domingo, 23 de outubro de 2011

A Casa Sobre a Rocha

Ao longo dos seus 87 anos de vida, John Wesley travou cerrada luta contra o antinomianismo, a saber, a doutrina de que o crente em Cristo é livre de toda espécie de lei. Algumas vezes, essa luta rendeu-lhe a acusação de desvio da graça, entre outras. Porém, um olhar retrospectivo permite entender que ela foi importante para moderar os excessos do hipercalvinismo daquela época.
No Antigo Testamento, toda outorga importante de mandamentos é seguida de sérias exortações para que eles sejam observados (Dt 6:6-7; 32:46-47). Seguindo esse costume, no sermão do monte, após interpretar e aplicar os mandamentos do Antigo Testamento a várias situações de vida, Jesus admoestou seus ouvintes a praticá-los, mediante a parábola da casa edificada sobre a rocha: “Todo, pois, que ouve estas minhas palavras, e as pratica, será comparado a um homem prudente, que edificou a sua casa sobre a rocha [...] e todo aquele que ouve estas minhas palavras e não as pratica, será comparado a um homem insensato, que edificou a sua casa sobre a areia” (Mt 7:24,26).
As palavras que devem ser ouvidas e praticadas, de acordo com a exortação de Jesus, são as do seu discurso, em Mateus 5 a 7. Nessa longa passagem, Jesus basicamente interpretou a lei de Moisés (capítulo 5) e a aplicou à vida de adoração, ao trato com recursos materiais (capítulo 6) e ao relacionamento com o próximo (capítulo 7). Por isso, entender o sermão do monte à parte da legislação mosaica é retirá-lo do contexto histórico. É esquecer que Jesus era um mestre judeu ensinando discípulos também judeus. Em hebraico, a palavra torá (lei), na verdade, significa instrução. Como mestre, tudo o que Jesus transmitia era torá, instrução, portanto não estava desvinculado da Torá de Moisés.
À luz desses fatos, é surpreendente que o zelo pela Torá seja considerado descabido em um crente em Jesus. Não foi esse o ensinamento do mestre da Galileia. De acordo com ele, quem ouve e pratica a sua interpretação da lei (Torá) é como o homem que constroi a sua casa sobre a rocha; quem a ouve e não a pratica é como o que a edifica sobre a areia. Portanto, antes de tudo, edificar a casa na rocha não é considerar a Torá abolida, como muitos fazem, mas tomá-la como importante parâmetro para a própria vida.
Ter a Torá em alta estima é uma preocupação tão atual e pertinente, sob o Novo Testamento, quanto sob o Antigo. Vejamos como Jesus ensinou a interpretar esse monumento legislativo. No sermão do monte, ele mostrou que os mandamentos de Deus, na Torá, são antes de tudo elásticos, que eles se alongam, conforme os inserimos nas nossas situações de vida. A santidade daquele que disse “Não matarás” exige entendermos que a proibição significa também “Não te encolerizarás” (Mt 5:21-22). E a santidade daquele que disse “Não adulterarás” importa não olhar para uma mulher com intenção contrária a esse mandamento (Mt 5:27-28). Em síntese, Jesus mostrou que cada mandamento da lei contém muito mais do que as suas palavras exprimem.
Por outro lado, o Novo Testamento mostra que a observância da Torá nunca foi demandada de não judeus. Quando a contenda sobre a circuncisão e o cumprimento da Torá, pelos gentios, foi suscitada pelos judaizantes, em Atos 15:1,5, os apóstolos e anciãos de Jerusalém, reunidos com Paulo, Barnabé e outros mais, escreveram-lhes que os únicos mandamentos (ditos essenciais) que os gentios deveriam guardar eram: abster-se de coisas sacrificadas a ídolos, do sangue, da carne sufocada e das relações sexuais ilícitas (At 15:28-29).
Esses mandamentos não foram selecionados arbitrariamente. Os três primeiros reproduzem leis que Deus prescreveu aos descendentes de Noé (Gn 9:4). Os gentios cristãos do primeiro século eram descendentes de Noé. Portanto, deviam observar os mandamentos entregues a ele. Além disso, deviam abster-se apenas das relações sexuais ilícitas, uma expressão com significado não totalmente claro. Assim, os gentios foram dispensados do cumprimento da Lei de Moisés.
Não foram, porém, dispensados da observância dos mandamentos que Jesus entregou a seus discípulos. Esses mandamentos, denominados lei de Cristo (1 Co 9:21), obrigam tanto judeus como gentios. Eles nada mais são que a legislação de Moisés interpretada de acordo com o coração de Deus e depurada das concessões devidas ao coração do homem. Jesus afirmou, por exemplo, que o direito de dar carta de divórcio às mulheres fora introduzido, na Lei de Moisés, como concessão à dureza do coração do povo judeu (Mt 19:8). Certamente, essa não foi a única concessão à dureza humana, na legislação mosaica, Porém, sob o reino dos céus, essa lei é tomada de acordo com o coração de Deus, não mais com o do homem, e as concessões são retiradas.

"Ainda hoje, a aversão aos mandamentos de Deus e de Cristo continua a constituir o velho erro, que Wesley denominou antinomianismo. Ainda hoje, “aquele que diz: Eu o conheço, e não guarda os seus mandamentos, é mentiroso” (1 Jo 2:4)."

Em passagens como as citadas acima, Jesus deixou muito claro o modo como interpretava a Lei de Moisés. Não deixou menos claro que essa lei permanece em vigor, embora deva ser interpretada de maneira nova. A rocha sobre a qual nos cabe construir nossa casa são os ensinamentos legislativos de Jesus. O sermão do monte é o texto mais importante a respeito deles. Porém, o Novo Testamento e os escritos joaninos, em particular, estão repletos de alusões a essa lei (Jo 14:15,21; 1 Jo 3:22; 1 Jo 5:2-3).
Ainda hoje, a aversão aos mandamentos de Deus e de Cristo continua a constituir o velho erro, que Wesley denominou antinomianismo. Ainda hoje, “aquele que diz: Eu o conheço, e não guarda os seus mandamentos, é mentiroso” (1 Jo 2:4). Jesus colocou essas coisas de modo bem simples: “Se me amais, guardareis os meus mandamentos” e “aquele que tem os meus mandamentos e os aguarda, esse é o que me ama” (Jo 14:15,21). “Porque este é o amor de Deus, que guardemos os seus mandamentos” (1 Jo 5:3).

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

O Outro Filho

Diferentemente das parábolas da ovelha e da dracma perdida, que têm duas personagens principais, a do filho pródigo mostra-nos três: o pai, o filho mais moço e o primogênito. Não são poucos os versos que tratam da relação do pai com o filho que permanece na sua casa e adota um comportamento irrepreensível.
Essas características do texto de Lucas colocam os dois filhos no mesmo plano, dão-lhes igual relevo, apesar de o imaginário cristão ter elaborado muito mais com um deles do que com o outro. Por isso, embora a atenção geral se concentre no filho pródigo, para chegarmos a uma compreensão mais plena da parábola, precisamos olhar com a mesma penetração para o seu irmão.
O filho mais velho não é apenas o primogênito destinado a herdar porção dobrada dos bens paternos. É alguém completamente exemplar, que afirma fazer a vontade do pai de maneira perfeita. Tão grande é a sua integridade que a confissão que lhe sai dos lábios é o contrário exato da do filho pródigo. Enquanto este diz "Pai, pequei contra o céu e diante de ti", o filho mais velho proclama: "Há tantos anos que te sirvo sem jamais transgredir uma ordem tua" (Lc 15:29).
Não há pouca verdade na confissão do primogênito. Em muitas passagens, Jesus declarou não ter vindo para os justos, mas para os pecadores. Com essa frase, ele reconheceu que os judeus religiosos eram justos, que eles eram possuidores de uma modalidade de justiça religiosa. Por isso também, nos primeiros séculos, o primogênito foi quase sempre interpretado como o povo judeu, como Tertuliano nos testemunha (TERTULIANO. La pudicicia. Madrid: Ciudad Nueva, 2011. p. 223).
Este é um ponto muito importante. A relação do filho mais velho com o pai não é desprezível ou vil. Tampouco é pecaminosa ou diabólica. Pelo contrário, é uma relação positiva. Por isso, o pai afirmou: "Meu filho, tu sempre estás comigo; tudo o que é meu é teu" (Lc 15:31). O estar sempre junto do pai e o possuir o que é dele resumem a justiça segundo a lei, que Paulo viveu plenamente antes de se converter. Enquanto seguiu as tradições de seus pais, o apóstolo foi irrepreensível "quanto à justiça que há na lei" (Fp 3:6). Essa declaração confirma que existe não só uma justiça segundo a lei, mas um estado de perfeição nela.
Perfeito é o particípio de perfazer. O termo não indica, apenas, a qualidade do que não tem falhas. Pode indicar, simplesmente (como em Filipenses 3:15), o que passou por um processo de perfazimento ou desenvolvimento integral. Perfeito é o que realizou totalmente um potencial. Em relação à Lei de Moisés, perfeito é o fariseu, o escriba, o sacerdote que desenvolveu até as últimas consequências o estilo de vida que o leva a meditar e cumprir os mandamentos de Deus. Isso é ser irrepreensível quanto à justiça que há na lei (Fp 3:6). Isso é ser justo e não precisar de salvação, ser são e não precisar de médico.
Podemos ser levados a pensar que o filho mais velho representa apenas os judeus religiosos. Na realidade, ele está no lugar de todos os que se relacionam com Deus com base na justiça da lei. Em Religião e repressão, o teólogo Rubem Alves mostrou que, embora proclame a justificação pela fé, o protestantismo tende a reconduzir seus adeptos a uma relação com Deus baseada na legalidade. Em todas as Igrejas protestantes, os códigos de disciplina separam o certo do errado, a bênção da maldição, o divino do demoníaco. Eles definem o que pode e o que não pode existir nas Igrejas. Portanto, o que forma a mente dos crentes. Como os códigos são compostos por regras, toda a maneira protestante de viver e pensar é baseada na lei, à qual a graça é de certa forma subordinada e reduzida. Paulo exclamaria diante dessa situação: "De Cristo vos desligastes vós que procurais justificar-vos na lei, da graça decaístes" (Gl 5:4).
Tudo isso inspira a grande questão que se pode formular sobre o segundo filho: até onde se estende o seu exemplo? Quantas pessoas são por ele abrangidas? A quantas se aplica o modelo do seu comportamento? A situação espiritual desse filho não é aplicável apenas ao judaísmo e ao protestantismo. Ela se reproduz todas as vezes em que alguém delimita o campo de aplicação de uma norma, cuja função é estabelecer uma diretriz geral. Esse tipo de obediência à norma é o que introduz o princípio do filho mais velho.
Os que insistem em aplicar a norma da lei a um sem-número de situações previamente especificadas acabam por se deparar com duas únicas possibilidades: guardar a norma ou violá-la. Ao optarem por guardar o mandamento, pode-se dizer que eles o reproduzem na sua vida. Na expressão de Rubem Alves, eles fazem da vida uma réplica da norma, embora as suas experiências existenciais não caibam no molde de norma alguma.

"O caráter externo da oposição igreja-mundo revela que esse não é o conflito mais perigoso para o povo de Deus. Bem mais difícil é um grande reino ser derrotado por inimigos externos do que por divisões e contendas intestinas. No caso do reino dos céus, a grande luta intestina que se desenrola é entre o filho pródigo e seu irmão."

O drama consistente em tomar os mandamentos divinos de maneira absoluta está retratado na relação do filho mais velho com o pai. A parábola termina no ponto em que a fidelidade cega do primogênito faz surgir um conflito sério com o outro filho. O Novo Testamento não nos deixa sem a continuação dessa história. De Mateus a Judas (Apocalipse é diferente), deparamo-nos com a oposição entre o filho mais velho e o mais moço. Em toda parte, o que é nascido da carne persegue o que é nascido do Espírito. Não nos diz Paulo isso (Gl 4:29)? Os Evangelhos não são um relato dessa exata perseguição? Não foi ela o motivo básico da crucificação de Jesus? E Atos, não estende a perseguição legalista aos apóstolos? As Epístolas não estão inseridas no ambiente desse conflito?
Mais que o conflito igreja-mundo, o Novo Testamento retrata a luta do filho mais velho com o mais moço. Esse é o seu enredo básico. A ele a 2ª Epístola a Timóteo se refere, ao formular a declaração aterradora de que "todos quantos querem viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos" (2 Tm 3:12).
Contudo, eis que os discípulos de Jesus vivem mergulhados no conflito igreja-mundo. Eis que eles lutam essa luta secundária como se fora principal. Não se pode negar que a exortação que mais faz tremer o púlpito cristão, hoje em dia, é contra os perigos do mundo. No entanto, o caráter externo da oposição igreja-mundo revela que esse não é o conflito mais perigoso para o povo de Deus. Bem mais difícil é um grande reino ser derrotado por inimigos externos do que por divisões intestinas. No caso do reino dos céus, a grande luta intestina que se desenrola é entre o filho pródigo e seu irmão.
Não há dúvida de que a Bíblia descortina um grande conflito às vezes denominado do bem contra o mal, às vezes chamado da luz contra as trevas ou ainda por outros nomes. Porém, não é menos certo que esse conflito central é mascarado por outro, que ocorre simultaneamente e chega a se confundir com ele. Cumpre-nos discernir a sobreposição e apontar qual dos dois é o conflito primário. Só assim, poderemos lutá-los com êxito. Para vencer o conflito externo, é sempre preciso derrotar primeiro o inimigo interno.
Apesar da ferocidade com que o filho mais velho persegue o mais moço, Jesus recomenda uma atitude geral de brandura para com ele. Podemos considerar Jesus severo, ao criticar os escribas e fariseus (Mt 23), mas não podemos negar que ele sempre os abraçou e acolheu. Não é diferente com o pai da parábola. Ele é o símbolo máximo da aceitação do filho mergulhado no legalismo até mais não poder. A tal ponto o pai tolera as atitudes do filho que chega a descrever positivamente a sua situação.
Enfim, se o conflito entre os filhos é o prolongamento lógico da parábola, o amor incansável do pai ao perseguidor apresenta-se como solução para o conflito. Assim como o amor manifesto na pressa do pai ao correr e abraçar o filho pródigo salvou-o, esse mesmo amor manifesto como paciência haverá de selar a paz do filho irreconciliado com seu irmão, resolvendo o conflito típico da casa de Deus.

sábado, 8 de outubro de 2011

O Corpo de Cristo

Um dos maiores legados de Watchman Nee às gerações recentes foi a clara denúncia que fez das divisões no meio cristão. Com a nítida preocupação de opor a doutrina bíblica a essas divisões, Nee desenvolveu sua doutrina da igreja a partir de Mateus 16:18 e 18:15-17. Esse método de exposição foi bem-sucedido, na medida em que esses textos contêm as únicas menções da palavra igreja pelo próprio Cristo.
No entanto, até pelo seu tamanho reduzido, os versos de Mateus não fornecem uma elucidação completa da igreja no Novo Testamento. Ciente disso, Nee desenvolveu a sua reflexão sobre a igreja, em muito maior profundidade, em obras como A vida normal da igreja cristã e Palestras adicionais sobre a vida da igreja. Alguns de seus leitores e seguidores, por sua vez, adotaram o caminho alternativo de explicar a igreja universal e a local por uma série de metáforas bíblicas, assim como o corpo de Cristo, o rebanho, o edifício e a lavoura de Deus, entre outras.
Embora as metáforas sejam muito importantes, precisamos tomar o cuidado de não as passar adiante da revelação com sentido claro, que Deus transmitiu nas Escrituras. Ao nos depararmos com um ensino metafórico e outro com sentido claro, devemos dar preferência à revelação clara de Deus e subordinar o ensino alegórico a ela.
Esse princípio de interpretação defendido por Lutero, na histórica discussão que travou com Erasmo, pode ser aplicado, de modo eficaz, à revelação clara da igreja e a metáforas como o corpo de Cristo, o edifício de Deus etc. Não resta dúvida de que a igreja é adequadamente descrita por essas metáforas, porém a revelação primária e básica do Novo Testamento sobre ela deve ser extraída das palavras claras de Cristo e dos autores das Epístolas.
À luz desses princípios, vejamos o que os versos de Mateus sobre a igreja de fato ministram. O versículo 16:18 contém duas metáforas: a da edificação da igreja e a das portas do hades (inferno). Isso o torna bastante difícil. Para entender o seu significado, é útil começar pelo que há de mais claro no verso. Refiro-me à própria palavra ekklesia. Todos os expositores do Novo Testamento concordam que esse termo grego significa assembleia ou congregação. Portanto, antes de tudo, a igreja é uma coletividade de pessoas reunidas e não dispersas.
O próprio Watchman Nee enfatizou que a igreja, em sentido local, é constituída por todos os cristãos em determinada cidade. Aliás, em A vida normal da igreja cristã, Nee acrescentou também as vilas como bases geográficas, nas quais uma igreja neotestamentária pode ser constituída. No entanto, a inclusão de todos os cristãos na igreja da cidade, da vila ou de outra circunscrição é menos uma contribuição pessoal de Nee ao entendimento da igreja do que um reflexo da compreensão usual dos cristãos.
Esse ensinamento é questionável. Se a igreja for todos os cristãos, numa vila, cidade ou outra circunscrição, seu aspecto de assembleia ficará prejudicado, pois ali poderão existir cristãos reunindo-se e não se reunindo. Como a palavra ekklesia nunca foi empregada, na Bíblia, para indicar pessoas não reunidas, esse aspecto da doutrina de Nee deve ser tomado com o necessário cuidado.
Algumas vezes ocorre de determinada palavra perder o sentido original, após ser muito empregada em outro sentido. Não há, porém, sinais de que isso estivesse a ocorrer com o termo ekklesia, no primeiro século. Se olharmos atentamente para o Novo Testamento, perceberemos que o termo foi empregado para a congregação de Israel no deserto (At 7:38 - grego), porém nunca para esse mesmo povo, no estágio posterior em Canaã. Por que essa clara diferenciação? Somos levados a pensar que o motivo é o fato de Israel, em Canaã, não viver reunido em assembleia como no deserto. Isso basta para indicar que ekklesia não estava em processo de vir a ser utilizada para designar um grupo de pessoas não reunidas, à época do Novo Testamento.
O mesmo princípio se aplica à igreja universal. Quando declarou “sobre essa rocha edificarei a minha igreja”, Jesus não se referiu a uma igreja dispersa ou abstrata. Ele não se referiu à igreja como uma lista de pessoas. A igreja universal não é uma lista com os nomes dos crentes em Cristo de todas as épocas e lugares. Ela é os crentes congregados, reunidos em assembleia. Pode-se afirmar até que a edificação da igreja (metáfora) é a adição de novos e novos membros a Cristo, através dos séculos, seguida da reunião deles num corpo. A reunião é tão importante quanto a adição, para termos a igreja.
Sob essa luz, a declaração de Mateus 16:18 é uma maravilhosa promessa, por meio da qual nos é garantido que, ainda que todas as forças do Universo atuem para desunir e afastar os cristãos, eles serão reunidos por seu Senhor e Mestre numa assembleia definitiva. Nem a força mais terrível de todas (a morte), representada pela palavra hades (inferno), prevalecerá contra essa assembleia.
De modo um pouco contrário a isso, porém, ao longo da História, a igreja universal foi entendida de três maneiras principais. Entre o primeiro século e a consolidação do domínio da Igreja de Roma, a expressão foi usada para indicar a totalidade dos cristãos na Terra. Quando o domínio de Roma se consolidou, por volta do século IX, a igreja universal passou a ser compreendida como instituição, isto é, como a própria Igreja Romana. Por fim, no século XVI, ganhou força a concepção da igreja invisível formada por todos aqueles a quem Deus concede a graça salvadora. Essa última concepção foi adotada pelos dois ramos originais da Reforma: luteranos e reformados.
Nenhuma dessas concepções históricas faz jus ao aspecto de assembleia da igreja. A igreja espalhada pela Terra não é uma assembleia. A Igreja Romana como instituição tampouco o é. E a igreja invisível não se constitui em assembleia pelo fato de receber a salvação de Cristo. Pode-se, pois, perguntar o que é e como se forma a igreja universal. De acordo com Mateus 16:18, a igreja se forma pela sua edificação, ou seja, pela reunião de todas as pessoas que se agregam a Cristo por meio da fé, ao longo dos séculos. Esse número nunca se perfaz totalmente na Terra. Por isso, a igreja universal nunca está inteiramente na Terra. É biblicamente equivocado considerar um conjunto qualquer de cristãos, vivendo em determinado período (por exemplo, hoje), como o corpo de Cristo.
Um dos erros mais comuns entre leitores não muito cuidadosos de Watchman Nee, nos tempos atuais, é a aplicação de metáforas da igreja universal, como o corpo de Cristo, a contingentes limitados de cristãos sobre a Terra. Mais particularmente a cristãos sob determinado ministério. O equívoco advém do fato de muitos leitores de Nee estarem envolvidos em divisões ministeriais, hoje em dia. O grupo sob o ministério com maior alcance geográfico alega ser o corpo de Cristo e acusa o outro grupo de se separar do corpo, por se ter separado dele. E por incrível que possa parecer, o outro grupo alega que os seus integrantes é que são o corpo.
Nenhum dos dois grupos está alinhado com o ensinamento de Nee, nesse ponto, pois ele sempre combateu tenazmente as divisões no meio cristão. Reconhecer a condição ou a posição espiritual de corpo de Cristo (e não de uma parte dele) a cristãos sob determinado ministério, tratá-los como se fossem a igreja universal, é uma atitude antes de tudo divisiva. Portanto, contrária à obra de Nee. Ninguém que conheça adequadamente essa obra pode negar tal fato.
À luz do Novo Testamento, atribuir a condição ou a posição de corpo de Cristo a um conjunto limitado de cristãos não é apenas repetir os erros da História da Igreja: é piorá-los muito, pois os contingentes identificados com a igreja universal, hoje, são muito mais reduzidos que os de ontem.
O corpo de Cristo é uma metáfora da igreja universal (Ef 1:22; Cl 1:18). Nenhum grupo ou contingente cristão pode-se dizer esse corpo, a menos que revogue o ensinamento claro da Bíblia por uma metáfora.