Atos 2:42 e 46 afirmam que, após a ascensão de Jesus, seus discípulos continuaram a “partir o pão [...] de casa em casa”. Ao que tudo indica, Lucas registrou essa prática com a intenção de sugerir que, por meio dela, os discípulos cumpriram o mandamento de celebrar a Ceia instituída pouco antes da crucificação.
Porém, Atos não esclarece se, ao cumprirem o mandamento, os discípulos consideravam que o pão e o vinho se transformavam no corpo e no sangue de Cristo. O mais longe que Atos chega, a propósito da celebração da Ceia, é tecer afirmações como a de que, “no primeiro dia da semana, tendo-nos reunido a fim de partir o pão [...] Paulo prolongou o seu discurso até a meia-noite” (At 20:7).Muito pouco para permitir qualquer conclusão fundamentada sobre o entendimento dos primeiros cristãos sobre a Ceia.
É lícito perguntar, diante disso, se a convicção de algo tão extraordinário quanto a transformação do pão no corpo e do vinho no sangue de Cristo estava sedimentada na igreja, quando Atos foi escrito, provavelmente, na década de 60 do primeiro século. Se estivesse, não era de esperar que, ao narrar a Ceia, Lucas se referisse ao milagre da transfiguração, em vez de manter silêncio sobre ele?
Não é muito diferente nas Epístolas. No texto em que trata mais extensamente da Ceia, Paulo não se refere à presença real de Cristo no pão e no vinho. Dedica-se a outros aspectos da celebração: "Quando vos reunis no mesmo lugar, não é a ceia do Senhor que comeis. Porque, ao comerdes, cada um toma antecipadamente a sua própria ceia; e há quem tenha fome, ao passo que há também quem se embriague. [...] Porque eu recebi do Senhor o que também vos entreguei: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão; e, tendo dado graças, o partiu e disse: Isto é o meu corpo, que é dado por vós; fazei isto em memória de mim. Por semelhante modo, depois de haver ceado, tomou também o cálice, dizendo: Este cálice é a nova aliança no meu sangue; fazei isto, todas as vezes que o beberdes, em memória de mim. Porque todas as vezes que comerdes este pão e beberdes o cálice, anunciais a morte do Senhor, até que ele venha" (1 Co 11: 20-21, 23-26).
Como Lucas, em Atos, Paulo tampouco esclarece qual era a convicção dos discípulos sobre o sentido das frases "Isto é o meu corpo", "Isto é o meu sangue" e "Fazei isto em memória de mim". Um texto escrito só um pouco mais tarde (o Didaqué, datado de 70 a 120 d. C.) não preenche a lacuna. Nele, encontramos a exortação para que, ao celebrarem a eucaristia, os discípulos dissessem "sobre o cálice: ‘Nós te agradecemos, Pai nosso, por causa da santa vinha do teu servo Davi, que nos revelaste por meio do teu servo Jesus. A ti a glória para sempre’". Sobre o pão partido, diz-nos a Didaqué que os cristãos deviam pronunciar a oração: "‘Nós te agradecemos, Pai nosso, por causa da vida e do conhecimento que nos revelaste por meio do teu servo Jesus. A ti a glória para sempre’” (Didaqué. In Padres apostólicos. 4ª ed., São Paulo: Paulus, 2008. p. 353). Novamente, o significado do pão e do cálice não é esclarecido. Porém, o primeiro é tratado como um símbolo da igreja logo em seguida: “Como este pão partido tinha sido semeado sobre as colinas, e depois recolhido para se tornar um, assim também a tua Igreja seja reunida desde os confins da terra no teu reino” (idem).
O primeiro registro de uma interpretação propriamente dita da Ceia, encontramo-lo na Epístola de Inácio aos esmirnenses. Na verdade, deparamos com duas interpretações, no trecho em que lemos que “os docetas abstêm-se da eucaristia e da oração porque não admitem que a eucaristia seja a carne de Jesus Cristo nosso Salvador, que sofreu por nossos pecados, ao qual o divino Pai ressuscitou”. Essas palavras indicam que, no fim do primeiro século e início do segundo, os que não adotavam interpretação semelhante à dos docetistas criam na presença real de Cristo no pão e no vinho. Portanto, a interpretação literal e a simbólica coexistiam.
Em meados do século II, Justino escreveu sobre o culto cristão: "Terminada a ação de graças do presidente e ratificada pelo povo, os chamados diáconos distribuem entre os presentes o pão eucarístico e o vinho com água, que levam depois também aos ausentes. Chamamos este alimento de eucaristia: ninguém pode participar dele a não ser aquele que crê que nossas doutrinas são verdadeiras [...] pois, para nós, não é alimento ordinário, nem bebida comum; pois, assim como, pela palavra de Deus, Jesus Cristo nosso Senhor fez-se carne e sangue para nossa redenção, assim também o alimento consagrado pela oração da palavra que dele recebemos, através do qual, mediante sua transformação, nossa carne e nosso sangue são alimentados; este alimento é a carne e o sangue de Jesus" (ROMA, Justino de. 1ª Apologia. In Justino de Roma. Sâo Paulo: Paulus, 1995. p. 82).
No segundo e terceiro séculos, é possível encontrar mais testemunhos das interpretações da eucaristia defendidas pelos cristãos. Ireneu, Hipólito, Tertuliano e Cipriano defenderam a presença real de Cristo no pão e no vinho. Numa famosa epístola, Cipriano escreveu: “Se Jesus Cristo nosso Senhor e Deus, pessoalmente, é o sumo sacerdote de Deus Pai; se, primeiramente, se ofereceu a si mesmo em sacrifício ao Pai, ordenando que seja isso feito em sua memória, com toda certeza o sacerdote, imitando o que Cristo fez, desempenha fielmente o papel de Cristo e oferece ao Pai um sacrifício verdadeiro e completo, toda vez que o oferece na forma como Cristo ofereceu” (CARTAGO, Cipriano de. Epístola LXIII, 14. In BETTENSON. Documentos da igreja cristã. São Paulo: ASTE, 1998. pp. 137-138).
Em notável contraste com os teólogos acima, Orígenes escreveu que “um sinal de nossa gratidão a Deus [é] o pão chamado Eucaristia” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Contra Celso. São Paulo: Paulus, 2004. p. 664). Nesse texto, a palavra sinal não parece empregada como sinônimo de indicação ou outra palavra que pudesse assumir significados distintos em situações diferentes, mas para frisar o caráter específico da eucaristia como símbolo.
Orígenes adotou a interpretação simbólica com um propósito muito distinto dos docetistas, que queriam negar que o Verbo tivesse encarnado. Como sustentava tanto a divindade quanto a humanidade e a mistura da substância divina com a humana em Cristo, ele tinha, simplesmente, o propósito de realçar o que havia de simbólico nas palavras de instituição da Ceia.
No século IV, Gregório de Nissa escreveu que o pão “não se converte no corpo do Verbo por via da alimentação”, ou seja, pelo simples metabolismo, “mas é transformado imediatamente em seu corpo em virtude do Verbo, como o mesmo Verbo disse: ‘Isso é meu corpo’” (NISSA, Gregório de. A grande catequese. São Paulo: Paulus, 2011. p. 378). Essas palavras sugerem que, entre os partidários da presença real, alguns afirmavam que o pão se tornava o corpo, e o vinho, o sangue de Cristo, durante o metabolismo, ao passo que outros defendiam a transformação instantânea, durante a celebração da Ceia.
No século V, lemos interpretação semelhante à de Orígenes, na passagem em que Dionísio
Areopagita recomendou: “Ora para merecer a honra de realizar, à imitação
de Deus, esta divina operação, de consagrar [ele não diz transformar]
os mistérios divinos e de distribuí-los [...] e apresentar aos olhos de
todos os mistérios que acaba de realizar sob as espécies simbolicamente
apresentadas”. As palavras “simbolicamente apresentadas”, no texto do
Areopagita, não deixam dúvida sobre o significado do pão e do cálice
para esse autor.
Num esforço de síntese, podemos afirmar que o número de testemunhos favoráveis à presença real de Cristo é claramente superior ao dos testemunhos da interpretação alegórica, entre os séculos I e V. Porém, a superioridade não é suficiente para induzir a conclusão de que a interpretação simbólica tivesse desaparecido. A verdade parece ser que os dois entendimentos conviveram amplamente, naquele período.
A presença das duas interpretações, nos séculos I a V, se deve à origem de ambas no ato em que Jesus ergueu o pão e o identificou com o seu corpo, tomou o cálice e o identificou com o seu sangue, na celebração original Ceia. Naquela época, a interpretação literal das Escrituras e dos ensinamentos rabínicos era amplamente difundida. Não por acaso o rabi Nicodemos perguntara se o dito “Necessário vos é nascer de novo” significava que ele devia voltar ao ventre de sua mãe e renascer (Jo 3:4). Num contexto como esse, em que a interpretação literal estava tão difundida, é natural que tenha passado pela cabeça dos discípulos que o pão era realmente o corpo, e o vinho, o sangue de Cristo.
Porém, isso não significa que eles tenham concluído, com certeza, que o alimento elevado era, literalmente, a cabeça, os pés, as pernas, as mãos, os braços e todas as outras partes do corpo de Cristo ou que o vinho era o sangue de seu Senhor. Pelo contrário, eles devem ter rejeitado essas ideias quando sentiram o gosto do pão e do vinho, uma vez que os evangelistas não deixaram a menor indicação de que o sabor do pão fosse de carne, e o do vinho, de sangue. E devem ter pensado, contraditoriamente à primeira impressão que haviam tido, que as palavras de Jesus podiam ter uma espécie de significado simbólico.
Se o sentido literal foi cogitado pelos discípulos tão-logo ouviram as palavras pelas quais Jesus instituiu a Ceia, por outro lado não era incomum o Mestre proferir parábolas e usar figuras de linguagem ao pregar e ensinar. Além disso, o método alegórico de
interpretação das Escrituras tinha-se difundido de sinagoga em sinagoga,
desde que Fílon de Alexandria o desenvolvera, na época de Jesus. De
sorte que os discípulos tinham tão boas razões para pensar que as palavras
da Ceia eram literais quanto para considerar que podiam ser interpretadas em sentido
alegórico.
E, assim como eles, também nós podemos interpretar a Ceia das duas maneiras. A meu ver, os textos dos Evangelhos induzem tanto à interpretação literal quanto à simbólica. Vou além: quando Jesus ordenou aos discípulos “Fazei isto em memória de mim”, a palavra isto devia incluir não só os atos de partir e comer o pão e tomar do cálice, mas também as interpretações variadas que os discípulos fizeram das palavras de instituição da Ceia. Isso porque, ao ouvi-las, eles devem ter pensado naquelas palavras tanto no sentido literal quanto no figurado.
Se dispunham de maneiras diversas de entender as palavras da Ceia, que foram ambas sugeridas pelas palavras de Jesus, naquele ato, podemos pensar que as duas interpretações ocorreram de fato aos discípulos, na celebração original. E podemos concluir que, quando Jesus ordenou que fizessem “isto”, ou seja, que celebrassem a Ceia em sua memória, ele não se referiu somente aos atos mecânicos de partir o pão etc., mas também ao sentido dos atos e às interpretações cogitadas pelos discípulos. “Fazei isto em memória de mim” deve significar não só a repetição dos atos, mas também o cultivo das diferentes interpretações da Ceia ventiladas no Cenáculo, em busca da única interpretação perfeita, que é a de Cristo. Se não estiver errado, esse é um sentido importante do sacramento do pão e do vinho. A Ceia instituída por Jesus foi entendida de modos distintos pelos convivas. Quando Jesus ordenou “Fazei isto”, ele se referiu também a essa pluralidade de interpretações. É como se tivesse dito: “Entendam este ato de todas as maneiras razoáveis que forem possíveis, conversem sobre as suas interpretações uns com os outros, mas acima de tudo mantenham a harmonia e o amor entre vocês, pois só assim poderão continuar a fazer isto em memória de mim”.
Assim, o pensar dos discípulos a respeito da Ceia é parte integrante da própria Ceia. Guardemos este dado e o utilizemos como princípio interpretativo dos textos sobre a grande celebração. Marcos 14:22-25 e Mateus 26:26-29 são dois desses textos. Lucas 22:14-20 e 1ª aos Coríntios 11:23-25 são outros. Gosto de agrupar desse modo os textos a respeito da Ceia, pois o duplo emparelhamento permite perceber que Marcos e Mateus dizem quase a mesma coisa, ao passo que Lucas e Paulo acrescentam um novo matiz à Ceia.
Concordo com Lutero quando afirmou que os textos de Marcos e Mateus sugerem a interpretação literal mais que a simbólica. Porém Lucas e Paulo acrescentaram a ideia de que a Ceia é um memorial. Nem Mateus, nem Marcos tinham usado as palavras “Fazei isto em memória de mim”. Paulo foi o primeiro a empregá-las em 1ª aos Coríntios 11:24-25. Lucas depois fez o mesmo (Lc 22:19). Portanto, sem eles, não saberíamos sequer que devemos repetir a celebração em memória de Cristo.
Todo memorial é impregnado de sentido simbólico. Ainda mais uma celebração instituída no dia da Páscoa. Sabemos que a Páscoa judaica era profundamente simbólica. O cordeiro, as ervas amargas e todos os outros itens incluídos na sua comemoração tinham profundo significado alegórico: como negar que a Ceia instituída sobre essa base não é, ela própria, simbólica?
Vemos que, sem negar os ditos de Marcos e Mateus, Lucas e Paulo enfatizaram o significado simbólico da Ceia. Deve ter-lhes parecido que o fato de um objeto ser o corpo e outro o sangue indicava que o corpo e o sangue de Cristo seriam separados, portanto que ele sofreria uma morte violenta. Tudo isso deve ter causado impressão profunda e sugerido, a Paulo e a Lucas, o significado simbólico da Ceia.
É verdade que 1ª aos Coríntios 10:16 estende a interpretação literal a todas as celebrações da Ceia, em todas as épocas: "Porventura o cálice da bênção, que abençoamos, não é a comunhão do sangue de Cristo? O pão que partimos não é porventura a comunhão do corpo de Cristo?". Parece que Paulo pensa que, em todas as celebrações, o pão se transforma em corpo, e o vinho, em sangue. Porém, o verso seguinte esclarece que não é esse o pensamento do apóstolo: "Porque nós, sendo muitos, somos um só pão e um só corpo, porque todos participamos do mesmo pão". A palavra porque, nesse verso, indica que o que é dito depois constitui a explicação e o fundamento do que é afirmado antes. Portanto, que a comunhão do corpo de Cristo se dá por sermos um único corpo místico: exatamente o de Cristo. Claro que, como o corpo com o qual temos comunhão na Ceia é místico, o sangue também o é.
Mas, se os sentidos literal e simbólico coexistem, precisamos indicar como eles podem ser afirmados ao mesmo tempo, sem contradição. As palavras de Marcos e Mateus nos asseguram que o corpo e o sangue de Cristo estiveram no pão e no vinho da celebração original no Cenáculo. Isso é transmitido, de maneira inequívoca, em Mateus 26:26: "Tomais, comei; isto é o meu corpo".
Não há como interpretar a palavra tomar, nesse período, a não ser como um tomar literal. Semelhantemente, não é possível compreender o verbo comer, senão como um comer literal. E, combinando essas duas palavras com as outras, não é crível que, num momento tão decisivo quanto a instituição da Santa Ceia, Cristo tenha dito, no mesmo período, para os discípulos tomarem literalmente e comerem literalmente um corpo não literal. Portanto, parece inequívoco que, na Ceia original, Jesus operou um milagre.
É melhor e mais simples explicar esse milagre à maneira de Lutero do que da Escolástica, o que significa que não houve transfiguração, vale dizer, a substância do pão não se transformou no corpo, e a do vinho, no sangue. Lutero explicou o milagre da Ceia mediante o paralelo com a vinda do Espírito em forma de pomba, no momento do batismo de Jesus. Assim como o Espírito uniu-se à pomba, mas apenas ela foi vista, o corpo e o sangue uniram-se ao pão e ao vinho, mas só estes foram observados, cheirados, saboreados (LUTERO, Martinho. Da Ceia de Cristo – Confissão. São Leopoldo: Sinodal/Concórdia, 1993, Vol. 4, pp. 323-324).
Este é um dos sentidos da Ceia: o sentido literal, que se aplica apenas à celebração original ocorrida no Cenáculo. Mas o milagre da união do corpo e do sangue de Cristo ao pão e ao vinho não se repete cada vez que celebramos a Ceia. Esta tem para nós, portanto, um sentido simbólico e não literal. Não porque Deus não possa repetir o milagre tantas vezes quantas queira, mas porque Marcos e Mateus se calaram sobre as repetições futuras do ato, ao passo que Lucas e Paulo fizeram delas memoriais em que o corpo e o sangue são representados pelo pão e pelo cálice, sem estarem presentes.
É da essência da Ceia ter vários sentidos, que estão ao mesmo tempo encerrados nas palavras que a instituíram, como filhos que habitam o mesmo ventre. Mas, ao contrário de Esaú e Jacó, as interpretações diferentes da Ceia não concorrem uma com a outra, antes coexistem harmonicamente. Esse é o milagre maior: não o do pão que se faz carne ou o do vinho que se converte em sangue, mas o da palavra grávida de interpretações diversas, que juntas saem do ventre verbal que as carrega para ingressar em corações de carne.
sexta-feira, 22 de maio de 2015
sábado, 9 de maio de 2015
Deus é Pai (3): A Origem do Politeísmo
Karen
Armstrong propôs que as populações paleolíticas devem ter desenvolvido a noção
rudimentar de uma divindade única com atributos positivos associados à calma e
beleza celestes e negativos ligados às tempestades, trovões e outros fenômenos
cataclísmicos. De acordo com ela, essas ideias devem ter surgido até mesmo
antes do culto politeísta:
“Alguns
dos mitos mais antigos, provavelmente datados do período Paleolítico, estavam
associados ao céu, que aparentemente deu às pessoas a primeira noção do divino.
Quando olhavam para o céu infinito, remoto, existindo totalmente separado de
suas vidas insignificantes – as pessoas passavam por uma experiência religiosa.
O céu pairava acima de todos, inconcebivelmente imenso, inacessível e eterno.
Era a própria essência do transcendental e da alteridade. Os seres humanos nada
podiam fazer que o afetasse. O drama interminável dos relâmpagos, eclipses,
tempestades, arco-íris e meteoros indicava uma outra dimensão permanentemente
ativa, dotada de vida própria. Contemplar o céu enchia as pessoas de pavor e
regozijo, de deslumbramento e medo.
[...]
A certa altura – não sabemos exatamente quando isso ocorreu – as pessoas de
diversas partes do mundo, isoladas entre si, passaram a representar o céu.
Começaram a contar histórias sobre um ‘Deus celeste’ ou ‘Deus das Alturas’, que
criou sozinho o céu e a terra, a partir do nada. Esse monoteísmo primitivo
quase certamente data do período Paleolítico” (ARMSTRONG, Karen. Breve história do mito. São Paulo: Cia.
das Letras, 2005. pp. 21-23).
O estudo da linguagem religiosa provê confirmação
surpreendente para a afirmativa de Armstrong. É que a
transcendência do divino sempre constituiu um forte estímulo para que palavras fossem
empregadas em sentidos diversos do consagrado pelo uso comum. Isso deve ter
acontecido com expressões como a mão divina, a face de Deus e outras
semelhantes, que podem ter sido empregadas bem cedo em sentidos diversos daqueles
consagrados pelo uso comum.
Esse dado sugere que o emprego de um vocabulário com sentido figurado, em acréscimo aos termos com significado literal usados no dia a dia, pode ter começado no âmbito da religião. Mas não deve ter sido fácil para o uso simbólico se impor de maneira clara, pois ele demanda não só capacidade de abstração, mas também a de concentrar a atenção nas frases, nas orações, nos períodos e nos parágrafos em que a linguagem escrita se desdobra.
Enquanto o analfabetismo imperou, nos povos que utilizavam a escrita, e enquanto a barreira de comunicação entre as classes instruídas e as iletradas não pôde ser quebrada, não deve ter sido possível à maior parte das pessoas absorver os sentidos não literais das palavras. Assim, durante milênios, a linguagem deve ter permanecido amplamente restrita aos sentidos literais dos termos.
Imagino que o monoteísmo a que Karen Armstrong se refere e o politeísmo que a ele se seguiu, em quase toda parte, tenham exercido influências muito distintas sobre esse estado de subdesenvolvimento linguístico. É que o único Deus é concebido como tão transcendente que os termos do dia a dia não parecem adequados para exprimi-lo. Necessário é, portanto, empregar esses termos em sentidos novos e figurados. Dessa maneira devem ter surgido expressões como a mão do Criador e o rosto de Deus.
Esse dado sugere que o emprego de um vocabulário com sentido figurado, em acréscimo aos termos com significado literal usados no dia a dia, pode ter começado no âmbito da religião. Mas não deve ter sido fácil para o uso simbólico se impor de maneira clara, pois ele demanda não só capacidade de abstração, mas também a de concentrar a atenção nas frases, nas orações, nos períodos e nos parágrafos em que a linguagem escrita se desdobra.
Enquanto o analfabetismo imperou, nos povos que utilizavam a escrita, e enquanto a barreira de comunicação entre as classes instruídas e as iletradas não pôde ser quebrada, não deve ter sido possível à maior parte das pessoas absorver os sentidos não literais das palavras. Assim, durante milênios, a linguagem deve ter permanecido amplamente restrita aos sentidos literais dos termos.
Imagino que o monoteísmo a que Karen Armstrong se refere e o politeísmo que a ele se seguiu, em quase toda parte, tenham exercido influências muito distintas sobre esse estado de subdesenvolvimento linguístico. É que o único Deus é concebido como tão transcendente que os termos do dia a dia não parecem adequados para exprimi-lo. Necessário é, portanto, empregar esses termos em sentidos novos e figurados. Dessa maneira devem ter surgido expressões como a mão do Criador e o rosto de Deus.
Não acontece o mesmo com o politeísmo que, em geral, conduz à representação das figuras divinas por meio de ídolos de pedra, madeira, metais preciosos e outros materiais. A essa concepção materialista do divino o vocabulário comum pode corresponder muito bem, visto que os ídolos facilmente podem ter mãos e faces literais. Portanto, o politeísmo e a idolatria em que tende a degenerar não requerem o emprego de figuras de linguagem para serem expressos.
Em poucas palavras, o politeísmo é uma atividade muito mais econômica, do ponto de vista da linguagem, pois pode ser desenvolvido com o emprego das palavras do dia a dia, sem a necessidade da atribuição de sentidos novos a elas. O monoteísmo, ao contrário, é linguisticamente sofisticado e dispendioso. Requer um desenvolvimento cultural para se impor. Talvez por essa razão (entre outras), os cultos dos diversos panteões tenham proliferado em muito maior medida, ao longo de muitos séculos, do que a religião do Deus único.
Uma condição cultural para o desenvolvimento do monoteísmo é a redução senão da extensão do analfabetismo, ao menos da sua influência sobre o pensamento das pessoas. É que o baixo grau de instrução tende a impedir a proliferação do uso das expressões figuradas a que me referi e que devem ter sido criadas para exprimir atributos divinos muito abstratos, por isso comuns a vários deuses e, ainda por isso, associados a uma ideia da divindade suprema. O resultado líquido disso deve ter sido a idolatria.
Imaginemos que os sacerdotes empregassem determinado número de palavras em sentido diverso do literal, nas fórmulas rituais de um povo remoto. Para que as pessoas compreendessem que o significado daquelas palavras, no bojo das fórmulas rituais, não era o que elas tinham aprendido, era necessário fazer uso da escrita. Só olhando para os signos escritos das palavras, num pedaço de couro ou num rolo, era possível meditar sobre elas o bastante para chegar a entender os sentidos figurados. Do contrário, as pessoas não entenderiam os novos termos.
Em poucas palavras, o politeísmo é uma atividade muito mais econômica, do ponto de vista da linguagem, pois pode ser desenvolvido com o emprego das palavras do dia a dia, sem a necessidade da atribuição de sentidos novos a elas. O monoteísmo, ao contrário, é linguisticamente sofisticado e dispendioso. Requer um desenvolvimento cultural para se impor. Talvez por essa razão (entre outras), os cultos dos diversos panteões tenham proliferado em muito maior medida, ao longo de muitos séculos, do que a religião do Deus único.
Uma condição cultural para o desenvolvimento do monoteísmo é a redução senão da extensão do analfabetismo, ao menos da sua influência sobre o pensamento das pessoas. É que o baixo grau de instrução tende a impedir a proliferação do uso das expressões figuradas a que me referi e que devem ter sido criadas para exprimir atributos divinos muito abstratos, por isso comuns a vários deuses e, ainda por isso, associados a uma ideia da divindade suprema. O resultado líquido disso deve ter sido a idolatria.
Imaginemos que os sacerdotes empregassem determinado número de palavras em sentido diverso do literal, nas fórmulas rituais de um povo remoto. Para que as pessoas compreendessem que o significado daquelas palavras, no bojo das fórmulas rituais, não era o que elas tinham aprendido, era necessário fazer uso da escrita. Só olhando para os signos escritos das palavras, num pedaço de couro ou num rolo, era possível meditar sobre elas o bastante para chegar a entender os sentidos figurados. Do contrário, as pessoas não entenderiam os novos termos.
Por isso, a idolatria deve ter constituído um entrave para a disseminação do
uso de palavras com significado diverso do literal. É que, por mais que
sacerdotes e profetas possam ter inventado e usado figuras de linguagem, o
sentido delas não deve ter sido compreendido adequadamente pelas outras pessoas,
que tomavam os vocábulos figurados no sentido literal e pensavam que os deuses e suas hipóstases eram objetos materiais. É o que
expressões como o braço ou o seio de Deus e outras menos grosseiras, como a ira divina, devem ter parecido a elas. Embora outros fatores certamente tenham contribuído
para a sedimentação da idolatria, nos povos, dificilmente eles atuaram
separadamente do fator linguístico a que me refiro. De sorte que a predominância da linguagem literal deve
ter exercido uma pressão constante para o sucesso do politeísmo desde a
Pré-História.
Vemos que o monoteísmo pressupõe um grau de desenvolvimento prévio
da linguagem figurada para se consolidar e disseminar. É possível que os patriarcas
mencionados no Livro de Gênesis tenham sido adoradores do único Deus cultuado
pelos seus clãs, mas nada está a garantir que o Deus de cada clã fosse rigorosamente igual ao dos demais. Se diferenças entre os
deuses exclusivos dos clãs existiram, é conveniente denominar
henoteístas e não ainda monoteístas os cultos patriarcais.
Talvez o monoteísmo como culto consciente a um só Deus, com base na voga da linguagem figurada, só tenha feito sua aparição, e mesmo assim claudicante, na época de Moisés. Antes disso, o conhecimento de um Deus supremo ou único deve ter-se mantido restrito às classes letradas. Essa deve ter sido uma das razões pelas quais o seu culto nunca se desenvolveu.
É possível
perceber que, nos textos politeístas produzidos por povos em transição ao
monoteísmo ou que mantinham contato com tribos henoteístas, o
uso da linguagem figurada existia, mas era grosseiro e até certo ponto
inconsciente. Exemplos desse emprego revolucionário incipiente da linguagem
encontramos no poema babilônio da criação conhecido como Enuma elish, escrito no século XIV a. C.: Talvez o monoteísmo como culto consciente a um só Deus, com base na voga da linguagem figurada, só tenha feito sua aparição, e mesmo assim claudicante, na época de Moisés. Antes disso, o conhecimento de um Deus supremo ou único deve ter-se mantido restrito às classes letradas. Essa deve ter sido uma das razões pelas quais o seu culto nunca se desenvolveu.
“Quando no alto o céu não se nomeava ainda/ e embaixo a terra firme não recebera nome/ foi Apsu, o iniciante, que os gerou/ a causal Tiamat que a todos deu à luz/ como suas águas se confundiam/ nenhuma morada divina fora construída/ nenhum canavial tinha ainda aparecido” (Enuma elish. In A criação e o dilúvio – segundo os textos do Oriente Médio Antigo. São Paulo: Paulus, 1990. p. 15).
O deus Apsu é a personificação das águas doces. Tiamat são as águas salgadas. É possível que os criadores desses vocábulos os empregassem em sentidos figurados, porém o refluxo do uso popular sobre os vocábulos produziu a regressão dos sentidos novos aos literais. Assim, Apsu deixou de ser um deus associado aos rios e lagos para ser os próprios rios e lagos. Semelhantemente, Tiamat deixou de ser o deus que controla o mar para ser o próprio mar.
A Epopeia de Gilgamesh costuma ser datada de cerca de 1.750 a. C. Lemos nela que “Utnapishtim disse a Gilgamesh/ ‘Vou revelar-lhe, Gilgamesh, algo oculto/ e o segredo dos deuses, a ti quero contar. Shuruppak, a cidade / esta cidade é antiga/ é lá que estavam os deuses que conheces/ que está situada [à margem] do Eufrates/ suas más disposições levaram os grandes deuses/ a desencadear um dilúvio [...] [o príncipe Ea] repetiu suas propostas na choupana de junco/ choupana, choupana, tabique, tabique/ choupana escuta, tabique esteja atento/ homem de Shuruppak, filho de Ubar-Tutu/ passa a demolir tua casa/ constroi um barco/ renuncia à riqueza e busca a vida/ despreza os bens e conserva a vida” (Epopeia de Gilgamesh. In A criação e o dilúvio – segundo os textos do Oriente Médio Antigo. São Paulo: Paulus, 1990. p. 59).
Além de os deuses citados serem partes ou forças da natureza, como os do poema anterior, a epopeia atribui claro caráter literal aos acontecimentos que narra. Utnapishtim e Gilgamesh são homens de carne e osso, Shuruppak é uma cidade histórica, a choupana, o junco, o tabique, a casa, o barco e a riqueza mencionados são os objetos comuns que conhecemos por esses nomes. Portanto, embora se trate de um poema, o uso da linguagem figurada é bastante limitado.
Precisamos lembrar que ambos os poemas foram compostos na Mesopotâmia, onde a Bíblia localiza o culto primitivo a um só Deus. Todos sabem que Abraão morou em Ur, que ficava no sul da Mesopotâmia. E as tribos henoteístas de Gênesis 1 a 11 também parecem ter vivido nos arredores dessa região. De sorte que tanto o Enuma Elish como a Epopeia de Gilgamesh foram produzidos por pessoas que mantiveram contato com culturas henoteístas.
A situação se altera, quando passamos aos poemas monoteístas mais antigos de que dispomos, a exemplo do cântico de Moisés, em Êxodo, e do de Débora, inserido no Livro de Juízes. Ambos os textos fundadores do culto judaico têm sentido figurado mais denso. O primeiro deles lê: “Iahweh é homem de guerra/ Iahweh é o seu nome/ Lançou no mar os carros de Faraó e o seu exército/ e os seus capitães afogaram-se no Mar Vermelho/ Os vagalhões os cobriram/ desceram às profundezas como pedra/ A tua destra, ó Iahweh, é gloriosa em poder/ a tua destra, ó Iahweh, despedaça o inimigo” (Êx 15:3-6).
A declaração “Iahweh é homem de guerra” não é apenas poética, mas claramente figurada. Como fundador do monoteísmo, Moisés não desejaria transmitir que Deus fosse literalmente um homem. Do mesmo modo, a destra de Iahweh é também uma expressão figurada, pois não implica que Deus tenha um par de mãos. Porém, todo o restante do poema de Moisés é vazado em palavras literais, simples, toscas, como era próprio para um povo como o que saiu do Egito com ele.
O Cântico de Débora, também muito antigo, mas possivelmente posterior ao de Moisés, faz uso de linguagem simbólica ainda mais refinada:
“Ouvi, reis, dai ouvidos, príncipes/
eu, eu mesma cantarei a Iahweh/ salmodiarei a Iahweh, Deus de Israel/ Saindo
tu, ó Iahweh, de Seir/ marchando desde o campo de Edom/ os céus gotejaram/ sim,
até as nuvens gotejaram águas/ Os montes vacilaram diante de Iahweh/ lá o Sinai
diante de Iahweh, Deus de Israel [...] Desde os céus pelejaram as estrelas
contra Sísera/ Desde a sua órbita o fizeram/ O ribeiro Quisom os arrastou/
Quisom, o ribeiro das batalhas/ Avante, ó minha alma, firme!/ Então as unhas
dos cavalos socavam pelo galopar/ o galopar dos seus guerreiros/ Amaldiçoai a
Meroz, diz o Anjo de Iahweh/ amaldiçoai duramente os seus moradores/ porque não
vieram em socorro de Iahweh [...] Assim, ó Senhor, pereçam todos os teus
inimigos/ porém os que te amam brilham como o sol quando se levanta no seu
esplendor” (Jz 5:3-5. 20-23, 31).
Este texto não se refere
apenas à destra de Iahweh: afirma que os moradores de Meroz não saíram em
socorro de Deus. Naturalmente, a autora não considerava que Iahweh precisasse
de ajuda humana. Portanto, ela se referiu ao socorro dos homens numa figura de
ironia. Atribuiu aos moradores de Meroz a crença de que Iahweh só triunfaria
por meio do auxílio deles. E estendeu suas metáforas não só a Deus, mas
até aos homens quando desejou que os que o amam “brilhem como o sol”.
O caráter progressivamente complexo
das figuras de linguagem empregadas nos textos produzidos nos povos em que se
deu a transição do politeísmo ao culto ao Deus único e nos cânticos da época de
fundação do monoteísmo confirma a tese de que a idolatria e o culto a múltiplos
deuses podem ter sido consequência da corrupção do sentido de termos figurados
sobre o único Deus, que tinham sido criados pelos sacerdotes em tempos muito
remotos. Se tiver sido assim, a História da Religião ficará iluminada por um
facho de luz nova, que permitirá compreender, mais adequadamente, por que
os primeiros lampejos de um sentimento desenvolvido de piedade foram inspirados pela ideia do Deus supremo, à qual os sacerdotes da época deram
desenvolvimento por meio de expressões figuradas, que outras pessoas
corromperam e empregaram em sentidos literais e referiram à matéria.O desenvolvimento do culto ao Deus único, do henoteísmo patriarcal ao judaísmo, o cristianismo e o islamismo, não mostra outra coisa: sempre que o emprego da linguagem figurada foi chancelado e pôde crescer livremente, no culto religioso, de modo a gerar ideias cada vez mais sofisticadas e abstratas, o monoteísmo e com ele a linguagem adquiriram um quilate intelectual inteiramente novo. Porém, onde o apego ao sentido literal das palavras se fortaleceu, como no fundamentalismo judeu, cristão e muçulmano, ele regrediu imperceptivelmente a cultos muito mais primitivos.
sábado, 2 de maio de 2015
História Hipotética da Igreja (6): Orígenes e a Interpretação da Lei
Orígenes de Alexandria |
Como todas as perguntas que evocam assuntos muito amplos, a especulação sobre quem teria sido o maior pensador da Antiguidade é
praticamente indecidível. Mas nem por isso é inútil, visto que tange um
tema fecundo e convida à reflexão comparativa de obras sobreexcelentes escritas ao longo de muitos séculos.
O
mais longe que se pode ir, na questão proposta, sem abandonar a preocupação com
a justiça na escolha do príncipe dos pensadores e com critérios objetivos em que
fundamentá-la, é colher opiniões abalizadas a respeito dela. Se a
questão me fosse formulada, preferiria fornecer uma lista de pensadores, em vez de um
único nome. Assim, a resposta perderia em termos de
definição, mas ganharia em convicção, pois minha lista se apoiaria em considerável grau de certeza.
Eu
elegeria dois filósofos gregos (Platão e Aristóteles), dois teólogos
patrísticos (Orígenes e Agostinho) e, entre eles, situaria o romano Cícero.
Assim comporia minha lista, mantendo um grau de indefinição, mas aumentando
muito a convicção de que dei a resposta certa, à luz de tudo o que me foi possível investigar do pensamento antigo até hoje.
Claro
que a minha lista exclui os autores bíblicos, que devem ser colocados numa categoria incomparável. Exclui também os precursores das ciências naturais, como
Arquimedes, pois, embora altamente reflexivo, o trabalho deles prendia-se de
tal maneira ao empírico que a reflexão abstrata resultava de algum modo
limitada, ao menos em comparação com os pensadores da minha lista. Excluí ainda os historiadores, por um motivo não muito distinto. É que, na Antiguidade, a
arte da narrativa obedecia a regras e métodos que não permitiam a um Tucídides, um
Plutarco ou um Tácito igualar as realizações reflexivas dos filósofos e
teólogos. Não só isso: devo admitir que
excluí também os poetas e dramaturgos gregos e romanos. A essa imputação posso responder somente que o fiz sem preconceito, visto que tenho as artes imaginativas,
a exemplo da poesia, da pintura e da dramaturgia, como atividades superiores à
reflexão racional, mas nem por isso concluo que a reflexão que elas contêm sobrepuja a dos maiores filósofos e teólogos.
Por
fim, devo esclarecer que não fiz constar na mina lista alguns pensadores que se destacaram
sobremaneira na reflexão pura, como Sócrates e Euclides. Sócrates não foi deixado fora por falta de gênio, é claro, mas por conhecermos o seu
pensamento apenas pelo testemunho de terceiros. Por mais qualificados
que tenham sido esses terceiros, do que ninguém duvida, quando consideramos as
convenções que regiam a reprodução de discursos alheios na Antiguidade,
compreendemos que não é possível comparar obras autênticas com discursos
reconstituídos. Quanto a Euclides, não foi incluído em razão do caráter
mais restrito da Matemática como ciência, em comparação com a Filosofia e a Teologia, e por eu não me arvorar em bom entendedor da sua obra.
Fico,
assim, com meus cinco pensadores: Platão, Aristóteles, Cícero, Orígenes e
Agostinho. E o que falta de definição de um único nome a essa lista sobra em
convicção de que dei a resposta mais exata possível à pergunta formulada, tanto à luz da minha
formação quanto do meu senso de justiça.
A lista, na verdade, é citada, aqui, para transmitir, de maneira justa e equilibrada, o valor da
obra de Orígenes de Alexandria.
Esse pensador do terceiro século foi, sem favor, o maior hermeneuta e o mais hábil crítico textual da
Antiguidade. Está ainda entre os maiores filósofos patrísticos, o que, em dias de
ceticismo descontrolado, como os de hoje, pode parecer pouco, mas nada tem de
irrelevante. Basta lembrar que a Filosofia Antiga divide-se em duas partes: uma
dedicada ao estudo dos pensadores gregos (e romanos) e outra, aos patrísticos.
Por fim, Orígenes, Agostinho e Jerônimo são geralmente reconhecidos como os
maiores teólogos da Antiguidade.
Por dois ou três séculos, Orígenes foi o pensador mais influente do mundo ocidental. A
penetração do seu pensamento só foi sustada pelas condenações póstumas que sofreu, primeiro por teólogos isolados, como Jerônimo, e mais tarde, no Sínodo de Constantinopla (544) e no Segundo Concílio de
Constantinopla (553). No entanto, qualquer um sabe que não é possível julgar,
definitivamente, o valor das ideias de alguém, com base em condenações
dogmáticas. Ainda mais quando os vereditos aplicam retroativamente regras inexistentes na época do pensador condenado e o fazem sem que lhe seja concedido direito
de defesa, como no caso de Orígenes. Parece, de fato, que os pratos da balança foram muito desequilibrados nos julgamentos ocorridos: num deles encontramos uma das obras mais importantes da História da Igreja; no outro, duas condenações dogmáticas proferidas sem direito de defesa, com base na retroação de normas. Nada mais justo, por isso, do que Orígenes vir a ser reabilitado pela Igreja.
Não direi, aqui, da importância de Orígenes como filósofo. Sobre esse tema, já me
pronunciei em outro artigo. E como a história da igreja que tento contar não é uma
narrativa de fatos, mas um relato através dos textos, tratarei apenas dos escritos teológicos do nosso pensador.
A
contribuição de Orígenes para a Teologia não pode ser exposta em tão poucas páginas.
Limitar-me-ei a analisá-la num dos textos mais
significativos do alexandrino, a saber: a obra que ele escreveu para refutar a
primeira crítica extensa de um filósofo pagão à fé cristã. A obra intitula-se Contra Celso e realiza tão completamente
o propósito de refutar o livro intitulado Discurso verdadeiro, do qual não restou um só exemplar, que
este se tornou conhecido, na íntegra, por meio das citações de
Orígenes. Não é difícil, pois, entender que Contra
Celso constitui uma refutação palavra por palavra do Discurso verdadeiro.
Dentre
os muitos tópicos em que Orígenes se detém, na obra aludida, selecionarei
um para desenvolver: o que explicita o método teológico do pensador cristão. Todos
os que são versados em Teologia sabem que Orígenes se celebrizou por aplicar o
método alegórico da Escola de Alexandria à interpretação das Sagradas Escrituras. Em Contra Celso, ele explicou esse método
da seguinte maneira:
“Se
a palavra da lei ‘dominarás muitas nações, mas nunca serás dominado’ (Dt 15,6;
28,12) fora tão-somente, sem uma significação mais profunda, a promessa [de]
que eles seriam poderosos [...] isto se deu depois da vinda de Jesus, mas por
assim dizer como um efeito da cólera de Deus [contra os judeus] e não
propriamente de sua bênção. Além disso, se na promessa se diz aos judeus que
massacrem seus inimigos, é preciso que uma leitura e um estudo cuidadosos dos
termos revelem que uma interpretação literal é impossível. Bastará por ora
tirar dos salmos estas palavras colocadas na boca do justo: ‘A cada manhã eu
exterminava todos os pecadores da terra, para extirpar da cidade do Senhor
todos os malfeitores’ (Sl 100,8). Levando em consideração os termos e a
intenção do autor, será possível que, depois de ter lembrado seus feitos que qualquer
pessoa pode facilmente ler, ele acrescente o que pode ser extraído do texto
literalmente: que em nenhum outro momento do dia a não ser de manhã ele destruiu
‘todos os pecadores da terra’ sem deixar sobreviver nenhum deles, e que de fato
ele exterminasse sem exceção de Jerusalém todo homem que cometesse a
iniquidade? Podemos ainda encontrar na lei muitos exemplos como este: ‘A
ninguém deixamos escapar vivo’ (cf. Dt 2,34; Nm 21,35)” (ALEXANDRIA, Orígenes
de. Contra Celso. São Paulo: Paulus,
2004. p. 555).
Desse exercício de interpretação Orígenes extrai as seguintes regras,
que sintetizam seu método hermenêutico: “Para nós, a lei tem dois sentidos: um
literal e outro espiritual, como já foi indicado acima. No sentido literal ela
é qualificada, menos por nós do que por Deus, exprimindo em um dos profetas,
‘julgamentos que não são bons’ e ‘prescrições que não são boas’ (Ez 10,25.11);
no sentido espiritual ela é qualificada pelo mesmo profeta, em nome de Deus,
‘julgamentos bons’ e 'prescrições boas’. Está claro, portanto, que o profeta
não diz coisas contraditórias na mesma passagem. Com ele concorda Paulo segundo
o qual ‘a letra mata’, que equivale ao sentido literal, e ‘o espírito vivifica’
(2 Co 3,6), que equivale ao sentido espiritual” (idem. p. 556).
Comecemos
pela segunda parte da citação. Nela, Orígenes reafirma o cânon central da
Escola de Alexandria, segundo o qual os textos contêm um sentido literal,
imediato, e outro espiritual, mais profundo. Esse cânon não pode ser tomado como
coisa de somenos importância, visto que revolucionou não só a História da
Teologia, mas também a das Ideias, como explicarei adiante.
Tornemos da primeira parte da citação, na qual Orígenes demonstra o
procedimento lógico que permite extrair as regras do método alegórico como ele o utilizava. Prestemos
atenção no período em que afirma: “se na promessa se diz aos judeus que
massacrem seus inimigos, é preciso que uma leitura e um estudo cuidadosos dos
termos revelem que uma interpretação literal é impossível”. Esse período indica que
Orígenes não extraía o sentido figurado do texto da sua imaginação, mas da constatação de que a
interpretação literal é impossível. Em outras palavras, ele propõe que a interpretação alegórica só seja utilizada quando a literal não funcionar.
No caso de Deuteronômio 15:6; 28:12, Orígenes retira a impossibilidade da interpretação literal do paralelo que traça com Salmo 100:8, Números 21:35 e Deuteronômio 21:35. Todos esses versos
afirmam que os judeus massacraram populações de maneira tal que não deixaram uma
só pessoa escapar com vida. Orígenes considerava o massacre, em quaisquer condições ou mencionado em qualquer texto, tão
absurdo quanto afirmar que “a cada manhã eu exterminava todos os pecadores da
terra” (Sl 100:8). É tão irracional promover massacres gerais de pecadores a cada manhã quanto em períodos maiores de tempo. Por isso, todas as passagens e não apenas o Salmo 100:8 devem ser interpretadas alegoricamente.
Vemos
que, para Orígenes, o que dirige a interpretação alegórica não é o arbítrio, a
preferência ou a imaginação do intérprete. É, antes, uma característica
objetiva do texto. Poderíamos dar uma mancheia de exemplos bíblicos de que Jesus e Paulo construíram as suas interpretações figuradas exatamente dessa maneira.
Como
já disse, o método hermenêutico da Escola de Alexandria não alterou apenas a
Teologia. Modificou, ao mesmo tempo, o modo de pensar e de se comunicar da
humanidade. Sabemos que o analfabetismo imperou em todos os lugares do mundo, por
muitos séculos. Na verdade, isso ocorreu durante 99,99% da história das línguas
humanas. Podemos supor validamente que, enquanto esse nível de analfabetismo
prevaleceu, o vocabulário comum dos povos permaneceu reduzido ao significado
literal das palavras, pois as tentativas de utilizar a linguagem em sentido figurado
reduziam ou impossibilitavam a comunicação da maior parte das pessoas, que não eram
capazes de lidar com eles. Não era diferente na época de Orígenes, porém o desenvolvimento do método alegórico que ele favoreceu foi fundamental para reduzir a hegemonia da interpretação literal ao longo do tempo.
O problema daquela época e dos séculos que se seguiram é que as multidões iletradas não estavam prontas para compreender os sentidos figurados entrelaçados aos signos com significados literais muito mais arraigados. O modo comum de focar a atenção nas palavras, a fim de refletir
mais profundamente sobre elas era e ainda é utilizar sinais escritos. Se não sabiam ler e
escrever, as pessoas tampouco podiam refletir profundamente sobre os signos linguísticos. A
exceção, é claro, eram as pessoas letradas e de gênio inquieto que atribuíam sentidos
novos aos vocábulos, embora sem serem compreendidas por quase pessoa alguma, o que atrasou sobremaneira o desenvolvimento da arte da interpretação.
Podemos, pois, entender que, quando declarou a Nicodemos que precisava “nascer de
novo” e ouviu as perguntas “Como pode um homem nascer, sendo
velho? Pode, porventura, voltar ao ventre materno e nascer segunda vez?” (Jo
3:3-4), Jesus não entabulou uma conversa absurda ou infantil. Muito menos os
dois rabis, o divino e o humano, revelaram despreparo intelectual. A
conversação que lemos nada mais era que um fato comum da linguagem da época.
As
Antiguidades judaicas, de Flávio
Josefo, são a mais completa confirmação de que o diálogo de Jesus com Nicodemos
nada tinha de absurdo, surpreendente ou pueril. No século I d. C., o maior
historiador judeu antigo escreveu a saga de sua nação, de Adão a Floro, num tom literal que choca a mentalidade moderna. Permitiu e permite, com
isso, entender até que ponto a linguagem literal estava disseminada e como ela compunha
não só a base da comunicação entre as pessoas, no dia a dia, mas também a da linguagem culta e a do pensamento mais refinado.
Assim,
quando Jesus e, depois dele, Paulo e a Escola de Alexandria disseminaram a
interpretação alegórica do Antigo Testamento, propondo que Cristo foi
prefigurado pela rocha ferida por Moisés, o Espírito Santo, pela nuvem que
seguia o povo, no deserto, o batismo, pela travessia do Mar Vermelho (1 Co
10:1-4) e outras coisas semelhantes, eles não revolucionaram apenas a interpretação da Bíblia, mas, em certa
medida, também o modo de pensar e de se comunicar da humanidade inteira.
Nem Josefo estava errado ao interpretar o Antigo Testamento
literalmente, nem Jesus, Paulo e os alexandrinos estavam, ao proporem sentidos novos
para aquela coleção sagrada. O primeiro procedia de acordo com convenções
absolutamente arraigadas. Os outros criavam ou obedeciam a parâmetros novos,
mas absolutamente necessários ao desenvolvimento das línguas e do pensamento.
A regra fundamental da arte de interpretar qualquer língua, em qualquer tempo e
lugar, e ainda mais no caso das línguas cultas, é seguir convenções legitimamente
instituídas. Sem elas, não só não existe linguagem como não há comunicação.
Por isso, é mister possuí-las e não é errado as seguir.
A depuração da interpretação alegórica dos excessos a que seu uso foi levado, em todas as épocas, e a enunciação de suas regras foram as contribuições maiores de Orígenes à Teologia. Interpretar o texto bíblico nunca foi outra coisa que somar os sentidos literais prolíficos ao sentido figurado possível das Escrituras. Foi sempre somar a letra que condena e mata ao espírito que vivifica. O difícil continua a ser refrear a paixão por novidade que leva as pessoas a esquecerem o sentido claro e o conservadorismo que as impede de aceitar a novidade do espírito.
A depuração da interpretação alegórica dos excessos a que seu uso foi levado, em todas as épocas, e a enunciação de suas regras foram as contribuições maiores de Orígenes à Teologia. Interpretar o texto bíblico nunca foi outra coisa que somar os sentidos literais prolíficos ao sentido figurado possível das Escrituras. Foi sempre somar a letra que condena e mata ao espírito que vivifica. O difícil continua a ser refrear a paixão por novidade que leva as pessoas a esquecerem o sentido claro e o conservadorismo que as impede de aceitar a novidade do espírito.
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