sábado, 18 de abril de 2015

Filosofia e Direito (16): O Direito Natural Segundo Cícero

Cícero em atividade no Senado
Cícero conhecia o pensamento de Aristóteles sobre a justiça, do qual derivou a sua fundamentação do direito natural com base na filosofia estoicaPor possuir ampla formação jurídica e também filosófica e por tê-las utilizado vastamente em obras como De legibus e De republica, Cícero é, em geral, considerado o fundador da Filosofia do Direito.
Nada disso implica que o seu pensamento jurídico fosse original. Porém, ainda assim, a fundamentação sólida e expandida que proveu às ideias de Aristóteles e dos estoicos, no De legibusfez desse diálogo o mais importante texto de direito natural em toda a Antiguidade.
Não é possível compreender o fio da argumentação de Cícero, na sua obra jurídica fundamental, sem perceber que ele parte do vocábulo pelo qual a desenvolve. Examina-o em grego e explica, em seguida, o motivo da escolha do termo latino lex para traduzi-lo: “A palavra grega para lei (nomos) deriva do verbo nemo, distribuir, que traduz a natureza do objeto indicado, a saber: dar a cada um o que é seu. De minha parte, imagino que a essência moral da lei exprime-se melhor por meio do vocábulo em latim (lex), que transmite a ideia de escolha ou discriminação. Em síntese, para os gregos, o termo implica uma distribuição equitativa de bens, ao passo que, para os romanos, aponta para uma discriminação equitativa entre o bem e o mal” (CÍCERO. De legibus. Livro I, nº 34. Disponível em ww.oll.libertyfund.org/titles/545).
Cícero não hesita em usar o termo lex para exprimir, em latim, o que os estoicos queriam dizer ao se referirem a um nomos que vigora em toda parte, sem mudança alguma. Esse nomos, Cícero o chama lex naturalis. A arqueologia do termo, ele a fornece sucintamente, por um raciocínio eclético, pois associa à ideia estoica de lei natural o que os filósofos da primeira Academia, entre os quais arrola Aristóteles (idem. nº 44), pensavam sobre o fundamento da Ética.
A associação não é, de modo algum fácil ou natural, mas Cícero a desenvolve com segurança: “Todos os filósofos que floresceram na antiga Academia, com Euspesipo, Xenócrates e Polemon, ou aqueles que seguiram Aristóteles e Teofrasto, concordando com os primeiros na doutrina, embora diferissem no método, a exemplo também de Zenão [de Cítio], preservaram os mesmos princípios, mas alteraram os termos da exposição” (idem). Nesse período complexo e um pouco obscuro de sua obra, Cícero agrupa os representantes da antiga Academia em dois grupos, que convergiam na doutrina e diferiam no método. Não contente, ele ainda estende a convergência parcial a Zenão de Cítio, considerado fundador do estoicismo. É, sem dúvida, uma posição bastante eclética.
Porém, essa complexa aproximação de escolas e pensadores, que outros expositores afastariam com decisão, é exatamente o que Cícero quer, pois, alguns parágrafos depois, reafirma: “Não vejo muita dificuldade em harmonizar os pontos de vista da antiga Academia e dos estoicos” (idem). E explica: “Os antigos acadêmicos eram unânimes em afirmar que o bem consiste na concordância com a natureza e a ordem natural. Os estoicos, por sua vez, não reconhecem qualquer outro bem além da honra e da virtude [...] Assim, embora os primeiros afirmassem que a honra era o bem supremo e o seu oposto, o maior mal, enquanto Zenão e os estoicos sustentam que ela é o único bem, e seu oposto, o único mal, posto ainda que os acadêmicos considerassem as riquezas, a saúde, a beleza e outros bens como vantagens, comodidades e conveniências, e a pobreza, a tristeza e a dor como inconveniências, na verdade, os estoicos concordam com [os acadêmicos] Xenócrates e Aristóteles, embora expressem sua opinião em termos diferentes” (idem).
É inegável que Cícero quer mesmo conciliar o platonismo original (de Platão, Euspesipo, Xenócrates, Polemon, Aristóteles e Teofrasto) com o estoicismo e, principalmente, com a doutrina de Zenão de Cítio. Mas o que nos interessa, nessa peculiar harmonização, não são os seus reflexos em outras partes da Filosofia, mas na Filosofia do Direito. A esse respeito, nosso autor é particularmente claro, pois identifica, no uso de sua época, um significado culto e outro popular do termo lei que concordam com a etimologia dos vocábulos em grego e latim:
“A verdadeira definição de lei deve incluir essas duas características [derivadas dos significados originais de nomos e lex como distribuição de bens e discriminação moral]. Se pudermos conceder isso como coisa quase autoevidente, a origem da justiça deverá ser buscada na lei divina da moralidade eterna e imutável. Essa é a verdadeira energia da natureza, a alma e essência da sabedoria, assim como o teste da virtude e do vício. Mas, como toda discussão deve referir-se a um tema encontrado com frequência na linguagem popular, teremos de admitir algumas vezes os termos utilizados pelo vulgo e de nos conformar à terminologia comum que emprega a palavra lei, a fim de indicar todos os regulamentos arbitrários encontrados nas nossas normas escritas, os quais impõem ou proíbem certas condutas” (idem. nº 34).
Esses os dois significados da lei, que Cícero encontra em seu próprio tempo. O primeiro é o significado na linguagem culta dos jurisconsultos, que era da preferência particular do nosso filósofo. O outro é o significado comum e inquinado de contradições que o povo, como conjunto de todos os cidadãos (escravos excluídos), adotava. 
Na língua dos jurisperitos romanos, lei não é qualquer proposição. É “a razão comum à natureza divina e humana, a qual nada mais pode ser do que a razão certa. E, posto que essa razão é o que chamamos Lei, Deus e os homens são por ela consorciados, pois onde há comunhão de Lei há também comunicação de Justiça” (idem. nº 40). Contudo, “práticas corruptas violam cruelmente a razão certa. Pois todos os homens, sem distinção, são aprisionados pela voluptuosidade, que é um vício degradante, embora pareça ter relação com o bem, visto que, por meio de indulgências e luxúrias aprazíveis, o erro insinua-se na mente” (idem).
Essa recta ratio, razão sempre certa, é a mesma em todos os povos, embora, em cada um, possa ser colocada a serviço de fins diferentes. Por isso, Cícero indaga: “Em que nação a bondade, a benignidade, a gratidão e a lembrança dos benefícios recebidos não são recomendados? E em que nação, ao contrário, a arrogância, a malícia, a crueldade e a ingratidão não são reprovadas e abominadas?” (idem). Por isso também, “se a vontade do povo, os decretos do Senado, as decisões dos magistrados fossem suficientes para estabelecer a justiça, bastaria obter sufrágios e os votos da maioria para que a corrupção, a espoliação e a falsa manifestação de vontade se tornassem lícitas [...] transformando o mal em bem, e o bem, em mal” (idem. nº 44).
Cícero propõe que o bem, para ser verdadeiro, tem de ser o que é em si mesmo, independentemente do que qualquer ser humano afirma que ele é. Pois, no momento em que admitimos que o bem e a justiça, como uma de suas formas, dependem de deliberações humanas, tornamos possível que a deliberação converta o mais abjeto mal em bem, assim como o mais elevado bem em mal.
Toda lei verdadeira é expressão do bem e da recta ratio. Esse é um dado inafastável da lex romana, como Cícero a compreende. Sua interpretação da palavra lex e do Direito Romano como um todo pode parecer altamente idealista, mas não se trata só disso. Cícero é idealista, porque o Direito Romano era idealizado. Podemos e devemos entender que a idealização não provinha dele: estava na ordem das coisas, assim como o Estado idealizado a que ele se refere no De republica e no próprio De legibus não era apenas idealizado: era a república romana real elevada à condição de modelo.
Claro que o modelo, por derivar do real, tinha suas limitações. Uma das principais era a baixa publicidade de que as leis romanas gozavam. Não que as leis não fossem publicadas em Roma, mas isso estava longe de garantir mais que um conhecimento quase nulo delas. Não me refiro à familiaridade do povo com as leis, que era praticamente nenhuma, mas ao conhecimento dela pelos magistrados, inclusive os pretores, que administravam a justiça:
“O conhecimento das nossas leis está excessivamente restrito aos copistas [dos textos]. Observo que muitos magistrados ignoram as suas próprias leis, não conhecem delas mais do que os oficiais que os auxiliam resolvem contar-lhes” (idem. nº 171). Não é isento de dúvida se “as suas próprias leis”, a que o texto se refere, são os editos dos magistrados. O sentido claro e imediato da expressão depõe a favor dessa interpretação, posto que os magistrados romanos baixavam editos que eram mais conhecidos do que as leis promulgadas pelo Senado e, mais tarde, pelo Imperador. Na verdade, aqueles editos supriam o baixíssimo grau de conhecimento das leis apontado no texto de Cícero. Portanto, se estiverem indicados pela expressão “suas próprias leis”, teremos de concluir que quem conhecia melhor os editos dos magistrados, na época de Cícero, não eram as autoridades em cujo nome eram publicados, mas os auxiliares delas. E é evidente que, se não conheciam os próprios editos que publicavam, menos ainda os magistrados estavam familiarizados com as outras leis.
Se acrescentarmos a isso que o pequeno conhecimento que o povo e, em parte, até os magistrados tinham das leis era cheio de contradições, como Cícero esclarece, teremos um quadro bastante vívido da extensão da ignorância legal que vigorava naquele tempo. E olhem que falamos do povo em que o espírito do direito mais se desenvolveu.
Nesse contexto de amplo desconhecimento da lei emanada do Estado, era natural que a palavra lex, no uso comum, fosse impregnada até a medula do significado de norma particular. Por muito tempo, para o cidadão comum, a palavra lex, significou as cláusulas de um contrato e coisas semelhantes. Por isso também, para o jurista Othon Sidou, “num balanço histórico, observa-se que [em Roma] as normas de direito público emanaram ordinariamente dos comícios centuriatos, enquanto as de direito privado foram produto dos concílios da plebe” (SIDOU, J. M. Othon. In Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1977. Verbete Lex – I. Vol. 49, p. 303).
A dualidade é explicada pelo pequeno interesse do povo nas leis estatais e explica, por outro lado, o sentido derivado de atos particulares que a palavra lex ostentou por tanto tempo. O próprio Cícero declara que “as leis devem ser propostas com sucessivas alegações e cláusulas” (idem. nº 167). As leis do nosso tempo, emanadas que são do Estado, dividem-se em artigos, parágrafos etc. As do tempo de Cícero dividiam-se em alegações (assertivas) e cláusulas.
Todos esses significados estavam impregnados no conceito de lex naturalis de Cícero. Claro que, ao contribuir para consagrar a expressão, o filósofo romano escolheu elevá-la às alturas do uso culto da palavra lex. Mas ele nunca separou esse uso do outro, comum e popular, antes reconheceu que as duas acepções do vocábulo deviam ser reunidas para perfazer o sentido total da lei. Num esforço de síntese, podemos concluir que o direito natural, para Cícero, era sempre universal, pois em momento nenhum ele admitiu, como Aristóteles, uma lei natural mutável e particular. Porém, na sua universalidade, estava compreendida a gama de significados destoantes das leis profusas e essencialmente diversificadas dos povos.
De modo nenhum, aquelas variações apagavam o caráter universal da lei ou eram apagadas por ele. As duas coisas conviviam. Ou será que o grande advogado, o erudito em leis, o orador experimentado não tinha noção da abundância de disposições entrelaçadas, algumas conflitantes, que o Direito Romano continha?
Mas, se assim era, por que Cícero depositava tanta ênfase no caráter racional, universal e imutável do direito em sua essência? Ele o fazia porque, como vimos no texto sobre a justiça em Aristóteles, o homem antigo concebia a profusa diversidade das leis e dos costumes sob a força unificadora do Estado. Sabia que muitas divergências subsistiam nos sistemas legais, mas as considerava sob a ótica da atuação das instituições e das normas estatais sobre elas.
Enxergar a lei desse modo era inescapável também para Cícero, que considerava que o homem à parte do Estado tende à sua natureza bestial e à pura violência. Por isso, a única alternativa possível à sociedade provida de Estado é a condição bruta que Hobbes mais tarde chamaria estado de natureza e descreveria como a luta de todos contra todos. Mas Cícero não admitia que a justiça e o direito universalizados fossem concebidos do ponto de vista da violência ou reduzidos à força bruta dos Estados. Daí ao direito natural não faltava mais do que um passo. Para transitar da ordem universal do direito das gentes (jus gentium) ao jus naturale, basta substituir a força pela razão. Foi o que Cícero fez. E, ao fazê-lo, brindou-nos para sempre com um novo ramo da Filosofia e a mais completa fundamentação do direito natural que encontramos na Antiguidade. 

sábado, 11 de abril de 2015

Filosofia e direito (15): A Justiça Natural em Aristóteles


Aristóteles
O objetivo desta série é compendiar os pensamentos que tenho desenvolvido sobre o direito, o que se pode assemelhar a uma tarefa egocêntrica, mas é, no fundo e mais, um movimento de extroversão, de saída de mim mesmo. Isso porque as ideias que me esforço para extrair da memória e apresentar de forma organizada foram laboriosamente acumuladas ao longo de mais de 30 anos de estudos da Filosofia do Direito e teriam caído em desuso, se não me desse ao trabalho de as evocar e transmitir. O desuso já estava, aliás, consumado em parte, pois tinha esquecido várias ideias aqui retomadas, outras havia guardado, ainda outras ministrado em sala de aula e jamais revisto e só uma pequena parte havia sido publicada em forma de textos, por sinal esgotados. Assim, se o trabalho de compendiar minhas ideias é em parte centrado em mim mesmo, por outro lado, ele se traduz num movimento para fora de mim e em direção ao leitor.
Porém, se me dou a tarefa de escrever tal compêndio, como hei de fazê-lo? Por que método hei de amealhar ideias, em geral, tão antigas, numerosas e diversificadas? Como meu esforço nesse sentido haverá de se tornar compreensível e proveitoso ao leitor? Questões como essas envolvem o problema do método. E não posso deixar de observar que, para os fins da presente coletânea, o método mais adequado e eficiente parece ser o histórico.
Argumentar sem antes traçar o histórico de uma discussão é pedir ao interlocutor que adote certas conclusões sem conhecer as alternativas oferecidas a ela ao longo dos séculos. É argumentar de maneira ilegítima e quase trapacear. Inversamente, arrazoar a partir da História é nada pedir para si, uma vez que o esforço reflexivo se volta à apresentação de uma variedade de teorias sobre a questão discutida, mais do que de ideias próprias.
Devo, por isso, historiar muito bem e sem pressa a questão central de que pretendo tratar nesta série. Temos visto que essa questão é a tensão entre as metateorias do jusnaturalismo e do positivismo jurídico. Porém, como a composição que me parece mais adequada dos argumentos dessas correntes atribui um peso maior ao direito natural, devo discutir também os textos que, ao longo da História, mais influenciaram a formação e a evolução do jusnaturalismo.
Começarei pela discussão do conceito de justiça natural em Aristóteles. Embora Cícero seja em geral considerado o primeiro filósofo do direito da História, por ter utilizado conhecimentos jurídicos especializados para expor suas ideias filosóficas, Platão e Aristóteles foram os primeiros a desenvolver discussões profundas e exaustivas sobre a justiça, aquele nos Livros I e II de A república, este no Livro V da Ética a Nicômaco, entre outras obras.
Para Aristóteles, tudo o que existe deve ser explicado por suas causas material, formal, eficiente e final. A causa material da justiça são relações humanas regidas por leis. Ninguém começa a entender a justiça política sem saber isso. Nas palavras do nosso filósofo, “a justiça só existe entre homens cujas relações recíprocas são governadas por leis” (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. In Great books of the western world. 2ª ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 8, Livro V, Capítulo 6, p. 382). 
No contexto do pensamento de Aristóteles, o estabelecimento da causa material remete, porém, imediatamente, à pergunta sobre a causa formal da justiça. A questão há de ser respondida como todas as que indagam o significado das virtudes. Para Aristóteles, toda virtude é o meio-termo entre dois vícios. Não é diferente com a justiça, que deve ser considerada "o ponto intermediário entre agir injustamente e ser tratado com injustiça”. 
Essa concepção formal da justiça calha com o dito evangélico que manda fazer aos outros o que queremos que nos façam (e, consequentemente, não fazer o que não queremos que nos seja feito), máxima conhecida como regra de ouro. Nos tempos em que Jesus a proferiu, a máxima tinha um conteúdo determinado e bem conhecido. Hoje, ela é interpretada como um mandamento formal, destituído de conteúdo, pois, diferentemente da Antiguidade, o consenso sobre o que se deve e não se deve fazer aos outros estreitou-se bastante, com a multiplicação das interpretações disponíveis do bom e do honesto.
Roscoe Pound interpreta corretamente o pensamento de Aristóteles à luz das convenções vigentes na Antiguidade, ao afirmar que o filósofo “acreditava que o homem, isolado do Estado, se tornava o animal mais maligno e perigoso entre todos, de sorte que somente lhe era dado realizar o próprio destino moral no Estado” (POUND, Roscoe. Justiça conforme a lei. 2ª ed., São Paulo: Ibrasa, 1976. pp. 4-5). Mas, como o Estado antigo era a cristalização de uma ordem sobrecarregada de desequilíbrios, “a lei levava em conta, em primeiro lugar, relações de desigualdade, nas quais se tratam indivíduos em proporção ao que valem, e só secundariamente relações de igualdade. A bem conhecida exortação de São Paulo, em que convoca a todos para que se esforcem por cumprir os deveres na classe em que se encontram, põe em relevo essa ideia”. Em suma, “a filosofia grega adotava a ideia de lei como meio de preservar o status quo social” (idem). E é preciso não perder de vista que essa mesma ideia de lei foi aceita, igualmente, na Idade Média (idem. p. 21).
Assim, no contexto em que Aristóteles desenvolveu suas ideias, o ponto médio (mesótes) entre dois vícios, que define a justiça particular, não podia ser compreendido como consequência de um desacordo a respeito do bom e do honesto semelhante ao que assinala o nosso tempo. Tentemos, pois, entender o que o conceito significava para Aristóteles, pois só assim poderemos compreender também as espécies da justiça civil, que nos propomos a sondar e que ele identifica como o justo natural e o legal ou convencional.
Vimos que, para Aristóteles, os vícios entre os quais a justiça se localiza são o hábito de fazer o mal e o de sofrê-lo. Se, para nós, esses conceitos estão sujeitos a discussões extremamente amplas, no contexto da Antiguidade, não era assim. Bem e mal, naquele tempo, eram o que o Estado reconhecia como tais, ainda que o reconhecimento servisse para justificar desigualdades flagrantes, como a escravidão, uma vez que, fora do Estado, só restava a depravação. Assim, bem e mal eram aproximadamente o mesmo para todos, pois o mesmo Estado os definia. As variações possíveis desses valores eram muito mais devidas a falhas na compreensão e expressão das suas definições do que dados da realidade.
No arcabouço dessas ideias é que o pensamento de Aristóteles sobre a justiça natural e legal se ajusta. Recordemos os exatos termos em que ele descreve as modalidades do justo: “Da justiça política [também chamada particular e civil] uma parte é natural, outra parte, legal. Natural é a que possui a mesma força em todo lugar e que não existe porque as pessoas pensam isso ou aquilo. Justiça legal, por sua vez, é a que, a princípio, é indiferente, mas se faz relevante a partir de quando é instituída” (ARISTÓTELES. Ob. cit. Livro V, Cap. 7, p. 382).
É notável como, em nenhum momento, Aristóteles se refere a uma justiça ideal ou abstrata, mas à justiça efetivamente implantada na pólis. Parte dessa justiça, para ele, é natural e parte, legal ou convencional. Portanto, a justiça natural não emana de relações ideias, mas profundamente marcadas pela desigualdade, como eram as relações entre reis e súditos, possuidores de escravos e plebeus, na pólis.
Bobbio atribui a Aristóteles a utilização do fogo como exemplo de justiça natural (BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico – lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1999. p. 17). Porém, uma leitura atenta do trecho em que o filósofo grego alude a esse exemplo permite entender que ele não é adotado sem restrições. Logo após descrever a justiça legal, na Ética a Nicômaco, o Estagirita escreveu: “Alguns pensam que a justiça é dessa espécie [legal], porque o que é por natureza imutável tem a mesma força em todo lugar (como o fogo queima aqui e na Pérsia), ao passo que eles enxergam mudanças nas coisas reconhecidas como justas. Isso, porém, não é verdadeiro de modo geral” (ARISTÓTELES. Ob. cit. Loc. cit.).
As palavras “isso não é verdadeiro” referem-se à afirmativa anterior, que Aristóteles não emite como sua, mas atribui aos pensadores (principalmente sofistas) que entendiam que "a justiça [inteira] é dessa espécie [legal]”. Os sofistas por ele mencionados é que usavam o exemplo do fogo, a fim de negar a existência de uma justiça imutável e, assim, igualavam toda a justiça à modalidade legal ou convencional.
Aristóteles não escreveu o Livro V da sua obra para apoiar essas ideias, mas para as combater. Ele as refutou, claramente, ao declarar que a concepção segundo a qual toda a justiça é mutável, “no que diz respeito aos deuses, talvez nada tenha de verdadeira”. De fato, muitos gregos e romanos pensavam que o divino não estava sujeito a mudanças. Mas isso não é tudo: “No que diz respeito a nós [ou seja, no nível humano da realidade]", continua o texto, "há coisas que são justas por natureza e, no entanto, são inteiramente mutáveis”. 
Que quer dizer “há coisas que são justas por natureza e, no entanto, são inteiramente mutáveis”? A meu ver, essa declaração implica que uma parte da justiça natural é mutável. Portanto, o exemplo do fogo não se aplica indiscriminadamente a todos os atos justos por natureza. Essa conclusão é confirmada, na sequência do texto, quando Aristóteles afirma ser “evidente quais coisas, dentre as que podem ser de modo diverso [portanto são mutáveis], são por natureza e quais não o são”.
Com essas derradeiras palavras, o filósofo claramente reafirma que há coisas justas por natureza que são mutáveis. Porém, como o trecho se refere exclusivamente às coisas mutáveis, não está excluído que, em outro contexto, as imutáveis sejam o que são por natureza. Portanto, que haja um justo por natureza imutável e universal.
Para encontrarmos exemplos de leis naturais, precisamos fechar a Ética a Nicômaco, a fim de buscá-los em outras obras. Achamos alguns na Retórica, mas não são de Aristóteles e sim de escritores outros. Vamos a eles: "A personagem Antígona refere-se à lei da Natureza, numa obra de Sófocles, quando afirma que o enterro de Polinice era justo, apesar de ter sido proibido por um decreto. Antígona quis dizer que o enterro era justo por natureza: 'Essa justiça não nasceu hoje ou ontem/ Vive desde sempre: seu parto não pode ser datado' [SÓFOCLES, Antígona. 456, 7]. E Empédocles, quando nos diz para não matar qualquer criatura, declara que fazê-lo não é justo para alguns e injusto para outros, pois 'uma lei que a todos abrange, sob todas as partes do céu/ Inviolável se estende sobre a imensidão da terra' [EMPÉDOCLES. 380]" (ARISTÓTELES. Retórica. In Great books of the western world. 2ª ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 8, Livro I, Cap. 13. p. 617). 
Em O drama do direito, referi-me a "juízos inquestionáveis, assim como a regra universal de que a quem empresta cinco é justo restituir cinco, a menos que outras transações venham a compensar os valores" (MORAIS, Luís Fernando Lobão. O drama do direito - teoria e prática de uma visão jusfilosófica. Campinas: Julex, 1991. p. 107). Premissa desse juízo é a equação matemática que iguala as cinco unidades de moeda tomadas em empréstimo às cinco devolvidas. Trata-se de uma verdade tão universal quanto a lei que governa a combustão do fogo. Porém, quando aplicada às relações jurídicas, a igualdade matemática sofre alterações ditadas por circunstâncias não convencionais, como a passagem do tempo, que pode ser tomada como causa da cobrança de juros razoáveis e, assim, implica a obrigação de devolver mais do que cinco unidades. É o que está implícito, embora não claramente, na parte da citação que diz "a menos que outras transações venham a compensar os valores". 
A devolução das cinco unidades, sem acréscimo de juros, se não tiver escoado um tempo relevante, ou de mais de cinco, se houver, são exemplos de atos justos por natureza. Podemos afirmar que, no primeiro caso, a justiça implicada é universal e imutável, pois, se não decorrer tempo algum, o valor a ser devolvido será sempre igual a cinco. No segundo caso, porém, a justiça imanente à transação, sem deixar de ser natural, sofre mutação devida a uma circunstância não convencional, nem voluntária (a passagem do tempo). Por essas razões, parece-me correto fazer referência a uma justiça natural imutável e a outra sujeita a mudanças. 
Desse modo, Aristóteles desmembrou a justiça política numa parte natural e outra convencional. E acrescentou que nem tudo o que é justo por natureza é imutável. Portanto, há uma justiça natural imutável, à qual o exemplo do fogo se aplica, e outra mutável, à qual ele não se aplica em absoluto. Essa ideia primordial foi, depois, quase inteiramente abandonada, visto que o jusnaturalismo se desenvolveu como a doutrina de um direito ideal e imutável.
A lição quase universalmente repetida, hoje, é a de que o justo natural, em Aristóteles, é sempre e apenas universal. Ninguém menos que Bobbio o ratificou (BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 22). Ao olharmos a Ética a Nicômaco de perto, percebemos, porém, que a justiça por natureza pode também ser mutável. E, ao nos voltarmos para o quadro atual das discussões jusfilosóficas, com essa informação em vista, ocorre-nos quanto a admissão de um direito natural mutável é de importância vital, eu diria até mesmo crítica, para a sobrevivência e o possível triunfo do jusnaturalismo. Foi o que concluímos no texto sobre o jusnaturalismo integral, ao perceber que cada ordenamento jurídico possui um núcleo lógico distinto não apenas das normas que o integram, mas também dos núcleos de outros ordenamentos. A norma fundamental de Kelsen não é o pior exemplo desse elemento central e decisivo do direito. 

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Filosofia e Direito (artigos reunidos) - Parte II


O PENSAMENTO JURÍDICO NA ANTIGUIDADE

                        O objetivo desta série é resgatar pensamentos que tenho desenvolvido sobre o direito ao longo de mais de 30 anos, o que pode parecer uma tarefa egocêntrica, mas é, em maior medida, um movimento de extroversão, de saída de mim mesmo e de dar-me aos leitores. Isso porque algumas das ideias que me esforço para sacar à memória e expor ordenadamente cairiam em desuso e no esquecimento, se não me desse ao trabalho de as evocar e transmitir.
                        O desuso, aliás, já estava em parte consumado, pois havia esquecido várias ideias aqui retomadas, outras tinha guardado, ainda outras ministrado em sala de aula e nunca revisto. Só uma pequena parte havia sido publicada em forma de textos, por sinal esgotados. Por isso, se o trabalho de compendiar minhas ideias é em parte centrado em mim mesmo, por outro lado, ele se traduz num movimento para fora de mim e em direção ao leitor.
                        Mas, se me dou a tarefa de escrever esse vasto compêndio, por que método hei de fazê-lo? Como hei de amealhar ideias, em geral antigas, numerosas e diversificadas? Como meu esforço nessa direção poderá tornar-se compreensível e proveitoso ao leitor? Questões como essas envolvem o problema do método. E não posso deixar de observar que, para os fins de uma coletânea que se quer depurada das idiossincrasias que a origem personalíssima tende a depositar na exposição, o método mais adequado me parece ser o histórico.
                        Com efeito, argumentar sem traçar o histórico de uma discussão, resgatar ideias sem as inserir no vasto diálogo dos séculos, é pedir ao interlocutor que adote certas conclusões sem conhecer as alternativas oferecidas a ela. É argumentar de maneira ilegítima e quase trapacear. Inversamente, arrazoar a partir da História é nada pedir para si, posto que o esforço reflexivo se orienta à apresentação de uma variedade de teorias sobre as questões discutidas, mais do que a ideias próprias.
                        Devohistoriar, de modo particular, as discussões a respeito da questão axial desta série, que identifico com a tensão entre as metateorias do jusnaturalismo e do positivismo jurídico. No entanto, como a composição mais adequada dos argumentos dessas correntes geralmente atribui peso maior ao direito natural, devo discutir os textos que, ao longo da História, mais influenciaram a formação e a evolução dessa grande concepção do direito. É o que pretendo fazer nesta e na próxima parte da presente série.

                        Fustel de Coulanges mostrou que, na Antiguidade, os povos indoeuropeus (arianos) tinham instituições domésticas semelhantes e instituições políticas, muito dessemelhantes[1]:

Se compararmos as instituições domésticas desses diversos povos, perceberemos que a família era constituída conforme os mesmos princípios na Grécia e na Índia. Estes princípios eram, ademais, como já constatamos previamente, de uma natureza tão singular que não é lícito supor que essa semelhança fosse o efeito do acaso. Enfim, não só essas instituições revelam uma manifesta analogia, como também as palavras que as designam são com frequência idênticas nas diferentes línguas que essa raça falou desde o Ganges até o Tibre. Disto podemos extrair duas conclusões: a primeira é que o nascimento das instituições domésticas nessa raça é anterior à época em que seus diferentes ramos se separaram, a segunda é que, ao contrário, o nascimento das instituições políticas é posterior.

                        Não poucos estudos históricos apresentam o direito em estreita relação com a política. Contudo, na época a que Colulanges nos remete, ele estava incrustado nas insti-tuições familiares, não na política dos povos indo-europeus.
                        Esse é um primeiro ponto importante, na obra de Coulanges. Porém, o dado mais relevante que ele transmite sobre os povos indoeuropeus não é a fusão das instituições familiares com o direito, mas a de ambos com a religião. De acordo com Coulanges, “no longo período durante o qual os homens não conheceram nenhuma outra forma de sociedade a não ser a família” é que “se produziu a religião doméstica”[2]. Resultado disso é que a ordem doméstica eminentemente sagrada veio a reger-se por um direito próprio, no qual, por exemplo, o escravo era admitido na família por meio de um rito sagrado análogo ao da adoção e do casamento[3]:

            Um uso curioso, o qual subsistiu longamente nas casas atenientes, nos mostra como o escravo entrava na família. Aproximava-se do fogo doméstico; apresentava-se à divindade doméstica; vertia-se sobre a sua cabeça água lustral e ele partilhava com a família de alguns bolos e algumas frutas. Esta cerimônia era análoga àquela do casamento e àquela da adoção. Significava sem dúvida que o recém-chegado, estranho na véspera, seria doravante um membro da família.

                        Se seguirmos a evolução social dos povos indoeuropeus e, em particular, a dos gregos e romanos, veremos que as suas instituições políticas moldaram-se a partir da família. “A cidade nasceu da confederação das famílias e das tribos. Ora, antes do dia em que a cidade se formou, a família já continha em si mesma a distinção de classes”[4].
                        Além do pater e dos escravos, a família era constituída pelos clientes, que não descendiam do pater, e pelos patrícios, que pertenciam à árvore genealógica dele. Essas pessoas com direitos bem diferenciados, formaram a população e as classes sociais primitivas das cidades. Com o tempo, no topo dessa hierarquia, foi colocado um rei. Assim, o regime da família ou gens e o da cidade não só coexistiram como o mais recente formou-se a partir do primeiro.
                        Porém, o tempo encarregou-se de produzir aspirações totalmente novas, que desestabilizaram a pólis, na qual os elementos contraditórios da ordem social arcaica e recente haviam sido combinados. Coulanges fala de quatro revoluções, que se repetiram em diferentes povos e foram responsáveis pela formação do que conhecemos como cidade antiga.
                        A primeira das quatro revoluções pôs fim à realeza. Em Roma, isso se deu porque os reis passaram a favorecer a elevação das classes baixas[5]. Revoltada com essa atitude da realeza, a aristocracia a destituiu e enfeixou em suas mãos o poder político.
                        A segunda revolução consistiu na modificação lenta, porém profunda das instituições arcaicas. Conforme se tornavam ávidos pelo controle das magistraturas das cidades, os pater dedicavam menos energia às famílias. Com isso, a ordem da gens afrouxou-se. Regras que tinham garantido a coesão da família durante séculos, a exemplo da primogenitura, desapareceram.
                        O enfraquecimento do poder dos pater levou os clientes a libertaram-se do jugo deles e constituírem uma nova classe, no interior das cidades, chamada plebe. Foi essa a terceira revolução mencionada por Coulanges.
                        Com o tempo, um antagonismo surgiu entre a plebe e a aristocracia, tanto em matéria de religião como de direito civil. Apesar dos esforços envidados para contê-lo, o antagonismo aumentou a ponto de exigir mudanças drásticas. A Lei das Doze Tábuas, em Roma, e o Código de Sólon, na Grécia, marcaram a solução dos conflitos de classes, com o reconhecimento dos direitos sociais dos plebeus.
                        Por fim, a quarta revolução consistiu na implantação da democracia em diversas cidades[6]:

A nova aristocracia foi atacada como fora a antiga. Os pobres quiseram ser cidadãos e se esforçaram para penetrar, por sua vez, no corpo político. É impossível abordar os detalhes desta nova luta. A história das cidades, à medida que se distancia da origem, se diversifica cada vez mais. As cidades passam por uma sequência idêntica de revoluções, mas estas se apresentam sob as formas mais variadas.

                        Ao descrever as quatro revoluções que plasmaram a cidade antiga, Coulanges mostra o que já apontamos, a saber: que o direito foi crescentemente associado à religião e à família, não à política. Mas o mais importante não é a constatação de que isso se deu. É antes o motivo por que se deu.
                        O relacionamento do direito à religião e à família, nos povos indoeuropeus, sugere que a sociabilidade humana repousa na combinação desses elementos mais do que na política. Não estou a afirmar que a ordem social arcaica deva ser considerada expressão perfeita da sociabilidade humana. O fato de aspectos inteiros dela (como a primogenitura e o poder absoluto do pater) terem sido extirpados mostra que nunca foram essenciais à convivência. Porém, é provável que algo verdadeiramente essencial estivesse posto na simplicidade do arranjo da religião, do direito e da família, antes do aparecimento das cidades.
                        Se tiver sido assim, o pensamento remoto, juridico inclusive, há de ser concebido como uma consciência das normas a serem obedecidas para que a sociabilidade humana transforme-se de aspiração em fato. Ele deve ser visto como o conjunto das normas que estabelecem como as pessoas podem unir-se em famílias.
                        E, se a sociabilidade era vista como um dado da natureza humana pelos antigos, não podia ser diferente com o direito. Em De legibus, considerada a primeira obra de Filosofia do Direito da História[7], Cícero definiu a lei como “razão suprema, ínsita na natureza, que manda o que se deve fazer e proíbe o contrário”[8]. Essa não era apenas a opinião de Cícero. Era a expressão lapidar do modo grego e romano de conceber o direito.
                        A reta razão a que Cícero alude não é um dado psicológico, mas divino[9]. Ele a explica mais detalhadamente em outra obra[10]:

Essa lei verdadeira, razão reta e conforme a natureza, está presente em todos, invariável, eterna, capaz de guiar-nos com os seus preceitos para o dever e de dissuadir-nos com as suas proibições de fazer o mal [...] O valor dessa lei não lhe pode ser subtraído, nem pode ela ser derrogada, muito menos abrogada. Não podemos ser dispensados da obediência a ela por ato do Senado ou do povo [...] Ela não é distinta em Roma ou Atenas, agora ou no futuro. Todos os povos, em todas as épocas, são regidos por essa única lei eterna e imutável. E o mestre não menos único dos seus preceitos, por assim dizer, é Deus.

                        Deus, para Cícero, não era o que é para um cristão. Correspondia mais proximamente ao conceito estoico de natureza suprema ou razão. Mas, independentemente da definição que o termo possa merecer, é admirável que a ideia de direito de um dos homens mais cultos e versados em leis do povo que mais cultivou o Direito, na Antiguidade, tenha sido essencialmente religiosa. Direito, para Cícero, não era o costume ou as leis. Era a reta razão divina, que o costume e as leis procuram exprimir, às vezes sem muito sucesso.
                        Essa ideia de direito, os romanos a compartilharam com os gregos, por muito tempo. Num discurso ao júri ateniense, Demóstenes sustentou, no século IV a. C., que as leis devem ser obedecidas, porque foram prescritas “por Deus” e também “porque são deduções de um código moral eterno e imutável”[11]
                        As discussões da justiça incluídas nos dois primeiros livros de A república, de Platão, e no Livro V da Ética a Nicômaco, de Aristóteles, refinam e aprofundam as noções de direito apresentadas até aqui, sem conflitar com ela. No Livro II de seu diálogo, Platão debate extensamente a relação da virtude com Deus[12]. E Aristóteles é ainda mais conclusivo, ao afirmar expressamente que[13]

a felicidade, mesmo que não seja considerada dom de Deus, mas resultado da virtude ou de um processo de aprendizado e treinamento, está entre as coisas mais semelhantes às que chamamos divinas, já que a recompensa da virtude [a felicidade] deve ser considerada a melhor coisa do mundo, portanto divina e abençoada.

                        Para os gregos como para os romanos, porém, a religião era algo mais imanente do que transcendente. Ainda que os deuses habitassem no Olimpo, os relatos sobre os seus feitos, que constituíam a religião antiga e estavam contidos nos mitos, os representavam sempre na Terra. Por isso, a religião grecorromana era imanente. Era parte da natureza: a parte mais elevada e, por isso difícil de compreender, mas ao mesmo tempo a mais racional. A religião era a própria ordem da natureza.
                        Por isso, quando a primogenitura e o poder absoluto do pater desapareceram, embora estivesse entrelaçada com eles, a religião não declinou. Pelo contrário, manteve-se tão forte quanto antes ou se fortaleceu ainda mais.
                        O ponto em relevo, aqui, não é o valor da religião como relação do indivíduo com Deus. Esse valor lhe foi sempre atribuído, mas não constitui o ponto a ser enfatizado para os fins da presente série.
                          Quero priorizar o papel da religião para a sociabilidade humana. A fé em Deus ou nos deuses não é só um dos elementos básicos da convivência, ao lado da família e do direito. Entre esses elementos, ela é o principal. Por isso, deve ter sempre a primazia. Não é outro o motivo de a religião não ter sido abolida em lugar algum. É preciso afirmar até mesmo que ela nunca foi sequer enfraquecida, do ponto de vista social, o que justifica perguntar se poderá ser um dia.
                        Agamben propôs uma explicação do valor perene da religião. De acordo com ele, as crenças religiosas são tão essenciais, porque as suas raízes estão cravadas na instituição mais básica de toda a cultura: o juramento[14]. Para subverter a religião, é preciso eliminar o juramento, o que os antigos jamais se dispuseram a fazer. A dessacralização parcial da socedade observada nos últimos séculos enfraqueceu o juramento e as instituições que dependem dele, porém é duvidoso que ela venha a se completar.
                        Seja qual for o motivo de a religião desempenhar papel tão essencial para a sociabilidade humana, o fato é que esse papel lhe parece designado. Se não há sociedade sem direito e família, como Coulanges mostrou, a convivência tampouco é possível sem religião. Mais do que isso, vemos os três elementos entrelaçarem-se, desde o primeiro momento em que os surpreendemos.

A experiência grega tem uma novidade importante, como visto. A promulgação da lei e sua revogação nada têm de divino; são assuntos humanos [...] O direito já não precisa ser revelado divinamente para valer e nem é preciso invocar a vontade dos deuses para deliberar sobre as leis. Nestes termos é que se pode dizer que o direito se laiciza[15].

                        Pergunto-me se não há um exagero nessas palavras. O fato de os gregos não conceberem a promulgação da lei como a entrega por parte de um deus é uma nuança que em nada diminui a relação visceral do direito com a religião. Os títulos divinos dos agentes humanos pelos quais a lei era dada mostram-no exemplarmente.
                        Em suma, se a ideia essencial de direito interessa mais ao jusfilósofo do que as particularidades das instituições jurídicas, não resta dúvida de que os antigos tinham daquela ideia uma concepção religiosa. A relação entre direito e religião era a mais essencial para a sociedade, o que se coloca em notável contraste com o tempo atual, em que a aspiração profunda dos povos parece ser à separação radical dos dois elementos.
                        Tão chocante é o contraste que ao jusfilósofo não deve escapar a pergunta sobre o seu significado. Se Cícero fundou a Filosofia do Direito ao sustentar, no De legibus e em De republica, que a lei é a razão divina que permeia todas as coisas, a dessacralização do direito há de constituir o tema central da disciplina no nosso tempo. É a dessacralização uma aberração, bravata perpetrada contra a lei “invariável, eterna, capaz de guiar-nos com os seus preceitos para o dever e de dissuadir-nos com as suas proibições de fazer o mal”? É ela um atentado contra o que “não pode ser derrogado, muito menos abrogado” por não poder apresentar-se de modo distinto “em Roma ou Atenas, agora ou no futuro”? Ou é a feliz superação de um modo de sociabilidade que funcionou por milênios, mas se tornou profundamente insatisfatório?
                        À pergunta sobre o que é o direito deve seguir-se a que indaga o sentido da sua dessacralização. Nada mais premente, nem mais esquecido no nosso tempo. 

O PENSAMENTO JURÍDICO SOB O CRISTIANISMO

            No seu livro sobre as formas elementares da vida religiosa, Émile Durkheim discutiu amplamente o totemismo australiano, que tomou como paradigma da religião primitiva. Porém, antes de ingressar nos detalhes do sistema totêmico, o sociólogo francês dedicou o primeiro capítulo da obra à discussão do que é religião, elementar ou não. Após desenvolver esse tema, Durkheim concluiu que[16]

todas as crenças religiosas conhecidas, sejam simples ou complexas, apresentam um mesmo caráter comum: supõem uma classificação das coisas, reais ou ideais que os homens concebem, em duas classes, em dois gêneros opostos, designados geralmente por dois termos distintos que as palavras profano e sagrado traduzem bastante bem.

                        Para Durkheim, sagrado e profano são categorias mais definidas e estanques do que bem e mal[17]:

A oposição tradicional entre o bem e o mal não é nada ao lado desta; pois o bem e o mal são duas espécies contrárias de um mesmo gênero, a moral, assim como a saúde e a doença são apenas dois aspectos diferentes de uma mesma ordem de fatos, a vida, ao passo que o sagrado e o profano foram sempre e em toda parte concebidos pelo espírito humano como gêneros separados, como dois mundos entre os quais nada existe em comum [...] Conforme as religiões, essa oposição foi concebida de maneiras diferentes. Numa, para separar esses dois tipos de coisas, pareceu suficiente localizá-las em regiões distintas do universo físico; noutra, algumas delas são lançadas num meio ideal e transcendente, enquanto o mundo material é entregue às outras em plena propriedade. Mas, se as formas do contraste são variáveis, o fato mesmo do contraste é universal.

                        Mas, se a religião consiste na delimitação mais ou menos rigorosa do sagrado em relação ao profano, em qual dos dois territórios deve ser situada a vida social, que constitui o foco do nosso interesse? É a vida social sagrada ou profana? Nos povos grego e romano, não há dúvida de que a ordem social primitiva (familiar) sempre foi situada na esfera sagrada. Vimos, porém, que essa ordem passou por transformações, como o fim da primogenitura e a diminuição do poder do pater. É lícito perguntar se essas transformações reduziram-lhe o caráter sagrado e se um processo análogo teve lugar na pólis.
                        Parece que as transformações por que a família e a pólis passaram mitigaram o caráter religioso delas. Exemplos disso podem ser retirados do direito. Moreira Alves mostrou que, nas fases iniciais do direito romano pré-clássico[18],

o ius civile (constituído apenas de normas costumeiras e de alguns raros preceitos legais aplicáveis aos cidadãos romanos) se desenvolveu, em regra, pela atuação dos jurisconsultos (a princípio, os pontífices; depois, com a laicização da jurisprudência, os juristas leigos). 

                        Nessas palavras, a evolução geral do direito romano depreende-se com relativa clareza: num primeiro momento, a aplicação do direito foi controlada pelos pontífices; mais tarde, passou à esfera laica. Com isso, se não perdeu o caráter sagrado, teve-o, no mínimo, abrandado.
                        A mesma linha geral observa-se entre os gregos. Roscoe Pound mostrou que[19]

no primeiro estágio do direito grego, os reis decidiam as causas por inspiração divina. No segundo estágio, o curso costumeiro da decisão se tornou tradicional sob o controle de uma oligarguia. Mais tarde, demandas populares por maior publicidade resultaram na criação de um corpo de leis.

                        A dessacralização parcial do direito e outros aspectos da vida social desenvolveu-se mais nas sociedades cosmopolitas, como a grega e a romana, cuja localização geográfica e vocação espiritual permitiram que se desenvolvessem voltadas para os povos de além-mar. E, como o sentido religioso das práticas sociais diversifica-se muito de cultura para cultura, quando os povos cosmopolitas entraram em contato com vários outros, a referência ao sentido religioso das instituições tornou-se um entrave para a convivência semelhante à barreira representada pelos idiomas. Desse modo, na Grécia e em Roma, surgiu a necessidade de transferir o significado religioso das suas instituições do primeiro plano para o pano de fundo da convivência social.
                        A relação entre cosmopolitismo e dessacralização observou-se também entre os judeus. Poucos povos da Antiguidade foram tão cosmopolitas quanto Israel, cujas Diásporas, anteriores e posteriores à destruição do Templo em 70 d. C., os colocaram em contato com nações sensivelmente distintas umas das outras. E, apesar de os judeus associarem a sua existência histórica à religião, o contato com outros povos forçou-os a transferir o caráter sagrado das suas instituições e costumes para a retaguarda do intercâmbio social.
                        O Livro de Eclesiastes é, às vezes, citado como voz dissonante no interior da Bíblia hebraica, por referir-se ao mundo natural e social em termos que neutralizam parcialmente a sua relação com o sagrado. Todavia, além do dissenso sobre a vida material, não há motivo para sustentarmos a dissonância de Eclesiastes com a cultura judaica como o Antigo Testamento a exprime, posto concordarem em todos os outros pontos.
                        Nem na teologia, nem no tocante à vida cotidiana, Eclesiastes diverge do ensino dos outros textos da coleção sagrada dos judeus. Pelo contrário, o que temos, naquele livro, é apenas uma exposição detalhada e profunda dos fatos cotidianos e da avaliação que o homem judeu fazia deles[20]:

Vaidade de vaidades, diz o Pregador; vaidade de vaidades. Tudo é vaidade. Que proveito tem o homem de todo o seu trabalho com que se afadiga debaixo do sol? Geração vai e geração vem; mas a terra permanece para sempre. O vento vai para o sul e faz o seu giro para o norte; volve-se, e revolve-se, na sua carreira, e retorna aos seus circuitos. Todos os rios correm para o mar, e o mar não se enche; ao lugar para onde correm os rios, para lá tornam eles a correr.

                        O dado primeiro dessa dissertação é que, se a natureza e a vida social são vaidade, segue-se que não são sagradas. Deus é o autor de ambas. Ele criou as coisas para funcionarem por meio de ciclos que se repetem[21]:

Sei que tudo quanto Deus faz durará eternamente; nada se lhe pode acrescentar e nada lhe tirar; e isto faz Deus para que os homens temam diante dele. O que é já foi, e o que há de ser também já foi; Deus fará renovar-se o que se passou.

                        Não é diferente na ordem humana: “Então, passei a considerar a sabedoria, e a loucura, e a estultícia. Que fará o homem que seguir ao rei? O mesmo que outros já fizeram”[22]. A repetição e a sujeição férrea aos ciclos da existência encontram-se tanto na natureza quanto na vida humana. Podemos considerar que decorrem da ordem da criação divina. 
                        Porém, na época em que Eclesiastes provavelmente foi escrito (século III a. C.), os judeus já associavam a criação à queda do homem. Por isso, o livro canônico não se limita a apresentar a ordem cíclica da natureza e das gerações humanas: ele julga-a vã, em razão da queda. Chama vaidade a corrupção da ordem cíclica, em consequência da queda. Por ter-se tornado vã, essa ordem deixou de ser sagrada.
                        Em Israel, não diferentemente do que sucedeu na Grécia e em Roma, a dessacralização se impôs. É apropriado afirmar inclusive que o fez em intensidade maior do que nas culturas europeias clássicas. “Deus fez o homem reto, mas ele se meteu em muitas astúcias”[23]. O desvio da retidão à astúcia, como a passagem da criação à vaidade, apagou o caráter sagrado da vida humana. O pecado tornou a ordem do mundo profana. Esse é um ponto extremamente importante para entendermos o sentido da vida humana e da sociedade, na tradição judaica e na doutrina cristã, que surgiu como autêntico rebento dela.
                        Vaidade não é um termo evocativo do sagrado. Ao contrário, o sentido teológico do termo é negativo, embora o mundo reduzido à vaidade descenda do que foi criado por Deus. Se considerarmos essas ideias com a seriedade que elas demandam, concluiremos que a dessacralização da vida social não se iniciou nos últimos 200 anos, nem proveio de forças profanas, mas religiosas. Concluiremos, outrossim, que o impulso mais vigoroso me favor dela não veio da Grécia ou de Roma, mas de Israel.
                         Pouca dúvida há de que a doutrina da queda tem como consequência a dessacralização do Universo e da sociedade. Esse o decreto do livro de Eclesiastes, que só não foi levado às últimas consequências, porque as sociedades em que as crenças judaicocristãs estabeleceram-se se consideraram exceções à dessacralização decorrente da queda. Sem negar que o mundo fosse profano, elas sempre se julgaram sagradas.
                        Devemos manter em mente, porém, que, embora o sagrado se oponha absolutamente ao profano, a transferência de coisas da esfera sagrada para a profana, como o Cristianismo a representa, está sujeita a limitações. Por isso, embora a vida dos povos adâmicos tenha sido revolucionada pela queda, permanecem neles reflexos da criação de Deus. A cultura pagã é um exemplo claro. Em obras como A cidade de Deus, Santo Agostinho cita Virgílio e Cícero incontáveis vezes. Isso não aconteceria, se o teólogo não reconhecesse reflexos da criação divina, na cultura pagã. Não aconteceria se ele considerasse que a queda eliminou totalmente aqueles elementos.
                        O mesmo se verifica no campo do direito. Agostinho abraça a doutrina estoica da lei natural como recta ratio e a cristianiza. Não vacila em apresentar tal lei como algo eterno e inerente à razão de Deus. Mas afirma simultaneamente que, ao projetar-se no mundo, a lei eterna se faz temporal[24].
                        Essa lei temporal, humana e terrena distingue-se da eterna, que é “aquela em virtude da qual é justo que todas as coisas estejam perfeitamente ordenadas”[25]. A lei eterna não somente institui a ordem do mundo como lhe comunica o atributo da justiça.
                        Em vez de renegar o enunciado da lei natural de Ulpiano, Agostinho o aceita. Estende, assim, o direito natural a todo o reino animal. E considera que a queda levou à dessacralização de aspectos da ordem terrena, porém não de toda ela. A norma da lei natural permaneceu inscrita no coração do homem, de onde se projetou nas leis dos diversos povos. Esse reflexo da lei natural nos decretos da autoridade política é, aliás, o critério que permite a Agostinho (e, depois dele, a Tomás) rejeitar o caráter de lei aos decretos injustos e desconformes à lei eterna.
                        Ao ligar o débil direito humano ao Criador do homem e de toda a natureza, Agostinho incrementa o teor divino do direito. Alceu Amoroso Lima dá a esse incremento o nome de “espiritualização do direito natural dos juristas estoicos pelos teólogos e juristas cristãos[26].
                        Assim, por um lado, o Cristianismo aprofunda a dessacralização social, mediante a doutrina da queda. Afirma que parte importante da vida foi dessacralizada a partir do pecado de Adão. Porém, proclama que o que permaneceu no território do sagrado foi ainda mais fortemente relacionado a Deus, visto que a História não terminou na queda, mas se estendeu à salvação realizada por Jesus Cristo.
                        Por razões como essas, é justo e adequado entender que, do modo como Platão e Aristóteles refinaram o trato dos antigos filósofos com o direito, os pensadores Cristãos fizeram o mesmo com o pensamento recebido da Antiguidade. Não só Agostinho, mas Graciano e Tomás de Aquino, entre outros, merecem ser citados como os maiores responsáveis por essa realização.
                        Uma diferença de perfeição pode ser percebida entre as sínteses de direito romano e cristão de Graciano e Tomás. Por exemplo, o primeiro estendeu o direito natural somente à espécie humana, com o que se apartou da doutrina das Institutas de Justiniano. Coube a Tomás, nas pegadas de Santo Agostinho, reintroduzir a concepção pagã do direito natural e readaptá-la ao cristianismo. Assim, restituiu-nos a síntese considerada mais fiel às melhores fontes romanas e cristãs disponíveis.
                        O fortalecimento do conteúdo divino da lei natural é tão bem percebido no pensamento de Tomás quanto no de Agostinho. Porém, vemos explicitar-se naquele uma tendência que não se manifesta no santo de Hipona. Refiro-me à rígida vinculação do direito natural à razão. Diz-nos Tomás: “A força de uma lei depende da extensão da sua justiça. Ora, nos assuntos humanos, uma coisa é considerada justa por ser concorde com a regra da razão”[27].
                        Agostinho não nega essa proposição, mas não a isenta tão extensamente de nuanças quanto Tomás. Para este, o justo é o racional. O autor do Tratado das leis não deixa a mínima margem para incompreensão do que pretende transmitir com tal identificação: “À lei das nações [jus gentium] pertence tudo aquilo que é derivado da lei da natureza como conclusões a partir de premissas. Por exemplo, compras e vendas justas”[28].
                        Conclusões que se seguem a premissas não são outra coisa que consequências lógicas. Desse modo estritamente lógico, o caráter divino do direito é esclarecido. Deus é razão, e as normas emanadas dele refletem limpidamente esse fato.
                        Claro que podemos concordar ou não com Tomás, assim como podemos abraçar ou não sua doutrina. O que não é cabível, o que fica afastado são dúvidas de tipo kelseniano sobre o conteúdo da justiça em Tomás. A derivação de consequências a partir de premissas da lei natural não ocorre uma vez ou duas vezes, mas milhares de vezes. Nesse processo, as notas inerentes às premissas diluem-se em proposições híbridas de direito natural e positivo. Porém, a força do liame da consequência garante que a diluição não elimine o teor de direito natural que permanece nas leis humanas.
                        Princípios de direito natural diluídos no direito humano não deixam de ser princípios de direito natural e de compor a estrutura lógica do direito humano, assim como o açúcar diluído em água não deixa de ser açúcar ou de ser doce. É o que pensa Tomás. É também o ponto no qual convergem todos os grandes teólogos e jurisconsultos cristãos.
                        Que sentido há em duvidar do papel do direito natural por desconhecermos a concentração exata dele nas diferentes misturas históricas entre ele e o direito humano? Quanto um direito é natural? Quanto outro o é? A incompreensibilidade das respostas a essas questões não elimina o fato de que o direito é uma mistura de premissas naturais e consequências positivas.
                        Roscoe Pound lembra que os filósofos gregos relacionaram a justiça à preservação do status quo social. Essa não é uma invenção cristã. Pound observa com absoluta precisão que, quando o apóstolo Paulo recomenda a aceitação dos deveres de classe por escravos e senhores e dos papeis domésticos pelas mulheres, maridos e filhos, não faz outra coisa que refletir o grau de helenização a que o pensamento judeu (inclusive o palestinense) da época da Diáspora fora sujeito[29]. A fonte principal das cobranças de conformidade ao status quo, naquele tempo, não era a lei natural, mas os costumes romanos.
                        Isso reduz muito o campo de divergências possíveis sobre a moral e o direito natural. E, ao reduzi-lo, mostra que a dúvida kelseniana sobre o conteúdo do direito natural após a combinação com o direito positivo não é mais que kelseniana. A dúvida perde o sentido ao ser estendida à Antiguidade ou à Idade Média, pois, nesses períodos, a ligação da ordem social com a justiça era consequência dos regimes escravista e feudal, não do direito natural. Menos ainda era possível questionara existência do direito natural por permanecer misturado a exigências daqueles regimes.                                             
                        Em suma, sob o Cristianismo, a dessacralização da vida social atingiu o grau máximo, porém foi mantida em limites impostos pelo caráter sagrado da sociedade cristã. Só quando o Ocidente deixou de se conceber como povo particularmente vocacionado à santidade, foi possível levar às últimas consequências a dessacralização claramente afirmada nos textos bíblicos. Isso se deu a partir do momento em que o Iluminismo conferiu à razão a autonomia necessária para questionar e revisar preconceitos religiosos.
                        As sociedades cristãs só desenvolveram o processo de dessacralização hoje em marcha, porque a sua base religiosa as inclinava a isso. Os povos muçulmanos e orientais não passaram pelo processo, ao mesmo tempo ou do mesmo modo que o Ocidente, por lhes faltar aquela base. Porém, os latinoamericanos, como cristãos, o experimentaram em boa medida.
                        Não cabe afirmar que os muçulmanos conhecem a doutrina da queda, pois, no Alcorão, essa doutrina é profundamente mitigada. Deus disse a Adão[30]:

Ó Adão, habita o Paraíso com tua esposa e desfrutai dele com a abundância que vos aprouver; porém, não vos aproximeis desta árvore, porque vos contareis entre os iníquos. Todavia, Satã os seduziu, fazendo com que saíssem do estado [de felicidade] em que se encontravam. Então dissemos: Descei! Sereis inimigos uns dos outros, e, na terra, tereis residência e gozo transitórios. Adão aprendeu de seu Senhor algumas palavras [como preces] e Ele o perdoou.

                        Na religião muçulmana, o pecado do Paraíso foi perdoado a Adão imediatamente. Não teve as consequências que lhe são associadas na tradição judaicocristã. Por isso, na religião muçulmana, Adão é tão positivo quanto Jesus, como observamos na passagem que julga “o exemplo de Jesus, ante Deus, idêntico ao de Adão, a quem Ele criou da terra”[31].   Essa a doutrina do Alcorão sobre a queda.
                        E a da Reforma Protestante, qual é? Alceu Amoroso Lima descreveu as consequências jurídicas da teologia protestante do pecado natural nos seguintes termos:

            Na concepção católica do Direito, representava a liberdade humana um papel essencial pois “a justiça é um estado de equilíbrio entre a vontade divina e o livre arbítrio do homem”[32]. [Na doutrina católica], o pecado destruiu no homem apenas a harmonia e a hierarquia de suas faculdades, mas “não diminuiu a própria natureza”[33]. Ora, na concepção protestante, ao contrário, o pecado reduziu a própria natureza humana, destruindo-lhe completamente a integridade. O pecado original, segundo Lutero, Calvino ou Zwingle, foi uma depravação que viciou radicalmente a natureza humana. Sendo assim, não poderá esta desempenhar nenhum papel importante na ordem moral.

                        A análise de Amoroso Lima é exata até o último período. A Reforma é, de fato, inseparável da doutrina do pecado original como Santo Agostinho e depois Lutero, Calvino e Zuínglio a interpretaram. Para ela, o pecado realmente viciou a natureza humana, no sentido claro e prático de que corrompeu todas e não algumas faculdades humanas. Mas daí não decorre que a natureza e a razão humanas tenham-se tornado irrelevantes na ordem moral. Não é assim em Lutero, Melanchton, Calvino ou qualquer outro grande teólogo da primeira geração protestante.
                        A Reforma traçou uma linha divisória vertical no Universo. A razão continua a reger todo o imenso território que se estende dessa linha mediana para baixo. O mesmo deve ser afirmado do livre arbítrio, que nele vigora sem atenuações. É o que vemos, por exemplo, em Lutero[34]:

            O julgamento a respeito da restituição deve ser o seguinte: se o devedor é pobre e não pode devolver, e o outro não é indigente, deves dar livre curso à lei do amor e perdoar o devedor. Pois, conforme a lei do amor, também o outro está obrigado a perdoar e ainda a restituir mais, se for necessário. Se, porém, o devedor não é pobre, obriga-o a devolver o quanto puder, seja o total, a metade, a terça ou a quarta parte, deixando-lhe, não obstante, o suficiente para a moradia, alimentação e vestuário para ele próprio, sua mulher e filhos [...] Pois a natureza ensina o mesmo que também ensina o amor: que devo fazer o que quero que me façam. Por isso não posso explorar a ninguém dessa maneira, ainda que tenha todo o direito, pois eu não gostaria de ser explorado dessa maneira

                        Façamos uma breve pausa para indagar, com o necessário cuidado, o que Lutero está a propor. Ele diz, claramente, que a lei natural continua em vigor debaixo do sol, para usar a expressão de Eclesiastes, isto é, do meridiano protestante abaixo. Mais do que isso, ele afirma que essa lei foi esclarecida pela lei do amor, que em nada conflita com ela, pelo contrário: é a sua explicação máxima.
                        Quando diz que “a natureza ensina o mesmo que também ensina o amor”, por natureza devemos entender nada menos que a razão. O sentido é, portanto, que o amor concorda com a razão. Continuemos a seguir o texto[35]:

Se, porém, não observares a lei do amor e da natureza, jamais agirás de maneira que agrades a Deus, mesmo que tenhas devorado todas as obras jurídicas e todos os juristas; pelo contrário, esses apenas te confundirão tanto mais quanto mais refletes sobre eles. Uma sentença verdadeiramente boa não pode ser tirada de livros; deve provir de uma reflexão livre, como se não existisse livro algum. Essas sentenças livres emanam do amor e do direito natural, do que toda a razão está cheia.

                        Aqui Lutero explicita o que entende por natureza (racional) e razão. Separa-as nitidamente dos “livros dos juristas” não com o objetivo de torná-las desarrazoadas, pois a sua intenção é manifestamente definir o conteúdo nuclear da razão.
                        Notemos que, ao distinguir o conteúdo básico da razão das obras dos juristas, Lutero não o aliena da lógica[36], mas das complicações e das filigranas dos juristas. Desfaz, nesse mesmo passo, a meu ver com toda clareza, os equívocos correntes sobre a posição da Reforma a respeito das faculdades humanas depois da queda. De fato, a razão foi corrompida em razão do pecado, porém não completamente.
                        O critério regulador da corrupção da razão é o meridiano protestante. Por ter-se corrompido, a razão tornou-se imprestável para conhecer as coisas situadas acima do meridiano, isto é, as coisas de Deus, mas continua apta a reger as coisas do homem.
                        É verdade que Lutero reduz o poder da razão de reger os assuntos terrenos a um mínimo, que se mantém ativo em todos os homens e ao qual eles podem ou não se conformar. Esse é o motivo de o reformador sustentar que a razão opera independentemente dos livros. Contudo, se percorrermos mais amplamente a obra do reformador e o próprio texto citado, veremos perfeitamente que livros não são todas as obras escritas, mas a maioria delas (a maioria dos livros jurídicos em especial), nada mais do que isso.
                        Lutero sempre ressalva um corpus literário ao criticar a razão decaída e as obras criadas por ela. A Filosofia e as artes, em particular, permanecem úteis e recomendáveis, não certamente à compreensão das coisas celestiais, mas das terrenas.
                        Exemplo lapidar de aplicação prática do direito natural como Lutero o concebe é dado na seguinte passagem[37]:

            Um nobre[38] prendeu seu inimigo. Veio então a mulher do prisioneiro para libertá-lo. O nobre prometeu libertar o marido caso ela se deitasse com ele. A mulher era honesta; não obstante queria libertar o marido. Ela foi falar com o marido e lhe perguntou se o deveria fazer para conseguir sua liberdade. O homem queria a liberdade e salvar sua vida, e deu permissão à mulher. Depois de haver mantido relações com a mulher, o nobre mandou decapitar o marido e entregou-o morto à mulher. Ela denunciou tudo ao duque Carlos. Este citou o nobre e ordenou-lhe casar-se com a mulher. Quando terminaram as bodas, mandou decapitar o homem e pôs a mulher sobre seus bens [...] Vê, semelhante sentença nenhum papa, nenhum jurista e nenhum livro lhe poderia ter dado; pelo contrário, ela surgiu da livre razão, superior a todos os livros.

                        Não é preciso apontar que a dessacralização social sai por todos os poros dessa passagem. A razão pela qual o nobre Carlos resolve o litígio é a razão natural aplicada às coisas terrenas e nada mais. O meridiano protestante define claramente o território dela. Por isso, as máximas do direito natural nada têm de sagrado: tudo possuem de humano. Essa lição básica não se altera, absolutamente, quando passamos de Lutero a Melanchton ou deste a Calvino.
                        O fato de o Judaísmo e o Cristianismo favorecerem a dessacralização social não tem de contraditório, se toda religião, como Durkheim mostrou, constitui um regime de coisas sagradas e profanas. Nenhuma divisão do sagrado e do profano é mais religiosa que outra. Nenhuma tem mais direitos do que outra. A divisão judaicocristã, ao alargar o território profano, por meio da queda, é tão legítima quanto a de qualquer outra religião. Sua única diferença consiste em favorecer a dessacralização da vida social verificada nos povos ocidentais e latinoamericanos.
                        Assim, se os gregos e os romanos formaram do direito a ideia de algo divino, em conformidade com a sua religião, a dessacralização do direito, na cultura judaicocristã, não teve relação menor com a religião. Na verdade, a relação foi tão intensa quanto no caso dos gregos e dos romanos, o que sugere que o ritmo e os limites do processo de dessacralização não dependem só de fatores mundanos, como é usual conceber, mas também da sua relação com a religião.
                        Embora de modos opostos, a religião determinou o sentido do direito na Grécia, em Roma e nos povos cristãos, até os nossos dias. Na Antiguidade, por influência dela, o direito foi assimilado ao divino. Parece-me que, nos últimos 200 anos, em razão da mesma influência, ele foi dessacralizado. À Filosofia do Direito cabe ocupar-se dos dois processos, explicá-los e interpretá-los, por estranhos que possam parecer à mentalidade contemporânea.
                        Se o objeto da Filosofia do Direito é a ideia essencial de direito, podemos identificar dois grandes modos de concebê-la. O primeiro vigorou na Antiguidade; o outro, na Modernidade. Um consistiu em divinizá-la mais do que em dessacralizá-la; o outro, em dessacralizá-la mais do que em divinizá-la. Porém, em ambos, divinização e dessacralização coexistem. A relação entre elas põe constitui o mistério da Filosofia do Direito. Se as disciplinas jurídicas particulares dedicam-se à norma e sua utilidade, à Filosofia resta, de fato, indagar o mistério do direito. 

 CAPÍTULO 10: A RENOVAÇÃO DA FILOSOFIA

                        Desde René Descartes, a Filosofia tem passado por um processo de renovação que parece longe de reverter-se. Embora contínuo, o processo tem-se desenvolvido em direções variadas. O que unifica os esforços despendidos nessas direções é o propósito comum de superação da mundivisão medieval, embora não necessariamente da base metafísica dela.
                        Descartes, Kant e Marx estão entre os pensadores que apresentaram as propostas de renovação mais consistentes e de maior alcance, do início do período de renovação até hoje. Os dois primeiros são às vezes colocados numa linha de continuidade, como propugnadores de um mesmo e novo tipo de racionalismo.
                        Goffredo Telles Júnior escreveu: “O Cogito, ergo sum [Penso, logo existo] de Descartes constitui a proclamação da autonomia do espírito, e se encontra, por consequência, na base de todos os racionalismos”[39]. A afirmação é exata. Dentre os novos racionalismos, uns atribuem importância maior, outros, menor ao sujeito, porém todos lhe reservam um lugar de destaque. Nesse sentido, os racionalismos modernos reportam-se e permanecem tributários do Cogito cartesiano.
                       
Não é diferente com Kant, cuja dívida com Descartes é inegável. Nas pegadas do filósofo francês, Kant atribui muito mais ao sujeito do que outros representantes do racionalismo moderno. Com isso, coloca-se em certa relação de continuidade com Descartes. Segundo Goffredo, o Cogito supera “o velho princípio aristotélico de que nada existe no intelecto que não haja passado pelos sentidos”[40]. Há no sujeito algo que, antes, não esteve nos sentidos. Mas quem leva essa conclusão o apogeu não é Descartes: é Kant. 
                        Seja com Descartes, seja com Kant, porém, o fato é que a superação do primado do objeto constitui a renovação que instaura a modernidade na Filosofia. Renovação que se constitui numa das mais profundas da História.
                        Giorgio del Vecchio resumiu a realização de Kant, no campo da Teoria do Conhecimento, nos seguintes termos[41]:

           Distingue Kant as formas (subjetivas) da matéria do conhecimento. Entre as formas distingue aquelas que tornam possíveis as percepções dos sentidos (formas da intuição) e aquelas que tornam possíveis as operações lógicas (formas do intelecto). As formas que tornam possível a intuição sensível são o espaço e o tempo [...] As formas do intelecto são as categorias. Kant elaborou uma tábua dessas categorias, reduzindo-as a quatro espécies 
(quantidade, qualidade, modo e relação); cada espécie abrange três categorias.

                        Pode parecer que, ao instaurar a oposição entre forma e matéria do conhecimento, Kant retomou o velho par de conceitos de Aristóteles. Mas a verdade é bem outra. Nem matéria, nem forma, para Kant, são o que são para Aristóteles. Na filosofia kantiana, forma da intuição ou do intelecto é um conhecimento prévio utilizado para tornar os objetos cognoscíveis. Para Kant, o tempo e o espaço são o que torna possível a formação de objetos sensíveis, e as categorias, o que viabiliza a criação dos conceitos das coisas.
                        Por serem imanentes ao sujeito, mas não ao real, as formas não põem o conhecimento em conformidade com as coisas como elas são em si. E, visto que só podemos conhecer o que as formas do conhecimento nos facultam, “não há ciência das coisas em si, mas apenas dos fenômenos [coisas percebidas]”[42].
                        Vemos que a revolução kantiana não aprofunda a obra de Descartes apenas por colocar o sujeito no centro da reflexão filosófica, mas também ao dividir o conhecimento numa espécie que produz objetos e outra que não os produz. Goffredo esclarece que, para Kant[43]

os conceitos em geral não são formas, mas sim produtos do entendimento, isto é, produtos da síntese operada pela espontaneidade do espírito. Esta síntese é que se realiza por meio de formas puras, a que Kant conferiu o nome de categorias.

                        As formas são produtoras de outros conhecimentos. Outro tanto não pode ser afirmado dos produtos delas (percepções e conceitos). Dessa explicação extraímos que as percepções e os conceitos são produzidos pelo sujeito, por meio das formas. O resultado é a criação de objetos antes desconhecidos e, de outro modo, incognoscíveis. Com isso, Kant diferencia a sua fundamentação do conhecimento da de Aristóteles, para quem o objeto transporta-se do mundo exterior ao sujeito. Para Aristóteles, o que está no mundo e o que está no sujeito são fundamentalmente o mesmo. Para Kant, não. Como Goffredo o explica, o conceito é criado pelo sujeito, que “produz o objeto, pois produção significa [...] fazer cognoscível a massa informe dos dados sensíveis”[44].
A ideia de um conhecimento que produz o seu objeto é introduzida na Filosofia por Kant. Ela foi criada e justificada por ele, na Crítica da razão pura. Essa fundamentação inteiramente nova do conhecimento humano, com base nas formas da sensibilidade e do intelecto, pelas quais o sujeito cria o objeto, faz nascer um novo racionalismo, distinto do anterior estribado em Aristóteles.
                               A Crítica da razão pura é fundamental para a Filosofia não apenas por assentar que o sujeito é quem cria o objeto. Uma realização ainda mais significativa dela consistiu em demonstrar como isso ocorre, em geral e no caso particular dos juízos sintéticos a priori.
                               Tantas vezes no conhecimento o como se torna mais importantes que o quê. Principalmente quando se trata de renovar o conhecimento e introduzir ideias novas, mostrar como as coisas funcionam, sob a nova concepção, é de importância mais crítica do que apresentar, simplesmente, a concepção. Kant fez isso tão bem ou, ao menos, tão exaustivamente quanto possível. E foi da exaustividade, a meu ver mais que do sucesso da demonstração, que a sua teoria hauriu a autoridade. 
                        O caráter exaustivo da demonstração do funcionamento do conhecimento por Kant funcionou como um penhor senão da validez definitiva da sua Lógica Transcendental, ao menos do quilate intelectual dela. Do modo como Aristóteles lançou os cânones da Lógica Geral, ao enunciar as leis pelas quais o objeto é elaborado pelo sujeito, sem deixar de possuir as características fundamentais que apresenta no mundo, Kant fundou a Lógica Transcendental, a fim de descrever como o objeto é criado pode ser e é criado pelo sujeito sem relação necessária com o modo como ele é em si mesmo. E o instrumento por excelência dessa demonstração foram as formas a priori da sensibilidade e do entendimento.
                        A importância do trabalho de Kant para o pensamento humano investe-nos da alta  responsabilidade de julgar o valor dele, tarefa bastante difícil em razão da complexidade e do nível de detalhamento a que o filósofo alemão desceu ao apresentar sua Lógica Transcendental. Porém, se soubermos identificar a chave que permite ingressar no sistema de Kant, é possível aproximarmo-nos de tal resultado.
                        Penso que a chave da Crítica da razão pura é, precisamente, o modo como o sujeito cria o objeto, por meio dos sentidos e do intelecto. Já tive ocasião de afirmar que as ferramentas de que ele se vale, nesse mister, são as formas da sensibilidade (o tempo e o espaço) e do intelecto (as categorias). Vejamos como o sujeito se vale desses instrumentos.
                        Admitamos, para isso, que a divisão do conhecimento numa esfera da sensibilidade e outra do entendimento seja consistente. Na verdade, ela é inevitável, pois uma coisa é conhecer por meio dos sentidos (por exemplo, ver), e outra, conhecer intelectualmente (formular, por exemplo, os conceitos de ponto ou de reta). Ninguém sustentará que a visão de um animal é estruturalmente idêntica ao conceito de ponto.
                        Porém, o passo seguinte de Kant, no processo de demonstração da sua Lógica, vale dizer, a determinação das formas de que o sujeito se serve ao produzir os objetos envolve problemas diversos. Kant afirma que as formas da sensibilidade são o tempo e o espaço e que as categorias do entendimento são doze: três de quantidade (unidade, pluralidade e totalidade), três de qualidade (realidade, negação e limitação) três de relação (substância, causalidade e reciprocidade) e três de modalidade (possibilidade-impossibilidade, existência-inexistência, necessidade-contingência).
                        Essas 12 categorias, Kant as deriva das 12 modalidades de juízo da Lógica Formal, pois, para ele, pensar é julgar. Por esse motivo básico, há tantos conceitos básicos (categorias) quantas são as maneiras de julgar (tipos de juízos).
                        Vemos que, até esse ponto, Kant procede de maneira fundamentada, uma vez que a classificação dos juízos em 12 espécies constitui uma construção pouco desafiada da Lógica. O que nem sempre é claro é o modo como a derivação das categorias dos diferentes juízos ocorre. Uma coisa é Kant extrair a negação dos juízos negativos. O raciocínio que conduz a essa dedução é claro, posto que o juízo negativo produz uma negação. A dedução da unidade a partir dos juízos universais também pode ser aprovada, pois o juízo universal reduz uma grande massa de dados à unidade.
                        Mas e a dedução da substância a partir dos juízos categóricos, a da causalidade a partir dos hipotéticos e a da reciprocidade dos juízos disjuntivos? São elas procedimentos tão consistentes quanto os anteriores? Um juízo categórico enuncia, necessariamente, uma substância? Um hipotético afirma sempre uma relação causal, e um disjuntivo, uma recíproca? Indagações semelhantes podem ser formuladas também da dedução da possibilidade e da impossibilidade a partir dos juízos problemáticos, da existência e da inexistência, dos assertivos e da necessidade-contingência, dos apodíticos.
                        Em todos esses casos, as categorias serão outras, se o balanço da operação realizada em cada juízo variar em relação ao de Kant. Não temos de consentir que povos tão diversos quanto um selvagem, outro bárbaro e um terceiro civilizado ou um civilizado antigo, outro moderno e outro contemporâneo, jamais possam conceber operações categóricas em termos não substanciais, operações hipotéticas que não envolvam causa e efeito e juízos disjuntivos que não impliquem reciprocidade. Não temos de concluir que aqueles povos precisam inevitavelmente dominar a noção de verdade apodítica para conceberem a necessidade e a contingência ou devem por força considerar a possibilidade e a impossibilidade mais assertivas do que a existência e a inexistência. Nada disso parece tão universal quanto Kant admite.
                        Isso implica que a Lógica Transcendental não tem de ser idêntica em todos os povos e para absolutamente todas as pessoas. O caráter universal que Kant lhe atribuiu é, no mínimo, duvidoso. Aliás, a dedução das categorias não é o único pilar dessa Lógica sujeito a dúvidas. A dedução das formas da sensibilidade me parece ainda mais arbitrária.
                        Não que o tempo e o espaço não intervenham na formação do nosso conhecimento dos objetos sensíveis. Percebemos os objetos externos localizados no tempo e no espaço. Mas não os percebemos, também, dotados de qualidades e em determinadas quantidades? Não os percebemos como substâncias e portadores de propriedades acidentais?
                        Os kantianos dirão que o espaço e o tempo são mais fundamentais do que as categorias citadas acima para a percepção. Dirão que o espaço não envolve medidas de extensão e o tempo, de duração, ao passo que a unidade, a pluralidade, a totalidade e as várias espécies de qualidade implicam delimitação e medida. Seja. Mas perceber não é já contar e qualificar? Não é perceber um, dois ou mais objetos, com essas ou aquelas qualidades? Por que o ato de perceber tem de ser reduzido à disposição de objetos num espaço e num tempo abstraídos de toda modulação?
                        Esses fundamentos da Lógica Transcendental são muito mais sugeridos por Kant do que comprovados. Em tantos pontos e em tantos momentos, o sistema que o filósofo alemão erige impõe-se mais pela exaustividade do que pela demonstração de suas assertivas. De sorte que um exame crítico e meticuloso do seu conteúdo nos desobriga a admitir o rol específico de formas da sensibilidade e do entendimento que Kant propõe.
                        Por outro lado, o exame crítico a que me refiro parece confirmar o acerto do ponto de partida da Lógica Transcendental. Refiro-me à afirmação de que o sujeito utiliza certos conceitos (as formas) para moldar objetos. Portanto, que as coisas ou suas formas (em sentido aristotélico) não se transportam do mundo ao interior do sujeito, como Aristóteles e os escolásticos sustentavam.
                        Podemos concluir, com base em fortes razões, portanto, que há, de fato, formas a priori do conhecimento, que se distinguem como criadoras de objetos. Nem todo conhecimento tem o condão de criar objetos, mas alguns certamente o possuem. A esses deu Kant o nome de formas.
                        Flexibilizemos, pois, o rol taxativo e rígido das categorias enunciadas por Kant, afrouxemos os cordões das próprias formas a priori da sensibilidade, admitindo que tanto umas como outras existem, mas podem ser concebidas variadamente, por povos e pessoas também variados. Admitamos que algumas categorias, como a unidade, a pluralidade, a existência e a inexistência têm aplicabilidade mais ampla que outras. Mas não nos afastemos da noção basilar de que categoria gnoseológica é aquilo e somente aquilo que engendra um objeto. Essa é, de fato, uma lição perene da filosofia de Kant.
                        Façamos, outrossim, a justa comparação da crítica a que o rol das categorias de Kant faz jus com a que a lista de Aristóteles merece. É verdade que Kant arrolou as categorias do conhecimento, e Aristóteles, as do ser, mas, tanto num como no outro caso, imputações de escolha excessivamente rígidas podem ser formuladas. Tanto a lista das categorias do ser de Aristóteles quanto a das categorias do entendimento de Kant poderia ser contesta ou aceita sob interpretações variadas em diferentes povos e culturas. 
                        Isso é lá verdadeiro. E a conclusão que decorre de semelhantes constatações é que não só a filosofia de Kant é vulnerável à corrosão crítica, mas também à de Aristóteles. Aiás, as duas são particularmente sensíveis à crítica no capítulo sobre as categorias.
                        Afinal, as categorias do ser e do entendimento são ou não consistentes? E as formas a priori da sensibilidade? Temos ou não verdadeiras categorias? Pensamos ou não de acordo com elas? Retornarei ao tema, na parte desta obra dedicada à Gnoseologia Jurídica.
                        Mostrarei, outrossim, nos textos consecutivos, que a aplicação da ideia de forma a priori ao direito foi extremamente tumultuada, quando não inconsistente. Uma das consequências disso foi a tendência dos jusfilósofos influenciados por Kant de anunciar a descoberta das formas do pensamento jurídico. Escolas de pensamento inteiras se assinalaram por essa pretensão, o que demonstra que a influência de Kant desbordou os limites da Teoria do Conhecimento para atingir o âmago da Filosofia Social e do Direito.
                        Contudo, por ora, é suficiente mostrar o tratamento que Kant deu ao tema do conhecimento e a situação em que o deixou. Afinal, apropriar-se do pensamento dos autores é, sempre, o trabalho primeiro, sem o qual a crítica perde toda consistência. Sobretudo a crítica a uma das maiores realizações da História da Filosofia, como é o caso da obra de Kant. Não foi por outro motivo que del Vecchio considerou o pensador de Königsberg o maior de todos os filósofos.

A RENOVAÇÃO DO DIREITO NATURAL

                        Ao examinarmos as obras dos jusfilósofos, nos últimos dois séculos, notamos que o papel do sujeito na definição dos conceitos jurídicos passou a ser cada vez mais discutido. Esse estado de coisas, porém, não se seguiu, imediatamente a Kant. Foi, antes, precedido por interlúdio de mais de meio século, no qual as ideias de Kant foram encobertas em parte pela discussão das teses do historicismo filosófico e jurídico.
                        O hiato se explica pela situação política dos países europeus. Depois da Revolução Francesa e das Guerras Napoleônicas, a Europa foi varrida pela tendência de restauração do Antigo Regime. Nesse tempo, o kantismo, por se ancorar na justificação da ciência e na liberdade, não pareceu servir tão bem os interesses da monarquia quanto o historicismo de Hegel. De sorte que os problemas filosóficos semeados pelo filósofo de Königsberg tiveram de aguardar a passagem da onda da Restauração para receberem atenção total e o merecido desenvolvimento.
                        Em meados do século XIX, isso começou a ocorrer intensamente, na Alemanha, com a formação das Escolas neokantianas de Marburgo e de Baden. A partir desses centros e de outros que rivalizaram com eles, os problemas colocados por Kant passaram a dominar o panorama da Filosofia do Direito.
                        Um dos pontos mais discutidos desse período foi o papel dos conceitos e formas a priori no conhecimento jurídico. Rudolph Stammler, cuja obra foi constituiu um dos mais notáveis frutos da retomada do kantismo, teve o mérito de desenvolver o exame mais amplo desse problema, no panorama recente da Filosofia do Direito.
                          Em Economia y derecho, Stammler escreveu[45]:

Todos os sistemas de Filosofia do Direito até agora conhecidos coincidem em tomar o conceito de direito como ponto de partida e em ver nele a unidade suprema para as discussões nesse campo [...] Sob a unidade desse conceito superior de direito, é possível formar-se toda uma disciplina científica, que não se reduzirá a informar-nos de um conteúdo de direito limitado ou a expor uma ordem jurídica determinada, antes oferecerá um sistema das condições necessárias de todo conhecimento jurídico possível.

                        Essas declarações assinalam o objetivo principal da obra de Stammler. Para pô-lo em poucas palavras, o que o jusfilósofo alemão pretende é estabelecer as “condições de possibilidade” do conhecimento jurídico, no sentido que a expressão tem em Kant. Temos visto que essas condições estão relacionadas ao modo como o sujeito produz objetos jurídicos[46]:

         Quando a doutrina jurídica tenta estabelecer dentro de que círculos e grupos humanos e por meio de que atos nasce o direito na História, propondo-se a desentranhar uma lei de evolução de alcance geral pela justaposição das formações de normas jurídicas acumuladas, ela tem de partir de um conceito qualquer de direito.

                        Não podem, os estudiosos, encontrar certo objeto na História, se não sabem o que procurar. Analogamente, o homem comum não pode entender o direito, se não possuir, de antemão, a ideia geral dele. Por isso, o conceito de direito antecede o pensamento juridico e é a priori.
                        Desse conceito a priori, Stammler deduz o que chama conceitos jurídicos fundamentais, que servem para articular logicamente a massa desordenada dos fenômenos jurídicos. Os conceitos ou categorias jurídicas fundamentais, em número de oito, podem ser combinados, de modo a formar conceitos fundamentais derivados. Tanto o conceito geral de direito quanto as categorias e os conceitos derivados delas são puros, por resultarem de dedução a priori.
                        Ao lado desse conceito de direito e do rol de outros conceitos que descendem dele, Stammler coloca o que chama ideia de direito e a identifica com a justiça. Como o direito, a justiça também é formal, não possui conteúdo determinado, mas variável. Justiça é o conjunto de condições em que a liberdade de um pode ser coordenada com a de outro, em sociedade.
                        Del Vecchio saudou a teorização do direito de Stammler[47] e tratou de ecoá-la, em sua obra, ao afirmar que a noção de direito[48]

é meramente formal: não é uma norma, nem uma proposição jurídica, pois em tal caso teria conteúdo particular e careceria de universalidade [...] Em vez disto, é, porém, um elemento que em todas as proposições jurídicas entra uniformemente, caracterizando-as do mesmo modo, qualquer que seja o conteúdo delas. Em relação a este, permanece indiferente, adiáforo. Por outras palavras: a forma lógica não nos diz aquilo que é justo ou injusto, mas diz-nos só qual é o sentido de qualquer afirmação sobre o justo ou o injusto. É, em suma, a marca da juridicidade.

                        Stammler e del Vecchio recorreram a essas noções claramente derivadas de Kant com o mesmo propósito de relançar o direito natural, ou seja, de apresentar essa antiga doutrina de uma maneira inteiramente nova. Tiveram muitos seguidores, mas o sucesso de sua empreitada foi colocado em xeque em muitos.
                        Entre nós, Goffredo Telles Júnior foi quem melhor tratou dos problemas do direito natural de conteúdo variável de Stammler e Del Vecchio.Com sua sólida formação tomista e a predileção que o marcava pela teoria das quatro causas de Aristóteles, o mestre das Arcadas declarou[49]:

Causa espécie, na teoria do Formalismo Jurídico [de Stammler e del Vecchio], a afirmação de que a noção do direito há de ser exclusivamente formal. Pois é evidente que esta asserção acarreta, por força, a amputação de uma parte essencial do conceito do direito, porque, como é obvio, o perfeito conhecimento de uma essência inclui, além do conhecimento de sua causa formal, o de suas outras causas, quais sejam, a eficiente, a final e, principalmente, a material.

                        O conceito de forma, em Kant, não coincide com o de Aristóteles. Pode parecer que Goffredo desliza ao considerá-los o mesmo objeto. Mas ele próprio esclarece, algumas páginas adiante: “Bem sei que a Escola do Direito Formal de conteúdo variável emprega o termo forma, não no sentido clássico, mas no sentido kantiano”[50].
                        O problema da teorização de Stammler e del Vecchio, como Goffredo a avalia, não é confundir os conceitos de forma de Aristóteles e de Kant, mas desgarrar-se, ao mesmo tempo, de ambos. Aristóteles chamou forma ou causa formal aquilo que nos permite identificar uma matéria como certo objeto. Assim, o mármore de uma estátua é a sua matéria, que recebe a forma de Sócrates das mãos do escultor. Como Aristóteles, Kant opõe a forma à matéria, mas o faz de modo diferente, com vistas a descrever o conhecimento humano. Para ele, a matéria do conhecimento são os dados dos sentidos; forma é o instrumento de que o sujeito se vale para criar objetos com aquela matéria.
                        Goffredo percebeu com argúcia que a forma invariável do direito, a que Stammler e del Vecchio aludem, não corresponde ao conceito aristotélico, pois “em todas as coisas (portanto, também no direito), o único elemento variável é exatamente a forma, e nunca a matéria”[51].
                        O professor das Arcadas dá o exemplo do “ouro do anel e o ouro da moeda”, que “constituem sempre a mesma invariável matéria; mas, como forma, o mesmo ouro pode assumir a disposição de anel, ou a disposição de moeda, ou a de qualquer outra coisa”[52]. E arremata[53]:

Ou nosso conceito de direito se refere sempre à mesma invariável matéria, seja qual for sua forma (forma de direito civil, ou de direito penal; ou do Código de Hamurabi, ou do Corpus Juris ou da Constituição brasileira etc.), ou não sabemos a que nos referimos.

                        Mas, se não corresponde ao uso que Aristóteles atribuiu ao termo, a forma de direito de Stammler e del Vecchio tampouco se ajusta ao conceito kantiano. Lembremos o que Goffredo tem a ensinar sobre isso[54]:

Como lembra Poggi, o conceito do direito não pode ser considerado, propriamente, uma forma no sentido com que Kant empregou esta palavra. Pois, para Kant, como verificamos, os conceitos em geral não são formas, mas sim produtos do entendimento, isto é, produtos da síntese operada pela espontaneidade do espírito. Esta síntese é que se realiza por meio de formas puras, a que Kant conferiu o nome de categorias.

                        Forma a priori, em Kant, é, de fato, o instrumento utilizado pelo sujeito para reduzir uma multiplicidade de dados à unidade de uma percepção ou conceito. Por isso, a forma sempre supõe algo indistinto (uma multiplicidade de informações) do que produz o que é distinto (a percepção ou o conceito). E, ao fazê-lo, ela sempre cria objetos no sentido de torná-los cognoscíveis. O direito não é forma, porque não é usado para tornar cognoscível o que não o é. 
                        A conclusão de que a filosofia de Kant inspirou as mais significativas renovações da doutrina do direito natural, no nosso tempo, pode ser exemplificada, também, pela obra de Miguel Reale. Ele lembra que[55]

criticistas, positivistas, pragmatistas etc. surgiram e surgem no mundo jurídico, coincidindo no reconhecimento de que não nos é dado conhecer senão o direito que se revela na História e indagar de suas condições de possibilidade. Para os adeptos de uma solução inspirada em Kant, tais condições são de caráter lógico-transcendental, como formas a priori que tornam a experiência jurídica possível [...] Todos [criticistas, positivistas, pragmatistas etc.] repelem, no entanto, a ideia de um Direito Natural transcendente, anterior à positividade jurídica e superior a ela, lógica e ontologicamente bastante a si mesma, embora possa ser aceita por alguns – como é o caso dos neocriticistas e dos neorrealistas – a ideia de um Direito Natural transcendental.

                        Para melhor esclarecer o sentido do direito natural transcendental, a que se referiu brevemente na passagem acima, Reale escreveu sua obra Direito Natural/ direito positivo[56]:

O Direito Natural é o grande envolvente ou o horizonte histórico-cultural da experiência [jurídica], na medida em que esta é pensada no seu todo e no seu fundamento. Note-se que não digo na medida em que é conceituada, porque o conceito, como ponto culminante de um juízo verificado ou verificável, não se coaduna com a ideia do Direito Natural, empregando eu, neste passo, a distinção essencial de Kant entre conceito e ideia.

                        Reale ensina que o direito natural não é transcendente ou divino, mas transcendental, no sentido que Kant atribuiu a essa palavra. Direito natural é uma ideia, não a um conceito verificado ou verificável. Como ideia, ele não traduz algo real; é um objeto ideal: o território da experiência jurídica possível.
                        Essa ideia de direito natural será uma forma? A resposta haverá de ser sim, pois, além das formas da sensibilidade (o espaço e o tempo) e das do intelecto (as categorias), Kant se referiu às formas da razão (Deus, o mundo e a alma) entendida como o intelecto nos momentos em que vai além da experiência possível[57].
                        Como Stammler e del Vecchio atribuem ao conceito de direito e a outros conceitos a função de formas a priori, Reale faz o mesmo com o direito natural, que considera uma ideia ou forma da razão quando tende aos limites da experiência jurídica possível. Contudo, acrítica de Goffredo alcança a sua doutrina do modo como se estende às dos autores europeus. Como ele lembra, se o conceito de direito não é uma forma, mas um produto das formas do intelecto, a ideia de direito natural tampouco é uma forma da razão, mas um produto do intelecto. Não é, por isso, possível conceber o direito natural como forma da razão.
                        No entanto, o próprio Kelsen parece entender o direito natural dessa maneira. Veremos que, no Apêndiee à Teoria geral do direito e do Estado, ele reconheceu que a ideia de direito natural é inescapável ao aprofundamento do pensar jurídico. Todavia, isso não implica uma concessão decisiva a favor do direito natural, visto que Kelsen, como neokantiano, pensou o direito natural de modo gnoseológico-transcendental e não metafísico-transcendente. Concebeu-o, por isso, como uma forma da razão ou, o que é o mesmo, como uma ideia viciosa. Por esse motivo, nem mesmo Kelsen pode ser isentado de utilização duvidosa da doutrina kantiana das formas do pensamento.
                        Goffredo sugere que conceitos como os que cita e que são insistentemente assimilados a formas a priori, na verdade, indicam a matéria das representações jurídicas. Nesse passo, ele emprega a palavra matéria no sentido aristotélico de substância ou relações substanciais. Conclui que, se os conceitos de direito e direito natural não são formas, devem indicar relações substanciais invariáveis num número enorme de representações jurídicas: planos inteiros daquelas relações.
                        O velho conceito aristotélico de matéria é aqui retomado para permitir o insight das relações mencionadas. Goffredo considera o seu uso mais adequado que o da noção kantiana de forma. Isso cria um problema ulterior e tão difícil de resolver quanto o uso da forma pelos neokantianos. O que não prejudica a desconstrução que Goffredo realiza desse último uso.
                        Desconstruir é sempre mais fácil que construir conceitos, o que de modo nenhum desvaloriza as desconstruções. A de Goffredo, que apresentei, é bastante valiosa. Tanto mais quanto a voga do kantismo no meio jurídico foi vigorosa. A crítica de Goffredo impede incidir em ilusões, ao mesmo tempo em que gera perguntas que permanecem por responder.

CAPÍTULO 12: LEGALISMO E POSITIVISMO

                        É comum os estudiosos reduzirem a multiplicidade de opiniões sobre os grandes temas da História a certo número de correntes que incluem pontos de convergência entre os pensadores. Embora essa redução facilite a compreensão das discussões ocorridas, ainda assim, o número de escolas permanece elevado, o que não impede que a perplexidade do observador ante tantas divergências se dissipe. 
                        Para sanar esse problema, é possível agrupar as próprias correntes de opinião em um número ainda mais reduzido de posições básicas, que tenho denominado metavisões do real. Metavisões são pontos nos quais convergem não apenas os pensadores individualmente considerados, mas também as escolas de pensamento. É possível propor que, no tocante à ideia básica de direito, as escolas de pensamento e opinião congregam-se nos campos opostos do direito natural e do positivismo.
                        Norberto Bobbio expressou convicção análoga a essa, muito antes de mim, no seu livro O positivismo jurídico, em que lemos que[58]

toda a tradição do pensamento jurídico ocidental é dominada pela distinção entre ‘direito positivo’ e ’direito natural’, distinção que, quanto ao conteúdo conceitual, já se encontra no pensamento grego e latino; o uso da expressão ‘direito positivo’ é, entretanto, relativamente recente, de vez que se encontra apenas nos textos latinos medievais.

                        Porém, nem sempre as duas posições filosóficas foram claramente formuladas ou gozaram de prestígio comparável. Na Antiguidade e na Idade Média, os jurisconsultos e filósofos de maior nomeada entenderam o direito pelo ângulo da lei natural mais frequentemente do que sob o de qualquer das suas fontes históricas.
                        É o que encontramos nos filósofos estoicos, em Cícero, nos jurisconsultos romanos, em filósofos patrísticos como Lactâncio e Santo Agostinho e num extenso rol de autores medievais. Nenhum desses pensadores que, juntos, lançaram as bases de compreensão do direito antigo e medievo identificou o direito definitivamente com a palavra do rei, a lei, o costume ou qualquer outra fonte particular de normas. Preferiram, ao contrário, fazê-lo coincidir com algo presente na lei, no costume e nas outras fontes, mas que não se reduz a elas. E, a esse objeto essencial do direito, os pensadores citados atribuíram nomes como justo por natureza e recta ratio.
                        Pode parecer que Aristóteles situou as duas concepções no mesmo patamar, ao reconhecer tanto o justo por natureza como aquele que se estabelece por convenção. Contudo, a sua fundamentação da justiça permite entender que considerava o justo por natureza mais determinante para a configuração geral do direito do que aquele que se estabelece por convenção. Na Ética a Nicômaco, lemos[59]:

                     Uma parte da justiça política é natural, e outra parte, legal. Natural é a parte da justiça que tem a mesma força em todo lugar e que não existe em razão de as pessoas pensarem isso ou aquilo; legal é aquela que, originalmente, é considerada indiferente, mas, uma vez promulgada, deixa de o ser, por exemplo o resgate de um prisioneiro por uma mina ou a oferta de um bode e não de duas ovelhas em sacrifício.

                        Bobbio exagera, de certa forma, a importância relativa do direito natural e do positivo, na Antiguidade, no trecho em que afirma que[60]

na época clássica o direito natural não era considerado superior ao positivo: de fato o direito natural era concebido como ‘direito comum’ (koinós nómos conforme o designa Aristóteles) e o positivo como direito especial ou particular de uma dada civitas; assim, baseando-se no princípio pelo qual o direito particular prevalece sobre o geral (‘lex specialis derogat generali’), o direito positivo prevalecia sobre o natural sempre que entre ambos ocorresse um conflito (basta lembrar o caso da Antígona, em que o direito positivo – o decreto de Creonte – prevalece sobre o direito natural – o ‘direito não escrito’ posto pelos próprios deuses, a quem a protagonista da tragédia apela”.

                        Tenho dúvidas sobre esse ponto da reflexão de Bobbio. Cícero não recolheu incorretamente o pensamento grego, nem o modificou, ao definir o direito como “razão suprema, ínsita na natureza, que manda o que se deve fazer e proíbe o contrário”[61]. Sua definição permite entender que o direito, nos autores gregos e romanos, não coincide com suas fontes tomadas na integralidade delas, posto que não se pode voltar contra a essência racional que as permeia. No caso de Antígona, o decreto de Creonte citado por Bobbio não podia ser invocado contra o preceito que manda prestar honra aos mortos, que informava todo o direito grego. Portanto, ainda que reconhecessem dois sentidos básicos ao direito (natural e positivo), os antigos não lhes atribuíam o mesmo peso.
                        Lex specialis derogat generalis, escreveu Bobbio, a fim de justificar a preponderância do direito positivo na Antiguidade Clássica. Mas não há evidência de que o brocardo latino tenha sido formulado ou o seu conteúdo, reconhecido, na época de Sófocles ou de Aristóteles. Tampouco o conflito de Antígona ecoa a concepção defendida por Bobbio de que o direito positivo prevalece sobre o natural, quando entre eles se estabelece um conflito.
                        Nem mesmo em questões políticas, está plenamente claro que os gregos simplificassem as coisas a esse ponto. Por isso, o conteúdo do adágio citado por Bobbio só podia ser nebulosamente concebido, em tempos tão recuados. Alexandre Correia e Gaetano Sciascia esclarecem que, na fase áurea do Direito Romano, a palavra Lex indicava “uma deliberação de vontade com efeitos obrigatórios. Falava-se neste sentido em leges privatae, como cláusula de um contrato (lex venditionis, lex comissória) e o estatuto de uma sociedade (lex collegii)”[62].
                        Corolário desse sentido estrito de lex, que vigorou por tanto tempo, era a virtual impossibilidade de idenficar uma lex generalis. Essa modalidade de lex só surgiu mais tarde. Portanto, nem para os romanos, o afastamento da lei geral pela especial foi, durante a maior parte da sua História, um epifenômeno do encontro de uma lei geral e outra especial.
                        Mesmo assim, a dicotomia direito natural – direito positivo existiu, tanto entre os antigos gregos como entre os romanos. Isso confirma que os dois modos de conceber o direito surgiram bastante cedo e influenciaram a formação do pensamento jurídico.
                        Porém, se as menções do direito natural são explícitas, na Antiguidade, o mesmo não se pode afirmar do positivismo. A palavra positivismo não existiu naquele tempo. A própria expressão lei positiva só se tornou usual a partir do século XII d. C. Por isso, na Antiguidade, a adesão ao modo positivista de conceber o direito deve ser encontrada sob outra roupagem verbal.
                        Penso que ela se assinala pela identificação rígida e preferencial do direito com uma (ou mais) de suas fontes empíricas. Isso ocorreu sempre que a palavra do rei, o costume, a lei ou outra fonte histórica do direito foi considerada superior às demais.
                        Exemplos desse modo de conceber o direito e seus fenômenos, na Antiguidade, são os regimes tirânicos, nos quais os decretos dos reis revestiam-se de força absoluta, e os legalistas, como o implantado em questões religiosas, em Israel, entre os séculos II a. C. e I d. C. É possível apontar o farisaísmo como modelo do antigo legalismo judaico.
                        Em síntese, embora seja usual localizar a origem do positivismo jurídico entre os séculos XVIII e XIX, a espécie de filosofia abrangida nessa identificação é tão-só a moderna, que pressupõe o aparecimento da ciência positiva. Se alargarmos a concepção de positivismo, de modo a abranger a metavisão que se distingue pelo reconhecimento de validade rígida a uma ou mais fontes empíricas do direito, seremos capazes de identificá-lo todas as vezes em que, na Antiguidade, um regime tirânico ou legalista implantou-se. Nesse sentido alargado é que o positivismo jurídico opõe-se ao jusnaturalismo como metavisão do direito.
                        À diferença do moderno, o juspositivismo da Antiguidade não se colocava em oposição absoluta, mas apenas relativa com o direito natural. Assim, todas as vezes em que uma fonte do direito adquiriu enorme prestígio num povo culto, a tendência positivista se fortaleceu, sem que a ideia de direito natural fosse afastada.
                        Só nos tempos modernos, a concepção positivista radicalizou-se a ponto de exclulir o jusnaturalismo. Assim concebido, o juspositivismo tornou-se[63]

uma concepção do direito que nasce quando ‘direito positivo’ e ‘direito natural’ não mais são considerados direito no mesmo sentido, mas o direito positivo passa a ser considerado como direito em sentido próprio [...] A partir deste momento o acréscimo do adjetivo ‘positivo’ ao termo ‘direito’ torna-se um pleonasmo mesmo porque, se quisermos usar uma fórmula sintética, o positivismo jurídico é aquela doutrina segundo a qual não existe outro direito senão o positivo.

                        Essa pretensão não está presente apenas nos autores continentais, como Bobbio e Kelsen, ou nos positivistas ingleses, de Austin a Raz. Ela é compartilhada pela virtual totalidade dos representantes atuais dessa corrente e é, por isso mesmo, a novidade específica do positivismo moderno, aquilo que o diferencia das modalidades anteriores dessa metavisão.
                        Geralmente, a pretensão é fundada em motivos lógicos, como a crítica de David Hume à derivação de proposições do dever-ser a partir do conhecimento do ser. De acordo com Hume, esses dois conhecimentos são estruturalmente distintos, o que impede a derivação de um a partir do outro.
                        A denúncia de Hume deu origem à noção de “falácia naturalista”, à qual Bobbio se refere como o procedimento consistente em “extrair da constatação de uma certa realidade (o que é um juízo de fato) uma regra de conduta (que implica num juízo de valor)”[64]. Todavia, embora a acusação de falácia contenha uma ressalva importante, o direito natural concebido como expressão da recta ratio não se coloca no plano da natureza, mas no da razão. Por isso, não é atingido pela denúncia de Hume, como procurarei demonstrar no texto sobre a falácia naturalista.
                        O fato de as normas do direito natural derivarem de juízos de fato é corolário das condições de possibilidade da razão prática. Por isso, aplica-se tanto ao jusnaturalismo quanto ao positivismo. Todas as normas básicas de ordenamentos jurídicos são concebidas a partir da observação do que é. Esse é um dado incoercível. Aplica-se tanto a ordenamentos concebidos do ponto de vista do direito natural quanto a ordenamentos interpretados de modo positivista.
                        Aliás, é possível inverter a acusação de falácia e imputar vícios lógicos ao menos ao positivismo de inspiração kelseniana. Vimos que, assim como o jusnaturalismo foi fecundado pela filosofia de Kant, o mesmo ocorreu com Kelsen e seus seguidores. Goffedo lembrou que a Teoria Pura do Direito, de Kelsen, repousa num equívoco lógico[65]:

[Para Kelsen], o dever-ser constitui uma categoria formal para o conhecimento do material jurídico. Kelsen o declara com precisão, quando afirma que essa categoria é gnosiológico-transcendental, no sentido kantiano,e não metafísico-transcendente [...] Ora, para a Teoria Pura, o direito é, antes de tudo, a regulamentação do próprio direito: o direito só é direito em virtude de haver sido criado de acordo com a forma estabelecida pelo próprio direito. Por exemplo: uma sentença é direito porque “contém uma norma individual, cuja validade se funda numa lei, cuja validade, por sua vez, assenta na Constituição”.

                        Nosso autor prossegue:

         A norma fundamental exerce, no sistema jurídico da Escola de Viena [a que Kelsen pertenceu], papel análogo ao exercido pelas condições transcendentes ou formas puras [especialmente as categorias], na filosofia de Kant [...] Em que se fundou a Escola de Viena para atribuir à norma a qualidade de categoria? A resposta é imediata: fundou-se na conclusão kantiana de que a categoria produz o conhecimento. Para a referida Escola, a norma é o elemento que confere significação jurídica aos fatos, e exerce, relativamente ao conhecimento do direito, a função que as categorias kantianas exercem relativamente ao conhecimento em geral.

                        "Não creio", continua Goffredo[66],

que a concessão de tal título à norma de direito exprima rigorosa fidelidade aos princípios kantianos. A norma [fundamental] jamais poderia ser considerada uma categoria, e isto pelo simples fato de que não constitui uma forma a priori do entendimento, pois [...] só pode ser estabelecida a posteriori, isto é, depois da verificação de um fato.

                        E exemplifica:

Se um jurista quiser fundamentar a validade de um sistema normativo republicano, não escolherá uma norma fundamental como a seguinte: ‘deves obedecer ao rei’. Esta proposição não tem nenhum valor para a consecução do fim almejado. A hipótese originária [norma fundamental] que se há de escolher, não depende, portanto, da livre vontade do jurista, uma vez que tal hipótese só pode ser formulada em consideração ao conteúdo do sistema normativo.

                      

                        O que só pode ser estabelecido após consulta ao conteúdo do sistema normativo não pode ser a priori. Exatamente esse é o caso da norma fundamental de Kelsen. Abre-se, assim, uma fratura que, afinal, imporá a condenação do inteiro edifício de uma das mais prestigiosas correntes jusfilosóficas contemporâneas. E o fará sob a pecha de absoluta falta de sustentação lógica.
                                              Bobbio funda o seu próprio positivismo em dados distintos daqueles de Kelsen. Funda-o na superação da sociedade medieval pela moderna e, mais especificamente, em exigências do fenômeno contemporâneo da estatização do direito. Esse fenômeno assume forma visível sob o primado da lei, que teve lugar por toda parte, até mesmo em países, como a Inglaterra, que adotam a tradição do common Law. O próprio Bobbio registrou[1][67]:

           Nem todos os países formularam a codificação (resultado último e conclusivo da legislação), mas em todos os países ocorreu a supremacia da lei sobre as demais fontes de direito. Isto aconteceu também na Inglaterra.

                            A estatização do direito é um corolário da complexificação da vida social. O advento das sociedades de massas, associado à industrialização, ao êxodo rural e à hipertrofia urbana, gerou crescimento demográfico e novas modalidades de relações produtivas e comerciais, que precisaram ser disciplinadas por meio de normas jurídicas. Para que essa disciplina não se desse de modo espontâneo, o que implicaria dizer caótico, o Estado passou a concentrar o poder de criar e sistematizar as normas jurídicas. Um dos mecanismos mais importantes pelos quais ele o fez foi a codificação. Bobbio afirmou que o juspositivismo contemporâneo ou positivismo jurídico propriamente dito foi a filosofia que presidiu o manejo do direito nesse novo contexto social.
                           Cabe à ciência, e somente a ela, explicar o direito produzido pelo Estado. Como a ciência lida com objetos definidos, não é mais possível conceber o direito como uma ratio subjacente às normas, que cada um entende ou pode entender ao seu modo. Daí o reconhecimento do direito positivo como único direito e a redução do direito natural à condição de direito em sentido impróprio.
                          O positivismo moderno deixou um legado benéfico, sob a forma da teoria do ordenamento jurídico desenvolvida pelos seus teóricos, e uma herança egativa, consistente na crítica, às vezes imerecida, porque extrema, ao direito natural. Essa crítica expôs os seus próprios limites, ao propor a eliminação pura e simples do direito natural, em vez de se combinar com ele, como o positivismo anterior havia feito.
                        Confiando eliminar um erro, o positivismo excluiu a doutrina historicamente mais utilizada para explicar o sentido do direito. E, para dizer o mínimo, nunca tornou claro por que extirpar tal doutrina há de constituir o caminho mais indicado para levar adiante a reflexão jusfilosófica.
                          Embora tenha reinado quase inconteste, em certos foros, no século XX, o ideal de superação de um pensamento tradicional por outro de índole científica, que o positivismo jurídico conduziu à culminância, encontra-se em via de ser superado, após o desentranhamento de suas tendências reducionistas.
                        Feliz ou infelizmente, reducionismos como o juspositivista são comuns, durante as revoluções do conhecimento. Kelsen é, às vezes, citado como o maior jurista do século XX. Reconheço-lhe títulos e obras suficientes para isso. Kelsen foi, para o Direito, o que foi Kant para a Filosofia. Mas o dito de Aristóteles ainda ressoa: Amicus Plato... Platão é amigo, mas maior amiga é a verdade. Não valerá, ainda, o dito, em tempos, como o atual, em que a vanglória desafia tanto a amizade quanto a verdade?
AS ESCOLAS ANTIFORMALISTAS

                        Muitas reviravoltas foram propostas na Filosofia. Poucas foram levadas a efeito com sucesso, no território da Teoria do Conhecimento. Por ter ocorrido precisamente nessa seara e pela dimensão dos desafios que arrostou para alcançar o justo sucesso de que se cobriu, a revolução kantiana pode ser considerada, sem favor, a maior da História da Gnoseologia, de Aristóteles aos nossos dias.
                        Claro que chamamos revoluções apenas as que foram sólidas o bastante para resistir ao tempo. Ainda que tenham sido revoluções sonhadas, como a de Kant, que se assemelha à descoberta de um teorema e ao anúncio complexo de todos os seus corolários lógicos.
                        Ao referir-me a revoluções sonhadas, não é meu propósito apoucá-las, mas ressaltar que o que as aludidas fermentações propuseram de realmente novo não incidiu, nem pode incidir, decisivamente, no plano da História, mas apenas no das formulações teóricas e cerebrinas. Foi esse o caso da Lógica Transcendental de Kant, cuja aplicabilidade é tão menor que a da Lógica Formal de Aristóteles quanto requer pressupostos especulativos dos quais a outra prescinde e, por prescindir, pode ser tão suavemente aplicada no dia-a-dia. Mesmo assim, a revolução de Kant teve tão monumentais implicações no Direito.
                        É que, desde que os romanos lhe atribuíram a organização superior que até hoje o caracteriza, o Direito sempre foi animado por um sopro de racionalismo, que se manifesta com tanta clareza no desenvolvimento paralelo à Filosofia. Esse desenvolvimento ajuda a entender por que as ideias de Kant exerceram, no território jurídico, influência superior à observada em outras searas.
                        Isso é tão verdadeiro em relação à doutrina do direito natural quanto no que concerne ao juspositivismo. Ambas as metavisões foram fecundadas e repensadas em profundidadea partir do kantismo, como tive oportunidade de observar nos capítulos anteriores.
                        Porém, após a prolongada meditação das propostas das escolas inspiradas em Kant, disseminou-se entre os juristas e os jusfilósofos um estado de profunda insatisfação tanto com o direito natural com conteúdo variável quanto com o positivismo formalista de inspiração kantiana, o pandectismo e a jurisprudência dos conceitos desenvolvidos na Alemanha.
                        O foco dessa insatisfação foram o formalismo e o conceptualismo exacerbados a que a aplicação da filosofia de Kant conduz no terreno jurídico. Não é possível negar que o apriorismo explícito das escolas jusnaturalistas e menos explícito, conquanto real, do juspositivismo contribuíram para a rejeição dessas doutrinas, nos centros de pensamento jurídico dos séculos XIX e XX. E que, para eliminar os excessos tanto do apriorismo explícito quanto do implícito, formaram-se naqueles centros, correntes que passaram a priorizar a relação do direito com a realidade social em vez de conceitos a priori.
                        A primeira dessas correntes, a que iniciou propriamente a reação ao apriorismo, foi a Escola Histórica do Direito. Embora tenha influenciado autores de outros países, como o norteamericano Roscoe Pound e o inglês John Austin, foi na Alemanha que a Escola Histórica lançou raízes mais profundas. Puchta, Savigny e Hugo, além de Lassalle e dos hegelianos que desenvolveram trabalhos no campo do Direito costumam ser considerados representantes ou pensadores influenciados pelo historicismo jurídico.
                        Bobbio considera que a maior contribuição da Escola Histórica para o Direito foi a ruptura com a ideia de uma natureza humana imutável, aceite em praticamente todas as épocas. Sem negar propriamente aquela natureza, a Escola Histórica mostrou o papel muito mais relevante dos aspectos particulares de cada cultura para o direito. Savigny, por exemplo, sustentou a inexistência de um direito único, que permanece igual em todos os lugares e todos os tempos e o fez com base em fortes argumentos, o que representou um golpe no jusnaturalismo de índole iluminista. 
                        Porém, a querela histórica entre o positivismo e o jusnaturalismo não foi o único território no qual as doutrinas da Escola Histórica repercutiram. Sua influência foi percebida com ainda maior intensidade na defesa do desenvolvimento científico do direito contra as pretensões do movimento em prol da codificação, que cresceu a ponto de se tornar dominante, em vários países, no século XIX.
                        A polêmica entre Savigny e Thibaut sobre a codificação constitui um dos capítulos mais interessantes do pensamento jurídico contemporâneo sobre esse ponto. Thibaut considerava a legislação uma técnica mais eficiente para engendrar um direito uno e acessível a todos do que o costume filtrado pelos tribunais. Savigny, por seu turno, sustentava que os códigos tendem a petrificar o direito e que a ciência é mais eficaz do que eles para reduzir a massa de normas jurídicas conflitantes à unidade. Não é sem interesse que, ao menos na Alemanha, por influência da Escola Histórica e, particularmente, de Savigny, a codificação só tenha vindo a ocorrer no século XX.
                        Como já foi indicado, a novidade visceral do historicismo jurídico foi a derivação do direito a partir da realidade social e não de conceitos a priori, o que significou umaruptura, ao mesmo tempo, com o jusnaturalismo e com o juspositivismo kantiano e pandectista. Por isso também, como ocorre com toda novidade visceral, quando as limitações e os equívocos da Escola Histórica a exemplo da derivação do di-reito a partir do Volksgeist (espírito do povo) evidenciaram-se, sua superação não se deu sem que o ideal básico dela fosse abraçado e reafirmado, de maneiras diversas, por outras correntes.
                        Surgiram assim as escolas sociológicas do direito, baseadas algumas em Comte, outras em Durkheim, ainda outras em estudos históricos diversificados. No Brasil, Pontes de Miranda inspirou-se em maior medida na obra de Comte, embora tenha desenvolvido sua obra com base em desenvolvimentos científicos posteriores a esse filósofo, como nos explica no seguinte trecho do seu Sistema de ciência positiva do Direito[68]:

Não escondemos, não diminuímos a nossa admiração pela obra de Auguste Comte. Conhecemo-la, e não há menosprezá-la quando se conhece tão sensata, tão sólida e tão fecunda construção sistemática. Sobretudo, a parte metodológica. Se quiséssemos classificar a própria filosofia que há nesta obra, não seria possível deixar de reputá-la positivista, porém neopositivista: apenas incorporamos o Direito ao conjunto das ciências, o que, na época em que escreveu, não podia fazê-lo o filósofo francês. Somos positivistas, como o foi Ernst Mach, porque o positivismo independe de Auguste Comte; e, se não nos aferramos a tudo que afirmou no tocante às ciências, é porque, posteriormente, o método positivo conseguiu o que não tinha conseguido ao tempo em que escreveu. Teorias, como a das geometrias não euclidianas e multidimensionais, em vez de contradizerem, confirmam o fundamento empírico da matemática, tão excelentemente exposto em Auguste Comte [...] Enormes foram os progredimentos da Física e da Química depois de Auguste Comte. E as aplicações hodiernas do cálculo das probabilidades à Física surpreenderam.

                        A fundamentação em Durkheim foi realizada, entre outros, por León Duguit, que nos revelou o modo como a obteve em esclarecedora passagem[69]:

Foi Durkheim, no seu belo livro Division du Travail social (1893), que pela primeira vez determinou a natureza íntima da solidariedade social e soube revelar-lhe as duas formas essenciais: a solidariedade por similitude e a solidariedade por divisão do trabalho; chama também à primeira solidariedade mecânica, e à segunda solidariedade orgânica. Durkheim esgotou o assunto; e, se podem criticar-se alguns pontos de pormenor no seu livro, as suas conclusões gerais desafiam toda espécie de contestação.

                        Para Durkheim e Duguit, quanto mais a sociedade se torna complexa[70],

os homens tornam-se cada vez mais diferentes uns dos outros, diferentes pelas suas aptidões, necessidades, aspirações; por conseguinte, as trocas de serviços tornam-se mais frequentes e mais complexas, e por isso os laços de solidariedade social se tornam mais fortes. Essa solidariedade faz surgir costumes sociais, que não são um modo de criação do direito, mas um meio de verificação. Não se deve ver [nos costumes], como a escola de Savigny e de Puchta, uma criação da consciência do povo [...] mas, no fim de contas, uma criação da consciência individual [...] O costume verifica-se se várias maneiras. Nas relações privadas, aparece sobretudo nas convenções das partes, principalmente nas cláusulas contratuais chamadas de estilo, e também nas decisões jurisprudenciais que, certamente, não criam direito, mas constituem o meio de verificação mais exato e mais preciso que existe para o costume.

                        Ihering, por outra senda, utilizou a erudição histórica que o caracteriza para superar a jurisprudência dos conceitos, da qual tinha sido um dos luminares, e explicar a sua adesão à Interessenjurisprudenz, baseada na ideia muito mais concreta de interesse jurídico. Essa mudança de orientação foi explicada e justificada, por Ihering, em A finalidade do direito[71].
                        Em A luta pelo direito, o mesmo autor explicou como o interesse dirige a formação do direito, por meio da luta e não mediante o processo lento e gradual que a Escola Histórica havia afirmado[72]

         O sentimento provocado pela ofensa ao direito do indivíduo acha-se impregnado dum motivo egoístico, mas aquele outro sentimento, provocado, pela violação de qualquer direito, tem sua origem exclusivamente na ascendência moral que a ideia do direito exerce sobre a mente humana [...] A verdade sempre é a verdade, mesmo que o sujeito do direito a encare e defenda apenas sob o ângulo estreito do seu interesse pessoal. É o ódio e a vingança que levam Shylock [personagem de O mercador de Veneza, de Shakespeare] a ingressar em juízo com o objetivo de cortar do corpo de Antônio a libra de carne que lhe pertence; mas, as palavras que o poeta lhe põe na boca [...] são a linguagem da convicção firme e inabalável de que o direito sempre há de ser direito; é a linguagem impetuosa e patética do homem consciente de que a causa que defende envolve não apenas sua pessoa, mas a própria lei. Segundo as palavras que Shakespeare o faz proferir, ‘a libra de carne que ora exijo/ Foi comprada a bom preço/ E por isso eu a quero/ Que vossa lei se cubra de vergonha/ se ma recusardes!/ Pois então a lei de Veneza nenhuma força terá.

                        Merece menção, ainda, a escola que se tornou conhecida pelo nome de realismo jurídico. Essa escolas e desenvolveu principalmente nos Estados Unidos, com Karl Llewellyn e Jerome Frank, e na Escandinávia, com Axel Hägetström, Vilhelm Lunstedt, Karl Olivecrona e Alf Ross. Bobbio separou o realismo do positivismo jurídico por uma característica primordial[73]:

O positivismo jurídico, definindo o direito como um conjunto de comandos emanados pelo soberano, introduz na definição o elemento da validade, considerando portanto como normas jurídicas todas as normas emanadas num determinado modo estabelecido pelo próprio ordenamento jurídico, prescindindo do fato de estas normas serem ou não efetivamente aplicadas [...] Por outro lado, para a escola [realista], "o direito é uma realidade social, uma realidade de fato, e sua função é ser aplicado: logo, uma norma que não seja aplicada, isto é, que não seja eficaz, não é, consequentemente, direito [...] Qual é o verdadeiro ordenamento jurídico? O do legislador, embora não aplicado pelos juízes, ou o dos juízes, embora não seja conforme às normas postas pelo legislador? Para os realistas, deve-se responder afirmativamente à segunda alternativa: é direito verdadeiro somente aquele que é aplicado pelos juízes.

                        O realismo não funda a sua concepção de direito no costume, como fazem a Escola Histórica e, às vezes, as sociológicas. Alf Ross, por exemplo, considera o costume a regra de vida dos povos primitivos. Para ele, “o direito se desenvolve a partir de costumes da tribo até ser gradualmente estabelecido por meio da prática dos tribunais e a legislação. O direito criado dessa [última] maneira é chamado de direito positivo”[74].
                        Por derivar o seu modo de conceber o direito não do costume, mas da aplicação efetiva do direito, o realismo circunscreve-se ao trabalho dos tribunais. É, por isso, um positivismo menos conceptual, não baseado na lei e sim na jurisprudência. Mesmo assim, é, em linhas gerais, um positivismo.
                        Cumpre mencionar, por fim, a doutrina conhecida como institucionalismo jurídico, que também se funda na realidade social, embora deposite a sua ênfase na

organização social objetiva que realiza em seu interior a mais elevada situação de direito, vale dizer, a que possui ao mesmo tempo a soberania do poder e a organização constitucional do poder, com estatuto e autonomia própria[75].

                        “A primeira ideia básica do direito”, para Hauriou, autor das palavras acima[76],
                       
é a de que o fundamento da lei moral não se acha nem na consciência do indivíduo, nem na sociedade [...] A lei moral e o direito, segundo Hauriou, não podem fundar-se no que é falível (como a consciência dos indivíduos) nem no que é instável (como as formas da sociedade). Ela há de ter um fundamento permanente e universal. Que fundamento é esse? Hauriou responde: a espécie humana.

                        Da definição de espécie humana decorrem as normas do direito natural, que não é um direito de sociedades, mas o da espécie[77]:

Hauriou observa que, se o direito natural não fosse mais do que uma coleção de preceitos de justiça, não seria nem sequer concebido, porque o conceito do direito natural não se distinguiria do próprio conceito de justiça. Logo, o direito natural, não sendo uma simples coleção de preceitos de justiça, há de ser um corpo de direito, compreendendo uma certa ordem social.  Que ordem será esta? Para achar a resposta desta pergunta, Hauriou recomenda que se considere a crença no direito natural como um fato histórico. Em que épocas essa crença existiu? A concepção de um direito natural apareceu, na filosofia grega, pouco antes da conquista romana; passou para a jurisprudência romana, onde reinou até o fim do segundo século de nossa era. Durante esses séculos, a civilização antiga apresentou um duplo caráter: por um lado, todas as nações do mundo grecorromano estavam em democracia; de outro lado, as relações do comércio jurídico tornaram possível o sincretismo de um direito comum das nações. Tal período, pois, foi uma época de democracia igualitária e de jus gentium. Essas circunstâncias, que caracterizama referida era histórica, acham-se novamente reunidas quando a concepção do direito natural, depois de haver adormecido durante a Idade Média, re-tornou a ser viva no décimo-sétimo e no décimo-oitavo século.

                        Dessas premissas Goffredo extrai que[78]

o direito natural já se acha, em parte, realizado. Dele existem dois esboços muito trabalhados: o direito clássico romano, que foi qualificado de razão escrita, e o direito comum contemporâneo. As instituições jurídicas que se encontrarem em ambos esses esboços terão as maiores probabilidades de conterem muito de direito natural.

                        Vemos que o institucionalismo de Hauriou conduz à reafirmação do direito natural pela via histórica e sociológica. Estranho projeto comum o que liga as escolas antiformalistas que, da negação do direito natural pelo historicismo, é a ele reconduzido pelas mãos do institucionalismo jurídico. Veremos, no próximo capítulo, que a análise de Hauriou é confirmada pela adesão cada vez mais frequente e bem fundamentada ao jusnaturalismo, no tempo atual.

JUSNATURALISMO CONCRETO

                        Não é possível negar que a Filosofia do Direito se tenha inclinado, nos últimos tempos, à negação da doutrina do direito natural. Às vezes à negação total dela, outras vezes à negação parcial ou à redução do território sobre o qual o direito natural exerceu a sua influência. Tampouco é possível rejeitar que parte considerável das críticas ao direito natural formuladas em tempos recentes seja procedente ou, ao menos, justificada.
                        No entanto, o recuo do direito natural imposto por essas tendências não se fez acompanhar do avanço proporcional do positivismo jurídico, a não ser durante cerca de um século. Assim, um espaço se abriu, entre os séculos XIX e XX, que veio a ser ocupado por teorias não caracterizadas como jusnaturalistas ou positivistas.  Em sua História da Filosofia do Direito, Guido Fassò denominou antiformalistas essas teorias.
                        Não convém conceber as teorias antiformalistas como uma terceira via ou como uma negação simultânea do jusnaturalismo e do positivismo jurídico. Se esses modos fundamentais de conceber o direito, em seu sentido mais amplo, constituem metateorias jurídicas, como temos defendido, as escolas antiformalistas aproximam-se necessariamente mais de uma delas. E, se não são casos puros de uma ou de outra metateoria, elas devem ser vistas como concepções mistas em que ora predomina uma, ora outra das metavisões jurídicas.
                        Era, porém, necessário que a força das concepções predominantes na História do Direito se impusesse, mais cedo ou mais tarde, às tentativas de concentração do pensamento na zona cinzenta entre elas, uma vez que, quanto mais tempo se despende em tal região, mais o sentimento avulta de perda dos referenciais primários do jurídico. Assim, do final da Segunda Guerra até hoje, observamos senão uma nova polarização entre o direito natural e o positivismo, ao menos uma retomada deles.
                        Tratarei, neste capítulo, da retomada do direito natural, realizada ou inspirada em autores como Robert Alexy. Ao menos em parte, ela foi consequência dos resultados a que a reflexão juspositivista conduziu. Kelsen, por exemplo, concluiu que, ao ser integralmente desenvolvida, a teoria positivista do direito, em vez de eliminar a noção de direito natural, a implica. É o que encontramos no Apêndice à Teoria geral do direito e do Estado publicada por aquele autor[79]:

            A norma fundamental foi aqui descrita como a pressuposição essencial de qualquer cognição jurídica positivista. Caso se deseje considerá-la como elemento de uma doutrina de Direito natural, a despeito de sua renúncia a qualquer elemento de justiça material, pouca objeção se pode fazer; na verdade, tão pouca objeção quanto se pode opor caso se queira chamar metafísicas as categorias da filosofia transcendental de Kant por não serem elas dados da experiência, mas condições da experiência [...] A teoria da norma fundamental pode ser considerada uma doutrina de Direito natural em conformidade com a lógica transcendental de Kant.

                        Sabemos que a teoria da norma fundamental não é só inspirada em Kant, mas também desenvolvida em termos kantianos. Kelsen não o dissimula absolutamente. A passagem acima o reafirma ao caracterizar a norma fundamental como pressuposição essencial de toda cognição jurídica de cunho positivista. Essa dívida com Kant tem, porém, as suas consequências, visto que o filósofo alemão denominou metafísico o conhecimento de conceitos e juízos a priori. Como neokantiano, Kelsen não nega, antes reconhece tal corolário, o que torna o seu positivismo um direito natural peculiar e baseado na lógica transcendental de Kant.
                        Vejamos os passos do raciocínio pelo qual Kelsen caracteriza a teoria da norma fundamental como uma espécie de direito natural. Como Bobbio explica[80], a norma fundamental ou

norma-base tem no sistema jurídico [...] uma função diferente daquela que tem a norma-base no sistema moral (ou no caso do direito natural). Não se trata da norma de cujo conteúdo todas as outras normas são deduzidas, mas da norma que cria a suprema fonte do direito, isto é, a que autoriza ou legitima o supremo poder existente num dado ordenamento a produzir normas jurídicas.
                       
                        No entanto, a admissão do caráter jusnaturalista da norma fundamental por Kelsen leva-nos muito além desse ponto. Chega a constituir uma autêntica confissão da consistência do direito natural enquanto conceito transcendental. Como a confissão se deve à racionalidade da teoria da norma fundamental, do ponto de vista da Lógica Transcendental, o mesmo critério pode ser usado para fundamentar o caráter lógico do ordenamento jurídico como um todo.
                        Se a norma fundamental é racional, do ponto de vista da sua correlação com as fontes do ordenamento, pelo mesmo motivo devemos concluir que as relações entre ela e os princípios e regras do ordenamento é racional. E se Kelsen reconhece que a teoria da norma fundamental é jus-naturalista, a que conclusão haveremos de chegar a respeito do ordenamento construído com base na mesma Lógica?
                        Isso conduz à conclusão de que o ordenamento jurídico pode ser visto como um sistema de direito natural, visto que as relações de seus elementos constituintes (princípios e regras) com a norma fundamental se estabelece de acordo com a Lógica Transcendental.
                        Em outras palavras, se a norma fundamental determina a configuração do sistema e é, ela própria, um conceito de direito natural, o sistema como um todo o é. Essa é a conclusão mais consequente que se pode extrair da admissão de Kelsen. Com ela, a discussão das relações entre o direito natural e o positivo se estabiliza de modo extraordinário, uma vez que o direito positivo passa a ser visto como um direito natural. Nesse sentido, a afirmação de Bobbio de que não há direito (em sentido próprio) a não ser positivo se resolve nesta outra: não há direito a não ser natural. 
                        Por outro lado, se o positivismo jurídico, como Kelsen e Bobbio o compreendem, “estuda o direito real sem se perguntar se além deste existe também um direito ideal (como aquele natural), sem examinar se o primeiro corresponde ou não ao segundo”[81], sua pretensão torna-se impossível na medida em que o direito real se torna objeto de disputas, ao mesmo tempo em que permanece sujeito a uma lógica bem determinada. Nesse caso, a solução de conflitos não pode ser alcançada com a mesma objetividade com que estabelecemos se o Monte Everest está localizado no Nepal. De sorte que a subjetividade que o pensamento jurídico comporta bastará para que ele inclua, sempre e ao mesmo tempo, juízos de fato e de valor.
                        Diante disso, não é melhor admitirmos que o direito natural continua vivo e capaz de cumprir seu papel de noção fundante do pensamento jurídico? O próprio argumento da irrelevância fundado no caráter abstrato do direito natural perde sentido, na medida em que reconhecemos que as decisões dos casos jurídicos concretos pautam-se inevita-velmente nos parâmetros abstratos da ratio scripta e não se constituiriam sem eles. Enfim, o direito concreto e prático pode colocar-se em consonância ou em dissonância com a ratio scripta, mas é sempre relativo a ela.
                        Quando um teórico tão proeminente quanto Ronald Dworkin sugere um retorno aos princípios de cada precedente judicial e de cada lei, no fundo ele propõe uma explicitação lógica mais perfeita das normas gerais a que as particulares se prendem. Os princípios são gêneros aos quais as normas particulares se reportam enquanto espécies, pois, como Bobbio explica[82],

de um conjunto de regras que disciplinam uma certa matéria, o jurista abstrai indutivamente uma norma geral não formulada pelo legislador, mas da qual as normas singulares expressamente estabelecidas são apenas aplicações particulares: tal norma geral é precisamente aquilo que chamamos de um princípio do ordenamento jurídico.

                       É verdade que, com essas palavras, Bobbio se refere aos princípios gerais do direito que o legislador determina devem ser utilizados para preencher as lacunas de normas particulares. Verdade é também que os usos dos princípios a que Bobbio e Dworkin se referem são diferentes. O primeiro pretende que eles sejam utilizados para suprir lacunas do ordenamento. O outro quer que eles sejam empregados nesse e também em outros casos. No entanto, para ambos, os princípios jurídicos são aproximadamente o mesmo. São normas gerais inferidas a partir de outras particulares.
                        Dworkin refere-se aos princípios como direitos anteriores à própria legislação, 
portanto como algo semelhante, embora não idêntico ao direito natural: "A teoria dominante [positivista e utilitarista] é falha porque rejeita a ideia de que os indivíduos podem ter direitos contra o Estado, anteriores aos direitos criados através da legislação"[1][83]. E provê um exemplo desses direitos anteriores, por meio da “derivação de direitos particulares do direito abstrato à consideração e ao respeito, considerados como fundamentais e axiomáticos”[2][84].
                        Embora Dworkin não seja um jusnaturalista, sua afirmação de direitos anteriores à legislação o aproxima, de certo modo, do marco do direito natural. Não que aqueles direitos sejam entendidos como universais e imutáveis. Dworkin não os vê dessa maneira. Mas tampouco é necessário que todo direito natural seja consideado universal e imutável.
                        Portanto, se as regras do ordenamento se prendem a princípios e não apenas umas às outras, é possível entender perfeitamente que é, por meio desses princípios, que as normas se articulam em sistema. Pode ocorrer de o sistema apresentar antinomias, colisões entre normas, mas nem por isso ele deixa de ser sistema, uma vez que as antinomias tendem a ser resolvidas a partir do conhecimento dos princípios jurídicos. E tão consistente afigura-se a concepção do ordenamento assentado em princípios que o caráter natural destes, como expressões da ratio do sistema, comunica-se às regras que se fundam neles.
                        Não foi por outro motivo que sistemas jurídicos inteiros, como o direito romano, o canônico e o ordenamento fundado pelo Código de Napoleão, chegaram a ser concebidos como direito natural. Para os romanos, por exemplo, suum cuique tribuere (dar a cada um o que é seu) e neminem laedere (a ninguém lesar) eram princípios gerais que serviam de base para uma multiplicidade de outras normas. Claro que muitos outros princípios eram reconhecidos ao lado desses, de maneira que o direito romano pode ser concebido como um complexo de princípios e regras. O mesmo pode ser afirmado dos direitos canônico e napoleônico.
                        Digno de realce é que, em suas respectivas épocas, esses sistemas foram reconhecidos como expressões do direito natural por constituírem aplicações da recta ratio. Como sistemas objetivos não são abstratos e sim concretos, devemos concluir que nem todo direito natural é abstrato. Há um direito natural concreto.
                        Wilson Batalha escreveu que[85]

o Direito natural com conteúdo concreto, nada mais é do que aspiração, tendência à reforma ou justificação conservadora do Direito existente, elevando-se à categoria de absoluto, universal, supraempírico o que é contingente, relativo, histórico, cultural, empírico.

                        Não me refiro a essa espécie de direito natural concreto.  Se o direito romano, o canônico e o napoleônico foram todos contingentes, a atribuição do caráter de direito natural a eles não os faz universais. Pelo contrário, implica apenas o reconhecimento de que certas realidades contingentes podem ser naturais, porque consistentes com princípios adotados pelas instituições sociais de uma época e reconhecidos espontaneamente pela maioria das pessoas.
                        No fundo, a polêmica acerca da sobrevivência do direito natural como categoria jurídica tem por contexto a multiplicação exponencial das leis, nas sociedades emergentes da Revolução Industrial. Essa multiplicação tornou indispensável a sistematização do direito para que o ordenamento jurídico não se convertesse numa barafunda impenetrável e ininteligível.
                        A alguns estudiosos do fenômeno da sistematização pareceu que ela se deve a um procedimento formal, já que umas normas, consideradas superiores, são usadas como instrumento de controle de outras, tidas como inferiores. Sob esse ponto de vista, as normas formam um sistema porque, quando colidem, as que foram criadas por um poder subalterno são afastadas pelas que se originaram de um poder superior, independentemente do conteúdo delas. Assim, por exemplo, o conflito entre uma norma constitucional e outra ordinária é resolvido a favor da constitucional, porque o poder constituinte é tido como superior ao legislativo. Por basear-se em razões formais e não relacionadas ao conteúdo das normas, a valorização do critério hierárquico de sistematização pareceu constituir um forte argumento em prol do positivismo jurídico.
                        Porém, a consciência do papel dos princípios acabou por arrastar os juristas a uma conclusão diversa da que é sugerida pelo critério hierárquico, visto que os princípios, diferentemente das regras, quase nunca são criados por um sujeito determinado, como a Assembleia Constituinte ou o Legislativo, mas decorrem ao mesmo tempo do trabalho desses corpos e de outros agentes. Por serem produzidos de modo descentralizado por múltiplos sujeitos, sob influências mutáveis, os princípios são expressões privilegiadas da ratio do ordenamento, portanto elementos constituintes do conteúdo dele.
                        Assim, se por um lado o caráter sistemático do ordenamento advém do modo como as normas são criadas, por outro lado ele é assegurado por princípios inerentes ao sistema. E se o modo de criação das normas permite conceber o sistema sem recorrer à ideia de direito natural, por outro lado, a imanência dos princípios exige que ele seja pensado em termos jusnaturalistas. Mais do que isso, a consistência e a solidariedade entre as partes do sistema sugerem que ele todo e não apenas seu núcleo abstrato constitui expressão do direito natural.
                        Embora emergente dos debates históricos, essa concepção dilatada do direito natural não corresponde a qualquer das versões do direito natural que triunfaram na História, as quais se distinguem pelas características da universalidade e da imutabilidade. O direito natural aqui defendido não é nem universal, nem imutável. Tampouco é a forma com conteúdo variável de Stammler e del Vecchio, a qual é no fundo invariável. Trata-se de um direito mutável e particular, por isso concreto, mas também amplo, por incluir princípios e regras. Seja-me permitido denominar integral essa modalidade de direito natural, uma vez que sua forma normal é a do sistema de princípios e regras mutáveis, porquanto sujeitos às disputas das causas e às incertezas da interpretação. 


[1]COULANGES, Fustel de. A cidade antiga – estudos sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. São Paulo: Edipro, 1998. p. 96.
[2] Idem.
[3] Idem. p. 97.
[4] Idem. p. 196.
[5] Idem. p. 215.
[6] Idem. p. 266.
[7]FASSÒ, Guido. História da Filosofia do Direito. Madri: Pirâmide, 1978. Vol. 1. p. 96.
[8]CÍCERO, Marco Túlio. De legibus. I, 16-17.
[9] Idem. p. II, 4, 10.
[10]CÍCERO, Marco Túlio. De republica. III, 22, 33.
[11] Citado em POUND, Roscoe. Philosophy of law. Michigan: Yale University Press, 1982. p. 5.
[12]PLATÃO.A república. In Great books of the western world. 2ª ed., 4ª impressão, Chicago: Encyclopaedia Britannica. Vol. 6, p. 310-324.
[13]ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Book I, 9. In Great books of the western world. 2ª ed., 4ª impressão, Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 8, p. 345.
[14]AGAMBEN, Giorgio. O sacramento da linguagem – Arqueologia do juramento. Belo Horizonte: UFMG, 2011.
[15] LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na História – lições introdutórias. 2ª ed., São Paulo: Max Limonad, 2002. p. 39-40.
[16] DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. 3ª tiragem, São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 19.
[17]  Idem. p. 22.
[18] ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 13ª ed., 6ª tiragem. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 69.
[19]POUND, Roscoe. Philosophy of law. Michigan: Yale University Press, 1982. p. 4.
[20]Ec 1:2-7.
[21]Ec 3: 14-15.
[22]Ec 2:12.
[23]Ec 7:29.
[24]HIPONA, Agostinho de. O livre-arbítrio. I, 6. São Paulo: Paulus, 1995. p. 39.
[25]Idem. p. 41
[26]LIMA, Alceu Amoroso de. Introdução ao direito moderno. 3ª ed., Rio de Janeiro: Agir, 1978. p. 81.
[27]AQUINO, Tomás de. Suma teológica. I, XCV, 2. In Great books of the western world. 2ª ed., 4ª impressão, Chicago: Encyclopaedia Britannica. Vol. 18, p. 227-228.
[28] Idem. I, XCV, 4. p. 229.
[29]POUND, Roscoe. Justiça conforme a lei. 2ª ed., São Paulo: Ibrasa, 1976. p. 5.
[30]Alcorão , II, 35-37.
[31] Idem. III, 59.
[32]Apud LAGARDE, G. de. Rechercehs sur l’esprit politique de la Réforme. p. 151-157.
[33]Apud AQUINO, Tomás de. Suma teológica. Parte II, Cap. II, Quest. 85, Art. 2.
[34] LUTERO, Martinho. Da autoridade secular, até que ponto se lhe deve obediência. In Martinho Lutero – obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal/Concórdia, 1996. Vol. 6. p. 113.
[35] Idem.
[36] Boa parte da discussão sobre o desprezo de Lutero pela Lógica é pouco justificada. O que Lutero condena, repetidamente, é a confiança na razão decaída e, portanto, no poder da Lógica em que ela se estriba. Porém, a importância da Lógica nunca é negada por ele, como verificamos no célebre debate com outros reformadores sobre a eucaristia: "Eu não sabia que Ecolampádio [reformador suíço, companheiro de Zuínglio] é um lógico ou dialético tão miseravelmente pobre, a ponto de trocar a substância pela qualidade e de fazer conclusões do acidente para a substância. No caso de Zuínglio, isso não admira, pois ele é um doutor autodidata; esses costumam dar nisso. Em verdade, quem quer debater e não conhece os elementos rudimentares da lógica, que pode conseguir ele de bom? Ecolampádio me irrita tanto com isso que doravante não espero nenhuma prova de inteligência dele. Pois, ainda que não seja necessário que conheça as sutilezas e sofismas inúteis dos sofistas [os escolásticos tardios, na linguagem peculiar de Lutero], deveria conhecer pelo menos os rudimentos, isso é, a dialética simples, como as regas da dedução, as formas dos silogismos, as espécies de argumentação, etc." (LUTERO, Martinho. Da ceia de Cristo – Confissão. In Obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal/Concórdia, 1993. Vol. 4, p. 303)
[37] Idem. p. 113-114.
[38] Lutero refere-se a Carlos, o Negro, duque da Borgonha de 1467 a 1477. A história que conta, portanto, realmente ocorreu, embora nem todos os pormenores narrativos precisem ser aceitos.
[39]TELLES JÚNIOR, Goffredo. A criação do direito. São Paulo, 1954. Vol. I, p. 237.
[40] Idem.
[41]DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. 2ª ed., Coimbra: Arménio Amado, 1951. p. 107-108.
[42] Idem. p. 109.
[43]TELLES JÚNIOR, Goffredo. Ob. cit. Vol. I, p. 208.
[44] Idem. p. 219.
[45]STAMMLER, Rudolph. Economia y derecho. Madri: Editorial Reus, 1929. p. 6-7.
[46] Idem. p. 8.
[47] DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. 2ª ed., Coimbra: Arménio Amado, 1951. p. 195-196.
[48] Idem. p. 234.
[49] TELLES JÚNIOR, Goffredo. A criação do direito. São Paulo, 1954. Vol. I, p. 202.
[50] Idem. p. 206.
[51] Idem. p. 203.
[52] Idem. p. 204.
[53] Idem.
[54] Idem. p. 208.
[55]REALE, Miguel. Filosofia do direito. 14ª ed., São Paulo: Saraiva, 1991. p. 170-171.
[56]REALE, Miguel. Direito Natural/ direito positivo. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 9
[57]REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia. 2ª ed., São Paulo: Paulus, 1990. Vol. 2, p. 898.
[58] BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. São Paulo: Ícone, 1999. p. 15.
[59] ARISTÓTELES. Nicomachean Ethics. Book V, Chapter 7. 2ª ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 8, p. 382.
[60] BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 25.
[61] CÍCERO, Marco Túlio. De legibus. I, 16-17.
[62] CORREIA, Alexandre e SCIASCIA, Gaetano. Manual de Direito Romano. 4ª ed., São Paulo: Saraiva, 1961. Vol. I, p. 23.
[63]BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 26.
[64]Idem. p. 177.
[65]TELLES JÚNIOR, Goffredo. A criação do direito. São Paulo, 1954. p. 214, 216.
[66] Idem. p. 230.
[67]BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 120.
[68]MIRANDA, Pontes de. Sistema de ciência positiva do direito. 2ª ed., Campinas: Bookseller, 2005. Vol. 2. p. 19-20.
[69] DUGUIT, León. Fundamentos do direito. Campinas: LZN, 2003. p. 17.
[70] Idem. p. 55-56.
[71]IHERING, Rudolf von. A finalidade do direito. Campinas: Bookseller, 2002. 2 tomos.
[72] IHERING, Rudolf von. A luta pelo direito. 4ª ed., Rio de Janeiro: Rio,1983. p. 73,77-78.
[73]BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico – lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 142-144.
[74]ROSS, Alf. Direito e justiça. São Paulo: Edipro, 2000. p. 124-125.
[75]HAURIOU, Maurice. Princípios de Direito Público. 2ª ed., Paris, 1916. p. 111.
[76]TELLES JÚNIOR, Goffredo. A criação do direito. São Paulo, 1954. Vol. II, p. 443.
[77] Idem. p. 454-455.
[78] Idem. p. 456.
[79] KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 3ª ed., 2ª tiragem, São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 625.
[80] BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico – lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 201.
[81]Idem. p. 136.
[82] Idem. p. 220.
[83]DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. XIII.
[84] Idem. p. XX.
[85] BATALHA, Wilson de Souza Campos. Nova Introdução ao Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 234.