sexta-feira, 27 de junho de 2014

Livre Exame de Romanos (31): A Tolerância

Assim como contém a mais completa explanação da salvação de Deus, Romanos fornece a mais minuciosa exortação à prática da virtude, em todo o Novo Testamento. Os capítulos 12 a 16 da epístola têm por finalidade exortar à humildade, ao amor, à tolerância, à amizade e às demais virtudes cristãs. É o mais longo discurso ético do Novo Testamento, maior até que o Sermão do Monte, em Mateus.
E, dentre as virtudes de que Paulo trata, no seu protraído discurso, a que ele defende mais extensamente é a tolerância. Esse é um dado muito importante, pois, do modo como a imputação da justiça se encontra no centro da seção que trata da salvação, a prática da tolerância ocupa o lugar central na seção relativa à ética.
No Novo Testamento, nenhuma virtude tem o sentido exterior que, na velha aliança, era possível imaginar que possuísse. Paulo não diz, por exemplo, que não é bom comer ou deixar de comer carne, beber ou deixar de beber vinho, mas que não é bom fazer isso se levar nosso irmão a tropeçar. O foco já não está posto na conduta em si, mas no sentido que tem para o outro. Está no reflexo da conduta sobre o irmão.
Não é diferente com a tolerância. Paulo nos diz sobre ela que “é bom não comer carne, nem beber vinho, nem fazer qualquer outra coisa com que teu irmão venha a tropeçar” (14:21). O sentido profundo desse mandamento provém da relação com Deus. Tolerar é, para Paulo, estender ao próximo a tolerância que recebemos de Deus. Assim, como na primeira parte da epístola Paulo relaciona a salvação e a justiça ao que Cristo fez, na seção dedicada às virtudes não é diferente. Nela, Paulo fundamenta o justo na prática da virtude por Cristo.
No tocante à salvação, Cristo morreu para que morrêssemos com ele: “Fomos, pois, sepultados com ele na morte pelo batismo” (6:4). Do mesmo modo, ressuscitou para que ressuscitássemos com ele: “Como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós em novidade de vida” (6:4). “Se fomos unidos com ele na semelhança da sua morte, certamente o seremos também na semelhança da sua ressurreição” (6:5).
O paralelo ressurge, com modificações, no capítulo 14: ”Foi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu: para ser Senhor tanto de mortos como de vivos” (14:9). Não há, pois, dúvida de que o método de Paulo consiste em estabelecer paralelos entre a obra de Cristo e seus efeitos nos que creem. Desse paralelo, ele extrai a doutrina moral do evangelho. “Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor de mortos e de vivos” significa que mortos e vivos agem de acordo com o sentido transcendente daquela morte e ressurreição. Na prática, pois, a humildade que adotamos é a que Cristo viveu, ao esvaziar-se e assumir a forma de servo, e o amor que possuímos é aquele pelo qual ele se deu ao mundo infestado de pecado. Não é diferente com a tolerância. Também ela é a que Cristo teve para conosco. Portanto, nem a humildade cristã é de feitio humano, nem o amor é terreno, nem a tolerância que devemos exercer é algo humano. Todas essas virtudes são transcendentes. São divinas e não humanas. Elas se tornam humanas, apenas quando comunicadas por Deus ao homem.
Essa é a razão de o pináculo da subseção de Romanos sobre a tolerância localizar-se nos três primeiros versos do capítulo 15: “Nós que somos fortes devemos suportar as debilidades dos fracos e não agradar-nos a nós mesmos. Portanto, cada um de nós agrade ao próximo no que é bom para edificação. Porque também Cristo não se agradou a si mesmo; antes, como está escrito: As injúrias dos que te ultrajavam caíram sobre mim“. O ponto culminante das considerações de Paulo é a manifestação da tolerância de Cristo em nós. Por isso, ele conclui: “Acolhei-vos uns aos outros, como Cristo também nos acolheu para a glória de Deus” (15:7).
Inutilmente, buscamos na conduta do homem o padrão da virtude. E ainda mais inutilmente o procuramos na conduta humana exterior. A virtude não está no homem, mas em Cristo, o que tem as mais sérias implicações. E as tem, em primeiro lugar, no tocante à doutrina da salvação, já que Paulo está a afirmar que a tolerância deve ser praticada, na igreja, porque Cristo a praticou no Calvário. O paralelo de 15:2-3 guia-nos, com toda segurança, a essa conclusão: “Cada um de nós agrade ao próximo no que é bom para edificação. Porque também Cristo não se agradou a si mesmo; antes, como está escrito: As injúrias dos que te ultrajavam caíram sobre mim“.
Isso não implica apenas que a nossa tolerância deve ser perfeita, como é perfeita a de Cristo, mas que ele salva a todos por meio da sua perfeita tolerância. A multissecular discussão de calvinistas e arminianos sobre os aspectos da salvação (seu alcance, sua duração etc.) perde o sentido, ante tal observação. Cristo salva a todos ou apenas a alguns? Salva para sempre e completamente ou apenas de modo provisório? Que dúvida pode existir sobre esses pontos e os demais relativos à salvação, à luz da tolerância transcendente de Deus? No máximo, subsistem dúvidas consequentes de o Novo Testamento não desenvolver de modo completo o que, como princípio, apresenta com toda clareza.
A tolerância é um princípio não somente ético, não somente de sentimento e conduta, mas também soteriológico. É um princípio que rege a salvação de Deus. Cristo ter-se entregado por nós significa ter-nos tolerado à sua maneira, ou seja, à maneira eterna. Por isso, Paulo pôde afirmar, no fim da subseção sobre a tolerância: “Porque também Cristo não se agradou a si mesmo”. A palavra porque, nesse verso, indica uma consequência. Indica que o que foi mencionado antes se funda no que é mencionado em seguida. Em outras palavras: que a nossa tolerância se funda na de Cristo. Não em qualquer tolerância demonstrada por Cristo, mas na que ele praticou na cruz.
A cruz não é só um símbolo: é também o fundamento e a realidade da tolerância. Significa que Cristo tolera perfeitamente. E, se o faz, está claro que todos são perfeitamente perdoados nele. Não estou a extrair do perdão o que não se pode extrair. Não estou a sugerir que a salvação ignore ou cancele o livre arbítrio. Não é esse o caso. O livre arbítrio é uma força real, e isso muda muita coisa. Muda ou pode mudar, inclusive, o destino daquele que crê em Cristo, se pecar deliberadamente. Mas não pode, de modo algum, preponderar sobre a obra de Cristo na cruz. Admiti-lo seria abraçar voluntariamente a incompreensão do evangelho. De sorte que o livre arbítrio permanece real, tanto quanto subalterno à tolerância de Deus em Cristo.
Há livre arbítrio e tolerância, mas aquele sujeita-se a esta, como a lei à graça. Hagar é a lei. É escrava. Sara é a graça e é livre. Ambas  têm lugar central na história de Abraão. Mas uma é superior à outra. Como a lei não funciona sem o pecado, e o pecado, sem o livre arbítrio, eles estão atrelados uns aos outros. Mas o mesmo não ocorre com as virtudes que exprimem a graça, entre as quais se encontra a tolerância.
Se as virtudes de Deus podem ser classificadas em imanentes e transcendentes, se elas podem ser discriminadas como de feitio terreno, umas, e de caráter celeste, outras, a palma cabe às últimas. Nisso consiste o cerne da revelação das Escrituras. Há tantas coisas na Bíblia, porém umas revelam as virtudes imanentes de Deus, outras, as suas virtudes transcendentes. O Dilúvio encontra-se no primeiro grupo. Ele exprime a ira de Deus sobre o mundo. O juízo final também. Não precisamos envergonhar-nos das virtudes terrenas de Deus. Mas não há dúvida de que o evangelho tem por finalidade abolir os motivos que as fazem necessárias e incrementar os que tornam prementes os valores celestiais.
Há, pois, uma hierarquia, uma ordem de antecedência entre as virtudes transcendentes e as imanentes. Isaías o proclama: “Por breve momento te deixei, mas com grandes misericórdias torno a acolher-te; num ímpeto de indignação, escondi de ti a minha face por um momento; mas com misericórdia eterna me compadeço de ti, diz o Senhor, o teu Redentor” (Is 54:7-8).
Nesses versos, vê-se o reflexo da discriminação das virtudes imanentes e transcendentes. O ímpeto de indignação de Deus e o abandono de Israel por ele são consequências da ira, que é uma virtude imanente. As “grandes misericórdias” e a “misericórdia eterna” de Deus são transcendentes. O Redentor, em pessoa, garante que o abandono e a ira são temporários, que eles passarão, assim como as profecias, as línguas e os outros carismas (1 Co 13:8). Porém o amor jamais passará. Paulo não afirma outra coisa (1 Co 13:8).
Não estamos diante de qualquer garantia, mas da maior de todas as garantias: “É para mim como as águas de Noé; pois jurei que as águas de Noé não mais inundariam a terra” (Is 54:9). Se a promessa à descendência de Noé permanece segura e inabalável, a grandeza, o alcance, a duração, enfim as características da libertação de Cristo não o fazem em menor medida. “Jurei que as águas de Noé não mais inundariam a terra, e assim jurei que não mais me iraria contra ti, nem te repreenderia. Porque os montes se retirarão, e os outeiros serão removidos; mas a minha misericórdia não se apartará de ti, e a aliança da minha paz não será removida, diz o Senhor, que se compadece de ti” (Is 54:9-10).
Na cruz, está a violência do amor. E ela está ali em plenitude, assim como a tolerância. Devemos acolher uns aos outros, porque Cristo nos acolheu no seu perfeito holocausto. A mensagem maior dessa afirmativa não é o acolhimento dos homens uns pelos outros, mas o de todos eles por Cristo. É a grandeza, o alcance e a duração eterna desse acolhimento.
“Não nos julguemos mais uns aos outros” (14:13). Eis o que prega Paulo. “Não julgueis para que não sejais julgados” (Mt 7:1). Isso prega Cristo. O primeiro mandamento está no cerne do discurso moral paulino; o outro é parte do maior de todos os discursos de Cristo. Nenhum dos dois deixa dúvida de que a tolerância de Deus é consequência absolutamente certa, porque jurada, da que temos uns para com os outros.

sábado, 21 de junho de 2014

Livre Exame de Romanos (30): O Amor ao Próximo

A Bíblia apresenta-nos Deus como alguém dotado de virtudes. Mas uma leitura minimamente atenta dela mostra que as virtudes divinas são essencialmente diversificadas e até opostas. Deus é capaz de ira, como Romanos afirma abertamente, mas também de amor. É capaz de perdão, mas também de vingança, de liberalidade e de severidade. Essas são virtudes opostas que Deus possui.
É possível, pois, dividir as virtudes divinas num grupo baseado na força, a exemplo da ira, do ódio, da indignação e da vingança, e outro que emana da compaixão. Nesse segundo grupo, estão o amor, a misericórdia, o perdão, a graça, a bondade, a generosidade e a justiça. Se as virtudes baseadas na força são imanentes, por pertencerem a Deus e ao homem, as que se fundamentam na compaixão afiguram-se transcendentes, já que a sua natureza é divina, embora possam ser comunicadas ao homem.
Ética é o cultivo dos dois grupos de virtudes. Porém, nenhuma ética minimamente aplicável e funcional permite o cultivo de todas as virtudes ao mesmo tempo. Devemos, por isso, entender toda ética filosófica e toda teologia moral como propostas de cultivo de um dos dois grupos de virtudes. Os sistemas éticos antigos, por exemplo, favoreciam o cultivo das virtudes da força; a ética cristã privilegia as virtudes transcendentes, baseadas na compaixão.
Mas, se a ética cristã é transcendente, por basear-se na compaixão, que só Deus possui originariamente, seus valores não se confundem com os que reconhecemos sob os nomes de amor, perdão, misericórdia etc. Os valores transcendentes se diferenciam das virtudes humanas correspondentes pela grandeza de que se revestem. Todo homem é capaz de amar, mas o amor divino é o amor revestido de grandeza. É o amor que levou o Logos a não se aferrar à própria glória, mas a se esvaziar, encarnar-se e assumir a forma de servo (Fp 2:6-7). Esvaziar-se da igualdade com Deus e tornar-se servo não é somente amar: é amar de modo tão grandioso que excede o próprio entendimento humano.
O mesmo se aplica a todas as outras virtudes transcendentes, que são as que costumamos designar pelas palavras graça, misericórdia, perdão etc. adicionadas a uma grandeza que não só as fortalece como as torna exclusivas da deidade. Porém, embora exclusivas de Deus, pela origem, essas virtudes comunicam-se ao homem por meio da fé.
Nas Escrituras, as virtudes transcendentes aparecem associadas à fé. Abraão é um ótimo exemplo. Ele creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça (Gn 15:6). Porém, a sua experiência não parou aí. Se seguirmos os passos do patriarca, em Gênesis, veremos que o amor que manifestou desde então não foi comum. Foi o amor que o levou a oferecer o seu filho Isaque em sacrifício. O próprio Deus declarou sobre esse ato de Abraão: “Jurei por mim mesmo, diz o Senhor, porquanto fizeste isso e não me negaste o teu único filho, que deveras te abençoarei e certamente multiplicarei a tua descendência como as estrelas dos céus e como a areia na praia do mar” (Gn 22:16-17).
A lealdade que Abraão demonstrou aos seus contemporâneos tampouco foi de um tipo comum. Quando Ló foi capturado, Abraão se envolveu numa guerra contra vários reis para libertá-lo (Gn 14). Seu empenho é sinal não apenas de amor, mas do compromisso que teve para com seu sobrinho, embora se tivessem separado e não vivessem mais juntos.
Sempre que alguém propôs a Abraão um pacto, recebeu dele a mais decidida e inflexível oferta de lealdade e amizade. Quando Sara faleceu, e os filhos de Hete ofereceram a Abraão uma de suas melhores sepulturas, para que nela depositasse o corpo de sua mulher, ele não foi só leal aos seus aliados. Diz a Escritura que, ao ouvir a oferta daqueles homens, “se levantou Abraão e se inclinou diante do povo da terra, diante dos filhos de Hete” (Gn 23:7). Esse ato de profunda reverência indica algo mais que fidelidade comum.
Do mesmo modo, a generosidade de Abraão não foi uma manifestação qualquer dessa virtude. Não vemos Abraão fazer a alguém uma oferta movido por necessidade. Abraão doa quando não precisa absolutamente fazê-lo. E, em várias ocasiões, se recusa a receber, quando outros lhe fazem uma dádiva. É o que ocorre, na guerra para libertar Ló, quando ele não aceita que o rei de Sodoma lhe faça uma doação. Diz o patriarca: “Levanto a mão ao Senhor, o Deus Altíssimo, o que possui os céus e a terra, e juro que nada tomarei de tudo o que te pertence, nem um fio, nem uma correia de sandália, para que não digas: Eu enriqueci a Abraão; nada quero para mim, senão o que os rapazes comeram e a parte que toca aos homens Aner, Escol e Manre [aliados de Abraão]” (Gn 14: 22-24). E, como se não bastasse essa liberalidade, a Melquisedeque, rei de Salém, Abraão dá “o dízimo de tudo” (Gn 14:20).
Esses atos têm mais que generosidade. Têm generosidade dilatada pelo livre oferecimento de si e do que é seu. Poderíamos dizer o mesmo das outras virtudes que Abraão demonstra. Nenhuma delas é a virtude em suas manifestações comuns, mas ela somada a uma grandeza que a transforma intimamente e a faz reluzir com um brilho particular.
Como a fé implica uma ética, mas não toda a ética, o cultivo das virtudes transcendentes tende a produzir a ausência das virtudes da força. A prontidão de Abraão para fazer guerra aos reis não nos engana. É exceção e não regra: um caso mais ou menos isolado. Em regra, Abraão nada tem de guerreiro. É o mais pacífico dos homens, o mais pronto a fazer concessões, a dar em vez de receber, a cumprir o seu dever do modo mais estrito possível. De um modo que lembra, até mesmo, o amor ao dever a que Kant se refere. Portanto, em Abraão, o crescimento das virtudes da compaixão leva ao fenecimento das virtudes associadas à força.
Se a ética é, pois, um cultivo, e o homem não pode cultivar todas as virtudes ao mesmo tempo, frequentemente acontece de a fé conduzir às virtudes transcendentes, não às da força. A fé cristã já foi acusada de falta por esse motivo. Nietzsche foi o mais implacável denunciante da sua propensão a produzir a atrofia das virtudes da força. Se a acusação é ou não totalmente justa é coisa a ser sopesada mais longamente. Que ela corresponde à bifurcação das virtudes em imanentes e transcendentes parece-me fora de dúvida.
Isso não significa que as virtudes da compaixão sejam destituídas da sua própria espécie de força. A compaixão é, no fundo, uma grande força. É, porém, força humilde, não arrogante, nem altiva. É força que brota da humildade, mas força de toda maneira. No capítulo 12, Paulo não nos exorta à fraqueza, mas à força ao dizer “Não torneis a ninguém mal por mal” (12:17) e “Não vos vingueis a vós mesmos [...] se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber” (12:19-20). Para praticar essas coisas, não é preciso fraqueza, mas força, ainda que força humilde e não arrogante.
O amor ao inimigo é uma força oposta à implacável vontade de poder. Isso tem consequências. Se as virtudes associadas à força não estão proscritas, sob o regime da fé, elas são deixadas à míngua até morrerem. É o que significa “Não vos vingueis” (12:9) e também “Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber” (12:19-20). Consequência da aplicação dessas máximas é a mortificação das virtudes da força.
O investimento das energias do sujeito no cultivo da compaixão leva ao não investimento nas virtudes da força. E o não investimento nessas virtudes tem como consequência “sermos fracos nele”, isto é, em Cristo (2 Co 13:4). A relação da fé com a fraqueza é, pois, inegável e inevitável. Trata-se de determinar o resultado prático dela. De acordo com Paulo, esse resultado é a lenta mortificação das virtudes associadas à força.
Nietzsche riu-se da teoria da seleção natural, que conquistava as consciências na sua época. Pareceu-lhe que a vida não pode ser uma luta por coisa tão básica quanto a sobrevivência, como Darwin tinha proposto. Pensou que o homem de fato luta, mas sua luta se fere por algo mais que a sobrevivência: "O verdadeiro instinto fundamental da vida, que tende à expansão do poder [...] sacrifica a autoconservação". Portanto, "a luta pela existência é apenas uma exceção, uma temporária restrição da vontade de vida" ((NIETZSCHE, Friedrich. Gaia ciência. 3ª reimpressão, São Paulo: Companhia das Letras, 2005. Livro V, nº 349, pp. 243-244). O homem luta pelo poder sobre o outro homem: "A luta grande e pequena gira sempre em torno da preponderância, de crescimento e expansão, de poder, conforme a vontade de poder, que é justamente a vontade de vida" (idem. p. 244). Só os fortes, os resistentes, os violentos, os empapuçados de vontade de poder estão aptos a vencer essa luta.
A doutrina de Nietzsche choca-se frontalmente com a ética cristã, não porque esta seja contrária à força, mas porque pressupõe que a vida não é só ou primordialmente luta pelo poder, embora também o seja. A vida está cheia de luta, mas não é essencialmente luta. Talvez ela possa ser definida do modo proposto por Vinícius de Moraes, ao afirmar que “a vida é a arte do encontro, embora esteja tão cheia de desencontros”. Mais do que luta, a vida é cooperação; mais do que desencontro, é encontro. Por isso, as virtudes associadas à compaixão têm mais a oferecer que as da força. E, como os dois grupos coexistem apenas enquanto o homem permanece contraditório, a ética cristã importa o declínio gradual da ética da força.
Para Paulo, “quem ama o próximo tem cumprido a lei. Pois isto: Não adulterarás, não matarás, não furtarás, não cobiçarás, e, se há qualquer outro mandamento, tudo nesta palavra se resume: Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (13:8-9). O amor é uma virtude transcendente de Deus. Só Deus é capaz de amar, em princípio e originariamente. O homem torna-se capaz de amar, por meio da fé. Quando ele crê, “o amor de Deus é derramado no seu coração pelo Espírito Santo” (5:5). Por isso, o amor não é posse originária dele, mas lhe é comunicado pelo próprio Deus.
A primeira tábua dos Dez Mandamentos enuncia o dever do homem para com Deus; a segunda, seu dever para com o próximo. Os preceitos citados, em 13:9, estão todos na segunda tábua. Tratam, pois, do dever do homem para com o próximo. Esse dever não é apenas externo. Não é mais um dever de conduta que de sentimento. Por isso, ao homem não basta fazer o que é certo. Deve fazer o que é certo com o sentimento certo, com amor, com compaixão que edifica.
O amor é a virtude violenta, a virtude revolucionária, a virtude que põe fim a um regime ético e introduz outro regime, que Jesus denominou reino de Deus. A finalidade da lei é o amor (13:10). Mas, se o amor cumpre a lei e exclui a força, a lei da força é ao mesmo tempo excluída. A ética da força é condenada à abrogação. Ser cristão não é ser forte, no sentido terreno. É até mesmo ser fraco. É deixar morrer as paixões da força. É não as alimentar, pois não há lugar para os dois grupos de virtudes. Ou os mansos herdarão a terra, ou os violentos. Não há, no canteiro do mundo, um palmo de espaço em que ambos possam coexistir.

terça-feira, 10 de junho de 2014

O Romance da Filosofia (20): A Existência de Deus

Leibniz
Tantos são os argumentos propostos, ao longo da História das Ideias, sobre a existência de Deus que não é possível abordá-los todos de modo analítico, num curto espaço. Porém, como introdução ao tema, é útil lembrar as considerações que alguém como Kant desenvolveu sobre ele.
Para Kant, três argumentos se destacam, na História do Pensamento, sobre a existência de Deus: o argumento ontológico, o cosmológico e o físico-teológico, que tratou como variação do segundo. Kant dirigiu boa parte dos seus esforços a refutar o primeiro argumento. E procurou mostrar, em seguida, que os outros dois são versões modificadas dele, de modo que a refutação da prova ontológica aplica-se também a eles.
Comecemos por examinar, com cuidado, o argumento ontológico. Sua inadequação como prova da existência de Deus foi admitida por vários pensadores, antes e depois de Kant. Não precisamos, pois, necessariamente, ir ao filósofo de Königsberg para encontrar a refutação mais robusta dele. Karl Barth, por exemplo, escreveu sobre o tema uma monografia indispensável, por demonstrar não apenas que o argumento não prova a existência de Deus como que nunca foi objetivo de Santo Anselmo prová-la. Para Barth, o que Anselmo pretendia  está claramente indicado nas fórmulas de sua autoria que podem ser utilizadas como critérios de elucidação do clássico argumento: Credo ut intelligam (creio para compreender) e Fides quaerens intellectum (fé que busca compreensão).
Essas fórmulas mostram que Anselmo usava a razão para desenvolver algo dado anteriormente na fé. Buscava provar que o dogma a que chegamos por fé é também racional, vale dizer, que é possível extrair do dogma de que Deus é o ser supremo uma consequência relevante por meios racionais, a saber: que, se Deus não existisse, algo maior do que ele existiria, o que implicaria contradição. Portanto, se não quisermos que a Teologia albergue contradições, teremos de admitir que Deus existe não só no intelecto, mas também objetivamente.
Nas palavras do próprio Barth: "O que Anselmo considera como tendo sido provado [...] é que a coisa descrita como aliqiud quo maius cogitari non valet [Deus] tem existência não somente no intelecto, mas também tem existência objetiva (e até esse ponto genuína). Agora, até onde isso foi provado? Até onde foi mostrado que Deus existe no intelecto do ouvinte quando o Nome de Deus [exatamente o aliqiud quo maius] é proclamado, entendido e ouvido. Mas, ele não pode meramente existir no intelecto do ouvinte, pois um Deus que existe meramente assim permanece em uma contradição impossível com o seu próprio Nome" (BARTH, Karl. Fé em busca de compreensão - fides quaerens intellectum. 2ª ed., São Paulo: Fonte, 2003. pp. 137-138).
Barth conclui: “Se essa é uma prova, então é a prova de um artigo de fé que ainda continua sendo verdadeiro mesmo à parte de toda prova. A afirmação positiva [a existência de Deus] não pode ter a sua origem examinada, pois ela se origina na revelação" (idem. pp. 138-139).
Isso significa que o argumento ontológico, como Anselmo o concebeu, prova que um item de fé, o Nome de Deus (aliqiud quo maius), implica a existência de Deus, nada além disso. Um item de fé não é um dado da realidade. Só podemos derivar a existência de algo de um dado da realidade. Não é diferente com Deus. Até esse ponto, portanto, a prova ontológica permanece um procedimento analítico que, como tal, não envolve substantificação de ideias.
Mas o argumento foi apropriado, tanto por teólogos como por filósofos, e utilizado de um modo que passou a envolver substantificação. No século XVII, por exemplo, Spinoza adaptou as ideias de Anselmo à sua visão de Universo dominada pela substância única, dotada da maior quantidade possível de atributos. Essa substância é, para Spinoza, o que entendemos por natureza, somente elevada à igualdade com o Ser Supremo. O filósofo percebe que, se retirarmos um atributo (a existência) do vasto conjunto formado pela substância única, ela deixará de possuir a maior quantidade possível de atributos. Por isso, Spinoza atribui-lhe a existência.
O insuperável problema desse modo de racionar é incorrer (outra vez) no vício metafísico da substantificação de conceitos. A ideia de Deus, sua substância e atributos são todos conceitos. Embora refiram-se a algo real, esses conceitos não se confundem com ele. Uma coisa são os conceitos pelos quais representamos a natureza; outra coisa é a própria natureza. Eles são tão diferentes entre si quanto o conceito de gato se distingue de um gato real.
É inevitável que, assim concebido, o argumento ontológico incorra no vício lógico da substantificação. Anselmo tinha-o evitado, ao usar o argumento para demonstrar as consequências de um dogma de fé. Spinoza nada fez de semelhante. Pelo contrário, retirou do argumento sua referência à fé revelada, que neutralizava o poder substantificador, e o estendeu ao absurdo. O mesmo fizeram vários pensadores, tanto antes como depois dele.
Esse é o argumento ontológico, na sua formulação clássica, que Kant e vários outros pensadores dissecaram. Uns o abraçaram, após o terem analisado; outros o rejeitaram. É o caso de Aquino, Kant e Barth, entre outros. Todavia, nem na versão de Anselmo, nem na de Aquino, muito menos na de Spinoza, o argumento ontológico prova a existência objetiva de Deus, pelo motivo básico, mas fatal de que a existência não pode ser derivada de um conceito, qualquer que ele seja.
Curiosamente, os críticos do argumento citado adotaram posições diversas, após o terem refutado. Aquino desenvolveu outras vias, igualmente ontológicas, de argumentação para provar a existência de Deus. Kant procurou aplicar os princípios da refutação do argumento ontológico às outras provas clássicas, a fim de refutá-las também. Seguirei a trilha de Tomás, antes de tentar entender aonde a de Kant nos leva.
O ponto de partida das cinco vias pelas quais Tomás mostrou a existência de Deus é a sua concepção de ser. Embora tenha partido, substancialmente, da metafísica de Aristóteles, Tomás também a superou ao propor divisões do ser cujo sentido ultrapassa muito as categorias daquele filósofo. Com efeito, Aristóteles tinha mostrado que não é necessário supor uma base unívoca do ser para assegurar a unidade interna do mundo. Em lugar de tal base, era possível colocar outra, que chamarei plurívoca por permitir entender que o ser tem diferentes significados sem perder a sua unidade básica e se converter num caos. Esses significados tornam o ser um conceito intrinsecamente análogo.
Mas o filósofo foi além desse ponto. Mostrou que a evidência dos sentidos decide a pendência que pode existir entre as concepções unívoca e análoga do ser em favor da última, já que o real se decompõe em tantos seres que não é possível reduzi-los a um conceito global, ainda que ele seja o do ser. O máximo a que chegamos, na observação do que existe, é às categorias do ser. Tudo o que é, é uma substância localizada no tempo e no espaço, tem relação com outras substâncias, existe em certa quantidade, apresenta qualidades, age e sofre a ação de outros, tem posição e situação. Porém, o tempo em que existe não é o espaço, a quantidade é diferente da qualidade, a ação, da paixão, a posição, da situação, e uma substância não é a outra.
A evidência empírica decide, pois, a pendência teoricamente indecidível entre as concepções unívoca e análoga do ser em favor da última. Sabemos que o ser é análogo, porque sempre se apresenta a nós como intrinsecamente diverso. A diversidade não é uma ilusão de ótica. É um fato do qual podemos partir como de uma base segura, a fim de extrair consequências.
A evidência empírica dessa diversidade é tão torrencial que podemos suspender, sem risco, o juízo crítico até que evidências contrárias venham a infirmá-la. Podemos tomá-la como pressuposto: é o que fazemos, aliás, o tempo todo, ao pensar. Não retornamos ao problema da univocidade ou plurivocidade do ser, ao pensar e agir cada dia. Nem os filósofos e cientistas, nem o homem comum o fazem, pois todos aceitam a plurivocidade básica do real, ao realizar seu trabalho intelectual.
Tomás mostra, na Suma, que a existência de Deus pode ser extraída das evidências sobre o caráter análogo do ser. Se as categorias não são as únicas diferenciações fundamentais do ser, se além delas há outras, mais mediatas, mas não menos certas, como o possível e o necessário, o temporal e o eterno, o finito e o infinito, o efeito causado e o não causado, o composto e o simples, pode-se propor que a divisão do ser nas categorias aristotélicas não exprime mais que os pressupostos de uma visão de mundo comum na Grécia, ao passo que a de Tomás exprime a visão de mundo medieval. A concepção grega, como Aristóteles a codifica, constitui a metafísica clássica; a de Aquino a cristianiza e alarga.
O encaixe das diferenciações metafísicas que chamarei segundas, apresentadas por São Tomás, na doutrina clássica do ser foi a grande realização dos filósofos medievais. Assim eles expandiram o caráter análogo do ser para além dos limites que Aristóteles lhe tinha fixado. E extraíram dessa expansão consequências bem claras para a doutrina da existência de Deus, que expressaram nos seguintes termos: para haver o possível, deve existir o necessário, para o transitório ser, o eterno tem de existir, para o finito ser real, é preciso que o infinito também o seja e para se produzir a cadeia de efeitos é necessário o não causado. Em outras palavras, o imperfeito requer um princípio ou fundamento, que os filósofos medievais identificaram com o perfeito.
Os sentidos nos mostram não só muitos seres possíveis, contingentes, mas que alguns deles são causa dos outros. Podemos admitir que um possível, durante a sua existência, origine outro, que por sua vez origine ainda outro e assim sucessivamente. A formação do Universo pode ser explicada por esse processo, mas a explicação é prosaica demais para ser posta como fundamento das complexidades e maravilhas do cosmo. E o pior é que a origem de um ser possível a partir de outro nos leva a possíveis eternos e não causados, o que desloca o fundamento do efêmero e do causado para dentro dele mesmo.
Claro que os céticos podem fazer o necessário, o não causado etc. retroceder para trás da sequência de possíveis transitórios, mas isso equivale a reconhecer a sua transcendência. No máximo, atrasa o recurso à dimensão absoluta, cuja existência se quer provar ou refutar. A diferença entre essa explicação e a de cunho teísta é que a primeira adia o recurso ao divino, ao passo que a outra o faz concentrar-se logo na figura fortíssima do Ser Supremo e Criador.
O problema das provas sutis da existência de Deus desenvolvidas por São Tomás foi apontado por Kant: consiste em não serem menos ontológicas que a prova de Anselmo. Embora partam da observação do que existe, os cinco caminhos dependem de uma concepção (análoga) do ser e funcionam de modo inteiramente a priori. São, como tais, verdadeiras lições ontológicas, rivais da prova de Anselmo, mas que padecem dos mesmos problemas dela.
Esse o caminho argumentativo seguido por São Tomás, após ter firmado a insuficiência da prova ontológica. A pretensão de Kant, ao chegar a esse mesmo ponto, foi diferente da de Aquino. Em vez de construir outro argumento ontológico para substituir o que invalidou, Kant aplicou a refutação alcançada às outras provas clássicas da existência de Deus. Vale a pena entender como o fez.
“Se algo existe”, escreve a respeito da prova cosmológica, "um ser absolutamente necessário deve também existir. Como eu, pelo menos, existo, segue-se que um ser absolutamente necessário também existe. E posto que o objeto de toda experiência possível é o mundo, este argumento é denominado cosmológico [...] Nota-se que ele começa da experiência e não é totalmente a priori, como o ontológico. Nota-se também que não faz referência a qualquer propriedade dos objetos sensíveis [...] E, sob esse aspecto, ele se diferencia da prova físico-teológica baseada na consideração da peculiar constituição do nosso mundo sensível”(KANT, Emmanuel. Critique of pure reason. In Great books of the western world. 2ª ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 39, pp. 182-183).
A versão do argumento cosmológico a que Kant se refere é a de Leibniz. De acordo com ele, se o mundo existe (Leibniz supôs evidente que também se move), Deus existe, pois só algo imutável pode tê-lo posto em movimento. Verdade é que, se algo imutável no próprio mundo tiver dado início ao movimento, Deus pode não ser causa dele. Mas, nesse caso, o mundo ou algo nele seria causa de si mesmo, o que é por concepção impossível.
Assim formulado, o argumento de Leibniz parece indestrutível, pois de uma só pitada de experiência (a premissa de que o mundo muda) extrai sua conclusão por necessidade e sem incorrer no erro substancialista. Porém, Kant encontra, nesse argumento, o ontológico, posto que, nele, “a experiência meramente auxilia a razão a extrair a conclusão de que um ser necessário existe” (idem. p. 183). Como “as propriedades desse ser não podem ser aprendidas da experiência, a razão a abandona por completo e passa a procurá-lo na esfera dos conceitos puros [...] em que ela indaga qual, dentre todas as coisas possíveis, contém o requisito da absoluta necessidade” (idem). Não é preciso dizer que, para Kant, a razão acha em Deus (no conceito deste) a resposta que procura.
Kant invalida o argumento de Leibniz, sob acusação de procurar a agulha no palheiro errado. De procurá-la entre os conceitos da razão pura, quando deveria buscá-la na experiência ou, ao menos, no campo da experiência possível. Para Kant, tudo o que existe está nesse palheiro. Não pode ser diferente com o fundamento necessário dos movimentos do mundo (Deus). Implícito fica, pois, que, se Leibniz tivesse encontrado a agulha no palheiro da experiência, teria evitado o retorno vicioso ao conceitual, que retira valor probatório ao seu argumento.
Assim, a discussão kantiana dos argumentos históricos a favor da existência de Deus termina com a conclusão de que não há prova especulativa possível de um Ser Supremo. Proporá, alhures, um argumento não ontológico, nem cosmológico e sim moral em prol da existência de Deus, mas a desconstrução dos argumentos clássicos é, a meu ver, a conclusão mais importante da sua obra, sobre o tema. Conclusão, aliás, convergente com a demonstração de que o argumento ontológico fracassa sempre que usado para provar a existência de Deus e que muitas versões dos outros argumentos estão impregnadas do procedimento ontológico.
A exceção me parece ser o argumento de Leibniz. Não era desconhecido desse filósofo e matemático que os movimentos do mundo podem ser explicados por uma ou mais causas imutáveis, nem todas identificáveis com Deus: a Primeira Causa cristã e as múltiplas causas imutáveis do Universo eterno dos gregos. Se optou por explicá-los por meio de um Criador, foi por considerar evidente que a outra alternativa (a das causas imutáveis imanentes) está sujeita a um sério problema.
Ao reconhecer o problema com as causas eternas e imanentes, Leibniz nada mais fez que manter-se em conformidade com a ciência de sua época que, em fatos empíricos reiterados e invariáveis, reconhecia a atuação de uma lei universal e, com base nela, previa o que haveria de suceder em condições idênticas. A gravidade fora submetida a esse tratamento, no tempo de Leibniz. Embora a maior parte do cosmo não tivesse sido jamais observada (longe disso), os cientistas tinham concluído que a interação gravitacional, como hoje a denominamos, se manifesta em toda parte, o que equivalia a afirmar que tudo sofre mudanças gravitacionais.
Leibniz não divergiu desse entendimento, antes o adotou. E, do modo como os cientistas tinham generalizado os dados da sua observação, de modo a estabelecer a lei da gravidade, ele próprio tratou de generalizar a mudança a toda a natureza física. Assim, afastou-se da opinião dos antigos gregos a respeito das causas imutáveis do mundo.
No contexto do século XVIII, em que viveu, é improvável que Leibniz tenha compartilhado a opinião dos antigos gregos sobre corpos imutáveis imanentes em detrimento da ciência moderna. Pelo contrário, ele abraçou a refutação daquela antiga opinião, que Galileu, Newton e outros tinham realizado. Adotou tal refutação como razão suficiente para eliminar a possibilidade de que as mudanças do mundo proviessem de seres celestes físicos, mas imutáveis, ou de qualquer outra parte no interior do Universo.
Como o firmamento já havia sido vasculhado com ajuda de telescópios, que evidenciaram a ubiquidade da mudança, Leibniz julgou justificado introduzir o pressuposto a priori de que a mudança é inerente a todas as partes do mundo físico. Não incidiu, com isso, em qualquer despropósito, antes realizou algo semelhante ao que tinham realizado os filósofos, que concluíram que o ser é análogo, após verificarem as divisões e subdivisões a que se sujeita, e os cientistas, ao postularem a lei da gravidade. Como explicar é designar uma causa ou princípio externo ao objeto explicado, só se pode fundamentar o movimento em algo imóvel. Por isso, Leibniz concluiu que a causa imóvel do movimento tem de ser Deus.
Kant rejeitou esse argumento, ao cobrar de seus adeptos provas de “que as coisas são incapazes de produzir por si mesmas a harmonia e a ordem” (idem. p. 189). Mas que vem a ser isso?  Ainda que o filósofo se recuse a fechar o argumento em si mesmo com a melhor de todas as chaves (a do conceito de causa ou princípio, que exige a fundamentação de um ser em outro e não em si mesmo), a prova que podemos buscar no cosmo há de ser necessariamente negativa. Há de ser prova de que algo não acontece, e isso em contexto tão vasto quanto o Universo. Para chegar a tal prova, porém, é preciso supor senão a investigação de cada milímetro e de cada partícula do cosmo, ao menos a de partes substanciais dele. O rastreamento cabal do espaço nem a Hércules pode ser cometido. Portanto, a prova possível há de consistir na observação de um grande número de mudanças, sem exceções ou lacunas que permitam afirmar a não mudança.
Para ser conclusiva, uma prova deve ser consistente e clara. Na época de Kant, a prova da ubiquidade da mudança estava sujeita a dúvidas. Mas talvez não seja esse o caso hoje. Após séculos da mais competente varredura do Universo em busca de algo físico que não esteja sujeito a algum tipo de mudança, é preciso admitir que a situação do argumento de Leibniz não é a mesma do século XVIII.
Nada achamos de imutável, no mundo material, após a imensa varredura levada a cabo pela ciência. O átomo, as partículas em que se decompõe, os vários tipos de ondas, todos desfazem-se, em condições determinadas. Sofrem, portanto, mudanças. Tudo é causado, precedido, por algo que constitui seu princípio. A alternativa é negar totalmente a existência de um princípio para o mundo. Mas a alternativa escamoteia a simples imolação do pensamento. Se chegamos até aqui pensando, negar um princípio ao mundo não é só colocar o arbítrio acima da razão, é aniquilar a um tempo os dois.
Temos, pois, suficiente respaldo para concluir que não há objetos materiais não mutáveis, no imenso concerto do Universo, pois a evidência maciça da mudança acumulada pela ciência operou uma modificação no panorama do argumento de Leibniz. Eliminou o remanescente daquela complexidade que turvava o argumento para Kant. Acrescentou-lhe clareza e o tornou não direi totalmente conclusivo, mas o mais claro argumento já construído sobre a existência de Deus.
O princípio da razão suficiente demanda que uma coisa seja explicada por outra, nunca por ela própria. O temporal não pode ser explicado pelo temporal, o finito pelo finito, o movimento pelo movimento, o causado pelo causado ou o contigente pelo contingente. Já o sabia Aristóteles. Num ponto, porém, as coisas mudaram daquela época ao tempo atual. A ciência mostrou, por meio de provas robustas, que o imóvel não está presente no mundo físico.
Não me adiantarei a afirmar que a existência de Deus está dada ou provada dessa maneira. A falibilidade de todo conhecimento impede a comprovação, em sentido último, de qualquer enunciado. Como a todas as outras construções da mente humana, a dúvida adere também a essa. Mas ela não tem, hoje, mais a compleição da época de Kant. É antes um fio de dúvida.
Não estamos mais em tempos, como os de Fílon, em que tudo o que se podia invocar como apresentação do argumento cosmológico eram “os montes e as planícies repletos de animais e de plantas, as torrentes dos rios e dos riachos, a extensão dos mares, o clima bem temperado, a regularidade do ciclo das estações, e depois, o sol e a lua dos quais dependem o dia e a noite, as revoluções e os movimentos dos outros planetas e das estrelas fixas” (ALEXANDRIA, Fílon de. As leis especiais. I, 32-35. Citado em REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. São Paulo: Paulus, 2001. Vol. IV, p. 239). Tivemos de esperar o desenvolvimento de uma ciência suficientemente exaustiva para tornar o argumento mais conclusivo. Penso ser essa a situação dele hoje, após as revoluções científicas que nos revelaram o infinitamente grande, de Galileu a Einstein, e o infinitamente pequeno, da Física Quântica à Biologia Molecular. É significativo demais que o rastreamento dessas duas dimensões do real não tenha revelado uma só substância imutável. Que ele tenha, pois, revelado de certo modo, a agulha de Deus no palheiro da experiência.
Das dúvidas que a humanidade cultivou e que a Filosofia ajudou a ressaltar e a apresentar, esta é, sem dúvida, a maior. Tão grande é o tema da existência de Deus que, se o argumento de Leibniz continuar a ser afiado na pedra fria dos fatos, talvez venha a ser possível afirmar, um dia, que a Metafísica existe para mostrar-nos Deus. Por ora, porém, a questão permanece envolta na névoa do grande Himalaia que o sherma filosófico ajuda a escalar.