sábado, 9 de abril de 2011

Páscoa (3): Culpado ou inocente?

Após a Última Ceia, Jesus retirou-se para o Getsêmani, onde foi preso por uma força militar. Imediatamente à prisão, tiveram início os procedimentos jurídicos contra ele. É preferível falar em dois processos e em dois julgamentos de Jesus: um conduzido pelos judeus, outro pelos romanos.
O Sinédrio foi o primeiro órgão a examinar o rabi que a todos impressionara e a alguns infundira secreto terror. Não era costume daquele tribunal reunir-se à noite, como os Evangelhos informam ter ocorrido no caso de Jesus. Porém, se lermos os textos atentamente, veremos que a reunião noturna está inserida num quadro excepcional, que a justifica. Nos dias que antecederam a sua prisão, Jesus havia sido aclamado rei de Israel e Messias, por uma multidão de seguidores, havia derrubado as mesas dos cambistas e os expulsado do Templo, respondido asperamente aos representantes das principais seitas judaicas e criticado, em termos bastante duros, os escribas e os fariseus, no interior de um Templo apinhado. A situação produzida por esses fatos estava longe de ser normal. O caráter extraordinário dela explica a urgência com que a prisão e o interrogatório noturno foram conduzidos pelo Sinédrio.
Marcos e Mateus informam que Caifás presidiu a sessão noturna em que as acusações contra Jesus foram examinadas. Seus dados concordam com os de Josefo, que afirma que Caifás presidia a Suprema Corte judaica naquela época. Lucas, por sua vez, se refere ao Sumo-Sacerdote, sem declinar-lhe o nome (Lc 22:54). Como ele informa que Anás e Caifás ocuparam o cargo, no início do ministério de Jesus (Lc 3:2) e após a crucificação (Atos 4:6), Paul Winter concluiu que, para Lucas, o Sumo-Sacerdote que interrogou Jesus foi Anás (Sobre o processo de Jesus. Rio de Janeiro: Imago, 1998. Cap. 10).
A opinião suscita dúvidas. É difícil de imaginar que um autor, que relacionou os governantes das diversas partes da Palestina e forneceu os nomes de incontáveis autoridades romanas de alto, médio e baixo escalões, no Livro de Atos, tenha-se equivocado, sobre o Sumo-Sacerdote que presidiu o processo contra Jesus. O nome dessa autoridade era tão conhecido e divulgado, nas comunidades cristãs primitivas, quanto o de Pôncio Pilatos. Portanto, a ideia de que Lucas se equivocou, nesse ponto, não parece verossímil.
O que causou estranheza a Paul Winter foi o fato de Lucas ter-se referido a um ex-Sumo-Sacerdote como se estivesse no cargo. Porém, isso estava de acordo com o costume judeu da época. No Antigo Testamento, o sumo-sacerdócio era vitalício. Com base nesse princípio, os judeus piedosos consideravam que o mais velho integrante vivo da linhagem pontifícia tinha o direito de exercer o cargo de Sumo-Sacerdote. Na época da crucificação, essa pessoa era Anás. Porém, os romanos exigiam a alternância no cargo de Sumo-Sacerdote, razão pela qual Anás deu lugar a Caifás ainda em vida. Daí Lucas mencionar os dois. Assim, a atribuição do sumo-sacerdócio a Anás e Caifás não deve ser considerada um erro histórico, mas decorrência de duas maneiras de ver o sumo-sacerdócio naquele tempo.
Se os judeus tinham uma maneira própria de entender a sucessão no cargo de Sumo-Sacerdote, os romanos nomeavam e destituíam essas autoridades, de tempos em tempos, para dividir o poder entre elas e dificultar a organização de rebeliões. Na época, o Sumo-Sacerdote nomeado pelos romanos era Caifás. Lucas reconheceu essa segunda maneira de tratar o sumo-sacerdócio, sem desprestigiar a primeira.
Esclarecido isso, nada nos autoriza a considerar que “a casa do sumo sacerdote” mencionada por Lucas (Lc 22:54) fosse distinta da que Mateus denomina “a casa de Caifás, o sumo sacerdote” (Mt 26:57). Marcos menciona o mesmo edifício, diferenciando-o de outro em que se deu a reunião matinal do Sinédrio (Mc 14:53; 15:1). As expressões quase iguais dos dois primeiros demonstram que Lucas, o último a escrever, seguiu Mateus e Marcos, por concordar com eles. Claro que não os teria seguido, nem concordado com eles, se pensasse num Sumo-Sacerdote (Anás), e eles, em outro (Caifás). Portanto, não há divergência alguma, entre os sinóticos, na identificação do Sumo-Sacerdote da época: há apenas diferentes maneiras de expressar quem era essa autoridade.
A narrativa do julgamento de Jesus, pelo Sinédrio, em Marcos, é impressionante:
"E levaram Jesus ao sumo sacerdote, e reuniram-se todos os principais sacerdotes, os anciãos e os escribas [...] E os principais sacerdotes e todo o Sinédrio procuravam algum testemunho contra Jesus para o condenar à morte, e não achavam. Pois muitos testemunhavam falsamente contra Jesus, mas os depoimentos não eram coerentes" (Mc 14:53,55-56).
A imputação de incoerência aos depoimentos tem claro sentido jurídico. Na lei judaica, nenhuma condenação podia ser proferida, com base num único depoimento. Testemunhos incoerentes, não corroborados por outros, permaneciam isolados. Por isso, não eram aceitos. O julgamento noturno de Jesus, no Sinédrio, começou com uma série de depoimentos desse feitio. Até que duas testemunhas falsas, finalmente, proferiram imputações que soaram minimamente convergentes:
"E, levantando-se alguns, testificavam falsamente, dizendo: Nós o ouvimos declarar: Eu destruirei este santuário edificado por mãos humanas e em três dias construirei outro, não por mãos humanas". Porém, o texto continua, "nem assim o testemunho deles era coerente" (Mc 14:57-59).
Diante de tantas dificuldades para se produzir prova testemunhal válida contra Jesus, repentinamente, o Sumo-Sacerdote mudou de estratégia e passou a interrogar Jesus sobre a imputação de messianismo que os acusadores tinham formulado:
"Tornou a interrogá-lo o sumo sacerdote, e lhe disse: És tu o Cristo, o Filho do Deus Bendito? Jesus respondeu: Eu sou, e vereis o Filho do homem assentado à direita do Todo-Poderoso e vindo com as nuvens do céu" (Mc 14:61-62).
Essas palavras nada acrescentaram que pudesse servir de fundamento para a aplicação da pena capital. Não era incomum indivíduos se dizerem o Messias. Alguns já haviam sido aclamados por isso. Outros ainda o seriam. É célebre o caso da entronização de Bar Kochba como Messias, pelo maior sábio judeu de sua época. Nem a assunção do papel de Messias, nem a atribuição dele a outra pessoa eram considerados crimes. Porém, surpreendentemente, "o sumo sacerdote rasgou as suas vestes e disse: Que mais necessidade temos de testemunhas? Ouvistes a blasfêmia: que vos parece? E todos o julgaram réu de morte" (Mc 14:63-64).
Por um passe de mágica, a resposta à pergunta sobre messianismo deu base a uma condenação por blasfêmia. Na legislação mosaica, a blasfêmia era um crime passível de morte: “Aquele que blasfemar o nome do Senhor será morto; toda a congregação o apedrejará” (Lv 24:16). Porém, em nada se confundia com o messianismo. Além disso, como Geza Vermes recorda (VERMES, Geza. A paixão – a verdadeira história do acontecimento que mudou os rumos da humanidade. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 98), o delito de blasfêmia era um tanto vago, não só em Levítico como na literatura rabínica. A única coisa historicamente certa, a respeito dele, é que o uso do tetragrama IHWH (o nome divino Iahweh) era considerado blasfemo.
Pode ser que as palavras “Eu sou” pronunciadas, por Jesus (Mc 14:62), tenham soado como o nome de Deus (IHWH) declarado a Moisés: “Eu Sou o que Sou” (Êx 3:14). No ambiente acalorado do julgamento, elas podem ter sido deturpadas, de modo a assumir significado blasfemo. Não o sabemos ao certo. Mas Marcos é claro ao informar que não foi esse o sentido da resposta de Jesus a Caifás. Pelo contrário, de acordo com ele, o rabi acusado por todos foi cuidadoso, ao se referir a Deus pelo título Todo-Poderoso, a fim de evitar o uso do tetragrama proibido. Mesmo assim, os líderes judeus consideraram Jesus culpado daquele crime.
Para surpresa dos que acompanhavam o caso, porém, na manhã seguinte, uma nova reviravolta ocorreu, no curso dos acontecimentos. Ao invés de condenar Jesus, após reunir-se segunda vez, o Sinédrio voltou atrás e resolveu enviá-lo a Pilatos: “Logo pela manhã entraram em conselho os principais sacerdotes com os anciãos, escribas e todo o Sinédrio; e, amarrando a Jesus, levaram-no e o entregaram a Pilatos” (Mc 15:1).
O giro das autoridades judaicas e do Sinédrio foi de 180 graus. Não faltava competência àquela corte, para aplicar a pena de morte. Roma o reconhecia, em matérias de índole religiosa e de costumes, embora não admitisse que os judeus julgassem crimes políticos. Portanto, nada impedia que a Suprema Corte judaica condenasse Jesus, por um crime religioso. Se ela o tivesse feito, o caso em nada diferiria da condenação e apedrejamento de Estêvão ocorridos, meses mais tarde (At 7:1-2,57-58). Porém, surpreendentemente, o Sinédrio não condenou Jesus.
Tal decisão foi uma verdadeira revisão tácita da conclusão a que a Suprema Corte havia chegado, na noite anterior. Não podemos falar, propriamente, em revisão de sentença condenatória ou de veredito, pois a reunião noturna do Sinédrio não havia sido oficial. De uma reunião não oficial, nenhum veredito judicial podia ser extraído. Não havia o que revogar. Porém, uma mudança de conclusão sobre o caso realmente ocorreu. O motivo não é esclarecido, por qualquer dos evangelistas, mas sabemos que a mudança determinou o encerramento do processo contra Jesus, perante as autoridades judaicas, e a abertura de um novo, na corte de Pôncio Pilatos. As palavras de Marcos não deixam dúvida: “amarrando a Jesus, levaram-no e o entregaram a Pilatos” (Mc 15:1).
As palavras "levaram-no e o entregaram a Pilatos" devem ser interpretadas como a citação de Jesus num processo perante os romanos. Citação era o ato pelo qual um processo judicial era aberto. Nos tempos antigos, ela se dava pela condução coercitiva do réu perante o juiz. Embora outras formas de citação fossem empregadas, no Direito Romano, há evidências de que a condução física do acusado continuou a ser praticada, nos séculos I e II. Tertuliano, o escritor e advogado romano, denunciou práticas de corrupção no processo romano, ao escrever: "Onde se encontra o homem que, ao arrastar o acusado perante o juiz, é comprado para manter-se em silêncio?" (TERTULIANO. Apologético. Cap. 7). Exatamente como o acusado a que Tertuliano se refere, Jesus foi arrastado perante Pilatos. Foi, portanto, citado num novo processo, o que implica que aquele aberto pelos judeus contra ele se encerrara.
Shimon Gibson considera o procedimento ocorrido, no Pretório romano, como um segundo processo (GIBSON, Shimon. Os últimos dias de Jesus - a evidência arqueológica. São Paulo: Landscape, 2009. p. 76). A meu juízo, essa é a opinião mais acertada. No segundo processo, a pergunta com a qual Pilatos abriu o interrogatório de Jesus indica o teor da acusação formulada, pelos judeus, contra ele: “És tu o rei dos judeus?” (Mc 15:2). Lucas tem idêntico parecer, sobre a mudança de foco no julgamento: “Levantando-se toda a assembleia, levaram Jesus a Pilatos. E ali passaram a acusá-lo, dizendo: Encontramos este homem pervertendo a nossa nação, vedando pagar tributo a César e afirmando ser ele o Cristo, Rei” (Lc 23:1-2).
Por essa modalidade de química, Jesus passou a responder já não por blasfêmia, mas por desobediência política. De repente, a vítima do Nazareno deixara de ser Deus e passara a ser César. Um olhar retrospectivo permite entender que exame assim tão completo quanto o que foi realizado de Jesus, no tocante a Deus e aos homens, por duas cortes, só serviu para tornar irrecorrível a verdade de que, no caso do primeiro processo, a acusação de blasfêmia era injusta e, no derradeiro, a imputação de desobediência política era absurda. Jesus era um homem justo, alguém que dava a Deus o que é de Deus, e a César, o que é de César.
Para abreviarmos a narrativa, o segundo processo produziu em Pilatos o mais fundo convencimento da inocência de Jesus. Após ter ouvido os acusadores, interrogado Jesus e o enviado a Herodes, para que fizesse o mesmo, Pilatos concluiu e manifestou reiteradamente que o réu era inocente. No entanto, os Evangelhos sugerem que Pilatos inclinou-se à condenação, após consultar a multidão reunida diante do Pretório sobre o privilégio pascal, isto é, o costume que Pilatos criara de libertar um prisioneiro a rogo dos judeus, por ocasião da Páscoa.
Os evangelistas afirmam que, ao ser consultado sobre o benefício, o povo decidiu que Barrabás e não Jesus fosse libertado. Paul Winter relaciona a consulta de Pilatos ao fato de Barrabás também se chamar Jesus. Com efeito, certo número de manuscritos dos Evangelhos afirma que o primeiro nome de Barrabás era Jesus. Isso se coaduna com a circunstância de que Barrabás, em hebraico, significa "filho de Abás", o que indica um patronímico e não um nome. Seu nome pode, portanto, ter sido Jesus. Em tais circunstâncias, pendendo dúvida em seu espírito sobre qual dos dois prisioneiros os judeus desejavam que fosse objeto do indulto, uma vez que eles tinham o mesmo nome, Pilatos perguntou à multidão qual dos dois devia ser agraciado. A multidão escolhe Barrabás.
Porém, o fato de ter consultado a multidão pode ter levado Pilatos a mudar de posição. Ele havia perguntado: "quem devo soltar: Jesus de Nazaré ou Jesus Barrabás?" A multidão tinha respondido: "Barrabás". E tinha reiterado o clamor para que o outro fosse condenado. Esse clamor soou-lhe como um reforço à acusação que os líderes judeus tinham formulado contra Jesus Cristo. A convergência das autoridades e do povo, portanto, pode ter levado Pilatos a decidir-se pela condenação de Jesus.
A multidão aglomerada defronte o Pretório não se confunde com a que aclamou Jesus, quando ele entrou em Jerusalém. Trata-se de duas multidões diferentes. A última era composta por discípulos de Jesus; a turba que gritou a Pilatos “Crucifica-o! crucifica-o!” era integrada por estranhos. Quando Jesus foi preso, o cortejo dos seus seguidores acovardou-se e se dispersou. Então, entrou em cena a segunda multidão que não conhecia Jesus, pois viera a Jerusalém apenas para a Páscoa.
O fato de a culpa do acusado ter sido resumida, nas palavras “Jesus de Nazaré, rei dos judeus”, que encimaram a sua cruz, mostra que o processo que levou Jesus à morte não foi o religioso, perante o Sinédrio, mas o político, que competia a Pilatos julgar. Portanto, Pilatos manifestou seu convencimento sobre a inocência de Cristo, lavou as mãos e depois o condenou.
Lucas registrou que “se ajuntaram nesta cidade contra o teu santo Servo Jesus, ao qual ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com gentios e povos de Israel” (At 4:27). Os gentios e os povos de Israel foram a multidão que clamou pela condenação de Jesus. Esse clamor não pode ser confundido com uma decisão do caso. Não foi decisão; foi reforço à acusação. Mas teve grande peso sobre a decisão condenatória proferida por Pilatos.
Em suma, dos dois julgamentos extraímos que, ao contrário da conclusão difundida que aponta numerosos erros judiciários, no processo contra Jesus, as acusações contra Jesus foram conduzidas de forma acalorada e tumultuada, mas juridicamente correta. O ponto a meu ver mais duvidoso - a consulta à multidão - explica-se pelo costume que Mateus e Marcos atribuem a Pilatos de libertar um prisioneiro judeu por ocasião da Páscoa. Fosse a prática de Pilatos legítima ou não, permanecia em suas mãos, absolver ou condenar Jesus, depois de Barrabás ter sido libertado. A libertação deste não o obrigava a condenar Jesus. Portanto, não era uma causa de nulidade. Por outro lado, Pilatos era o juiz natural, a autoridade competente para decidir se Jesus era culpado ou inocente da acusação de crime político. Decidiu injustamente, mas seu julgamento não foi nulo do ponto de vista do processo judicial romano.
A conclusão de que Jesus era culpado que o Sinédrio cogitou, na reunião noturna, tampouco foi um erro judiciário, pois não foi oficial. Por isso, ela pôde ser revertida, na sessão oficial da manhã seguinte. Porém, ainda assim, ela demonstra que alguns líderes judeus estavam cegos de ódio a Jesus e ciosos da hegemonia que detinham, no multifário quadro político e religioso de Israel.
Por trás de todos os disfarces, quem tinha motivos políticos para matar Jesus eram os líderes judeus. Somente eles. O crescimento do cortejo de seguidores do rabi galileu e o poder arrebatador do seu ensino ameaçavam esvaziar a liderança dos principais sacerdotes, anciãos e saduceus. Talvez ameaçassem, até mesmo, formar um vácuo de poder religioso em Israel. No entanto, de alguma maneira, por um motivo ainda desconhecido, o problema político-religioso foi obviado, pela decisão do Sinédrio de não condenar Jesus.