sábado, 8 de dezembro de 2012

Livre Exame de Romanos (2): As Coisas Invisíveis de Deus

Em Romanos 1:20, lemos: “Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das cousas que foram criadas. Tais homens são por isso indesculpáveis.”
Se Romanos é um tratado, a culpabilidade dos gregos deve assentar-se em motivos sólidos. É impossível firmar a condenação do mundo gentio em apenas três linhas, no interior de um tratado. Isso traz a certeza de que o versículo que estabelece o motivo dessa condenação tem entrelinhas bem largas, que justificam e detalham a conclusão implacável a que Paulo chega.
Aparentemente, a culpabilidade dos gregos se funda no conhecimento que têm dos atributos invisíveis de Deus e em mais nada. Paulo não dá outras explicações. Devia, porém, ter outras ideias na sua cabeça. Essas ideias estão nas entrelinhas do verso 1:20. Poderíamos perguntar: que são os atributos a que Paulo se refere? Como podem ser conhecidos?
Para responder ou tentar responder essas perguntas, devemos partir do que Paulo afirmou. A começar pelo termo grego aórata, traduzido atributos invisíveis, na Versão Almeida Revista e Atualizada. A tradução é boa, mas extensiva. Literalmente, aórata significa só “os invisíveis”. A palavra atributos não consta no original. Por isso, em várias versões, lê-se “coisas invisíveis”.
Boa parte dos primeiros escritores cristãos considerou que, com essa palavra grega, Paulo quis dizer o que, na literatura da época, se denominava, mais propriamente, “coisas inteligíveis”. Por não se dirigir a filósofos, o apóstolo preferiu dizer invisíveis, em vez de inteligíveis, mas a ideia subjacente à palavra parece ser essa última. Ao menos é o que se conclui do exame da literatura da época, que está repleta de alusões ao invisível ou inteligível em oposição ao visível ou sensível. O primeiro é o que não pode ser visto, tocado ou conhecido por qualquer dos sentidos. O outro é o que o pode ser.
Vejamos alguns exemplos dessas ideias opostas. Orígenes escreveu: “Para quem pode compreender, Paulo apresenta sem rodeios as coisas sensíveis, sob o nome de visíveis e as realidades inteligíveis que só o espírito pode captar, sob o nome de invisíveis. Ele sabe que as coisas sensíveis ou visíveis têm apenas um tempo [e] que as realidades inteligíveis ou invisíveis são eternas” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Contra Celso. São Paulo: Paulus, 2004. p. 471). Sob essa ótica, não é preciso dizer a que Paulo se referiu quando escreveu: “Não atentando nós nas cousas que se veem, mas nas que se não veem; porque as que se veem são temporais, e as que se não veem são eternas” (2 Co 4:18).
A interpretação de Orígenes não reflete apenas o seu modo de ver, a sua preferência pessoal, mas uma vasta literatura composta desde o século V a. C. Porém, vejamos um segundo exemplo, já que por duas testemunhas toda palavra será estabelecida. O filósofo pagão Celso escreveu, no século II: “A essência e a geração constituem [respectivamente] o inteligível e o visível. A verdade acompanha a essência, o erro a geração. À verdade se liga a ciência, ao outro domínio a opinião. O inteligível é questão de intelecção, o visível, de visão. É o intelecto que conhece o inteligível, e o olho o visível” (CELSO. O discurso verdadeiro. In ALEXANDRIA, Orígenes de. Ob. cit. p. 583).
Orígenes discordou em quase tudo de Celso. O debate entre eles foi um dos mais célebres de toda a Antiguidade cristã. Porém, o mestre de Alexandria não fez o mais leve reparo à distinção adotada por Celso entre o sensível e o inteligível. E por que não o fez? Porque as palavras em questão haviam entrado para o léxico e assumido significados inequívocos nos primeiros séculos. Eram utilizadas tanto por quem acreditava num mundo inteligível, além do sensível, quanto por quem só cria na matéria. Nesse contexto, portanto, quando se referiu às coisas invisíveis de Deus, com toda probabilidade, Paulo quis dizer o que é estritamente inteligível.
O mesmo contexto não nos permite dúvidas sobre o significado da palavra inteligível. Por esse termo, designa-se o que pode ser conhecido pela inteligência. Contrapõe-se, de certa maneira, ao místico ou irracional. Quer isso dizer que Deus não é “místico”, mas apenas inteligível? Não. Porém, não há, na Bíblia, uma frase que garanta que o que em Deus há de místico possa ser conhecido pelo homem ou comunicado por um homem a outro. Místico é o não revelado, o incompreensível e incomunicável.
Mas avancemos. A afirmativa seguinte de Paulo, em 1:20, é tão importante quanto a referência às coisas invisíveis de Deus. Ele diz que essas coisas “claramente se reconhecem (katorátai), desde o princípio do mundo, sendo percebidas por meio das cousas que foram criadas”. Se a opção de Almeida VRA por “atributos invisíveis” é boa, não se pode dizer o mesmo dos verbos reconhecer e perceber, nas frases acima. O original não diz "claramente se reconhecem", mas "claramente se veem".
Quis o apóstolo afirmar que o invisível se vê? Que o inteligível é percebido pelos sentidos? Obviamente não, pois isso contraria não só o modo de pensar de Paulo, mas de quase todos os escritores da época. No original, o verbo katorátai aparece ao lado de outro, nooúmena, que significa entender. Portanto, o ver claramente, a que Paulo se referiu, é um ato transformado por nooúmena. É um ver com os olhos da inteligência, pois Deus e os seus atributos são invisíveis. A tradução mais literal do versículo seria: “as coisas invisíveis de Deus [...] ao serem entendidas, claramente se veem”.
Como o milagre da visão intelectual dos atributos de Deus se realiza? Paulo afirmou que isso se dá, “por meio das coisas criadas”. Calvino referiu-se à revelação geral de Deus, na natureza, e à revelação especial, nas Escrituras. O desvelamento dos atributos de Deus, por meio das coisas criadas, inclui-se no primeiro caso.
Todos os homens, inclusive os idólatras, a quem Paulo se refere em Romanos 1, têm essa espécie de conhecimento de Deus, como Lutero bem explicou: "Por que razão [os gentios] poderiam chamar de Deus uma imagem ou qualquer outra coisa criada e, além disso, crer nessa comparação, se não soubessem nada acerca do que seria Deus e do que lhe compete fazer? De que modo poderiam atribuir estas qualidades à pedra ou, então, àquilo que julgavam ser semelhante a ela, caso não acreditassem que estas [qualidades] eram [atributos próprios] de Deus?" Por isso, os gentios "sabem que a divindade (a qual também dividiram em muitos deuses) seguramente é invisível" (LUTERO, Martinho. A Epístola aos Romanos. In Obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal/Concórdia, 2003. Vol. 8, p. 262).

Que dizer de todas essas declarações de Paulo? Em Romanos 1, vemos a condenação dos gentios. Mas, no versículo 20, é-nos revelado o justo motivo dela. Por que os gentios merecem ser condenados? Porque receberam a palavra de Deus, por meio das coisas criadas, e não o glorificaram (Rm 1:21), antes adoraram e serviram a criatura (Rm 1:25).
O regime idólatra é a rejeição da revelação de Deus na natureza. Paulo fundou a condenação do mundo gentio nessa rejeição. E, ao declará-la, supôs a clareza com que os atributos de Deus se manifestam por meio das coisas criadas. Por isso escreveu “claramente se veem”, o que se coaduna com a literatura da época. De Platão em diante, o mundo chamado culto passou a aceitar, cada vez mais, que os atributos da divindade se manifestam na natureza. Passou, outrossim, a afirmar a existência de um Deus supremo. Paulo percebeu os dois fatos, assim como a contradição entre eles e a adoração aos ídolos. Os gentios conheciam Deus? A resposta do apóstolo é um firme e sonoro sim. Adoravam a Deus? A resposta é não.
Só nos resta juntar a pergunta fatal: e as pessoas do nosso próprio tempo? Paulo viu diferentes motivos para firmar a condenação de judeus, gentios e bárbaros, na sua época. Se povos distintos, num mesmo século, mereciam a condenação por motivos diferentes, quanto mais os que viveram 20 séculos depois!
A consciência do homem culto de hoje não é como a do cidadão romano do século I. O homem atual não tem a certeza do grego do tempo de Paulo de que os atributos da divindade estão refletidos na natureza. E, se não tem tal certeza, pode a condenação do gentio daquela época ser transportada aos nossos dias? A resposta, senhoras e senhores, é um gordo não.