quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Filosofia e Direito (2): Deus e a Justiça

Uma das obras de Filosofia do Direito que causaram maior impacto nos últimos anos é Justiça – o que é fazer a coisa certa, na qual Michael Sandel, professor em Harvard, combate a teoria política liberal. Na página 296 da 13ª edição em português, lemos:
“A teoria política liberal nasceu de uma tentativa de poupar a política e a lei de se emaranharem em controvérsias morais e religiosas. As filosofias de Kant e Rawls são a expressão mais completa e clara dessa pretensão.
“Essa pretensão, no entanto, não pode ser bem-sucedida. Muitas das questões mais ardentemente contestadas de justiça e direitos não podem ser discutidas sem que sejam consideradas controversas questões morais e religiosas” (SANDEL, Michael J. Justiça – o que é fazer a coisa certa. 13ª ed., Civilização Brasileira, p. 296).
Sandel afirma que os Estados Unidos começaram a admitir, mais claramente, essa nova orientação política, a partir dos governos de Barack Obama, que declarou, num famoso discurso sobre o papel da religião na política, que “os secularistas estão errados quando pedem aos crentes que deixem sua religião para trás antes de entrar na vida pública. Frederick Douglass, Abraham Lincoln, William Jennings Bryan, Dorothy Day, Martin Luther King – na verdade, a maioria dos grandes reformistas da história dos Estados Unidos – não somente eram movidos pela fé como frequentemente usavam a linguagem da religião para defender suas causas. Assim, dizer que homens e mulheres não deveriam levar sua moral pessoal para os debates sobre políticas públicas é um absurdo. Nossa lei é, por definição, uma codificação da moralidade, grande parte dela fundamentada na tradição judaico-cristã” (OBAMA, Barack. “Chamamento à renovação”. Citado em SANDEL, Michael. Ob. cit. p. 307).
Em 1993, publiquei Filosofia do direito positivo, sob essa exata perspectiva. Por tratar de Filosofia, o livro procurava alicerçar na Metafísica a posição favorável à reintrodução da temática moral e religiosa no debate acadêmico. E a proposta que formulava não se restringia ao reconhecimento da importância dos temas morais e religiosos para a Filosofia do Direito, mas também para o direito positivo.  
No entanto, um problema tornava difícil a aceitação da proposta naquela época: as críticas que tinham sido dirigidas à Metafísica, ao longo dos últimos séculos. Por isso, no capítulo 1 do livro, procurei apresentar um balanço das maneiras pelas quais ainda é possível justificar aquela disciplina, após a revolução científica. Identifiquei dois métodos pelos quais a Metafísica pode ser justificada sem apequenar o papel da Teodiceia, que é a parte dela que cuida da questão de Deus. Pareceu-me que ou afirmamos uma Metafísica sem Deus, ou, se pretendemos construir uma que preserve os valores religiosos, devemos voltar-nos às propostas filosóficas de Kant e Kierkegaard.
“O filósofo alemão [Kant] afirmou que ‘o ser supremo, segundo aquilo que é em si mesmo, é para nós inteiramente impenetrável e até, de modo determinado, impensável; somos assim impedidos [...] de determinar a natureza divina, mediante propriedades, que, no entanto, são sempre tiradas da natureza humana’” (idem. pp. 43-44).
Vê-se que, para Kant, o mundo continua a ser pensado como efeito da ação divina. O problema é que Deus não pode ser conhecido em si mesmo: “A natureza da causa suprema permanece-me desconhecida; comparo somente o seu efeito, que me é conhecido (a ordem do mundo), e a sua conformidade à razão com os efeitos também de mim conhecidos da razão humana e dou, por isso, à causa suprema o nome de razão, sem lhe atribuir como propriedade o que precisamente entendo no homem por esta expressão” (KANT, Emmanuel. Prolegômenos a toda metafísica futura. Lisboa: Edições 70. p. 155).
A justificação da Metafísica de Kant permanece uma das mais hábeis construídas, após o desenvolvimento da ciência. Em nada se confunde com as justificações do pensamento religioso com base em interpretações literais de crenças que atribuem características humanas a Deus. Daí Kant ter afirmado que Deus é incompreensível à razão e que a tradição religiosa errou ao concebê-lo como um ser dotado de atributos humanos. Claramente, ao atualizar o pensamento metafísico, Kant propôs que o erro antropomórfico fosse corrigido. Porém, por ter rejeitado a verdade das tradições antropomórficas e ter mantido Deus afastado dos assuntos humanos, Kant foi considerado um pensador deísta. 
A segunda maneira de justificar a Metafísica foi proposta pelo filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard, para quem as descobertas da ciência confirmam que Deus pertence ao campo do que chamamos incognoscível. “Nenhuma lógica, nenhuma demonstração real, disse Kierkegaard, dão apoio à fé” (MORAIS, Luís Fernando Lobão. Ob. cit. p. 45). Mas, exatamente por Deus não ser conforme a razão, a revelação sobre ele pode ser aceita, com base na fé, nos termos em que nos foi entregue pela tradição. Se nenhuma doutrina a respeito de Deus é superior a outra, não há por que modificarmos a que a tradição nos transmitiu. Devemos, ao contrário, aceitar ou rejeitar, por fé, tal doutrina. Se a aceitarmos, como fez Kierkegaard, não estaremos mais plantados no território deísta e sim no da filosofia teísta. 
Este o balanço que apresentei dos modos como ainda é possível justificar o papel da Metafísica na Filosofia. Após tê-lo exposto, concluí que “Kant pretendeu um meio-termo entre o ateísmo e o antropomorfismo, julgando fugir assim ao dogmatismo, mas temo que o meio-termo desejável não seja esse, e sim aquele entre o ateísmo e o próprio dogmatismo”. Declarei ainda que esse “meio-termo é o antropomorfismo” (idem. p. 45). A posição assim construída corresponde à que foi “advogada, com certas variações, por Kierkegaard e seus seguidores”, que resgataram o teísmo por inteiro, exceto na sua racionalidade antropomórfica”, colocando-o “num dos únicos lugares absolutamente seguros e inatingíveis pelas farpas da ciência: a irracionalidade” (idem. p. 48). 
O trecho citado esclarece que a fundamentação desejável da Metafísica não coincide com o dogmatismo, já que se afasta dele tanto quanto do ateísmo. Isso faz claro que a fundamentação que eu buscava, em 1993, não era dogmática. Por outro lado, o meio-termo entre os extremos do ateísmo e do dogmatismo foi identificado com o teísmo. E, para definir que espécie de filosofia teísta propunha, o texto admite que é impossível referir-se a Deus sem utilizar fórmulas antropomórficas. Assim, se me mantinha distante do ateísmo e do dogmatismo, eu rejeitava também o deísmo de Kant, por ser antiantropomórfico.
Kierkegaard reconhecia os problemas do antropomorfismo das religiões ditas superiores, mas o fazia de modo diferente de Kant, que o repelia em definitivo, ao verificar que não satisfaz as exigências da razão. Kierkegaard percebia a inconformidade do antropomorfismo à razão, mas o aceitava, por meio da fé, como existencialmente imprescindível para o homem. 
O antropomorfismo das representações religiosas é, assim, o ponto no qual se travam as principais disputas sobre o papel de uma Metafísica que ainda reconhece importância à ideia de Deus. A rejeição categórica do antropomorfismo caracteriza a posição de Kant. Sua aceitação pela fé define a doutrina de Kierkegaard. Porém, a natureza racional do homem exige que a última posição seja complementada de alguma maneira. A simples invocação da fé para fundamentar a Metafísica na irracionalidade não é satisfatória para um ser racional. As coisas ficam ainda piores quando consideramos que a Metafísica é parte da Filosofia, na qual vigora o primado da razão e não o da fé. Falta, portanto, algo (um complemento) para que a fundamentação de Kierkegaard possa ser aceita. O complemento que propus, em 1993, foi a demonstração de que as doutrinas antropomórficas mais importantes não foram refutadas pela ciência.
É intuitivo que essa conclusão não se estende a todas as doutrinas antropomórficas, sem distinção. Há mitos que atribuem traços humanos a Deus sem qualquer critério racional, enquanto outras tradições religiosas se assemelham mais à razão. É o caso particular da doutrina cristã da criação do Universo por Deus. A primeira parte de Filosofia do direito positivo procura mostrar que essa doutrina, cujo colorido antropomórfico é inegável, não foi refutada pela ciência.
O método pelo qual a demonstração é conduzida é a crítica da causalidade. No “grande complexo que Miguel Reale chamou ontognoseológico, tanto a natureza objetiva quanto a razão humana que a estuda e nela se inclui se organizam segundo o princípio geral da causalidade. Tudo o que é natural é causal; apenas o sobrenatural pode não ser causal”. Porém, “a física quântica, a teoria da relatividade e as descobertas da Filosofia da Ciência no século XX desenvolveram uma percuciente crítica do princípio da causalidade, não o refutando, nem exatamente o atacando, mas demonstrando o seu verdadeiro enquadramento na natureza” (idem. p. 51).
O exame crítico da massa de relações causais do Universo permite-nos chegar a conclusões prováveis sobre a intervenção ou não de Deus nela, se as considerarmos à luz dos avanços científicos recentes. Por um lado, esse exame demonstra que “a genial intuição de Charles Darwin, unida a um colossal trabalho de compilação de provas em A origem das espécies” não pode ser negada, nem “o gigantesco e habilidoso labor de seus sucessores propondo teorias, coligindo provas, compulsando toda a literatura, pesquisando exaustivamente em laboratório etc.” (idem. p. 47). Por outro lado, ele permite concluir que a evolução não se deu inteiramente às cegas, mas que a instância superior do real dirigiu o processo evolutivo (idem. p. 23). 
Esse entendimento da evolução foi primeiramente proposto, de modo desenvolvido, pelo padre e paleontólogo francês Pierre Teilhard de Chardin. Não se confunde com o design inteligente, pois se baseia na noção de tenteio, que é o acaso dirigido. Na Evolução Teísta, a ação de Deus incide sobre o acaso, modificando-o sem o eliminar. E, como Deus não elimina o acaso, a evolução se mantém compatível com as idas e vindas, os ziguezagues, os avanços e retrocessos, enfim com o desenho não linear de formação das espécies que a ciência descreve. O design, por sua vez, baseia-se num plano racional contrário ao acaso, que se choca com ele e limita o seu papel. 
Essas as linhas gerais da crítica da causalidade desenvolvida em Filosofia do direito positivo. Se tivesse de abranger no menor número de palavras o resultado final dela, seria tentado a afirmar que o papel de Deus na evolução consiste em reforçar as tendências naturais do processo, garantindo o surgimento e a harmonia entre os grandes grupos de seres vivos. Isso se aplica tanto às tendências fortuitas quanto às que decorrem das leis naturais. 
Assim, a crítica dos fenômenos pode ser utilizada para evitar que a Metafísica repouse na pura e simples irracionalidade, como sugeriu Kierkegaard. A crítica tem o potencial de fornecer, e de fato fornece, um complemento à justificação da Metafísica por aquele filósofo, com base na demonstração de que as representações religiosas mais importantes do processo natural, como a criação cristã, não foram refutadas pela ciência.
É claro que eu poderia ter ingressado na discussão dos aspectos morais e religiosos das questões jurídicas, sem desenvolver, como fiz, a crítica da causalidade, nos primeiros capítulos do livro. Porém, pareceu-me que, se fosse assim elaborada, a discussão pareceria privada de fundamento claro. Por isso, procurei propor primeiro aquele fundamento, pela justificação da Metafísica com base na crítica da causalidade.
Tenho consciência de não haver buscado, em meu trabalho, a realização de projeto distinto do que Michael Sandel sugeriu em Justiça. Há ressaltada coincidência de pontos de vista em Filosofia do direito positivo e na obra de Sandel. O que diferencia o meu tratamento da imbricação do Direito com a moral e a religião do que Sandel dispensou ao tema é o fato de eu ter enfatizado a justificação da Metafísica, enquanto ele pôs em destaque a oposição da proposta à teoria liberal. No fundo, porém, tanto quanto eu perceba, as duas obras desenvolvem um só projeto básico.
Por fim, não é menos oportuno ressaltar que a reflexão filosófica que eu elaborava, em 1993, não tinha qualquer propósito de reafirmar a teoria política liberal. Pelo contrário, afastava-se dela. A combinação da doutrina jurídica com temas morais e religiosos é, por si, uma agenda antiliberal. Perde, portanto, tempo e o fio da meada quem tenta encontrar em minhas obras o viés liberal. Perde-os ao menos se a intuição original da reflexão que empreendo for a reintrodução da temática moral e religiosa no Direito, pois, como Bergson bem lembrou, “à medida que procuramos nos instalar no pensamento do filósofo ao invés de dar-lhe a volta, vemos sua doutrina [...] restituir com uma aproximação crescente a simplicidade de sua intuição original” (BERGSON, Henri. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 125). 

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Filosofia e Direito (3): O papagaio Alex e a Liberdade

Bergson considerava o ser vivo consciente. Pensava, porém, que ele se torna inconsciente “ali onde a consciência adormece” e que, “mesmo nas regiões nas quais a consciência dormita, no vegetal, por exemplo, há evolução regrada, progresso definido, envelhecimento, enfim, todos os signos exteriores da duração que caracteriza a consciência” (BERGSON, Henri. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 105).
Não hauri essa lição de Goffredo Telles Júnior, que foi meu primeiro mestre de Filosofia, tanto quanto a retive de Bergson. Não que Goffredo a negasse, mas ele nunca generalizou a intuição da presença da consciência nos seres vivos, como fez o filósofo francês.
Na verdade, tanto um como outro desenvolveram a Filosofia por um método único e raro. Bergson e Goffredo foram filósofos empíricos, pensadores que realizaram incursões significativas em segmentos das ciências naturais do seu tempo. Penso que, quando um filósofo escolhe o método empírico de trabalho, ele o faz com finalidades heurísticas. Quer descobrir algo novo e significativo, senão em absoluto, ao menos para a maioria dos filósofos do seu tempo. Quer, enfim, com tal descoberta, banhar uma antiga questão filosófica em luz nova.
A questão é, portanto, indagar o que cada filósofo empírico, no sentido de alguém versado tanto em Filosofia quanto em ciência natural, efetivamente descobriu na sua trajetória reflexiva. No caso de Bergson, a descoberta está encerrada em Matéria e memória, para muitos a sua obra central. Foi a descoberta do espírito como realidade distinta da matéria. Pelo estudo do cérebro e, em particular, da disfunção conhecida como afasia, Bergson entendeu ter descoberto e provado a existência do espírito.
Embora bergsoniano a ponto de ter aplaudido com entusiasmo a descoberta do autor de Matéria e memória, Goffredo avançou desse resultado para outro, que apresentou em Direito quântico e na Ética:
“É óbvio que a ordem reina no Universo.
Ora, a ordem, no Universo material, há de ser, também, uma disposição conveniente de seres. E essa conveniência (como sucede na ordem ética) há de ser estabelecida em razão de fins prefixados. De fato, se tais fins não existissem, nenhuma referência haveria para estabelecer a conveniência dos meios” (TELLES JÚNIOR, Goffredo. Ética – do mundo da célula ao mundo da cultura. Rio de Janeiro: Forense, 1988. pp. 256-257).
O resultado novo a que Goffredo chegou, na Ética e em Direito quântico, foi o de que a ordem geral do Universo impõe-se por estruturas e comportamentos básicos bem definidos, que se repetem nos mais diferentes níveis da realidade. Se essas estruturas e comportamentos não existissem, os subsistemas do Universo não se comunicariam, seriam estanques, e o cosmos seria um caos.
Em Liberdade e direito, escrevi:
“As estruturas estereotipadas [pelas quais os subsistemas cósmicos se comunicam] são, por exemplo, as disposições de seres ao redor de outros seres, que se verificam tanto no nível infra-atômico, com [nuvens de] elétrons movimentando-se em torno do núcleo dos átomos, quanto no nível sidéreo, com os planetas gravitando ao redor das estrelas e as galáxias ao redor de outras galáxias. São também estereotipadas as ordenações de elementos químicos em função do carbono e a ocorrência do mesmo maquinário geral nas células dos mais diferentes seres vivos.
[...] A própria liberdade é vista por Goffredo sob este prisma. Interessante é que, embora diga que a liberdade se manifesta em níveis tão diferentes quanto o infra-atômico e o humano, nosso pensador se refere a uma única e só liberdade” (MORAIS, Luís Fernando Lobão. Liberdade e direito – uma reflexão a partir da obra de Goffredo Telles Júnior. Campinas: Copola, 2000. pp. 101-102)
Contudo, ao debruçar-me sobre a obra de Goffredo, no livro citado, concluí que ele afirmou que a finalidade está presente em tudo, porém a consciência e a liberdade não:
“Goffredo chega, pela utilização do método empírico, a uma conclusão nova, exposta no Direito quântico e na Ética e afirmada com ainda maior ênfase n’A folha dobrada. O próprio Goffredo escreve:
‘Vejo a mesma lei de finalidade regendo, indiscriminadamente, o movimento dos elétrons nos átomos, e o curso dos sois nos espaços siderais; as reações de afinidade e de repulsa na matéria bruta e o curso da seiva no vegetal; as contrações da ameba numa primeira manifestação da vida e a inspiração do poeta como canto do próprio espírito. É sempre a mesma lei decretando a ordem em todos os domínios. Por que não havemos de acreditar que essa é a lei da ordem universal?’” (idem. p. 126).
Porém, “embora reconheça a universalidade do princípio da finalidade, Goffredo não chega a afirmar a universalidade da liberdade, nem no Direito quântico, nem na Ética, nem n’A folha dobrada. Pelo contrário, a liberdade é restrita pelo nosso escritor a determinados níveis ou movimentos específicos na natureza, assim como o movimento dos corpúsculos quânticos e os processos fisiológicos no interior da célula viva. Somente estes movimentos seriam livres” (idem. p. 127).
Assim, Liberdade e direito procura mostrar que a generalização a que a obra de Goffredo convida, mas que ele próprio não realizou, pode ser feita com segurança. A liberdade pode, realmente, ser pensada como uma faculdade de autodeterminação teleológica, que se desenvolve onde haja teleologia. “A liberdade sempre foi considerada uma exceção no concerto cósmico [...] Porém, ela deve ser considerada a regra. Todos os seres moventes são livres, porque todos se comportam teleologicamente. Não há movimento, senão teleológico. Do mesmo modo, não há movimento, a não ser livre” (idem. p. 237).
Que quis sustentar com essa afirmativa? Como defender minha tese contra o argumento de que a pedra se move, ao ser arremessada, e nem por isso é livre? Quis afirmar, exatamente, a distinção entre mover-se e ser movido. Não afirmei e jamais pensei que o que é movido, como a pedra, é livre, mas que tudo o que move-se a si mesmo é livre. E, como adotei o método reflexivo de Goffredo e Bergson, esforcei-me para citar dados científicos que demonstrassem, por meio de exemplos, que o que se move o faz teleologicamente, portanto com consciência dos fins a alcançar. Reuni, assim, a conclusão de Goffredo sobre a finalidade à de Bergson sobre a consciência, a fim de extrair a minha própria noção de liberdade.
Não retornarei, aqui, às evidências coligidas naquela obra. Citarei somente pesquisas posteriores a ela que confirmaram, em parte, o alcance da tese que vê a liberdade espargir-se por toda a natureza. O cientista Daniel Chamovitz publicou, recentemente, um artigo sobre pesquisas que mostram que os vegetais são capazes de cheirar e ter outras sensações típicas do que chamamos conhecimento. De acordo com ele, “se colocarmos uma fruta madura e outra verde no mesmo saco, a verde amadurecerá mais rápido [do que o faria fora do saco]. Isso se dá porque a madura libera um feromônio responsável pelo amadurecimento. A fruta verde cheira-o e então amadurece. Esse fenômeno acontece tanto nas nossas cozinhas quanto na natureza. Outro exemplo de planta que cheira é o dos parasitas que não realizam fotossíntese e dependem de outras plantas. Esses parasitas encontram seus hospedeiros pelo cheiro” (COOK, Gareth. In Scientific American. June, 5th, 2012).
A consciência dos animais também tem sido demonstrada. As pesquisas de Irene Pepperberg com seu papagaio Alex tornaram-se célebres. Alex aprendeu não só a repetir palavras, como os papagaios em geral fazem, mas a usá-las criativamente, ou seja, a construir frases com mais de 100 palavras em inglês. Os resultados da pesquisa de Pepperberg, que é professora de cognição animal em Harvard, estão condensados no livro Alex & me (New York: Harper, 2009), que é dedicado a ninguém menos que o próprio Alex.
Em 2013, o neurocientista americano Christoph Koch também publicou um artigo que expande a nossa compreensão da consciência. Koch relata uma experiência que teve ao conviver com o Dalai Lama e as pesquisas que realizou sobre algo que aquela autoridade religiosa lhe disse:
“Ao passar uma semana com Sua Santidade, o Dalai Lama, este ano, notei como ele falava frequentemente da necessidade de reduzirmos o sofrimento de todos os seres vivos e não apenas de todas as pessoas. Minhas leituras de filosofia levaram-me ao panpsiquismo, visão segundo a qual a mente (psyche) está presente em tudo (pan). O panpsiquismo é uma das mais antigas doutrinas filosóficas. Foi lançado pelos gregos, na época clássica, em particular por Tales de Mileto e Platão. O filósofo Baruc Spinoza e o gênio matemático e universal Gottfried Wilhelm Leibniz, que lançou as bases do Iluminismo, defenderam o panpsiquismo tanto quanto Arthur Schopenhauer, o pai da Psicologia Americana William James e o paleontólogo jesuíta Teilhard de Chardin” (KOCH, Christoph.“Is conscience universal?” Scientific American. 19/12/2013).
Koch cita os principais argumentos que os adversários do panpsiquismo costumam levantar contra ele: “Um é o problema dos agregados. O filósofo John Searle, da Universidade da Califórnia, Berkeley, o expressou da seguinte maneira recentemente: ‘A consciência não se pode espalhar no universo como uma fina camada de geleia. Tem de existir um ponto em que a minha consciência termina e a sua começa’. De fato, se a consciência está em toda parte, por que ela não anima o iPhone, a Internet ou os Estados Unidos da América? Além disso, o panpsiquismo não explica por que um cérebro, que é consciente, quando posto no liquidificador e reduzido a pasta, deixa de o ser” (idem).
Koch refuta as objeções com relativa facilidade, por meio de pesquisas de outro neurocientista, Giulio Tononi, da Universidade Wisconsin-Madison, o qual mostrou que “num cérebro em que alguns neurônios estão em atividade e outros inertes, é possível computar com precisão a extensão da rede formada por eles. Desse cálculo, a teoria [de Tononi] deriva um número, &PHgr; (pronunciado fi) [...]  Pense em fi como a sinergia do sistema. Quanto mais integrado um sistema, mais sinergia tem e mais consciente é” (idem).
Talvez, a abrangência da consciência e da liberdade seja menor do que sugeri em Liberdade e direito. É o que Koch propõe, com base em Tononi. Porém, o fundamental é que ele mostrou que ela é muito maior do que, por séculos, a ciência e a Filosofia nos levaram a admitir. Por ciência e Filosofia, entenda-se aqui o mainstream dessas disciplinas.
Se ancorarmos a liberdade no conceito de consciência baseado em fi, teremos um grau de extensão muito grande para os dois fenômenos, porém menor do que sugeri em meu livro. Por outro lado, se fizermos a liberdade depender mais da finalidade do que da consciência, o que também sugeri, os fenômenos terão alcance ainda maior. Vejamos como essa possibilidade pode ser analisada.
O óbice principal à concepção alargada de fim que Aristóteles e Goffredo defenderam é a filosofia neokantiana, que entende a finalidade como um conceito subjetivo, pelo qual o entendimento se refere ao mundo. Enquanto conceito, a finalidade é desprovida de realidade. Nada há, no mundo, que corresponda a ela, o que inviabiliza a conclusão de que os movimentos dos seres são, de fato, teleológicos.
Porém, filósofos com propensão matemática como Bertrand Russell e Alfred North Whitehead refutaram a concepção do conhecimento de Kant e dos neokantianos de modo significativo. Sua refutação pode ser ilustrada pela crítica de Russell ao conceito kantiano de espaço e tempo: “Muitas vezes se diz que espaço e tempo são subjetivos, mas eles têm correspondentes objetivos; ou que fenômenos são subjetivos, mas são causados pelas coisas em si mesmas, que devem ter diferenças inter se correspondentes às diferenças nos fenômenos a que dão origem. Quando tais hipóteses são feitas, supõe-se em geral que podemos saber muito pouco sobre os correspondentes objetivos. Na realidade, contudo, se as hipóteses tal como formuladas estivessem corretas, os correspondentes objetivos formariam um mundo dotado da mesma estrutura que o mundo fenomenal" (RUSSELL, Bertrand. Introdução à Filosofia Matemática. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. p. 83). 
Russell desconfia profundamente da tese kantiana de que o espaço e o tempo são subjetivos. Para ele, essas formas da sensibilidade, como Kant as denominou, ou categorias, como as chamou Aristóteles, correspondem a estruturas reais do mundo. É fundamental sublinhar que a correspondência não se dá em pontos acessórios, mas precisamente na estrutura, que é a mesma no conceito e no mundo. Russell explicou essa correspondência em linguagem matemática: "Duas relações têm a mesma estrutura quando têm semelhança, isto é, quando têm o mesmo número de relação. Assim, o que definimos como número de relação é exatamente a mesma coisa que é obscuramente significada pela palavra estrutura" (idem).  
Se as teorias subjetivistas do conhecimento derivadas de Kant podem ser assim refutadas, a finalidade e todos os outros conceitos por meio dos quais pensamos o mundo devem corresponder a dados estruturais dele. A finalidade não é só um conceito criado pelo entendimento. É, ao mesmo tempo, um dado do mundo real. E, se é um dado real, ou negamos que os fins sejam determinados pelos seres que se movem ou devemos considerá-los livres.
Um experimento físico ajuda a entender que o comportamento de partículas como os elétrons observa esse padrão. Uma fonte emite um feixe de luz, que se divide ao incidir num espelho semiprateado M1. Da divisão resultam dois feixes que são, a seguir, refletidos por espelhos comuns A e B e se reencontram num ponto P, em que se acha posicionado um segundo espelho semiprateado M2. O experimento mostra que o cruzamento dos raios luminosos em P, após a reflexão nos espelhos comuns, produz um fenômeno de interferência. Amit Goswami o explica: 
"As duas ondas criadas pelo feixe que se divide em M1 são [...] forçadas por M2 a interferir construtivamente em um dos lados de P (onde, se colocarmos um contador de fótons, o contador produz uma série de cliques) e, destrutivamente, no outro lado (onde o contador nenhum clique produz). Note que [...] temos que concordar que cada fóton se divide em M2 e viaja pelas rotas A e B. Não fosse assim, de que maneira poderia haver interferência?" (GOSWAMI, Amit. O universo autoconsciente – como a consciência cria o mundo material. 3ª ed., Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 2003. p. 100). 
Esses fatos indicam que os fótons que já ultrapassaram P, quando o espelho M2 é posicionado, passam a se comportar coordenadamente com as partículas situadas no espelho. Assim, o conjunto de fótons situados no espelho e além dele adotam um único e mesmo padrão de comportamento, independentemente da posição em que estão. 
O ponto do experimento que importa à nossa discussão é que a coordenação entre os fótons situados no espelho e além dele é instantânea. Tão-logo M2 é posicionado, os fótons próximos e distantes dele entram em coordenação. Não há necessidade de intervenção de tempo para que isso aconteça, o que indica que os fótons não trocam qualquer sinal convencional. 
A não ocorrência de troca de sinais baseia-se na premissa estabelecida por Einstein de que sinais levam tempo para viajar no espaço. Como qualquer interação envolve emissão de sinais, que levam tempo para se deslocar, temos de concluir que as interações dos elétrons se dão instantaneamente. Em suma, o experimento mostra que o comportamento de micropartículas como os elétrons não é determinado por qualquer espécie de interação com objetos externos, mas apenas por elas próprias. Exatamente o que o princípio da finalidade afirma.

A evidência fornecida por esse experimento não tem o apelo imediato de fatos como os que se referem à consciência das plantas e às proezas do papagaio Alex, mas é a mais significativa devido à abrangência. Se tudo é feito de micropartículas como os fótons, e a causa do movimento delas é tão radicalmente interna, proveniente delas e de nenhuma outra parte, não é razoável considerá-lo um indício de que o alcance do pansiquismo é maior, muito maior do que os próprios reinos animal e vegetal?
O resultado do experimento dos fótons converge, de maneira significativa, com antigas especulações da Metafísica Cristã. Ao longo da História, não poucos cultores destacados dessa Filosofia saíram das fileiras católicas. E a própria Igreja, como instituição, tem incorporado à sua doutrina substanciais reflexões metafísicas, entre as quais as relativas à finalidade ocupam lugar de destaque. Na encíclica Laudato si, publicada recentemente, o Papa Francisco referiu-se à conservação do Universo por Deus com palavras que não deixam de causar espanto. De acordo com ele, "o Criador [...] está presente no íntimo de cada coisa sem condicionar a autonomia da sua criatura, e isto dá lugar à legítima autonomia das realidades terrenas". Essa declaração espantosa está inserida no capítulo que o texto papal dedica à teologia da criação, o que torna claro o alcance verdadeiramente universal da "autonomia das realidades terrenas" a que ele se refere. O que tenho tentado sustentar, ao longo dos anos, não se afasta, pelo contrário converge com esse ponto particular da visão católica do mundo.
O perguntar e responder sobre a liberdade não nos remete só à questão sobre a natureza. Mais do que a ela, ele nos introduz no problema da estrutura fundamental do mundo. O conhecimento de tal estrutura não nos permite apenas saciar uma curiosidade. Torna, ao mesmo tempo, possível o discurso e a linguagem, cujas categorias fundamentais fazem alusão àquela estrutura. No fundo, a indagação da estrutura da natureza é a pergunta sobre a possibilidade da linguagem e, por ela, da convivência humana. Sem o patrimônio comum das categorias e outros conceitos fundamentais, não somos capazes de nos comunicar e conviver. Seremos ainda humanos?

domingo, 5 de outubro de 2014

The Flood (2): The Babylonian Noah

Countless tales of floods have been discovered in different lands. For this reason, it has been suggested that the texts are echoes of global events such as the thaws that followed the glaciations and produced simultaneous floods in various parts of the world. In Christian churches, however, there are people that go ahead and state that both the thaws and the tales are evidences of the universal Flood narrated in Genesis.
However, these interpretations have strong imaginative content, since the tales were composed at much different times., and cannot be testimonies of a single event. Unless someone demonstrates that the memory of floods was deposited in the collective unconscious of multiple nations, and inspired so many authors to compose narratives that resemble one another, one cannot identifiy an echo of a universal event in them. And if the tales are memories of a great thaw that ocurred over a longer time, why hundreds of flood reports do not remember the ice that preceeded the waters? Why speak of floods, but not of glaciers? It is easy to see why neither the theory that links the Flood texts to glaciations, nor that which associates them to a universal Flood that ocurred at one time have good foundation.
But if we take the archaeological findings of Leonard Woolley, Max Mallowan and others as evidence of regional floods that did not occur simultaneosly, we can possibly link them with the stories that stemmed from the same places. Three stories in particular stand out as more probably related to the floodings that occurred in the Ancient Orient: the Sumerian account of the Flood, the Epic of Gilgamesh and the Flood mentioned in the Indian poem Mahabharata. It is worth examining them to see if they can be related to Woolley's findings.
The Sumerian story of the Flood was written around 1600 B. C. It begins with the mention of eight kings, who ruled the Mesopotamian cities before the Flood (BRIEND, Jacques "Reporting the Sumerian flood" In Creation and the Flood - According to the texts of the Ancient Near East. 2nd ed., Sao Paulo: Paulus, 2005. p. 77). After entering the names of these sovereigns, the stone tablet of the story adds, "Then the Flood occurred" (Op. cit. "The antediluvian kings". pages 55-56). In the terms it was described, the Flood narrated by the Sumerians seems to have reached all mankind, because only the hero Ziusudra and the sages with him survived.
However, the most famous extra-biblical version of the Flood is not the Sumerian, but the Babylonian, which is contained in the eleventh book of the Epic of Gilgamesh, dated 1750 B. C. This epic chronicles the adventures of Utnapshitim in a ship that survived a Flood which buried all men. Just as the Sumerian story, the Epic assigns general scope to the Flood: "The Flood ceased / I looked at the time: It was quiet / and all living beings had become clay" (Epic of Gilgamesh. In Creation and the Flood - according to the texts of the Ancient Near East. 2nd ed, Sao Paulo: Paulus, 2005. p 62).
But the similarities between the Babylonian epic and Genesis go far beyond this particular point. The dimensions of the ship built by Utnapshitim, the Babylonian Noah, are comparable to the biblical ark: "I traced the border lines/ its surface [area] was a field [3,600 square meters] / its walls were 10 perches [60 meters] high" (op. cit. 55). The use of bitumen in the construction of the ship also recalls Genesis: "I poured three times 3,600 measures of refined bitumen in the oven / 3 times 3,600 measures of crude bitumen within" (idem, 65). The landing on a mountain at the end of the Flood is another point of similarity: "The sea calmed down / the bad wind ended / the Flood ceased / [...] The vessel reached Mount Nicir" (idem, 140). Utnapshitim sent a raven and a dove to see if the waters had decreased, before leaving the ship: "I sent out a dove and let her go/ the dove went and returned / she did not find where to land / I sent out a raven and let him go/ he went and / seeing the flow of water / ate, crawled, and did not return"(idem. 150). The Babylonian hero offered sacrifices to the gods for having been saved: "I offered a sacrifice / I made an offer / expanded on the floor of the mountain / I raised seven vessels of libation / at their feet I put cane, cedar and myrtle" (idem, 155). The gods were pleased with the sacrifice: "The gods felt the odor / they felt the good odor/ the gods, like flies gathered around the sacrificer" (op. cit. pages 155, 160).
So many points in common with the biblical text cannot be due to chance. Nor is there reason to invoke the supernatural to justify them. To explain the common points it is enough is to presuppose the dependence of one of the texts to the other, ie, that one of the authors used the work of the other to write his account. Either Genesis 6-9 depends on the Babylonian epic, or the dependency occurs in the opposite direction. As the Mosaic authorship of Genesis cannot be overstated, and there is strong evidence that the biblical book was composed in the sixth century B. C., it is more likely that the author of the biblical narrative used the babylonian epic.
We know that the vast library of Ashurbanipal was built in the seventh century B. C. Since the Jews went captive to Babylon at the end of that centuty, they may have found the famous epic in the library built by Ashurbanipal. The possibility sounds even more plausible when we are informed that, in modern times, the epic was discovered in the ruins of that library.
Let us proceed to the third story that seems to be closely related to Genesis. The accounts included in the Indian epic Mahabharata originated around 800. C. (Wikipedia. Mahabharata). Among them, there is one which tells the resolution of Brahma to destroy humanity. To preserve our seed from destruction, Brahma decided to save an individual, Manu, and warned: "All stable and movable things belonging to the terrestrial nature will be drowned and suffer complete destruction. You must build a strong, solid ship, and get on board with seven sages. Great saint, take into the ship all seeds which received their names from the twice-born men [the Brahmans]."
The Indian text beautifully reports that, after the construction of the ship, it was "agitated by fierce winds, and waved on the water like a drunken woman [in her way]. Neither the land nor the regions of heaven or the space between them could be seen. All things became water. A big fish, however, dragged Manu's ship to the Himalayas."
Holger Kersten published a famous book on the relationship between the Bible and Indian traditions. Although several theses of his book were taken more from imagination than from evidence, there are data that need to be weighed. One of them suggests the influence of ancient Hebrews in North India. It is worth remembering what Kersten wrote about this point:
"Noah’s descendants and the territories in which they were established are listed in chapter 10 of Genesis. At the end, the account adds: 'and the border of the Canaanites extended [...] to Lhasa' (Gen. 10:19). Lhasa is the capital of Tibet [...] The connection between ancient Israel and Kashmiri [located in northern India] can be best demonstrated in the field of linguistics. The Kashmiri language is different from all other Indian languages [...] It suffered a great influence from Hebrew. Abdul Azad writes: 'The language of Kashmir derives from Hebrew. According to tradition, in remote past, the Jewish people lived in those parts'"(KERSTEN, Holger. Jesus lived in India. 24th Ed., Rio de Janeiro: Best Seller, 2007. pages 71,77).
As the Mahabharata was composed about two centuries before Genesis, we may conclude the exchange between Jews and Hindus led the author of the poem to relate the Flood to the supreme God, who in those regions was known as Brahma. And as no influence occurs in only one direction, the Indian story of the Flood, once drafted, was recognized by the Jews as similar to old traditions of their own people.
The writer of Genesis demonstrates an incredibly vast erudition. A proof of this is the list of nations in chapter 10 of his  book. It is generally accepted as one of the most complete lists of ancient nations we know of. Therefore, the author of Genesis did not have lack of information about other nations. It is not impossible that someone with his profile knew the Indian tradition of the Flood. If that was the case, the Jewish writer of Genesis may have concluded that the Indian and Babylonian accounts of floods referred to a single fact. And as his faith was monotheistic, nothing could be more natural for him than to conclude that the religious differences between the two reports should be solved in favor of monotheism.
When he contacted the Epic of Gilgamesh in Mesopotamia, the author or editor of the Book of Genesis reinterpreted it in monotheistic terms, because of the similarities with the Indian story, which he knew and that was based on the act of Brahma. If this occurred, the monotheistic reinterpretation of the Epic of Gilgamesh was not taken from nothing, but from the authority due to the greater antiquity of the Indian version of the Flood.
Why the biblical author did not reinterpret the details of the epic, as he did with its supernatural background? Why did he choose to preserve them? He probably did so, because he considered the facts of the Epic of Gilgamesh to be historical. They did not conflict with the narrative of the great Flood the Jews had preserved. So, there was no reason for the Jewish author to exclude the facts of the Epic from the biblical text, but only to eliminate the polytheistic meaning they had.
After the excavations we talked about in the previous text, which were conducted in the twenties of the last century, "Sir Max Mallowan, digging at Nimrud (Calah), proposed a revision of Woolley’s theory. He attributed the biblical Flood to a different alluvial level in Mesopotamia. While scientists considered Woolley’s Flood to have happened around 3500 B. C., Professor Mallowan proposed the layer that gave rise to the Mesopotamian story was the one dated 2900 B. C." (www.dialogue.adventist.org/ articles/09. Accessed 27/12/2008).
It is to be noted that the oldest level of floodings discovered by Mallowan is located in Shuruppak, which is portrayed as the last antediluvian city in the Sumerian story of the Flood. After the mention of Shuruppak, the Sumerian narrative asserts: "Then the Flood occurred ". According to the Bible, the year 2900 B. C., that is, the time when Shuruppak was flooded, is situated in Noah's life. So, if it was not the biblical Flood, the destruction of Shuruppak belonged to the context in which the patriarch lived.
In short, we have no need to explain the biblical Flood by the theory of glaciation, as many contemporary scholars still do. The findings of Woolley and Mallowan, associated with the Sumerian, Babylonian and Indian Flood reports form a more acceptable framework for the biblical catastrophe than that which emerges from the glaciation theory. Of course, it is not necessary to accept all interpretive links I have described. If we only accept the dependence of Noah’s story to that of Utnapshitim, and the dating of the Shuruppak flooding around 2900 B. C., we are already brought to the time and place of Noah. It does not seem that this link breaks hermeneutical rules, but that it points to real events that the biblical account preserved.
There is, however, a central point in these associations, which have been little discussed so far: the local character of the floods discovered by Woolley and Mallowan, which opposes to the universal scope of the event narrated in the Sumerian, Babylonian and Indian traditions. This point will be addressed in the next text, which will also focus on the biblical text.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Filosofia e Direito (1):O Objeto da Filosofia

Henri Bergson
Há seres que pensam e pensadores, assim como há pensadores profissionais e apaixonados. Uma das características da paixão pelo pensamento é nunca se contentar com o que alcançou. É almejar sempre mais e estender o trabalho reflexivo ao infinito. Não é incomum os que cultivam a paixão pelo pensamento construírem a sua reflexão ao longo de toda a vida e, ainda assim, a deixarem inacabada. Isso porque sua obra de reflexão, profunda e às vezes arrebatada, é também interminável.
Lembro-me de quando iniciei minha reflexão filosófica sobre o direito, no primeiro ano da Faculdade. Tal foi o ímpeto do interesse que desenvolvi pela disciplina, naquela época, tal o encanto que ela despertou em mim que fui compelido a dar forma de livro aos meus pensamentos, durante a Graduação. Escrevi, naquela época, O drama do direito (Campinas: Julex, 1991) e, pouco mais tarde, Filosofia do direito positivo (Campinas: EV, 1993).
Outros livros seguiram-se a esses. Mas quero aqui retomar, com maior acento, a reflexão iniciada nos bancos da Faculdade, talvez inspirado pela descrição que Bergson certa vez forneceu do trabalho filosófico: “Nos problemas que o filósofo pôs, reconhecemos as questões que se agitavam à sua volta. Nas soluções que lhes forneceu, acreditamos reencontrar, arranjados ou desarranjados, mas quase sempre não modificados, os elementos das filosofias anteriores ou contemporâneas [...] Mas, à medida que procuramos nos instalar no pensamento do filósofo ao invés de dar-lhe a volta, vemos sua doutrina transfigurar-se. Primeiro, a complicação [das ideias] diminui. Depois, as partes entram umas nas outras. Por fim, tudo se contrai num único ponto [...] Nesse ponto, encontra-se algo simples, infinitamente simples, tão extraordinariamente simples que o filósofo nunca conseguiu dizê-lo. E é por isso que falou por toda a sua vida. Não podia formular o que tinha no espírito sem se sentir obrigado a corrigir sua formulação e, depois, a corrigir sua correção; assim, de teoria em teoria [...] o que ele fez [...] por meio de desenvolvimentos justapostos a [outros] desenvolvimentos, foi apenas restituir com uma aproximação crescente a simplicidade de sua intuição original” (BERGSON, Henri. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006. pp. 124-125).
Bergson encarece o fato de o trabalho reflexivo sempre se orientar por uma intuição original. Não importa o quanto dure essa reflexão: a intuição primordial que a inspira permanece a mesma. Podemos afirmar que essa intuição é o combustível que faz arder a paixão pelo pensamento.
Nada mais verdadeiro. O pensador pode mudar em maior ou menor medida o que pensa ao longo dos anos: a intuição fundamental de que parte não só não se altera como parece ostentar todas as características de um objeto verdadeiramente imutável.
Se pensar é uma tarefa infinita, por outro lado é pensar sempre a partir de um mesmo ponto e descrever ou tornar a descrever a mesma trajetória básica, com a única diferença de que, conforme avançamos, nos entregamos a incursões cada vez mais longas e variadas em direções não percorridas antes. As incursões, porém, se prestam a explorações limitadas, após as quais retornamos à senda principal.
Por isso, em qualquer reflexão vigorosa e altamente desenvolvida, deve ser possível identificar com clareza o ponto de partida, o ponto no qual, na linguagem de Bergson, a reflexão do filósofo se contrai. Cada qual tem o seu ponto de partida. Por isso também, cada qual desenvolve uma trajetória própria. O que não se pode, sob pena de nulidade do trabalho de pensamento, é não ter ponto de partida e não ter trajetória básica.
No meu caso, penso que o ponto de partida foi a intuição de que a reflexão jurídica precisa reconciliar-se com Deus. Ruy Barbosa concluiu uma famosa oração, cujo original ainda se conserva, com a afirmação: De quanto no mundo tenho visto, a suma se abrange nestas cinco palavras: não há justiça sem Deus” (BARBOSA, Ruy. Oração aos moços). Foi essa a intuição original de Ruy? Provavelmente sim, mas não ousaria afirmá-lo com certeza. No meu caso, porém, o foi certamente. Escrevi O drama do direito e Filosofia do direito positivo para afirmar que não há direito, nem há justiça sem Deus.
Porém, se o ponto de partida do trabalho dos filósofos do direito pode ser fixado de modo claro, nem sempre a trajetória básica de sua reflexão é tão nítida. Bergson continua a discorrer sobre o que antes denominara intuição original: “A primeira manobra do filósofo, quando seu pensamento ainda está pouco seguro e nada há de definitivo em sua doutrina, consiste em rejeitar certas coisas definitivamente. Mais tarde, poderá variar naquilo que afirma; não variará muito naquilo que nega. E, se varia naquilo que afirma, é porque [...] tendo deixado a curva de seu pensamento para seguir reto pela tangente, tornou-se exterior a si mesmo. Volta para dentro de si quando volta à intuição [original]” (idem. pp. 126-127).
Como indiquei há pouco, podem-se encontrar, na obra de qualquer pensador, incursões em diferentes direções. Isso é próprio do pensamento e ainda mais da Filosofia. Algumas incursões, como a que Bergson menciona, resultam em extravios. Nesses casos, a solução para o filósofo é retornar à trajetória básica que descrevia, pois ela existe, e ele existe para ela.
Quando esses retornos não ocorrem ou demoram demais para ocorrer, trechos inteiros da reflexão corrompem-se. Tornam-se simplesmente equívocos que é preciso desfazer. O equívoco pode não estar, inclusive, numa pequena parte da incursão, mas em toda ela, o que não é pouco frequente. Num como no outro caso, é preciso desfazê-lo, corrigindo a rota.
Alguns exemplos de erros cometidos na História da Filosofia se tornaram famosos. Em 1426, Jean Gerson lançou uma obra de denúncia da “confusão geral das ordens de conhecimentos” que se estabelecera. “Cada uma [dessas ordens] servia-se do modo de significação próprio de certa disciplina, feito para determinado objeto, a fim de resolver os problemas colocados por outra disciplina e outro objeto. Ele [Gerson] via os mestres de gramática, cujo objeto é a congruidade do discurso, resolverem seus problemas pelos métodos próprios da lógica, cujo objeto é a verdade ou a falsidade das proposições, enquanto os mestres de lógica pretendiam resolver por esses mesmos métodos os problemas da metafísica, ciência que não concerne às proposições mas às coisas, e que gramáticos, lógicos e metafísicos acreditavam poder resolver por todos esses métodos ao mesmo tempo os problemas da teologia, como se essa ciência não tivesse seus métodos próprios e seu objeto próprio, que é a palavra de Deus” (GILSON, Étienne. A Filosofia na Idade Média. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 887).
Desses equívocos resultaram contendas e confusões, em muitas áreas. A própria Reforma constituiu uma reação à tentativa viciosa de produzir Teologia a partir da Filosofia, com esquecimento da fonte própria daquela: as Sagradas Escrituras. Coisas semelhantes ocorreram, ao mesmo tempo, em outros ramos do saber. Reflexões inteiras se equivocaram, ao se desgarrarem da senda em que se desenvolviam. Foi o caso das reflexões, a que Gerson se refere, que se realizavam no caminho da Gramática e se perderam ao ingressar no da Lógica e o do pensamento que se desenvolvia como Lógica até embrenhar-se pela Metafísica ou ainda o da reflexão metafísica que ingressou indevidamente no campo da Teologia. Tão generalizados equívocos não incidiram neste ou naquele passo da reflexão de uma ou de outra pessoa, mas em todo e qualquer passo dado por elas, uma vez escolhido o caminho errado.
De tempos em tempos, essa espécie de equívoco relacionado à natureza da reflexão se torna comum. Penso ser esse o caso da nossa época, na qual se tornou frequente desenvolver reflexões sociológicas como se fossem filosóficas ou adotar uma teoria particular para criar filosofias inteiras. Essas empreitadas, embora comuns, estão fadadas ao fracasso. Não podem terminar em contribuições relevantes para a Filosofia, já que resultam de erros na escolha do caminho reflexivo a ser trilhado.
Quantos pretendem, à força de evocações, transformar Sociologia em Filosofia! Como no tempo de Gerson era urgente separar nitidamente as tarefas da Gramática, da Lógica, da Metafísica e da Teologia, estamos numa época em que é preciso debelar o caos das misturas e das reduções indevidas para voltar a fazer Filosofia como Filosofia.
Incursões na Sociologia ou em outra ciência social podem ser realizadas, com proveito, por filósofos do direito, mas é preciso limitá-las. Não é possível permitir que se desenvolvam de maneira tal que pareça, ao cabo, que a Filosofia do Direito se tornou uma epistemologia ou uma sociologia. O que significa que é preciso retornar sempre à Filosofia e à Filosofia do Direito, como a pureza metodológica requer.
Nesta série, pretendo manter a maior fidelidade possível aos princípios enunciados acima, a fim de retornar com frequência à trajetória reflexiva que tenho empreendido ao longo dos anos, especialmente à de meus primeiros livros, escritos nos anos 1980 e 1990. Para isso, devo ater-me à intuição de que parti, há 30 anos: não há direito, nem justiça onde não haja Deus; portanto, há direito com Deus. Devo ater-me, outrossim, às questões metodológicas precípuas, cuja desconsideração induz a mistura indevida de temas e inviabiliza qualquer reflexão ordenada: de onde partir? e como proceder a partir desse ponto?
Nos artigos seguintes, ocupar-me-ei dessas questões metodológicas. O que, por si, já indica que a Metodologia terá um lugar de honra na sequência de textos que pretendo publicar. A questão sobre o ponto de partida responderei por meio da filosofia perene. À outra darei a resposta da ciência moderna, convicto que estou de que a melhor maneira de atualizar uma antiga filosofia é a adição não de mera especulação sobre aquilo que pode ser, mas de descobertas sobre o que é.
Bergson auxiliar-me-á na jornada que as duas questões colocam. Ele, com quem me encontrei, perplexo,  ao ouvir as exposições de Goffredo Telles Júnior, há mais de 30 anos. Claro que, daquele tempo até hoje, bebi de fontes diversas, mas não me apartei de Bergson. Ao contrário, ainda ouço intrigado as palavras: “Considero que o ser vivo seja de direito consciente; torna-se inconsciente de fato ali onde a consciência adormece” (BERGSON, Henri. Ob. cit. p. 105).
Inspiradoras palavras, santa paixão.