escutam como quem lembra uma terra distante e paradisíaca, que um dia pensaram inferno. Felizes os que os ouvem, ainda que com funda dúvida. Só assim, só comparando seu segundo estado com o primeiro, o filho pôde alcançar o terceiro.
Antes de cumprir o propósito de regressar para casa, porém, nosso homem concebeu as palavras com que haveria de exprimir seu amargo arrependimento ao pai: “Pai, pequei contra o céu e diante de ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como um dos teus trabalhadores” (Lc 15:18-19). Ensaiou a profissão de fé como o catecúmeno aprende a sua. Mas aprendeu a dizê-la de um modo inteiramente sentido.
E essa síntese mínima da amarga experiência do filho, contida na precária confissão, foi para o pai tão máxima que não permitiu ao pródigo chegar ao fim: atirou-se ao pescoço dele, antes que concluísse as doloridas palavras.
"Se há teologia, na Bíblia, não é para verbalizar o que não se ajusta ao verbo. Nem é para colocar em palavras o que as transcende. É apenas para dizer que Deus nos pede para abraçá-lo, é só para entregar, a todos os pródigos do mundo, o convite ao abraço que cancela a dívida incancelável."
A intervenção do pai mostra que a eficácia da salvação não reside nas fórmulas que o pecador pronuncia, ao se arrepender, mas no abraço em que é estreitado por Deus. A conceituação teológica tende a associar o perdão às fórmulas; o amor o vincula ao abraço. Todo pecado e toda vida pecaminosa terminam nos braços do Pai amoroso, do Pai que vigia constantemente o horizonte.
Se há teologia, na Bíblia, não é para verbalizar o que não se ajusta ao verbo. Nem é para colocar em palavras o que as transcende. É apenas para dizer que Deus nos pede para abraçá-lo, é só para entregar, a todos os pródigos do mundo, o convite ao abraço que cancela a dívida incancelável.
sexta-feira, 30 de setembro de 2011
segunda-feira, 19 de setembro de 2011
A Dracma Perdida
Em Lucas 15, a conversão do pecador é apresentada como uma experiência da Trindade divina. A parábola da ovelha mostra a atuação do Filho na salvação do homem perdido. O texto sobre a dracma fala do trabalho do Espírito Santo. E a história do filho pródigo descreve a atuação do Pai.
Jesus exprime o ponto fundamental dessa tríplice atuação, em linguagem totalmente clara, em João 14:16-17,23: “Eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, a fim de que esteja para sempre convosco, o Espírito da verdade [...] Se alguém me ama, guardará a minha palavra; e meu Pai o amará, e viremos para ele e faremos nele morada”. A vinda simultânea ao crente do Consolador, do Pai e do Filho é toda a experiência de conversão e, ao mesmo tempo, a sua síntese. Converter-se é receber o Pai, o Filho e o Espírito Santo, experimentá-los, senti-los, saber que não estão apenas vivos, mas atuantes e estabelecidos no nosso interior. É de certa maneira coincidir com eles e habitá-los.
Que resultado esse encontro com a Trindade produz no coração humano? A parábola da ovelha perdida ensina-nos que o resultado primeiro é sentirmo-nos carregados nos ombros pelo Filho de Deus. Jesus declarou que ninguém vai ao Pai, senão por ele. A parábola mostra algo além disso. Mostra que ninguém vai ao Pai, a não ser carregado por Jesus Cristo. Essa ida não deixa pegadas no chão, a não ser as do dono das 100 ovelhas. Porém, a experiência de conversão tem um segundo aspecto, que é desvendado no texto a respeito da dracma: nele, o Espírito acende a candeia e varre a sua casa, em busca da moeda arrojada num canto, em meio à sujeira.
Jesus afirmou que o Consolador, o Espírito Santo, “vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito” (Jo 14:26). Todos vivemos numa cultura cristã. Portanto, estamos expostos às palavras de Cristo e a uma multidão de costumes enraizados nelas. Porém, nada disso se confunde com o lembrar produzido pelo Espírito da verdade. Na parábola da dracma, o acender a candeia e o varrer a casa indicam que a recordação das palavras de Jesus Cristo é uma obra especial do Espírito Santo.
“Ainda que a pessoa se submeta ao melhor curso de Teologia existente no mundo ou despenda a maior soma possível de horas para estudar as Escrituras, a experiência de lembrar as palavras de Cristo, com a comoção provocada pelo Espírito Santo, permanece singular e distinta.”
Lembrar as palavras de Jesus não é algo irracional ou místico. Pelo contrário, é uma experiência intelectual: é um fiel recordar do sentido da sua pregação e ensinamento. Por isso, o Consolador é chamado o Espírito da verdade. Ele não altera, não distorce as palavras de Cristo, antes conduz a pessoa ao sentido veraz delas. No entanto, o acender da lâmpada e o varrer da casa vão muito além disso: eles geram um sentir totalmente novo, no mais profundo do coração humano. Ali, cordas que nunca haviam vibrado, que estavam em estado de total abandono, são tocadas pela primeira vez. Esse vibrar é o resultado da obra do Espírito Santo, na salvação e para a salvação do pecador.
A experiência é inconfundível, para todos os que a tiveram e têm. Não se confunde com a aquisição de uma educação cristã ou o frequentar de uma igreja. É algo muito mais subjetivo, pessoal e marcante. Ainda que a pessoa se submeta ao melhor curso de Teologia existente no mundo ou despenda a maior soma possível de horas para estudar as Escrituras, a experiência de lembrar as palavras de Cristo, com a comoção provocada pelo Espírito Santo, permanece singular e distinta.
Imediatamente após declarar que o Espírito Santo levaria os discípulos a se lembrarem do que lhes havia dito, Jesus entregou um claríssimo mandamento. Não foi um dos mandamentos incluídos na Lei de Moisés. Mesmo assim, a entrega desse novo comando e de outros assemelhados foi tão importante quanto a outorga das tábuas escritas pelo dedo de Deus, no Monte Sinai. Em João 14:27, Jesus ordenou aos discípulos: “Não se turbe o vosso coração, nem se atemorize” (Jo 14:27).
Pouco depois, ele deu aos seus seguidores próximos ainda um outro comando, que é geralmente tomado como o mais importante de todos os que lhes comunicou: “Amai-vos uns aos outros” (Jo 15:12). Porém, o mandamento do amor pressupõe o da paz. Não há amor, sem que o coração tenha encontrado definitiva paz. A paz que Jesus nos deixou é a que o Espírito Santo ensina e produz em nós. Não se trata de uma paz débil, de um estado oscilante, que ora temos, ora não temos. Ao menos, ela não foi transmitida assim por Jesus. A paz de Jesus é, antes, o mandamento primeiro que o seu Espírito nos empodera para cumprirmos.
Ao meditar sobre tudo isso, em Romanos 7—8, Paulo bradou: “Desventurado homem que sou!” (Rm 7:24). E completou: “A lei do Espírito da vida em Cristo Jesus te livrou da lei do pecado e da morte” (Rm 8:2). O capítulo 8 da Epístola de Paulo aos Romanos é, de certa forma, o pináculo de todo o Novo Testamento, o ponto culminante da cordilheira da revelação de Deus ao homem, pois apresenta o resultado líquido e claro de crer em Cristo. O capítulo inteiro alterna frases na primeira, segunda e terceira pessoas do plural. Ora Paulo se refere a ele e aos crentes romanos (nós), ora apenas a estes (vós), ora aos que creem em Cristo como uma coletividade (eles ou aqueles). Numa única ocasião, ele usa a segunda pessoa do singular: o versículo 2. Nesse trecho, Paulo emprega a palavra te: “A lei do Espírito da vida em Cristo Jesus te livrou”. Para quem a emprega? Para si mesmo. Num arrebatamento, o apóstolo dirige-se ao desventurado homem de Romanos 7:24. É como se lhe dissesse: “A lei do Espírito da vida te livrou, ó desventurado homem, da lei do pecado e da morte!” Tão grande é esse fato que o apóstolo o grita e proclama até para si. Não creio que haja outra passagem, em Paulo, em que esse procedimento se repita.
Vê-se que as epístolas do Novo Testamento são a revelação minuciosa do que as parábolas de Lucas 15 enunciam sucintamente. O objeto da parábola da dracma é particularmente elucidado por Paulo, quando ele explica (indiretamente) o acender da lâmpada como o resplandecer de Deus, no coração humano, para a iluminação do conhecimento da glória divina na face de Cristo (2 Co 4:6). Quem assim refulge, diz Paulo, é o Deus que disse: “De trevas resplandecerá a luz”. A alusão é à palavra criadora de Deus, em Gênesis 1:3. Quem pronunciou tal palavra foi Elohim, que Paulo identifica com Iahweh e a quem ele sempre se refere como o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Essa é a maravilhosa cooperação da Trindade para a salvação do pecador. Nada disso seria possível sem a atuação do Espírito Santo, ao acender a candeia e varrer a casa.
Ao praticar esses atos, o Espírito não ilumina a si mesmo. Ele não se revela. Antes, revela-nos Deus, mediante as palavras de Cristo. Essa revelação é a condição indispensável para que o Espírito varra a casa, elimine a impureza acumulada, troque os nossos sentimentos por outros inspirados por ele e descubra a dracma perdida.
Não é preciso acrescentar que o Espírito exulta com a descoberta da sua moeda, tanto quanto o Filho ao encontrar a ovelha perdida. Porém, de certa maneira, a sua exultação é ainda mais chocante, para nós, já que o Filho de Deus se fez carne, viveu com os homens e os conheceu. É natural que exulte ao salvá-los. Porém, o Espírito exulta ao achar uma só moedinha perdida. Para quem se comove com o amor do Pai e do Filho, descobrir o amor terno e profundo do Espírito é totalmente indizível.
Jesus exprime o ponto fundamental dessa tríplice atuação, em linguagem totalmente clara, em João 14:16-17,23: “Eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, a fim de que esteja para sempre convosco, o Espírito da verdade [...] Se alguém me ama, guardará a minha palavra; e meu Pai o amará, e viremos para ele e faremos nele morada”. A vinda simultânea ao crente do Consolador, do Pai e do Filho é toda a experiência de conversão e, ao mesmo tempo, a sua síntese. Converter-se é receber o Pai, o Filho e o Espírito Santo, experimentá-los, senti-los, saber que não estão apenas vivos, mas atuantes e estabelecidos no nosso interior. É de certa maneira coincidir com eles e habitá-los.
Que resultado esse encontro com a Trindade produz no coração humano? A parábola da ovelha perdida ensina-nos que o resultado primeiro é sentirmo-nos carregados nos ombros pelo Filho de Deus. Jesus declarou que ninguém vai ao Pai, senão por ele. A parábola mostra algo além disso. Mostra que ninguém vai ao Pai, a não ser carregado por Jesus Cristo. Essa ida não deixa pegadas no chão, a não ser as do dono das 100 ovelhas. Porém, a experiência de conversão tem um segundo aspecto, que é desvendado no texto a respeito da dracma: nele, o Espírito acende a candeia e varre a sua casa, em busca da moeda arrojada num canto, em meio à sujeira.
Jesus afirmou que o Consolador, o Espírito Santo, “vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito” (Jo 14:26). Todos vivemos numa cultura cristã. Portanto, estamos expostos às palavras de Cristo e a uma multidão de costumes enraizados nelas. Porém, nada disso se confunde com o lembrar produzido pelo Espírito da verdade. Na parábola da dracma, o acender a candeia e o varrer a casa indicam que a recordação das palavras de Jesus Cristo é uma obra especial do Espírito Santo.
“Ainda que a pessoa se submeta ao melhor curso de Teologia existente no mundo ou despenda a maior soma possível de horas para estudar as Escrituras, a experiência de lembrar as palavras de Cristo, com a comoção provocada pelo Espírito Santo, permanece singular e distinta.”
Lembrar as palavras de Jesus não é algo irracional ou místico. Pelo contrário, é uma experiência intelectual: é um fiel recordar do sentido da sua pregação e ensinamento. Por isso, o Consolador é chamado o Espírito da verdade. Ele não altera, não distorce as palavras de Cristo, antes conduz a pessoa ao sentido veraz delas. No entanto, o acender da lâmpada e o varrer da casa vão muito além disso: eles geram um sentir totalmente novo, no mais profundo do coração humano. Ali, cordas que nunca haviam vibrado, que estavam em estado de total abandono, são tocadas pela primeira vez. Esse vibrar é o resultado da obra do Espírito Santo, na salvação e para a salvação do pecador.
A experiência é inconfundível, para todos os que a tiveram e têm. Não se confunde com a aquisição de uma educação cristã ou o frequentar de uma igreja. É algo muito mais subjetivo, pessoal e marcante. Ainda que a pessoa se submeta ao melhor curso de Teologia existente no mundo ou despenda a maior soma possível de horas para estudar as Escrituras, a experiência de lembrar as palavras de Cristo, com a comoção provocada pelo Espírito Santo, permanece singular e distinta.
Imediatamente após declarar que o Espírito Santo levaria os discípulos a se lembrarem do que lhes havia dito, Jesus entregou um claríssimo mandamento. Não foi um dos mandamentos incluídos na Lei de Moisés. Mesmo assim, a entrega desse novo comando e de outros assemelhados foi tão importante quanto a outorga das tábuas escritas pelo dedo de Deus, no Monte Sinai. Em João 14:27, Jesus ordenou aos discípulos: “Não se turbe o vosso coração, nem se atemorize” (Jo 14:27).
Pouco depois, ele deu aos seus seguidores próximos ainda um outro comando, que é geralmente tomado como o mais importante de todos os que lhes comunicou: “Amai-vos uns aos outros” (Jo 15:12). Porém, o mandamento do amor pressupõe o da paz. Não há amor, sem que o coração tenha encontrado definitiva paz. A paz que Jesus nos deixou é a que o Espírito Santo ensina e produz em nós. Não se trata de uma paz débil, de um estado oscilante, que ora temos, ora não temos. Ao menos, ela não foi transmitida assim por Jesus. A paz de Jesus é, antes, o mandamento primeiro que o seu Espírito nos empodera para cumprirmos.
Ao meditar sobre tudo isso, em Romanos 7—8, Paulo bradou: “Desventurado homem que sou!” (Rm 7:24). E completou: “A lei do Espírito da vida em Cristo Jesus te livrou da lei do pecado e da morte” (Rm 8:2). O capítulo 8 da Epístola de Paulo aos Romanos é, de certa forma, o pináculo de todo o Novo Testamento, o ponto culminante da cordilheira da revelação de Deus ao homem, pois apresenta o resultado líquido e claro de crer em Cristo. O capítulo inteiro alterna frases na primeira, segunda e terceira pessoas do plural. Ora Paulo se refere a ele e aos crentes romanos (nós), ora apenas a estes (vós), ora aos que creem em Cristo como uma coletividade (eles ou aqueles). Numa única ocasião, ele usa a segunda pessoa do singular: o versículo 2. Nesse trecho, Paulo emprega a palavra te: “A lei do Espírito da vida em Cristo Jesus te livrou”. Para quem a emprega? Para si mesmo. Num arrebatamento, o apóstolo dirige-se ao desventurado homem de Romanos 7:24. É como se lhe dissesse: “A lei do Espírito da vida te livrou, ó desventurado homem, da lei do pecado e da morte!” Tão grande é esse fato que o apóstolo o grita e proclama até para si. Não creio que haja outra passagem, em Paulo, em que esse procedimento se repita.
Vê-se que as epístolas do Novo Testamento são a revelação minuciosa do que as parábolas de Lucas 15 enunciam sucintamente. O objeto da parábola da dracma é particularmente elucidado por Paulo, quando ele explica (indiretamente) o acender da lâmpada como o resplandecer de Deus, no coração humano, para a iluminação do conhecimento da glória divina na face de Cristo (2 Co 4:6). Quem assim refulge, diz Paulo, é o Deus que disse: “De trevas resplandecerá a luz”. A alusão é à palavra criadora de Deus, em Gênesis 1:3. Quem pronunciou tal palavra foi Elohim, que Paulo identifica com Iahweh e a quem ele sempre se refere como o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Essa é a maravilhosa cooperação da Trindade para a salvação do pecador. Nada disso seria possível sem a atuação do Espírito Santo, ao acender a candeia e varrer a casa.
Ao praticar esses atos, o Espírito não ilumina a si mesmo. Ele não se revela. Antes, revela-nos Deus, mediante as palavras de Cristo. Essa revelação é a condição indispensável para que o Espírito varra a casa, elimine a impureza acumulada, troque os nossos sentimentos por outros inspirados por ele e descubra a dracma perdida.
Não é preciso acrescentar que o Espírito exulta com a descoberta da sua moeda, tanto quanto o Filho ao encontrar a ovelha perdida. Porém, de certa maneira, a sua exultação é ainda mais chocante, para nós, já que o Filho de Deus se fez carne, viveu com os homens e os conheceu. É natural que exulte ao salvá-los. Porém, o Espírito exulta ao achar uma só moedinha perdida. Para quem se comove com o amor do Pai e do Filho, descobrir o amor terno e profundo do Espírito é totalmente indizível.
sábado, 10 de setembro de 2011
A Ovelha Perdida
Aos fariseus e aos escribas que murmuravam contra ele por receber pecadores, Jesus pronunciou a seguinte parábola: “Qual, dentre vós, é o homem que, possuindo cem ovelhas e perdendo uma delas, não deixa no deserto as noventa e nove e vai em busca da que se perdeu, até encontrá-la? Achando-a, põe-na sobre os ombros, cheio de júbilo. E, indo para casa, reúne os amigos e vizinhos, dizendo-lhes: Alegrai-vos comigo, porque achei a minha ovelha perdida” (Lc 15:4-6).
A satisfação de uma ovelha são as suas experiências físicas. É o pasto, a água, os raios de sol, as crias, as outras ovelhas. A satisfação do homem é o que permite à sua consciência erguer voo para lá das experiências físicas. É a realização máxima das suas potencialidades, a paz com o próximo, o pertencimento à própria cultura, a harmonia com a ordem do Universo, o autêntico conhecimento de Deus. Contrariamente, para a ovelha e para o homem, perder-se é perder todas essas coisas.
O animal da parábola perdeu todas as coisas físicas que o seu pastor lhe propiciara. Perdeu-o porque, no momento em que se desgarrou, sentia o calor do sol a banhar as pastagens que o atraíam para longe do rebanho, mas não era capaz de pensar no frio que o faria sua presa, apenas um pouco mais tarde, quando a lua despontasse no céu, e a escuridão se assentasse no trono da noite. Assim é a consciência da ovelha.
Para a consciência humana, porém, perder-se não é uma experiência física. Não é como a sensação de frio, de umidade, de escuridão, do ataque de um agente infeccioso. A mente do homem pode elevar-se acima de todas essas coisas, pensá-las antes que sobrevenham e se precaver contra os seus males potenciais. Por esse motivo, para o homem, perder-se é algo muito distinto do que é para a ovelha. É embrenhar-se em hábitos mentais que lhe roubam a noção de si, de Deus e pior: que lhe redundarão no mais profundo sofrimento.
Por meio da parábola da ovelha perdida, Jesus referiu-se a dois tipos de pessoas muito comuns na sua época: o publicano e o pecador. Este último termo é particularmente significativo, pois se aplicava a pessoas cujas condições de vida (ofício, recursos materiais quase sempre escassos, condição familiar etc.) só lhes deixavam a alternativa de viver uma vida de transgressores. Uma vida mergulhada no que Moisés definia claramente como pecado: prostituição, lascívia e toda sorte de males que se praticam por meio do corpo. Por isso, como em Israel havia fariseus, saduceus, sacerdotes, levitas, artesãos, lavradores, soldados, existia também o grupo bizarro dos pecadores.
Destoando desse grupo restrito, os judeus em geral criam ser filhos de Abraão e, portanto, de Deus. Por isso, não estavam perdidos, embora estivessem condenados, como Jesus lhes declarou (Jo 8:24). Eles eram as 99 ovelhas. Já os publicanos e os pecadores estavam não só condenados, mas também perdidos. Sua condenação era consequência do seu pecado. Era a morte do espírito, a separação de Deus. Como haviam pecado, estavam sob essa condenação. Porém, ao estado de condenação se somava o de perdição. Essas eram as ovelhas desgarradas de Deus.
Porém, contrastando com esse estado desesperador do homem que não está apenas sob condenação, mas se perdeu totalmente, a parábola mostra que o pastor pratica por ele o que não faz pelas 99. Só a ovelha perdida é salva nos ombros largos do bom pastor. E esses ombros existem para salvá-la. É importante que se brade: Deus reserva seus luxos, seus mimos, seu ombro forte, sua festa, exatamente para esse tipo de pecador. Para o pior dentre os piores. Esse pecador contumaz, somente ele, é tomado no colo por Deus e carregado em seus ombros.
“Esse é o amor agape: um amor que é por todos, mas é para cada um como se fosse só para ele.”
A parábola evoca a força maior do Universo: a que leva a buscar a ovelha extraviada. Essa força é descrita pela palavra agape (amor em grego), a qual é formada por um radical que significa eleição. Quando olhamos atentamente para o Novo Testamento, percebemos que a ideia de eleição, e ainda mais a de amor-eleição, não é apenas um pano de fundo. É o objeto central. Alguém poderia perguntar eleição de que ou de quem. A parábola propõe uma resposta inequívoca: a eleição que o Novo Testamento descreve é a da única ovelha.
Uma conhecida oração de Santo Agostinho refere-se a Deus como quem “cuida de cada um como se cuidasse apenas dele”. Esse é o amor agape: um amor que é absolutamente por todos, mas é para cada um como se fosse só para ele. O poder infinito do texto de Lucas reside em expressar esse amor.
A parábola da ovelha única é um microcosmo do Novo Testamento. O que este transmite, nos seus 27 livros, ela nos diz em quatro versos. E diz-nos sem carências. Diz-nos que, a Religião, cujos representantes deixaram o homem semimorto, no caminho para Jericó, é pura Matemática. O levita e o sacerdote da outra parábola estavam cheios de preocupação com as 99 ovelhas do Templo.
De fato, para a Religião, 99 é mais do que um, pois a Religião é Matemática. Mas o Amor não é Matemática. Para ele, uma ovelha perdida é zero. O pecador semimorto é nada, por mais que seja um. Mas esse um que é nada é mais que todas as 99. E estas? Elas também são nada, já que foram deixadas pelo pastor no deserto? Bem, aos olhos do Amor, elas também são 99 uns.
A satisfação de uma ovelha são as suas experiências físicas. É o pasto, a água, os raios de sol, as crias, as outras ovelhas. A satisfação do homem é o que permite à sua consciência erguer voo para lá das experiências físicas. É a realização máxima das suas potencialidades, a paz com o próximo, o pertencimento à própria cultura, a harmonia com a ordem do Universo, o autêntico conhecimento de Deus. Contrariamente, para a ovelha e para o homem, perder-se é perder todas essas coisas.
O animal da parábola perdeu todas as coisas físicas que o seu pastor lhe propiciara. Perdeu-o porque, no momento em que se desgarrou, sentia o calor do sol a banhar as pastagens que o atraíam para longe do rebanho, mas não era capaz de pensar no frio que o faria sua presa, apenas um pouco mais tarde, quando a lua despontasse no céu, e a escuridão se assentasse no trono da noite. Assim é a consciência da ovelha.
Para a consciência humana, porém, perder-se não é uma experiência física. Não é como a sensação de frio, de umidade, de escuridão, do ataque de um agente infeccioso. A mente do homem pode elevar-se acima de todas essas coisas, pensá-las antes que sobrevenham e se precaver contra os seus males potenciais. Por esse motivo, para o homem, perder-se é algo muito distinto do que é para a ovelha. É embrenhar-se em hábitos mentais que lhe roubam a noção de si, de Deus e pior: que lhe redundarão no mais profundo sofrimento.
Por meio da parábola da ovelha perdida, Jesus referiu-se a dois tipos de pessoas muito comuns na sua época: o publicano e o pecador. Este último termo é particularmente significativo, pois se aplicava a pessoas cujas condições de vida (ofício, recursos materiais quase sempre escassos, condição familiar etc.) só lhes deixavam a alternativa de viver uma vida de transgressores. Uma vida mergulhada no que Moisés definia claramente como pecado: prostituição, lascívia e toda sorte de males que se praticam por meio do corpo. Por isso, como em Israel havia fariseus, saduceus, sacerdotes, levitas, artesãos, lavradores, soldados, existia também o grupo bizarro dos pecadores.
Destoando desse grupo restrito, os judeus em geral criam ser filhos de Abraão e, portanto, de Deus. Por isso, não estavam perdidos, embora estivessem condenados, como Jesus lhes declarou (Jo 8:24). Eles eram as 99 ovelhas. Já os publicanos e os pecadores estavam não só condenados, mas também perdidos. Sua condenação era consequência do seu pecado. Era a morte do espírito, a separação de Deus. Como haviam pecado, estavam sob essa condenação. Porém, ao estado de condenação se somava o de perdição. Essas eram as ovelhas desgarradas de Deus.
Porém, contrastando com esse estado desesperador do homem que não está apenas sob condenação, mas se perdeu totalmente, a parábola mostra que o pastor pratica por ele o que não faz pelas 99. Só a ovelha perdida é salva nos ombros largos do bom pastor. E esses ombros existem para salvá-la. É importante que se brade: Deus reserva seus luxos, seus mimos, seu ombro forte, sua festa, exatamente para esse tipo de pecador. Para o pior dentre os piores. Esse pecador contumaz, somente ele, é tomado no colo por Deus e carregado em seus ombros.
“Esse é o amor agape: um amor que é por todos, mas é para cada um como se fosse só para ele.”
A parábola evoca a força maior do Universo: a que leva a buscar a ovelha extraviada. Essa força é descrita pela palavra agape (amor em grego), a qual é formada por um radical que significa eleição. Quando olhamos atentamente para o Novo Testamento, percebemos que a ideia de eleição, e ainda mais a de amor-eleição, não é apenas um pano de fundo. É o objeto central. Alguém poderia perguntar eleição de que ou de quem. A parábola propõe uma resposta inequívoca: a eleição que o Novo Testamento descreve é a da única ovelha.
Uma conhecida oração de Santo Agostinho refere-se a Deus como quem “cuida de cada um como se cuidasse apenas dele”. Esse é o amor agape: um amor que é absolutamente por todos, mas é para cada um como se fosse só para ele. O poder infinito do texto de Lucas reside em expressar esse amor.
A parábola da ovelha única é um microcosmo do Novo Testamento. O que este transmite, nos seus 27 livros, ela nos diz em quatro versos. E diz-nos sem carências. Diz-nos que, a Religião, cujos representantes deixaram o homem semimorto, no caminho para Jericó, é pura Matemática. O levita e o sacerdote da outra parábola estavam cheios de preocupação com as 99 ovelhas do Templo.
De fato, para a Religião, 99 é mais do que um, pois a Religião é Matemática. Mas o Amor não é Matemática. Para ele, uma ovelha perdida é zero. O pecador semimorto é nada, por mais que seja um. Mas esse um que é nada é mais que todas as 99. E estas? Elas também são nada, já que foram deixadas pelo pastor no deserto? Bem, aos olhos do Amor, elas também são 99 uns.
sábado, 3 de setembro de 2011
A Grande Pesca
A parábola da grande pesca nos diz de uma rede lançada ao mar, que “recolhe peixes de toda espécie” (Mt 13:47) e é arrastada para a praia, onde os pescadores, “assentados, escolhem os bons para os cestos, e os ruins deitam fora” (Mt 13:48).
Como se distingue um peixe bom de um ruim? Provavelmente, o critério por trás da parábola é o da dieta ordenada a Israel. Em Levítico 11:10, Deus declarou impuro “todo que não tem barbatanas nem escamas, nos mares e nos rios.” Por força desse mandamento, alguns peixes eram considerados puros, e outros, impuros. Isso afetava a prática da pesca em Israel: quando voltava do mar, o pescador tinha de separar os peixes com barbatanas e escamas dos que não as tinham e jogar estes últimos fora.
A parábola da pesca ensina que os crentes não autênticos, que guardam a forma da piedade, mas não seu poder, serão “lançados fora”. Esse abandono ocorrerá, por ocasião do julgamento de Deus, ao final do período de implantação do reino dos céus. Em Mateus 13, Jesus referiu-se duas vezes a tal julgamento como uma fornalha. Na parábola do joio, ele afirmou que os anjos recolherão os motivos de escândalo e os que praticam a iniquidade e os lançarão “na fornalha acesa” (Mt 13:41-42); e no texto sobre a grande pesca, ele tornou a dizer que os anjos lançarão os maus “na fornalha acesa; ali haverá choro e ranger de dentes” (Mt 13:50).
Choro pode indicar sofrimento, mas também desconsolo ou tristeza. Já o ranger de dentes às vezes implica dor, outras vezes, ira. De modo que a fornalha de Mateus 13:50 pode ser diversamente interpretada como um lugar de sofrimento e dor ou de tristeza e ira. Nas crianças, é mais comum o choro relacionar-se ao sofrimento; já em adultos, ele costuma indicar tristeza. Se entendermos que a fornalha é destinada a adultos, será mais coerente interpretar o choro como um sinal de tristeza e o ranger de dentes, que o acompanha, como a ira que os castigados sentirão, por terem sido desqualificados.
"O abandono ou não da pessoa por Deus é regulado pelo princípio da vida interior, não pela conduta externa."
Assim como o joio, os peixes maus da parábola representam os falsos crentes, aos quais Deus não infligirá sofrimento ou dor, mas mandará lançar na fornalha onde arderão os sentimentos mais reprováveis. Esse abandono será o castigo autoinfligido dos ímpios. Assim como, em Romanos 1, não é dito que Deus punirá os pecadores gentios com o fogo eterno, mas que ele os entregou “às concupiscências de seus corações, à imundícia” (verso 24), “às paixões infames” (verso 26) e “a uma disposição mental reprovável” (versículo 28), em Mateus 13, as pessoas que mantêm apenas a forma da piedade, no interior do reino dos céus, são abandonadas à frustração, tristeza e ira que elas próprias desenvolvem.
O abandono ou não da pessoa por Deus é regulado pelo princípio da vida interior, não pela conduta externa. A conduta de todos os peixes é aproximadamente a mesma. Eles não separados com base nela, mas em conformidade com a estrutura essencial do seu ser (barbatanas, escamas). À estrutura interior dos falsos crentes faltam as experiências e os elementos descritos por Paulo em Romanos 8. Embora possuam uma alma imortal, a vida superior de Deus não habita nessas pessoas, como uma esfera a envolver a sua alma e um complemento a plenificá-la. Por isso, nada no interior dos que têm a aparência da piedade, mas não receberam a vida divina, opõe-se aos maus sentimentos já mencionados. O resultado é que essas almas estão totalmente vulneráveis à atuação da fornalha.
Bem diferente é a situação dos peixes bons. Tais pessoas não são somente almas. Elas possuem a vida divina, por terem-se convertido genuinamente a Deus (Rm 8:3). Por isso, elas podem pecar, mas no seu interior permanece aquele que testifica com o seu espírito que são filhos de Deus. Elas podem sofrer angústias e gemer no seu íntimo (Rm 8:23), mas essas experiências não as oprimem, antes as favorecem profundamente. Posto que a vida de Deus está “instalada” na alma delas, como o software no hardware, o gemer interior dessas pessoas é acompanhado pelo do Espírito Santo, que intercede sobremaneira por elas, com gemidos inexprimíveis (Rm 8:26). Esses fatos fazem toda a diferença, tornam a pessoa um bom peixe e regulam distintamente a experiência dela, tornando impossível o desenvolvimento dos sentimentos de frustação e de ira que dominarão a alma dos falsos crentes no interior da fornalha.
O choro e o ranger de dentes, que evidenciam a frustação e a ira dos falsos crentes, têm pontos de semelhança com a experiência do rico, na história de Lázaro: “Havia certo homem rico [...] Havia também certo mendigo, chamado Lázaro, coberto de chagas, que jazia à porta daquele [...] Aconteceu morrer o mendigo e ser levado pelos anjos para o seio de Abraão; morreu também o rico e foi sepultado. No inferno, estando em tormentos, levantou os olhos e viu ao longe a Abraão e Lázaro no seu seio. Então, clamando, disse: Pai Abraão [...] manda a Lázaro que molhe em água a ponta do dedo e me refresque a língua” (Lc 16:19-20,22-24).
A alusão aos olhos, à língua e ao dedo do rico e de Abraão, nos versículos acima, são indícios de linguagem figurada, uma vez que se trata de pessoas mortas. Portanto, confirmam que o texto em questão é uma parábola sobre o estado da alma, entre a morte e a ressurreição, conforme a teologia rabínica do primeiro século o representava. Merece destaque o fato de Jesus ter-se referido à representação farisaica do ponto de vista do rico, como se fosse um acontecimento no interior da sua consciência: o rico sente o tormento, vê Abraão e Lázaro, informa ao primeiro o seu sofrimento, ouve a sua resposta, replica-lhe e ouve a manifestação final de Abraão. Quase nada é dito da condição de Lázaro ou do próprio Abraão.
Isso mostra que a parábola é uma revelação do que se passa na consciência do ímpio, durante o pós-morte. Se admitirmos que a morte é uma espécie de sono, como as Escrituras afirmam, não será absurdo considerarmos que as crenças farisaicas sobre o estado intermediário foram empregadas, por Jesus, como símbolos do que a mente dos maus cria e sente, durante aquele sono. Sob esse ponto de vista, o tormento do rico, a visualização de Abraão e de Lázaro, o diálogo travado com o primeiro não são realidades, mas símbolos do que ocorre no sono da morte. O princípio governante do sono é a diminuição das sensações. É o fato de a alma deixar de perceber o mundo material e voltar-se para si mesma. Isso é basicamente o que ocorre com a alma na morte. Cessam para ela as experiências do mundo visível, permanecem as experiências da própria alma.
Embora o sofrimento do rico retrate o estado da alma, entre a morte e a ressurreição, e o choro e ranger de dentes da parábola da pesca se refira ao estado dela após a ressurreição, os textos de Lucas e de Mateus têm vários pontos de contato. O rico é “atormentado nesta chama” (Lc 16:24); os falsos crentes da parábola da pesca são lançados numa fornalha. Há aqui uma primeira semelhança. No entanto, o ponto de contato mais importante, entre os dois textos, é que o estado desfavorável do rico e dos falsos crentes é produzido por eles próprios e não por Deus.
Estamos diante de um verdadeiro padrão da palavra de Deus. O estado futuro da alma é determinado pela vida que se desenvolve no seu interior. Se essa vida inclinar-se à satisfação do corpo, o desenvolvimento natural dela será o tormento causado pela privação dos bens físicos. Se se inclinar à manutenção da aparência de piedade, o resultado será a perda do reino de Deus e a frustração decorrente. Porém, se a alma se inclinar às coisas que não se veem, especialmente à vida de Deus, no seu interior, o resultado será a tranquila certeza e a glória vindoura de que Paulo nos fala em Romanos 8.
Como se distingue um peixe bom de um ruim? Provavelmente, o critério por trás da parábola é o da dieta ordenada a Israel. Em Levítico 11:10, Deus declarou impuro “todo que não tem barbatanas nem escamas, nos mares e nos rios.” Por força desse mandamento, alguns peixes eram considerados puros, e outros, impuros. Isso afetava a prática da pesca em Israel: quando voltava do mar, o pescador tinha de separar os peixes com barbatanas e escamas dos que não as tinham e jogar estes últimos fora.
A parábola da pesca ensina que os crentes não autênticos, que guardam a forma da piedade, mas não seu poder, serão “lançados fora”. Esse abandono ocorrerá, por ocasião do julgamento de Deus, ao final do período de implantação do reino dos céus. Em Mateus 13, Jesus referiu-se duas vezes a tal julgamento como uma fornalha. Na parábola do joio, ele afirmou que os anjos recolherão os motivos de escândalo e os que praticam a iniquidade e os lançarão “na fornalha acesa” (Mt 13:41-42); e no texto sobre a grande pesca, ele tornou a dizer que os anjos lançarão os maus “na fornalha acesa; ali haverá choro e ranger de dentes” (Mt 13:50).
Choro pode indicar sofrimento, mas também desconsolo ou tristeza. Já o ranger de dentes às vezes implica dor, outras vezes, ira. De modo que a fornalha de Mateus 13:50 pode ser diversamente interpretada como um lugar de sofrimento e dor ou de tristeza e ira. Nas crianças, é mais comum o choro relacionar-se ao sofrimento; já em adultos, ele costuma indicar tristeza. Se entendermos que a fornalha é destinada a adultos, será mais coerente interpretar o choro como um sinal de tristeza e o ranger de dentes, que o acompanha, como a ira que os castigados sentirão, por terem sido desqualificados.
"O abandono ou não da pessoa por Deus é regulado pelo princípio da vida interior, não pela conduta externa."
Assim como o joio, os peixes maus da parábola representam os falsos crentes, aos quais Deus não infligirá sofrimento ou dor, mas mandará lançar na fornalha onde arderão os sentimentos mais reprováveis. Esse abandono será o castigo autoinfligido dos ímpios. Assim como, em Romanos 1, não é dito que Deus punirá os pecadores gentios com o fogo eterno, mas que ele os entregou “às concupiscências de seus corações, à imundícia” (verso 24), “às paixões infames” (verso 26) e “a uma disposição mental reprovável” (versículo 28), em Mateus 13, as pessoas que mantêm apenas a forma da piedade, no interior do reino dos céus, são abandonadas à frustração, tristeza e ira que elas próprias desenvolvem.
O abandono ou não da pessoa por Deus é regulado pelo princípio da vida interior, não pela conduta externa. A conduta de todos os peixes é aproximadamente a mesma. Eles não separados com base nela, mas em conformidade com a estrutura essencial do seu ser (barbatanas, escamas). À estrutura interior dos falsos crentes faltam as experiências e os elementos descritos por Paulo em Romanos 8. Embora possuam uma alma imortal, a vida superior de Deus não habita nessas pessoas, como uma esfera a envolver a sua alma e um complemento a plenificá-la. Por isso, nada no interior dos que têm a aparência da piedade, mas não receberam a vida divina, opõe-se aos maus sentimentos já mencionados. O resultado é que essas almas estão totalmente vulneráveis à atuação da fornalha.
Bem diferente é a situação dos peixes bons. Tais pessoas não são somente almas. Elas possuem a vida divina, por terem-se convertido genuinamente a Deus (Rm 8:3). Por isso, elas podem pecar, mas no seu interior permanece aquele que testifica com o seu espírito que são filhos de Deus. Elas podem sofrer angústias e gemer no seu íntimo (Rm 8:23), mas essas experiências não as oprimem, antes as favorecem profundamente. Posto que a vida de Deus está “instalada” na alma delas, como o software no hardware, o gemer interior dessas pessoas é acompanhado pelo do Espírito Santo, que intercede sobremaneira por elas, com gemidos inexprimíveis (Rm 8:26). Esses fatos fazem toda a diferença, tornam a pessoa um bom peixe e regulam distintamente a experiência dela, tornando impossível o desenvolvimento dos sentimentos de frustação e de ira que dominarão a alma dos falsos crentes no interior da fornalha.
O choro e o ranger de dentes, que evidenciam a frustação e a ira dos falsos crentes, têm pontos de semelhança com a experiência do rico, na história de Lázaro: “Havia certo homem rico [...] Havia também certo mendigo, chamado Lázaro, coberto de chagas, que jazia à porta daquele [...] Aconteceu morrer o mendigo e ser levado pelos anjos para o seio de Abraão; morreu também o rico e foi sepultado. No inferno, estando em tormentos, levantou os olhos e viu ao longe a Abraão e Lázaro no seu seio. Então, clamando, disse: Pai Abraão [...] manda a Lázaro que molhe em água a ponta do dedo e me refresque a língua” (Lc 16:19-20,22-24).
A alusão aos olhos, à língua e ao dedo do rico e de Abraão, nos versículos acima, são indícios de linguagem figurada, uma vez que se trata de pessoas mortas. Portanto, confirmam que o texto em questão é uma parábola sobre o estado da alma, entre a morte e a ressurreição, conforme a teologia rabínica do primeiro século o representava. Merece destaque o fato de Jesus ter-se referido à representação farisaica do ponto de vista do rico, como se fosse um acontecimento no interior da sua consciência: o rico sente o tormento, vê Abraão e Lázaro, informa ao primeiro o seu sofrimento, ouve a sua resposta, replica-lhe e ouve a manifestação final de Abraão. Quase nada é dito da condição de Lázaro ou do próprio Abraão.
Isso mostra que a parábola é uma revelação do que se passa na consciência do ímpio, durante o pós-morte. Se admitirmos que a morte é uma espécie de sono, como as Escrituras afirmam, não será absurdo considerarmos que as crenças farisaicas sobre o estado intermediário foram empregadas, por Jesus, como símbolos do que a mente dos maus cria e sente, durante aquele sono. Sob esse ponto de vista, o tormento do rico, a visualização de Abraão e de Lázaro, o diálogo travado com o primeiro não são realidades, mas símbolos do que ocorre no sono da morte. O princípio governante do sono é a diminuição das sensações. É o fato de a alma deixar de perceber o mundo material e voltar-se para si mesma. Isso é basicamente o que ocorre com a alma na morte. Cessam para ela as experiências do mundo visível, permanecem as experiências da própria alma.
Embora o sofrimento do rico retrate o estado da alma, entre a morte e a ressurreição, e o choro e ranger de dentes da parábola da pesca se refira ao estado dela após a ressurreição, os textos de Lucas e de Mateus têm vários pontos de contato. O rico é “atormentado nesta chama” (Lc 16:24); os falsos crentes da parábola da pesca são lançados numa fornalha. Há aqui uma primeira semelhança. No entanto, o ponto de contato mais importante, entre os dois textos, é que o estado desfavorável do rico e dos falsos crentes é produzido por eles próprios e não por Deus.
Estamos diante de um verdadeiro padrão da palavra de Deus. O estado futuro da alma é determinado pela vida que se desenvolve no seu interior. Se essa vida inclinar-se à satisfação do corpo, o desenvolvimento natural dela será o tormento causado pela privação dos bens físicos. Se se inclinar à manutenção da aparência de piedade, o resultado será a perda do reino de Deus e a frustração decorrente. Porém, se a alma se inclinar às coisas que não se veem, especialmente à vida de Deus, no seu interior, o resultado será a tranquila certeza e a glória vindoura de que Paulo nos fala em Romanos 8.
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