Dois elementos inserem-se no primeiro plano de O argumento a partir da injustiça, do filósofo Robert Alexy. O primeiro é a problematização da justiça com base nas transformações que o nacional-socialismo introduziu na Alemanha. O outro é o arcabouço conceitual e linguístico que Alexy utiliza para demonstrar os equívocos do positivismo jurídico.
Em histórica decisão proferida em 1954, a Corte Constitucional Federal da Alemanha declarou: “Direito e justiça não estão abandonados ao poder discricionário do legislador. A ideia de que o constituinte pode dispor as coisas como bem entender tem como corolário a reversão à postura mental típica do positivismo independente de valores. Há muito tempo, essa postura se tornou obsoleta, tanto na ciência jurídica quanto na prática”.
Alexy raciocina a partir dessa e de uma série de outras decisões no mesmo sentido que a Suprema Corte alemã proferiu, após a amarga experiência nazista. Ao fazê-lo, o autor de The argument from injustice assenta cuidadosamente os pés em cada pisada que outro ícone da Filosofia do Direito alemã, Gustav Radbruch, deu antes dele na mesma direção.
Um caso do qual, cedo ou tarde, os interessados em Filosofia do Direito tomavam conhecimento, no ambiente acadêmico do final do século passado, em que vivi, era o da transição (verdadeira conversão) de Radbruch do positivismo ao jusnaturalismo. Alexy retoma-a, em sua obra. Cita trechos de 1933 do primeiro Radbruch e os compara com o que denomina a “célebre fórmula” enunciada após a Guerra:
“O conflito entre justiça e certeza jurídica pode ser resolvido da seguinte maneira: o direito positivo, tutelado pela legislação e pelo poder, tem precedência até mesmo quando o seu conteúdo é injusto e disfuncional, a menos que o conflito entre a lei e a justiça torne-se tão intolerável que a lei, como direito antijurídico, deva ceder à justiça” (RADBRUCH, Gustav. GUR 107. Citado em ALEXY, Robert. The argument from injustice – a reply to legal positivism. New York: Oxford, 2002. p. 28).
Declarações como as acima transcritas de Radbruch e da Suprema Corte alemã só podem ser compreendidas à luz dos acontecimentos que levaram a Alemanha à Segunda Guerra Mundial. No pano de fundo das duas declarações está a necessidade de determinar até que ponto leis injustas, como as do regime nazista, devem ser obedecidas, visto que o positivismo havia deixado claro que alguma obediência lhes era devida. Radbruch propõe a fixação de um marco que permita tratar e, quem sabe, solucionar o grave problema. Ao conteúdo da fórmula por ele proposta Alexy atribui o nome de argumento a partir da injustiça.
De acordo com Alexy, o positivismo tende a separar moral e direito, e o jusnaturalismo, a associá-los: “Somente no caso extremo e improvável de um sistema de normas que não se orienta pelo critério da correção [inclusive moral], a tese da separação [entre moral e direito] alcança um limite. Quadro muito diferente emerge, se considerarmos o direito da perspectiva de um participante, por exemplo um juiz. Dessa perspectiva, a tese da separação é inadequada, e a da conexão é correta. Para estabelecê-lo, três argumentos serão considerados: o argumento a partir da correção, o argumento a partir da injustiça e o argumento a partir dos princípios” (idem. p. 35).
Do argumento a partir da correção tratei em detalhes no artigo sobre a falácia naturalista. Basta lembrar, aqui, que “a exigência de correção necessariamente ligada ao direito, por incluir a exigência de correção moral, é o motivo de, abaixo do limiar da injustiça extrema, a violação da moral correta não conduzir por necessidade à perda do caráter legal, mas implicar um defeito jurídico” (idem. p. 79). É o que Alexy pensa, ao menos em relação a um participante situado dentro do sistema, como o juiz. Ele admite que, para um observador (externo), o critério da correção pode parecer secundário ou totalmente irrelevante, porém não para o participante, que sempre leva em conta o funcionamento correto do sistema. Por isso, o participante considera as injustiças extremas violações ou, ao menos, imperfeições do sistema.
O jusfilósofo pensa os princípios em oposição às regras. De acordo com ele, “regras são normas que, satisfeitas as condições nela especificadas, prescrevem consequências jurídicas [...] A forma característica de aplicação delas é a subsunção. Em contraste, princípios são comandos otimizadores. Como tais, eles impõem que algo se realize na maior medida que as condições factuais e jurídicas permitirem. Isso significa que os princípios podem ser realizados em vários graus e que a extensão da sua realização depende não só da possibilidade factual, mas também da jurídica. A possibilidade jurídica de realizar um princípio, além de determinada por regras, é essencialmente condicionada por princípios concorrentes, o que implica que um princípio pode e deve ser balanceado em relação a outro. Esse balanceamento constitui a forma característica da aplicação dos princípios” (idem. p. 70).
A técnica do balanceamento a que Alexy se refere tornou-se conhecida como princípio da proporcionalidade. Só pode ser aplicada na presença de um conflito específico entre dois princípios. Exemplo clássico é o da prova furtada ou obtida por outro meio ilícito. A Constituição brasileira não apenas proíbe o uso dessa espécie de prova (Constituição Federal, art. 5º, LVI) como erige a proibição num princípio de todo o processo civil, penal e administrativo. Porém, é possível conceber o caso em que a única prova que o acusado de um crime possui de sua inocência tenha sido obtida por meio ilícito. Nessa hipótese, o princípio da proibição das provas ilícitas entra em conflito com o direito à ampla defesa, que é garantido pela Constituição (art. 5º, LIV) e também constitui um princípio. Na verdade, o conflito assim delineado se estende à liberdade de ir e vir, que as penas passíveis de serem aplicadas no processo penal põem em risco.
O balanceamento de princípios opostos a que Alexy se refere consiste em priorizar ora um, ora outro, ora ainda outro deles, à luz de cada caso. Não necessariamente o balanceamento se dá entre dois e somente dois princípios. Em alguns casos, como o do acusado que só dispõe de uma prova ilícita, pode envolver mais princípios. Vimos que, em situações como essa, a liberdade e a ampla defesa prevalecem sobre a proibição da prova ilícita. Portanto, a prova ilícita produzida pelo acusado deve ser admitida. Porém, num caso em que duas pessoas litigam, digamos, por dez mil reais, e a liberdade de uma ou de outra não está sob ameaça, a prova ilícita não há de ser admitida, ainda quando for a única de que um dos litigantes disponha.
Pouca dúvida há de que o balanceamento de princípios deve ser aplicado a certos conflitos. É de suma relevância observar que, no Brasil, o procedimento está consagrado expressamente no artigo 489 do novo Código de Processo Civil, que prevê que, "“no
caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios
gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a
interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a
conclusão” (§ 2º). A questão que coloco é se o balanceamento ou ponderação é suficiente para resolver todos os conflitos de princípios. Por um motivo principal, considero que não. É que a solução do conflito à luz de casos concretos sugere que os princípios são incluídos uns ao lado dos outros no ordenamento, de modo que não é possível admitir preferência em abstrato por um em detrimento de outro. Essa impossibilidade parece-me simplesmente falsa.
Em muitos sistemas jurídicos, os princípios não estão dispostos dessa maneira horizontal rígida, o que equivale a dizer que nem todos estão num único nível do ordenamento. Mais comum é a distribuição dos princípios em diferentes níveis do sistema jurídico. Chega a ser inescapável que, em ordenamentos dessa espécie, com vários níveis (por exemplo, o nível constitucional, o da lei ordinária e o das normas regulamentares), os princípios distribuem-se entre eles e que o desnível entre os princípios constitucionais, legais e regulamentares (e entre eles e as outras normas) constitui o principal critério pelo qual o ordenamento é concebido.
Mas, se o ordenamento possui vários níveis, cada qual com princípios próprios, é intuitivo que os conflitos entre essas normas podem ser resolvidos não só por critérios a posteriori fornecidos pelas circunstâncias de cada caso, mas também por critérios a priori decorrentes da ordenação em níveis diferenciados. Isso porque, se um conflito se estabelece entre princípios de níveis diversos, é razoável dar preferência ao princípio superior, independentemente das circunstâncias do caso concreto. Afinal, as circunstâncias concretas, por mais relevantes que sejam, não terão o condão de abolir a estrutura básica do ordenamento.
Se entendermos subsunção como enquadramento de uma espécie (caso concreto) num gênero (norma geral), a solução do conflito por critérios a priori não será outra coisa que a subsunção de um caso a um princípio. E, se de fato estivermos a realizar subsunção nesse caso, torna-se claro que a técnica em questão é aplicável não só às regras, mas também aos princípios.
Embora oponha a aplicação de regras por subsunção à de princípios por balanceamento, o texto de Alexy não nega a possibilidade de subsunção de fatos a princípios. Quando afirma que os princípios são “comandos otimizadores”, ele se refere à otimização da subsunção. Portanto, admite a subsunção aos princípios. Contudo, o caso complica-se quando consideramos que o encaixe do fato na regra é um procedimento basicamente gramatical: admitida a semelhança entre eles, realiza-se a aplicação de um ao outro sem mais consideração. A subsunção aos princípios é diferente por envolver algo mais: por envolver minimização o prejuízo para a assimilação do mesmo fato a outro princípio.
Quando o juiz aplica uma regra, a aplicação de todas as outras é excluída. Quando aplica um princípio, ao contrário, outros princípios são ao mesmo tempo aplicados. Essa espécie de aplicação simultânea dos princípios é o que garante a subsunção ótima deles. De modo que falar da aplicação de princípios é necessariamente falar de subsunção.
A subsunção normativa é, ao mesmo tempo, semântica, funcional e contextual. Semântica porque se estabelece em razão do significado dos termos da norma. Funcional por realizar-se em função de institutos, que são complexos semânticos definidos em normas difusas ou agrupadas. E contextual porque normas com o mesmo fraseado situadas em níveis diversos do ordenamento abrangem mais ou menos casos, conforme o contexto a que cada nível as refere. Assim como uma palavra significa uma coisa em si mesma, essa coisa acrescida de significados adicionais em determinado contexto e a coisa acrescida de ainda outros significados num segundo contexto, uma norma significa algo no contexto a que certo nível do ordenamento a refere, e algo diverso no contexto a que outro nível a relaciona.
Otimizar a subsunção aos princípios envolve reconhecer toda a extensão semântica deles e referi-los tanto aos institutos jurídicos que integram como aos casos que o seu nível hierárquico admite. Os princípios não são suscetíveis de interpretação restritiva, pois estreitar o significado deles é não lhes atribuir a maior extensão semântica que comportam. Esse é um dado importante, mas não suficiente, pois, além de não poderem ser interpretados de modo a reduzir seus sentidos possíveis, os princípios tampouco podem ser aplicados restritivamente, de modo a mutilá-los dos institutos que integram ou de seccioná-los de casos a que o nível hierárquico em que eles se situam os refere.
Com pequenas adaptações, o cabedal de conceitos de São Tomás permite esclarecer
esse ponto pela divisão dos princípios em primeiros e consequentes. Primeiros princípios de um sistema são os referidos ao contexto mais amplo possível: o contexto total do ordenamento. Princípios consequentes são subprincípios ou consequências próximas dos princípios primeiros. Eles podem ser referidos ao contexto total do ordenamento ou a parte dele. Se forem referidos a todo o sistema, os subprincípios serão tão gerais quanto os princípios de que derivam; se forem referidos só a parte do ordenamento, eles constituirão princípios setoriais, portanto princípios de um nível distinto dos primeiros.
Se os princípios são normas otimizadoras tanto do ponto de vista semântico quanto funcional e contextual, eles não podem ser interpretados restritivamente,
Porém, a um princípio não é possível situar-se num nível
superior, sem ser mais geral que os dos níveis inferiores. Isso simplifica consideravelmente a resolução a priori dos conflitos de princípios, pois permite fundir os brocardos Lex superior derogat inferior, Lex specialis derogat generalis e Lex posterior derogat priori num só aplicável a todos os casos, a saber: Lei superior e geral afasta a aplicação da inferior e especial, ainda que esta lhe seja posterior.
Consequência da fusão das regras de resolução de conflitos é que, se o critério da superioridade permite decidir o princípio a ser priorizado, a proporcionalidade só intervirá nos casos em que os princípios conflitantes forem do mesmo nível e estiverem em vigência ao mesmo tempo. Em todos os outros casos, a resolução dos conflitos ocorrerá a priori e não a posteriori.
Alexy conclui: “O direito é um sistema que (1) atende a demanda de correção, (2) consiste na totalidade das normas de uma Constituição globalmente eficaz que não são extremamente injustas, e na totalidade das normas promulgadas em conformidade com ela e (3) compreende princípios e outros argumentos normativos, nos quais o processo ou procedimento de aplicação do direito baseia-se ou deve basear-se para atender a exigência de correção” (idem. p. 127).
Nessa notável síntese, a justiça aparece não só como valor jurídico, mas também moral. É quanto basta para ligar o direito à moral, afastar o positivismo e afirmar o jusnaturalismo não só como concepção teórica, mas também prática, porquanto imposta pela mais trágica experiência histórica de que temos notícia. Experiência, aliás, tão trágica quanto educativa, se Cervantes tiver escrito com alguma razão que “a história é mãe da verdade, êmula do tempo, depositária das ações, testemunha do passado, manifestação do presente, advertência sobre o futuro”.