João XII (955-964) podia ter usado o instrumento da excomunhão, tão comum na sua época, para dar vazão à ira que o possuiu, ao ser destituído do trono papal por seus inimigos, mas escolheu se vingar por outros meios. A um de seus adversários, cortou o nariz, os dedos e a língua; de outro arrancou a pele; decapitou outros 63. E, após espalhar esse horror, João se assentou no exaltado trono que, para ele, não simbolizava absolutamente o sagrado, mas o dinheiro, o prazer e o sexo.
Horror é mesmo a palavra que salta à mente, ao ouvirmos esse relato. E, no incêndio que o sentimento ateia, o juízo chega a paralisar-se. Somos tomados de repugnância tal pelos atos de João que, de repente, se torna irrelevante, para nós, se ele agiu por motivos pessoais, se outros estavam aliados a ele ou mesmo se o comandavam. A violência extrema monopoliza a nossa atenção, e tudo em que conseguimos pensar é na culpa pessoal de João.
Mas, conforme retomamos o juízo sereno, notamos que a matança do século X não teve significado apenas individual. É verdade que João amava os prazeres de modo doentio e era movido pelos piores sentimentos. Porém, como Papa, ele chefiava um grupo, uma corte, toda uma constelação de clérigos, nobres e serviçais que gravitava ao seu redor. Mais do que um ato isolado, a matança comandada por João foi um choque entre esse vasto grupo e aquele constituído por suas vítimas.
Isso se torna ainda mais claro, quando lembramos o artigo de Leonardo Boff a que fiz referência há alguns dias. Com base em Jean-Yves Congar, Boff afirmou que a História da Igreja Católica pode ser dividida em duas partes, entre as quais se situa a reforma de Gregório VII. Tanto Congar quanto Boff consideram comunitária a Igreja que existiu antes daquela reforma e autoritária a que a sucedeu. E o mais interessante é que, com essa divisão, tanto a corte de João XII como a que ele dizimou ficam inseridas na época da Igreja-comunidade, o que reforça o sentido coletivo e até mesmo comunitário do embate das duas facções.
Antes que alguém afirme que essa periodização da História é equivocada e que erros tão graves quanto os da Igreja antes do século X não podem ser atribuídos a comunidades, permitam-me recordar que há comunidades de muitas espécies, assim como instituições de toda índole: boas, más, pérfidas, leais, ingênuas, hediondas. Comunidade não é, em si, uma palavra indicativa de pureza e bondade, assim como não é necessário que o termo instituição designe o invólucro social de algo perverso. Exatamente por isso, é possível considerar que a vingança de João XII não foi somente a explosão da maldade de um indivíduo, mas também um choque de grupos, de comunidades, e uma manifestação da Igreja como instituição.
A História tem essas três dimensões principais: a individual, a comunitária e a institucional. Se nem toda comunidade é pura, podemos acrescentar que nem toda instituição é nociva. Ou, em conclusão, podemos extrair dos fatos que todos os três, indivíduo, comunidade e instituição, podem ser bons ou maus e frequentemente são as duas coisas.
A igreja como tal não é o indivíduo. É a comunidade e a instituição.Nenhum desses seus aspectos é, por si só, negativo. Pelo contrário, a falta de um deles constitui uma perda. Portanto, um mal para a igreja.
Que é uma comunidade? Sem intenção de definir o termo, podemos propor que ele designa um círculo de pessoas em que ocorre a partilha de coisas fundamentais. Partilha de valores, crenças, sentimentos, às vezes também de bens materiais. Daí as boas comunidades. No entanto, outras vezes, a partilha que ocorre, nos grupos comunitários, é a de desvalores, de maus sentimentos e do produto de crimes. Daí as comunidades más.
Já instituição, é a organização de pessoas que existe para levar a cabo uma missão. No caso da igreja, suas instituições têm como principais missões a pregação do evangelho e a difusão de comunidades. Duas ou três pessoas podem ser capazes de propagar o evangelho ou um ideal coletivo, apenas vivendo em comunidade. Porém, se se organizarem um pouco mais, elas serão capazes de fazê-lo em maior medida e de modo mais duradouro. Essa é a razão de ser da instituição religiosa, posta de maneira simples.
Não são poucos os que, enojados com os erros das instituições religiosas, sonham com um mundo sem elas. Esses apaixonados não podem ser confundidos com os oportunistas que fazem da guerra às instituições uma bandeira rota sob a qual falanges se agrupam. Porém, a História segue seu curso independentemente da paixão e da bandeira. Ela se faz com indivíduos, comunidades e instituições, não apenas com os dois primeiros. Por ter existência histórica, a igreja não é exceção a essa regra. Ela também inclui indivíduos, comunidades e instituições.
Temos a tendência de culpar as instituições mais que as comunidades e os indivíduos, pela soma de erros acumulados ao longo de muito tempo. E elas de fato têm sua dose de culpa por eles. No entanto, guardadas as diferenças e as proporções, indivíduos e comunidades também o têm e não menos. O caso de João XII mostra isso de modo claro. Nele, as dimensões individual, comunitária e institucional de um erro abominável misturam-se e se interpenetram.
Embora positivos, porém, os aspectos de instituição e comunidade não nos revelam a natureza essencial da igreja. O mesmo é verdade em relação a uma série de outros atributos do povo de Deus, assim como o seu caráter universal ou local e a sua condição visível ou invisível. Pode-se propor que todos esses atributos são importantes, porém não essenciais para a igreja.
O atributo universal, por meio do qual a igreja se estende no tempo e no espaço, e o aspecto local, por cujo intermédio ela se concentra, nada nos dizem da natureza intrínseca da assembleia dos que creem, mas apenas da sua posição no concerto da criação. Já o caráter invisível, é próprio da igreja como Deus a vê. Os homens nada conhecem desse aspecto da igreja. Exatamente por isso, o atributo invisível não pode ser decisivo para eles. Já o caráter visível, aquele que os homens efetivamente percebem, na igreja, é a manifestação prática dela, que tem tanto aspectos positivos como negativos. Por isso, não pode ser o seu atributo fundamental.
A dimensão principal da igreja não coincide, portanto, com qualquer dos aspectos citados até aqui. A comunidade, a instituição, o caráter universal, o local, a invisibilidade e a visibilidade são atributos positivos e genuínos, mas não essenciais da igreja. Apenas a presença da palavra de Deus em seu seio é tal atributo essencial. A igreja é um corpo ou conjunto de indivíduos que falam e ouvem a palavra de Deus sinceramente. Não-igreja, ao contrário, é tudo o que não ouve e não fala a palavra sinceramente.
Em todos os aspectos abordados acima, exceto no de assembleia que segura firme o depósito da palavra, a igreja aparece como santa e pecadora. Santo Agostinho não disse que ela tem um lado luminoso e outro tenebroso, por alguma razão teórica, mas com base na sua observação dos fatos. O caráter santo e o pecador da igreja deitam raízes profundas na realidade, mas é preciso acrescentar: na realidade humana, não na palavra de Deus. Sob o prisma dessa palavra, a igreja é a mulher gloriosa vestida do sol, que tem a lua debaixo dos pés, em Apocalipse 12. Não é a meretriz do capítulo 17. Se a lua foi criada por Deus para governar as trevas, tal mulher é capaz de governar a lua.
Essa é a igreja gloriosa. A igreja do futuro, de certo, como Watchman Nee bem escreveu. Porém, não a de um futuro longínquo, inalcançável. Como em gramática, o futuro em que essa mulher existe é o do presente. É o futuro que tudo envolve, abarca e abraça. O futuro do qual o presente é só um anexo.
Por isso também, o motivo mais decisivo da Reforma do décimo-sexto século não foi a venda de indulgências ou as pretensões políticas deste ou daquele príncipe, mas o desaparecimento da palavra de Deus no seio da Igreja. A missa em latim, a raridade da pregação no dialeto do povo e a ignorância quase total da Bíblia pelos padres enterraram tão fundo o evangelho e o restante das Escrituras que, em certo momento, eles desapareceram, e a fé cristã degenerou em superstição.
Demos, porém, um passo atrás, a fim de entender melhor o que a missa em latim, à qual a pregação foi reduzida, significou na Idade Média. Não há como negar que ela significou a alta cultura, até mesmo a única cultura admitida (a romana), já que todas as outras continuavam a ser consideradas bárbaras. Impõe-se, pois, a conclusão de que a Bíblia foi aprisionada na cultura mais elevada da época.
Esse peculiar mecanismo de custódia tem algo a nos dizer sobre a natureza da crise que antecedeu a Reforma da igreja. O depósito essencial da igreja, aquele pelo qual ela se torna o que é - a palavra de Deus, foi removido do alcance dos fieis não por algo de baixo valor, mas pelo que possui valor mais elevado para a humanidade depois das coisas divinas: a cultura, isto é, as letras em que a mais sublime literatura tinha sido composta.
Refiro-me ao corpus da literatura latina. E, se considerarmos que a missa era composta de trechos dos pais dos primeiros séculos, teremos de concluir até mesmo que as Escrituras foram encerradas no que em latim se produzira de mais sublime até então.
Nada disso foi casual, como não foi casual o fato de o Novo Testamento ter sido escrito em grego. Esses dois fatos linguísticos resultaram de um amplo processo cultural, que no caso da Idade Média culminou com o encarceramento da palavra que liberta. E, se a crise que antecedeu a Reforma teve esse caráter, temos de concluir que os alvores dela, o início da restauração da igreja, podem ser identificados com as primeiras reações contra os mecanismos culturais que retiraram a Bíblia de circulação. Uma dessas reações foi a condenação do averroísmo, consequentemente do aristotelismo puro, por Étienne Tempier, em 1277. Outra foi o libelo, ainda mais amplo, de Jean Gerson, no século XIV, contra as soluções filosóficas de problemas teológicos.
Por terem condenado a sobreposição de elementos culturais à Bíblia, esses acontecimentos devem ser considerados os primeiros precedentes da Reforma, na Idade Média Ambos tiveram por finalidade frear os excessos do processo que havia levado Aristóteles e outros filósofos pagãos a reinar em lugar de Cristo. Não se voltavam, por certo, contra toda forma de Filosofia. Menos ainda contra toda a cultura clássica. Mas punham o freio necessário à espécie de sincretismo que tirava de cena o depósito essencial da igreja de Cristo.
Não surpreende que, num contexto assim corrompido, os reformadores tenham-se erguido para proclamar que o que constitui a igreja de Cristo é a palavra de Deus. Para Lutero, Calvino e seus seguidores, a igreja só pode existir onde a palavra está. Esse último escreveu: “Se virmos a palavra de Deus sinceramente pregada e ouvida e se virmos os sacramentos administrados de acordo com a instituição de Cristo, não poderemos duvidar de que ali existe a Igreja de Deus” (CALVINO, Jean. The Institutes of Christian religion. In Great books of the western world. Chicago: Encylopaedia Britannica, 1993. Book Fourth, Chapter I, 9. Vol. 20, p. 331). Como, para Calvino e Lutero, os sacramentos sem a palavra eram ritos mortos, da declaração acima se extrai que a igreja só existe onde a palavra de Deus está presente.
Para o bem ou para o mal, a Igreja Católica reformou-se. Reinstaurou a palavra em seu seio, como Davi introduziu a arca em Jerusalém. Isso mudou a História. Atualizou a situação católica. Desatualizou o Protestantismo, não como igreja baseada na palavra, mas como grito e revolução. Porém, como a repudiada que não pode tornar ao marido, sem que a terra toda se contamine (Jr 3:1), como a mulher que vê nisso a mais triste verdade, cada uma das partes da igreja dividida suspira calada em seu próprio canto. E em cada uma se ouve o apelo: “Volta para mim!”