Jesus tornou-se pessoalmente conhecido das autoridades romanas, quando foi acusado pelos judeus que o prenderam. Coube a Pilatos, então, formular a pergunta que os séculos tanto repetiriam: quem foi Jesus?
A pergunta voltou a ressoar, de maneira particularmente intensa, nos dois últimos séculos, quando a investigação da figura histórica de Jesus deflagrou uma revolução tão ampla quanto a produzida pela investigação cristológica nos primeiros séculos. Naqueles tempos, a consciência teológica sobre a figura de Jesus levou à substituição da cultura grecorromana pela cristã; a partir do décimo-nono século, quando os estudos históricos sobre Jesus se intensificaram, uma segunda reviravolta se preparou, com sentido contrário à primeira. Ainda vivemos essa última revolução, a saber: a descristianização do mundo.
Descristianização não significa que Jesus tenha passado a ser menos importante do que antes. Pelo contrário, o fortalecimento da consciência sobre a sua figura é que tem desencadeado as transformações atuais. No entanto, a figura histórica recentemente plasmada de Jesus como homem comum eclipsou a do Cristo enviado por Deus ao mundo a fim de salvá-lo. Nesse sentido, descristianização é a substituição do Cristo por Jesus, principalmente pelo Jesus histórico, como a ciência humana o representa por meio do método crítico.
A Páscoa é uma rara oportunidade senão para revermos todas as questões, sobre o Jesus descristianizado, pelo menos para refletirmos mais acuradamente sobre os momentos finais da sua vida terrena. Tratarei a seguir de três grandes momentos da existência histórica de Jesus: os julgamentos perante o Sinédrio e Pilatos, a crucificação e a ressurreição. A abordagem peculiar que distinguirá os artigos será a da crítica da descristianização.
Em Tratado de ateologia, o filósofo francês Michel Onfray, também autor de uma Contra-História da Filosofia, defendeu, simplesmente, que Jesus não existiu. Essa posição mostra como um movimento crítico iniciado, por impulsos racionais, pode conduzir, perigosamente, à irracionalidade histórica. Por mais que autores respeitáveis como Hitchens, Avalos, Humphreys e Doherty tenham parecer semelhante ao de Onfray, o despropósito da opinião de que Jesus nunca existiu impede-nos não sentir um odor ideológico semelhante ao da antiga União Soviética.
Um dos maiores especialistas no Jesus histórico do nosso tempo, Bart D. Ehrman, publicou, em 2012, um livro para reafirmar a existência de Jesus (EHRMAN, Bart D. Jesus existiu ou não? Rio de Janeiro: Agir, 2014). O húngaro Geza Vermes, por sua vez, afirmou que a morte de Jesus por crime político é o fato mais bem estabelecido sobre a sua vida . Não lhes faltam boas razões em que fundamentar essas posições. Embora os Evangelhos canônicos contenham detalhes divergentes sobre as histórias do ensino e dos milagres de Jesus, quando se trata de narrar a morte na cruz, todos convergem em ampla medida, numa mesma narrativa básica, cujos fatos se dão, aliás, quase sempre, na mesma sequência.
A morte na cruz é o centro dessa sequência, em todas as narrativas. Ela é ainda atestada em Josefo (por quê, se não houve crucificação?), o maior historiador judeu da época, e em Tácito ("Cristo [...] sofreu a pena de morte no reino de Tibério, por sentença do procurador Pôncio Pilatos" - Anais, 15,44,3). O Talmude igualmente a indica ("Na véspera da Páscoa eles suspenderam Jesus" - Talmude Babilônico, Sinédrio, 43a).
É comum historiadores aceitarem como verdadeiro um evento narrado por uma única fonte dotada de credibilidade. Quando duas fontes convergem, o fato é considerado fora do alcance da dúvida razoável. No caso de Jesus, temos pelo menos sete testemunhos de boa qualidade sobre a sua morte. Sabemos, pois, com certeza, que Jesus existiu e foi crucificado pelo poder romano.
No entanto, a pergunta reclama resposta mais satisfatória: quem foi Jesus? Por maiores que sejam as discordâncias entre os estudiosos, é possível responder que Jesus nasceu na Palestina, entre os anos 7 e 4 do primeiro século a. C., com quase tanta certeza quanto a que temos de que ele morreu na cruz. Um exame realmente detido de todas as evidências permite focarmos o derradeiro quadrimestre desse último ano (4 a. C.) como o tempo da natividade.
O principal problema dessa datação é o fato de o capítulo 2 de Mateus localizar o nascimento do filho de Maria e José, na época de Herodes. O relato informa que a família de Jesus refugiou-se no Egito, quando Herodes resolveu matar as crianças de menos de três anos, para evitar que o nascido rei dos judeus viesse a ocupar o seu trono. Diz o texto bíblico que os pais de Jesus só retornaram de lá, “quando Herodes morreu” (Mateus 2:19).
Vários governantes da época chamaram-se Herodes. Porém, só um deles morreu, no período entre o nascimento de Jesus e a crucificação, como Mateus claramente indica. Esse foi o maior dos Herodes, cuja perícia militar e vocação como construtor foram exaltadas, por Josefo, tanto quanto seus bárbaros crimes foram execrados.
Nos historiadores contemporâneos, a morte de Herodes é geralmente localizada, em março ou abril do ano 4 a. C. Essa é a data fornecida por Michael White, em Scripting Jesus (Prologue). Porém, White faz a sua datação depender de Josefo. Um retorno a essa fonte (Josefo) permite apurar que ela localizou o falecimento de Herodes 37 anos após a sua nomeação pelos romanos (Antiguidades, XVII, 10). A Bíblia de Jerusalém situa a nomeação, no final do ano 40 a. C., embora tenha exercido efetivamente o poder de 37 a. C. em diante (Bíblia de Jerusalém. 5ª impressão, São Paulo: Paulus, 2008. Quadro cronológico, p. 2181). Trinta e sete anos depois de ser nomeado, portanto, Herodes morreu, o que nos remete ao ano 3, não ao ano 4 a. C. Essa conclusão é confirmada ainda por outra informação de Josefo, que afirmou que Herodes morreu 34 anos após ter expulso Antígono da Judeia, o que se passou em 37 a. C. Também se contarmos 34 anos a partir de 37 a. C., chegaremos a 3 a. C.
Claro que, se Herodes tivesse morrido em março-abril do ano 4, e Jesus houvesse nascido no fim daquele ano, a perseguição por Herodes seria um erro histórico. Porém, quando examinamos atentamente Josefo, percebemos que não nos permite a datação mais recuada. Josefo localiza a morte de Herodes, no fim do ano 3 a. C., o que concorda com a fixação da natividade um ano antes.
Tudo o que sabemos sobre a vida de Jesus, antes dos 30 anos, é que ele foi criado num lar especial, até para os padrões de Israel. Ao lermos os Evangelhos com atenção, percebemos que alguns acontecimentos são de tal natureza que só podem ter sido preservados por quem criou o menino Jesus. É o caso da concepção de Jesus e de seu precursor João Batista, do nascimento de ambos, da fuga para o Egito, da infância de Jesus em Nazaré, do seu Bar Mitzvah aos 12 anos e da juventude na Galileia. Como José não é mencionado, após a infância do filho (provavelmente porque falecera), os dados indicam que Maria deve ter sido a principal fonte dos evangelistas para esses fatos. Como José não é mencionado, após a infância do filho (possivelmente porque falecera), os dados indicam que Maria deve ter sido a principal fonte dos evangelistas para esses fatos.
Mas se serviu de fonte de tantos acontecimentos, é natural que a mãe de Jesus tenha sido consultada, também, sobre outros fatos, inclusive alguns do período ministerial. Somadas às prolíficas citações do Antigo Testamento, que Lucas coloca na boca dela, essas informações permitem-nos traçar o perfil de uma mulher extremamente culta, para os padrões da época. Portanto, o amplo conhecimento do Antigo Testamento que Jesus demonstrou, seu espírito agudo e crítico devem-se, em parte, às características do lar em que foi criado, sob a ação educadora de Maria de Nazaré.
Por outro lado, nenhuma informação sobre a vida de Jesus é tão precisa quanto a que Lucas fornece, nos dois primeiros versículos do capítulo três do seu Evangelho. Diz ele que João Batista começou o seu ministério, pouco antes de Jesus dar início ao seu, no décimo-quinto ano de Tibério César, quando Pilatos era governador da Judeia, Herodes (não o Magno, mas Antipas), da Galileia, Filipe da Itureia e Traconites, Lisânias era tetrarca de Abilene, e Anás e Caifás, Sumos-Sacerdotes em Jerusalém. Por essa época, Jesus tinha cerca de 30 anos (Lucas 3:23).
Para não descermos a demasiados detalhes, Pilatos governou a Judeia entre 26 e 36 d. C. Se nasceu no ano 4 a. C., Jesus completou 30 anos em 27 d. C. Como Alford ensina, no grego do Novo Testamento, a expressão de Lucas 3:23 significa que Jesus tinha entre 30 e 31 anos, quando foi batizado por João. Portanto, ele iniciou o seu ministério em 27 ou 28 d. C. Essa é uma das razões por que não se pode recuar o nascimento muito além do ano 4: se o fizermos, a inauguração ministerial de Jesus ficará fora do período de Pilatos. Assim, o conhecimento que temos sobre o início da vida terrena de Jesus também está longe de ser tão impreciso quanto às vezes é sugerido.
A Crítica Literária e Histórica desenvolvida, nos últimos 200 anos, em geral, afirma que o ministério público de Jesus durou menos de um ano. A principal razão para isso é o fato de os Evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) só mencionarem uma Páscoa. Para a maioria dos especialistas, os sinóticos foram escritos entre 10 e 30 anos antes do último Evangelho (João), que fala de três ou quatro Páscoas. Essa divergência sobre a extensão do ministério público costuma ser resolvida a favor dos sinóticos.
No entanto, os referenciais relevantes para fixarmos a cronologia do ministério não se restringem às festas anuais judaicas e às referências a autoridades públicas. Antes das Críticas Histórica e Literária se desenvolverem, Isaac Newton, o físico, escreveu um esquema cronológico importante sobre as Sagradas Escrituras que, felizmente, se conservou até hoje. O interesse imediato de Newton eram as profecias dos Livros de Daniel e Apocalipse, mas sua obra contém tantas informações cronológicas, do século VI a. C. ao XVIII d. C., que assume interesse bem mais geral. Para inserir os dados dos Evangelhos no seu esquema, Newton utilizou não só as informações sobre as Páscoas e personalidades históricas, mas também fenômenos naturais mencionados nos textos, assim como colheitas, alusões à temperatura etc. Da análise simultânea desses dados evangélicos, ele extraiu a conclusão de que a cronologia completa do ministério é a de João (três anos e meio), que não apenas menciona vários anos como deixa entrever a passagem de um número correspondente de estações, momentos de semeadura, colheita e outras informações que confirmam a sua cronologia. Se os três anos e meio de ministério mencionados em João fossem resultado de um equívoco, dificilmente informações tão concordantes sobre aqueles fatos naturais e humanos seriam fornecidas. Portanto, a cronologia dos sinóticos corresponde a um corte, uma seção da estrutura maior de tempo que João fornece.
Os três anos e meio do ministério levam-nos, pois, a fixar, no ano 32, a Páscoa em que Jesus foi crucificado. Como se vê, estamos longe de desconhecer o que ocorreu, durante o ministério público e quando ele terminou. Embora muitos detalhes permaneçam obscuros, a pregação de Jesus de Nazaré é um dos fatos religiosos melhor conhecidos do período anterior à sua morte. Não é preciso reiterar que o mesmo se dá com a crucificação.
O ministério público de Jesus pode ser dividido em cinco períodos: o primeiro, com duração de seis meses, ocorreu na Galileia; o segundo, de oito meses, se desenvolveu na Judeia, o terceiro consistiu em quatro meses de ensino na Galileia; a quarta etapa (de 15 meses) incluiu os milagres de Marcos-Mateus na Galileia; por fim, a última etapa, também com diversas curas, se deu na Judeia-Pereia e durou nove meses. Os milagres operados na Judeia concentraram-se na segunda etapa; os da Galileia, na quarta. Nos demais períodos, o ministério de Jesus centrou-se no ensino e não em milagres.
Josefo nos fala de três ou quatro grupos principais existentes, em Israel, naquela época: os saduceus, que eram os líderes da nação e do Templo; os fariseus eram o grupo religioso de maior sucesso que, ao contrário dos saduceus, aceitava uma lei escrita e outra oral; os essênios formavam uma comunidade isolada, ao redor do Mar Morto; e os zelotes, que eram revolucionários. Tanto pela composição do cortejo de seus seguidores como pelas suas falas, Jesus não pertenceu a qualquer desses grupos. Suas crenças e ensinos são uma mistura de convicções variadas: a exemplo dos saduceus, Jesus colocava a lei escrita (o Pentateuco) acima da oral e acreditava na ressurreição, em anjos e espíritos; como os essênios, seu pensamento era marcado por fortes convicções escatológicas. Talvez Jesus tivesse menos pontos de contato com os zelotes. Mesmo assim, possuía discípulos dessa seita e não desconsiderava a importância da restauração do reino a Israel (At 1:6).
A vinda do reino de Deus e a ressurreição dos mortos diferenciam a pregação de Jesus de tudo o que se contém no Antigo Testamento. Por meio delas, Jesus pregou uma terminação das modalidades de vida religiosa que os judeus haviam experimentado até então. Ele também pôs fim às obrigações decorrentes de todos os tratos de Deus com os homens, em épocas anteriores, e instituiu uma nova aliança, para os que nele creem. Essa aliança é representada pela Última Ceia e está baseada no sangue e no corpo de Jesus; portanto, na sua morte.
Contudo, a confirmação do ensinamento do mestre da Galileia e o sentido particular, que os apóstolos atribuíram à fé em Jesus, estão associados à ressurreição. Assim como narram a crucificação, os quatro Evangelhos também testificam, unanimemente, a ressurreição de Jesus.
Não é possível abordar, aqui, todos os aspectos históricos da ressurreição. Por isso, farei referência a um só. O versículo 7 do capítulo 20 de João narra que, entre os objetos encontrados no túmulo vazio de Jesus, no domingo da ressurreição, estava um lenço. Gostaria de me deter nesse dado tão frequentemente desprezado, nas apresentações contemporâneas do Jesus histórico.
O Sudário de Turim, réplica medieval dos lençois que envolveram o corpo de Jesus, no sepulcro, é conhecido de praticamente todos os interessados em religião cristã. Um ou mais objetos com pontos de semelhança com ele foram usados, por José de Arimateia e Nicodemos, ao prepararem e depositarem o corpo de Jesus na sepultura. Porém, além dos lençois, aqueles membros do Sinédrio também colocaram um lenço na cabeça do rabi galileu. O autor do Evangelho de João escreveu, sobre o ponto: “Simão Pedro, seguindo-o, chegou e entrou no sepulcro. Ele também viu os lençois, e o lenço que estivera sobre a cabeça de Jesus, e que não estava com os lençois, mas deixado num lugar à parte” (João 20:6-7).
Se considerarmos que o Evangelho de João foi escrito, cerca de 70 anos depois da crucificação, seremos forçados a reconhecer que a posição relativa dos lençois e do lenço, no interior do sepulcro, só pode ter sido recordada por uma testemunha ocular da cena da época. Há muitas razões para alguém inventar um milagre, mas não para inventar algo como a posição apartada dos lençois e do lenço. Nenhum outro evangelista transmitiu essa informação, além do escritor de João. Coincidentemente, o único a falar do lenço foi aquele que se apresentou como testemunha ocular de histórias ministeriais. Pode ser, pois, que o autor de João tenha mencionado o lenço, por ter visto o sepulcro vazio, enquanto os escritores sinóticos não o viram e, por isso, não se referiram àquele pormenor.
Isso permite nos permite pensar na ressurreição como uma hipótese histórica, além de um dado de fé. Propor que a memória desse fato corresponde a algo objetivo não é ainda afirmar a interpretação dos apóstolos a respeito dela, mas já é reconhecer um dado de enorme importância e impacto, na Jerusalém da época.