O Natal nos expõe a uma abundância de mensagens que provam a sua transfiguração em frenética troca de bens. Porém, com as mensagens predominantemente relacionadas ao comprar e vender exaustivos de dezembro, aumenta também o fluxo de informações sobre a figura histórica de Jesus Cristo e o significado espiritual do seu nascimento, vida, morte e ressurreição.
Não só isso: o Natal também é uma oportunidade para ateus enviarem seus particulares votos de felicidade com ou sem fé no menino nascido em Belém (indagam se não terá sido em Nazaré; ou se terá mesmo nascido!), para autoridades eclesiásticas infalivelmente explicarem, e infalivelmente diminuírem, a importância de Jesus ter vindo ao mundo antes de Cristo (por que o recordar tanto, se o dado não tem importância?) e para fundamentalismos para todos os gostos anunciarem de telhados cada vez mais altos suas verdades definitivas.
No mês do Natal, historiadores, arqueólogos, biblistas são também convocados a recontar e, se possível, a reconstituir o tempo de Jesus. Produtos holywoodianos revivem-no em tantas versões quantas são demandadas pelos gostos submetidos à pasteurização cultural. Não podem faltar os lapsos imaginativos mais acariciados, que se transformam em despretensiosas mercadorias natalinas, assim como a descoberta do túmulo de Jesus, a interpretação gnóstica da traição de Judas e as cada vez mais presentes narrativas da paixão (e olhem que não é o sofrimento) de Jesus por Maria. Claro que tantos e tão diferentes discursos, articulados ao mesmo tempo, constituem uma síntese um tanto desvairada do que se pensa e se vê no fatídico mês de dezembro.
É o caso de perguntarmos por que, nos mundos cristãos atuais, os elementos da síntese acima devem existir do modo como os observamos. Por que a culminância do consumo deve ocorrer a pretexto da culminância da espiritualidade (o nascimento de Cristo)? Por que não arrumaram um outro motivo? Teremos sucumbido a uma nova tentação no deserto? À tentação de nos lançarmos do pináculo do Shopping para que os anjos de Deus nos sustenham? Cabe questionar se os ateus que nos votam felicidade dissociada do menininho de Belém podem prover-nos, com a boa vontade que lhes sobra, também o regalo de um mundo suportável sem fé. E se o evangelista que duvidou de que caberiam no orbe os livros com os feitos do Verbo algum dia pensou se nele haveria lugar para tantos Verbos quantos a humanidade se deu.
Todos esses questionamentos são justificáveis, em face do quadro que o Natal nos coloca, mas são tão numerosos que tentar tratar de todos ao mesmo tempo, e em tão poucas palavras quantas me é dado escrever, deve ser o mesmo que tratar de nenhum e fazer aumentar o desvario. Então, vou-me deter no que de mais sério encontro a circular, a propósito do controvertido nascimento.
No ano que finda, Bento XVI completou sua trilogia sobre Jesus, com a publicação de um livro sobre a infância em Nazaré. Chamou-o a antecâmara dos volumes lançados antes, que formam sua continuação lógica e cronológica. Em nenhum dos volumes, Bento se entrega à investigação do Jesus histórico. Tampouco ignora essa investigação. Todo o tempo se refere a ela, e todo o tempo o faz de passagem, sem aprofundar a análise das teorias críticas sobre os Evangelhos. Esse é um primeiro ponto que chama a atenção do leitor situado e que ele se tortura para explicar.
Em tantos aspectos, o livro recém-lançado de Bento reflete um estudo seriíssimo, uma erudição completa, uma piedade entranhada e, é claro, a disponibilidade infinita de recursos bibliográficos etc. do Vaticano. Reflete também a maturidade intelectual do seu autor, que explica, ao menos em parte, por que ele não se doa ao debate crítico, que afinal é o maior e o mais original do nosso tempo sobre a pessoa de Jesus.
Chego a pensar que não interessa ao Papa enquanto Papa resolver, talvez nem mesmo contribuir para a resolução do debate. Compete-lhe justificar a fé. Se, no primeiro século, Paulo pregou a justificação do pecador pela fé, Bento parece querer justificar a própria fé no XXI. E justificá-la por meio dela própria, pois só a fé pode ser a razão da fé. Por isso, abordando-o sempre e às vezes até parecendo atribuir-lhe o lugar central na discussão de determinados assuntos, o Papa jamais mergulha no tema do Jesus histórico. Mergulha, sim, todo o tempo, no mistério da fé em Jesus.
Mas seja-me permitido observar que, ao fazê-lo, ele parece atuar mais como justificador da fé da Igreja que da fé em Jesus, embora às vezes sustente retoricamente o contrário. Darei o exemplo do grande sinal do profeta Isaías. Com base em Stanislas Lyonnet e René Laurentin, Bento propõe que a saudação do anjo Gabriel a Maria atualiza a profecia de Sofonias 3:14-17, principalmente no trecho em que diz: “Rejubila, ó Israel [...] o Senhor está no meio de ti”.
Rejubila é o equivalente de “Alegra-te, muito favorecida!”, em Lucas 1:28. Bento explica: “Impressiona o fato de [o anjo] não dirigir a Maria a habitual saudação judaica shalom – a paz esteja contigo – mas a fórmula grega khaire, que se pode tranquilamente traduzir por Ave, como sucede na oração mariana da Igreja” (BENTO XVI. Joseph Ratzinger. A infância de Jesus. São Paulo: Planeta, 2012. pp. 30-31). Já “o Senhor está no meio de ti”, em Sofonias, “traduzida literalmente diz ‘está no teu seio’” (idem. p. 31). Obviamente, a interpretação do Papa faz de Israel uma prefiguração de Maria, em cujo seio o Salvador foi gerado.
Desse modo, Jesus e também sua mãe são postos no centro da nova dispensação. “Jesus é o novo Adão, um novo começo abintegro, ou seja, [a partir] da Virgem que está plenamente à disposição da vontade de Deus. Acontece assim uma nova criação, que todavia está ligada ao sim livre da pessoa humana de Maria” (idem. pp. 51-52). Afirma ainda, com base em Lucas 2:19,51, que "Maria aparece não só como grande crente, mas também como imagem da Igreja [obviamente a de Roma], que guarda a Palavra no seu coração e a transmite" (idem. p. 105).
Mas com Jesus e Maria no centro, algo inusitado transcorre: a nova ordem inaugurada por Deus se alarga extraordinariamente. Deixa de ser a ordem de uma nação, a ordem judaica, para passar a ser a humanidade. Como Bento o demonstra? Pelo sinal de Isaías: “Continuou o Senhor a falar com Acaz, dizendo: Pede ao Senhor teu Deus um sinal, quer seja em baixo nas profundezas ou em cima nas alturas. Acaz, porém, disse: Não o pedirei nem tentarei ao Senhor”. Ante a recusa de Acaz, "disse o profeta [...] O Senhor mesmo vos dará sinal: Eis que a virgem conceberá, e dará à luz um filho, e lhe chamará Emanuel” (Is 7:10-12-14).
O rei de Judá não quis pedir um sinal, como Deus lhe ordenou. Então, o próprio Deus lhe deu o sinal, sem que o pedisse. Não é preciso dizer que o sinal foi a concepção da virgem. Nem que o Papa vê, nessa concepção, a ordem centrada em Jesus e Maria, ou seja, a ordem católica. Para justificar essa ordem, ele mostra ainda mais que os intérpretes que identificaram a virgem como uma mulher da época do próprio Isaías fracassaram. Não há um só relato judaico, lendário que seja, que afirme que uma virgem tenha concebido.
E por não encontrar a virgem no Antigo Israel, Ratzinger passa a interrogar os pagãos, à procura dela. Como se o profeta tivesse anunciado uma diva. Busca-a no Egito, em Virgílio, entre os persas, mas só acha aproximações grosseiras e semelhanças remotas. “A diferença entre as concepções [judaica e gentia]”, conclui, “é tão profunda que – de fato – não se pode falar de verdadeiros paralelos” (idem. p. 49).
Enfim, tudo coopera para introduzir a conclusão de que “a afirmação relativa à virgem que dá à luz o Emanuel é uma Palavra à espera. No seu contexto histórico, não se encontra qualquer correspondência [nem em Israel, nem entre os pagãos], pelo que [...] não é uma Palavra dirigida apenas a Acaz, nem somente a Israel; mas dirige-se à humanidade” (idem. p. 47).
A afirmação de que a profecia é para a humanidade tem propósito claro. Serve para justificar uma Igreja Católica, isto é, global. E também para que o reino de Deus, que não é deste mundo, possa implantar-se em cada polegada da Terra, a partir de um centro, que faltou ao Papa afirmar que é Roma.
Como hábil argumentador, Bento encosta o remo nas pedras da problemática histórica, apenas para impulsionar o barco, sem permitir que ele se despedace de encontro a elas. Nenhuma pedra crítica é o destino para o qual ele navega. Mas é certo que tem um destino, e que ele é a justificação das coisas católicas.
Não menos habilmente, o Papa omite a bem estabelecida informação de que nenhum manuscrito original de Isaías 7:14 traz a palavra virgem (bethulah). Todos os originais grafam almah, que significa jovem. A versão a que Mateus e Lucas tiveram de recorrer para representar o nascimento virginal foi a Septuaginta, que é apenas uma tradução do original hebraico. Uma tradução acertada, pois na cultura hebraica não se esperava que uma jovem solteira (almah) conhecesse homem, mas fosse virgem. Porém, mesmo assim, virgem é apenas uma tradução do original almah.
Se mantivermos presente que o sinal prometido é a concepção de uma jovem, vários cumprimentos possíveis da profecia estarão à disposição. Uma possibilidade é que Emanuel fosse um dos filhos de Isaías. Só um Emanuel tão antigo poderia cumprir a seguinte predição: “Antes que esse menino saiba desprezar o mal e escolher o bem, será desamparada a terra, ante cujos dois reis tu tremes de medo” (Is 7:16).
Que terra é essa? É a dos dois reis mencionados no primeiro versículo de Isaías 7: “Sucedeu nos dias de Acaz, filho de Jotão, filho de Uzias, rei de Judá, que Rezim, rei da Síria, e Peca, filho de Remalias, rei de Israel, subiram a Jerusalém, para pelejarem contra ela”. A terra desses soberanos da Síria e de Israel foi desamparada, durante a infância de Emanuel, quando a Assíria conquistou os dois reinos, cerca de 11 anos após o oráculo ter sido proferido.
Nesse tempo, Emanuel comeu manteiga e mel (Is 7:15). Sabemos que, no Antigo Israel, o leite era tirado de uma cabra ou de um segundo animal que cada família mantinha em casa. O fato de terem leite significa que as casas permaneceram intactas. E o fato de serem capazes de processar o leite até se tornar manteiga ou coalhada transmite ainda mais essa ideia. Assim, apesar da infidelidade de Acaz, Deus protegeu Judá, quando Síria e Israel foram conquistados.
Estou a afirmar que Emanuel não é Jesus? De maneira nenhuma. Isaías 7:14 é uma daquelas profecias que se cumprem em dois tempos. O primeiro cumprimento se deu entre 733 e 722 a. C. Mas a segunda e mais forte realização do oráculo foi a concepção da virgem, no ano 4 a. C. De onde era essa virgem? De Nazaré, na Galileia. Portanto, o segundo Emanuel foi tão judeu quanto o primeiro. De modo que não há vestígio de que a profecia se referisse ao mundo todo ou a uma ordem mundial, como a que a Igreja Católica governou e governa.
Quando um profeta quer dizer nações ou o mundo todo, ele o diz. Em Isaías 7:10-16, não o disse. Disse, antes: “Ouvi, agora, ó casa de Davi” (Is 7:13). A profecia à casa de Davi cumpriu-se na própria casa de Davi, no tempo de Isaías e no de Jesus.
Como é difícil prover uma justificação da fé em Cristo, tendo de justificar a fé em algo mais! Espanta-me não encontrar, no livro do Papa, uma sólida interpretação da profecia das 70 semanas, que tanto se presta a recomendar a fé em Jesus. Mas só me espanta enquanto espero, credulamente, do Papa, uma justificação da fé em Cristo. Quando deixo de o esperar, quando vejo que o propósito prioritário dele é outro, deixo também de me espantar.
As 70 semanas serviam ao propósito dos primeiros cristãos, que era demonstrar que Jesus é o Cristo. Não podem servir ao do Papa, que é mostrar que a Igreja é o reino de Deus na Terra. A esse propósito ele devotou sua vida, seus muitos dons pessoais e continua a consagrar os seus livros. E olhem que o livro de Bento pode ser incluído no rol do que de melhor circula sobre a Natividade!