sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Evidências da Criação (2): Três Interpretações de Gênesis

Na primeira postagem desta série, vimos que um paradigma ou modelo interpretativo da criação foi elaborado, pelos pais da igreja cristã, e aceito por séculos a fio. Esse paradigma emergiu da desconfiança para com a interpretação literal dos textos que descreviam o Universo como um semicírculo dividido em camadas, que repousavam sobre colunas. Porém, embora relativizasse o sentido literal desses versículos, o paradigma patrístico interpretava literalmente os capítulos 1 e 2 de Gênesis.
Com o desenvolvimento da Teoria da Evolução, por Charles Darwin, eruditos e intérpretes das Escrituras, como G. H. Pember, promoveram a primeira grande releitura de Gênesis 1, com base em novas evidências científicas. Dessa releitura emergiu um segundo modelo interpretativo, que não abandonou a exegese do Período Patrístico, mas lhe acrescentou um ou outro dado novo, assim como o intervalo entre Gênesis 1:1 e 1:2 ou a interpretação dos seis dias como eras. Porém, o conhecimento de um número cada vez maior de fatos sobre as origens tem provocado um desgaste tão grande desse segundo modelo quanto do primeiro.
Não é possível, nos limites desta série de postagens, apresentar o desgaste em detalhes. Vou-me limitar a mostrar como ele se manifesta na interpretação de Gênesis 1 apresentada por Pember. A quantidade de vezes que esse autor menciona os fósseis, no clássico As eras mais primitivas da Terra, mostra como a sua releitura de Gênesis 1 foi motivada pelo desenvolvimento das ciências naturais. Nas suas próprias palavras, “Vemos, então, que Deus criou os céus e a terra no princípio, de um modo lindo e perfeito [...] Conforme os resíduos de fósseis claramente mostram, não houve apenas doença e morte [nesse período] – companheiros inseparáveis do pecado então predominante entre as criaturas vivas da terra – mas até mesmo ferocidade e matança” (ob. cit. São Paulo: Editora dos Clássicos, 2002. Tomo 1, pp. 59-60). Se os fósseis mencionados são de plantas e animais mortos, a morte e até mesmo a violência já exerciam o seu império na criação primitiva, o que Pember aceitou e explicou muito bem por meio do intervalo.
Porém, em quase todos os outros pontos, a interpretação que ele nos transmitiu reafirma o modelo patrístico. Vejamos por quê. Para Pember, antes da queda, “o espírito que Deus soprara dentro de [Adão e Eva] guardava total poder e vigor [...] e brilhando pela forma física, projetava uma auréola lustrosa ao redor de ambos” (idem. p. 152). Essa é uma nítida reafirmação da ideia patrística de que os corpos de Adão e Eva eram etéreos e distintos dos nossos. Ao referir-se à tentação de Eva pela serpente, o autor inglês afirmou: “A serpente se aproximou e dirigiu-se a ela. O fato de ela não se ter assustado parece indicar a existência de uma comunicação inteligente entre o homem e as criaturas inferiores antes da queda” (idem. p. 140). Aqui, o texto de Pember admite a interpretação literal da comunicação da serpente com Eva. Dessa comunicação sobreveio o pecado, “o feito fatal, que, aproximadamente seis mil anos não foram suficientes para obliterar” (idem. p. 146). As palavras seis mil anos deixam claro que os acontecimentos do Jardim do Éden devem ser situados nesse tempo. Sobre o Dilúvio, ele declarou: “O mundo tremeu com os rápidos pingos de chuva que caíam, os primeiros que eles já tinham contemplado” (idem. p. 217). Neste ponto, é reafirmada a interpretação literal de Gênesis 2:5-6, que dizem que o Senhor ainda não fizera chover sobre a terra.
Por esses exemplos se vê que G. H. Pember aderiu fortemente ao modelo antigo de interpretação literal de Gênesis. A esse quadro, por si já bastante problemático, ele ainda acrescentou dificuldades novas. Por exemplo, o cataclisma que destruiu o planeta, resultando no quadro de Gênesis 1:2, foi descrito da seguinte maneira: “A terra arruinada [...] foi inundada pelas águas do oceano; seu sol havia-se extinguido, as estrelas não eram mais vistas, suas nuvens e atmosfera, não tendo força de atração para mantê-las em suspensão, haviam descido” (idem. p. 101). Pember comparou esse acontecimento com o Dilúvio de Noé, quando “a arca flutuava sobre as águas, e a terra foi mais uma vez, quase como havia sido antes dos seis dias de restauração, coberta, até o pico mais elevado, pelo oceano” (idem. p. 217). Contra essa descrição do cataclisma universal, milita o fato de não haver o menor indício de inundações totais da Terra, nos últimos três bilhões de anos, muito menos há seis mil. Há ainda a passagem de As eras mais primitivas que afirma que o cataclisma levou a Terra a "um estado de completa desolação, ficando totalmente sem vida. Não apenas seus lugares frutíferos se tornaram um deserto, e todas as suas cidades foram destruídas" (idem. p. 59). Nesse trecho de sua famosa obra, Pember supôs a existência de verdadeiras cidades, quando o cataclisma desabou sobre a Terra.
Portanto, analisada amplamente, a teoria de Pember (como as da maioria dos outros autores que acrescentaram algum tipo de remendo à interpretação literal antiga) está longe de cumprir o que ele pretendeu ao escrevê-la (1876). As afirmações do livro de Pember não explicam um bom número de fatos e se chocam com outros ainda mais numerosos. Necessário é, portanto, buscar um terceiro modelo interpretativo de Gênesis 1. Mais do que isso: para que o novo modelo alcance o que se propõe, é preciso fazê-lo negar amplamente, não apenas num ponto ou outro, a interpretação literal. Isso não significa negar que o relato bíblico formule afirmações sobre a História Natural. É exatamente isso que ele faz, como mostrarei nesta série. Todavia, é bom lembrar que a Bíblia o faz num quadro geral de seis dias com tardes e manhãs metafóricas.
Essa primeira metáfora, que emoldura o capítulo 1 de Gênesis, cria um importante precedente para a interpretação alegórica de ainda outros textos sobre a criação. Por que não entendermos Gênesis 2 nos termos propostos por Orígenes de Alexandria, no século III: “O jardim e a maneira como se diz que Deus o plantou ‘no Éden, no Oriente’, e que em seguida fez crescer do solo toda espécie de árvores formosas de ver e boas de comer, e a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal [...] tudo isto pode, sem inconveniência, ser interpretado em sentido figurado” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Contra Celso. São Paulo: Paulus, 2004. p. 318)?
Mesmo assim, a contribuição de Pember à exegese de Gênesis 1 é inestimável. Sua teoria do intervalo permanece atual e válida, embora possa (e a meu ver deva) ser compatibilizada com a interpretação dos seis dias como eras. Porém, ao harmonizarmos as teorias, é útil apararmos os excessos da exegese literal, que Pember herdou do modelo patrístico de interpretação. Não estamos mais no século III ou IV, nem no século de Pember, para reincidirmos em tal erro. Estamos no século XXI e é nele que Deus quer que estejamos. Ou será que a exegese literal da criação se ajusta ao século em que vivemos?

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Evidências da Criação (5): Criar e Fazer

A ideia de criação do Universo e do homem por Deus só assumiu importância decisiva, em Israel, nos últimos séculos antes de Cristo. São dessa época as principais passagens do Antigo Testamento e o versículo de 2º dos Macabeus sobre o tema: “Suplico-te, meu filho, que olhes para o céu e para a terra e para todas as coisas que há neles, e que penses bem que Deus as criou do nada, assim como todos os homens” (2 Mc 7:28).
Em que pese a efervescência da ideia de criação, em Israel, entre os séculos VI e I a. C., não há registros de que a recriação tenha sido discutida ou conhecida, nessa época. Nem Macabeus, nem Flávio Josefo, nem Fílon a mencionam. Como é claro que uma variante tão fundamental de Gênesis quanto essa teria sido registrada, se houvesse sido cogitada, o fato de não existir registro ou sinal dela, na literatura, parece indicar que a ideia permaneceu desconhecida na Antiguidade.
A inserção da recriação, no pano de fundo de Gênesis 1, não contradiz as práticas literárias dos séculos antes de Cristo. Métodos esotéricos (permitam-me utilizar a palavra, não no sentido pejorativo, mas no de ensinamento restrito a poucas pessoas) de composição e transmissão de textos eram muito comuns nesse tempo. Há pouca dúvida de que tenham sido empregados também em Israel, como estratégia de defesa contra os mecanismos de controle ideológico concentrados no Templo de Jerusalém.
Para não ser marginalizado ou perseguido, pelas autoridades religiosas, que viam a criação de outro modo, provavelmente, o autor de Gênesis 1 inseriu a recriação no pano de fundo do texto que redigiu, reservando o primeiro plano para a criação original. Esse pano de fundo não foi percebido, pelo compilador ou editor final de Gênesis, nem pelas pessoas que abordaram o capítulo, desde que foi escrito, por terem mentalidade mais próxima da que o versículo de 2º dos Macabeus exprime.
Uma das melhores maneiras de se comprovar esses planos distintos (o primeiro reservado à criação, o outro, à recriação), no texto de Gênesis 1, é atentar para os significados dos verbos usados. Em As eras mais primitivas da Terra, G. H. Pember diferenciou as palavras bara e asah, usadas pelo escritor sagrado para descrever os atos criadores de Deus. De acordo com ele, bara significa criar sem matéria preexistente, e asah, criar a partir de um material.
Porém, se adotarmos essa diferença, teremos de concluir que ela vigora no capítulo 1, mas não no capítulo 2, pois as aves foram criadas, em 1:21, e formadas da terra, em 2:19. Semelhantemente, a mulher foi criada, em 1:27, e formada a partir da costela do homem, em 2:21-22.
O fato de a diferenciação entre bara e asah estar enraizada no primeiro, mas não no segundo capítulo de Gênesis confirma que o editor final do livro não a percebeu. Se a tivesse notado, no mínimo, ele teria mantido a distinção, no capítulo 2, o que não aconteceu. Mais provável é que a tivesse divulgado e que a doutrina variante houvesse sido registrada, por outros autores, o que vimos não ter ocorrido, pois a literatura antiga não a menciona.
Essas ideias são reforçadas pela atribuição muito comum dos capítulos iniciais da Bíblia a autores distintos, que viveram em épocas também distintas. A atribuição permite explicar por que o capítulo 1 adota a distinção entre os verbos, enquanto o capítulo 2 não o faz. Na verdade, o primeiro texto foi escrito numa época por certo autor, e o outro, numa outra época, por outro autor. Como a doutrina implícita em Gênesis 1 não foi divulgada, a divergência entre os capítulos 1 e 2 não foi corrigida nem debatida.
E. F. Kevan modificou ligeiramente a diferenciação de Pember. Ele afirmou que asah é empregado para atos de criação de seres preexistentes, e bara, para atos de criação de seres totalmente novos. Nas palavras do próprio Kevan: “O principal é sublinhar o significado de bara que apenas supõe a produção dum ser, completamente novo, que antes não existia”.
A observação consta num comentário sucinto do Livro de Gênesis (O Novo Comentário da Bíblia. São Paulo: Vida Nova. Vol. I, p. 83). Não se segue a demonstração de que a diferença apontada é verdadeira. Podemos propor uma demonstração, observando que bara é usado apenas para a criação dos seres que recebem a bênção de Deus. É o caso das aves, das grandes baleias e do homem. A criação de todos os demais seres é descrita por outros verbos.
O princípio subjacente à demonstração é de que Deus não consagra, nem atribui sua bênção em vão. No contexto da criação, ele o faz porque o ser consagrado passou à existência naquele momento. E se for realmente assim, a palavra bara estará a indicar os seres que vieram à existência durante os seis dias, e asah (e outros verbos), a recriação de seres que haviam existido antes. Portanto, para o autor original, criar não é apenas gerar, produzir, mas também abençoar, consagrar. A bênção divina é o que introduz cada tipo de ser na existência. Ela inaugura a espécie.
Uma outra maneira de exprimir essa diferença entre bara e asah consiste em afirmar que os atos de recriação recapitulam a origem dos mesmos seres, numa época anterior, quando eles foram criados e abençoados. O fundamento bíblico dessa recapitulação é o versículo 2:4, que afirma: "Esta é a gênese dos céus e da terra quando foram criados".
A palavra gênese (em hebraico, toledot), nesse versículo, significa história. Indica, portanto, a história do capítulo 1 ou a do capítulo 2. Como esta não narra a criação dos céus, mas a de um jardim e de Adão, o verso só se pode referir aos sete dias. E as palavras "quando foram criados" só podem indicar que os sete dias contêm as origens, a formação inicial, dos céus, da terra e dos seres neles existentes. De sorte que os das em que o verbo bara não aparece tratam da recriação, mas recapitulam a criação.
As observações acima permitem-nos identificar duas sequências de atos de criação, que se sobrepõem: uma sequência designada pela palavra asah e outra composta com bara. A sequência de atos indicados por asah inclui a formação do firmamento (v. 7), dos luzeiros (v. 16), dos répteis, dos animais selvagens, dos domésticos (v. 25) e do homem (v. 26). Se quisermos, podemos acrescentar os itens não designados por qualquer dos dois verbos, assim como a luz do primeiro dia, o oceano e as nuvens. A sequência de bara é composta com as aves, as grandes baleias (v. 21) e o homem (v. 27). A primeira é a sequência em que Deus realizou seus atos criadores originais.
Resumindo: deve existir uma diferença entre bara e asah. Do contrário, a cosmogonia de Gênesis não empregaria os dois verbos. No entanto, todas as diferenciações até hoje propostas falharam. A única que resiste às críticas é a que reconhece que bara refere-se a atos criadores originais, e asah, a atos de recriação. Se o autor de Gênesis quis descrever a criação original, mais que a recriação, os atos indicados por asah são os que a representam. Os designados por bara só ocorreram em momento posterior, quando Deus recriou o planeta.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Evidências da Criação (4): Os Seis Dias

A palavra dia (em hebraico yom), no primeiro capítulo de Gênesis, pode significar um período de 24 horas ou de extensão indeterminada. Com base nesse último significado, já se propôs que a criação dos seis dias se deu em seis eras.
Em 1876, George Hawkins Pember publicou Earth’s earliest ages, em que combateu a interpretação dos dias como eras geológicas, por entender que a palavra yom pode significar período indeterminado, mas o mesmo não ocorre com os termos tarde e manhã, em que os dias da criação se dividem e que só podem indicar as metades dos ciclos de 24 horas (Earth’s earliest ages. 2ª ed. 1884. pp. 87-88).
Essas dificuldades da compreensão dos dias como eras levaram Pember a explicar os fósseis de seres vivos que viveram há milhões de anos, por meio da teoria do intervalo entre Gênesis 1:1 e 1:2. O primeiro desses versículos descreve a criação original dos céus e da Terra. Pember explicou os fósseis como remanescentes desse período, em que a Terra foi amplamente habitada por seres vivos. Até que um cataclisma introduziu o caos do segundo verso. Então, durante os seis dias, Deus recriou o que fora destruído pelo cataclisma.
É preciso lembrar que, após mais de um século da publicação de Earth’s earliest ages, está claro que nem o evento extintivo, nem a recriação mencionados na obra podem ter ocorrido há poucos milhares de anos, como Pember supôs. A impressão que se tem é de que, do modo como foi elaborada, a teoria do intervalo troca uma criação há 6.000 anos por uma extinção e uma recriação nessa mesma época, o que pouco altera o descompasso de Gênesis com a evidência científica, já que as provas de uma Terra jovem são tão inexistentes quanto as de uma extinção em massa há apenas alguns milhares de anos.
Os problemas da teoria de Pember só desaparecem, quando a adotamos juntamente com a interpretação dos dias como períodos indeterminados, que fazem o grande cataclisma e a recriação recuarem indefinidamente. O intervalo de Gênesis 1:1-2 permite entender os seis dias como uma progressiva passagem do caos à ordem. Essa transição explica por que as palavras tarde e manhã foram empregadas, em cada um dos seis dias: como período de trevas, tarde refere-se metaforicamente ao caos (ou à ordem inferior) existente antes de Deus intervir; já a palavra dia indica a nova ordem implantada pela intervenção divina.
Essa reinterpretação de tarde e manhã permite explicar ainda outras características do texto da criação. Por exemplo: todos os seis primeiros dias são encerrados pela expressão “Houve tarde e manhã, o dia tal”. Só no sétimo dia, essas palavras não aparecem. A omissão pode ser explicada, com base em que, no sétimo dia, a obra de Deus estava completa. Não havia mais caos ou ordem inferior, apenas a ordem sublime da criação divina.
No entanto, apesar dessas vantagens, assim como ocorre com a teoria do intervalo, os dias-eras não bastam para eliminar as dificuldades do relato da criação. Tomadas sozinhas, as eras de Gênesis 1 formam uma sequência bastante distinta da que a ciência descobriu. Por exemplo, elas indicam que os répteis surgiram depois das aves e das “grandes baleias” (Versão Almeida Fiel), o que contraria os dados científicos.
Porém, é notável que, ao serem adotadas simultaneamente, as teorias do intervalo e dos dias-eras eliminam toda e qualquer incompatibilidade do relato da criação com as descobertas da ciência. O intervalo restringe a criação original ao primeiro versículo bíblico (“No princípio criou Deus os céus e a terra”). E a interpretação dos dias como eras permite entender que a extinção em massa e a restauração do planeta ocorreram numa época indeterminada, não há 6.000 anos.