2- Tribunal, lugar chamado Lithóstrotos [Pavimento], em hebraico Gabbathá (Jo 18, 13)
3- «Ágora de cima» (praça do mercado e do tribunal)
5- Átrio da flagelação
12- Saída para o Calvário
Em Antiguidades, Josefo inseriu a famosa passagem sobre Jesus, logo após a narrativa de dois episódios em que Pilatos entra em confronto com multidões de judeus. Esse parece ter sido o contexto imediato do julgamento. À luz dos acontecimentos antecedentes, Pilatos deve ter considerado o caso de Jesus muito diferente: dessa vez, os acusadores do rabi galileu eram as autoridades máximas da nação de Israel.
Por outro lado, de todos os ângulos, o caso de Jesus parecia ser irrelevante para os romanos. Isso significava uma oportunidade para Pilatos agradar os maiorais da sua província, para ele ganhar a sua simpatia. Afinal, se não havia conflito de interesses, entre Roma e Israel, por que desagradar os sacerdotes judeus? Por que lhes negar o que suplicavam com tantas instâncias?
No entanto, a passagem mais elucidativa da morte de Cristo, que se encontra em Josefo, é a meu ver a informação transmitida por ele, não propriamente a respeito do caso, mas sobre o costume das autoridades judaicas de abrir as portas do Templo, à meia-noite da Páscoa. A passagem do historiador judeu diz exatamente: “Copônio governava a Judeia, quando chegou o dia da festa dos Ázimos, a que chamamos Páscoa; os sacrificadores, segundo o costume, abrem[iram] as portas do templo à meia-noite” (JOSEFO, Flávio. JOSEFO, Flávio. Antiguidades judaicas. In História dos hebreus – obra completa. 5ª ed., Rio de Janeiro: CPAD, 1999. Livro Décimo-Oitavo, Capítulo 3, p. 417).
Na cronologia da última semana, Jesus foi preso, na noite da Páscoa. A ordem de prisão emanara das autoridades do Templo, que parecem ter-se sentido desprestigiadas por ele ter expulsado os cambistas e vendilhões do Templo, sem autorização delas, quatro dias antes. Ora, se as autoridades haviam ordenado a prisão, nada mais adequado que Jesus ser apresentado a elas, após preso.
Porém, de acordo com Josefo, os sacerdotes e os chefes do Templo deviam estar naquele lugar sagrado, cujas portas haviam sido abertas, no horário em que a prisão ocorreu. Embora os Evangelhos não afirmem que Jesus foi levado ao Templo, mas à casa do Sumo-Sacerdote, um edifício ficava no caminho do outro. Qualquer mapa da Jerusalém da época de Jesus mostra que as portas mais próximas do caminho para o Getsêmani (onde ocorreu a prisão) abriam-se uma para o interior do Templo e a outra, para o muro lateral deste. Como a prisão de Jesus foi ordenada, pelos principais sacerdotes, que provavelmente estavam no Templo, quando ela foi executada, é provável que os guardas que o conduziram tenham entrado por uma dessas duas portas para avisar os sacerdotes de que a ordem fora cumprida.
Shimon Gibson escreveu Os últimos dias de Jesus, com o objetivo confesso de estabelecer, o mais definitivamente possível, a posição da Arqueologia sobre a última semana. A repercussão de sua obra, no meio especializado, pode ser resumida na seguinte declaração: "[O livro de Gibson] permeia a mitologia do século IV com evidências do século I, levantadas através do seu conhecimento profundo da notável cidade de Jerusalém" (KROSNEY, Herbert, co-autor de O Evangelho perdido: como o mundo veio a conhecer a versão de Judas Iscariotes sobre a morte de Cristo).
Gibson discorda dos especialistas que fazem o percurso do Getsêmani à casa de Caifás passar pela porta por mim mencionada. Ele encontra um caminho talvez mais consentâneo com a mentalidade militar, que passa por aquela porta e segue até a entrada seguinte de Jerusalém, situada rente ao Tanque de Siloé.
Uma pequena tropa como a que realizou a prisão de Jesus deve ter definido o seu itinerário de acordo com as suas finalidades militares. Para Gibson, como tinham de ir à casa de Caifás, os soldados o fizeram da maneira mais discreta possível. Se uma multidão estava aglomerada no Templo, eles entraram pela porta mais distante do grande edifício religioso, em toda a extensão da muralha ao lado do Getsêmani. Porém, o caminho que penso ter sido o real sugere outro plano. Sugere que as autoridades judaicas planejaram e mandaram executar a prisão de Jesus de modo teatral. Foi seu propósito colocar Jesus contra a multidão de judeus que tinham ido celebrar a Páscoa e não o conheciam. Para isso, era importante que Jesus fosse aprisionado por uma escolta romana e outra judaica, o que indicaria a concordância das autoridades de ambos os povos. E era preciso fazer o cortejo com o prisioneiro passar rente ao Templo para que a convergência das autoridades e a culpabilidade patente do prisioneiro fossem demonstradas. Assim, a prisão ganharia relevo muito maior e imediato sentido político.
Ao avistar a escolta mista, o intrépido, mas precipitado Pedro reagiu da maneira mais apropriada à cena: atacou um dos guardas. Jesus o repreendeu por isso. Ele não faria parte da encenação. No que lhe dizia respeito, a sua morte seria um ato inteiramente autêntico, não encenado, jamais representado.
Antes de ser conduzido à casa do Sumo-Sacerdote, portanto, Jesus e a escolta passaram pelo Templo, segundo o que fora planejado pelos autores da ordem de prisão. É provável que o pomposo cortejo tenha até mesmo parado, algum tempo, onde a multidão se encontrava, antes de prosseguir para a residência do chefe da nação, que ficava no fim, à esquerda de uma linha reta traçada a partir da lateral do Templo. Foi nesse momento que a multidão aglomerada, nos arredores do imenso lugar sagrado, viu Jesus pela primeira vez. Porém, ela o viu, como as autoridades o tinham fantasiado: como um criminoso preso por seus atos contrários à lei. Jesus foi-lhes apresentado como uma personagem, não como uma pessoa. Foi-lhes apresentado como malfeitor.
Qualquer um que avistar um homem algemado conduzido por guardas para depor, no Fórum, nos nossos dias, pensará que se trata de um criminoso. Guardadas as diferenças devidas à época, foi o que a multidão reunida no Templo pensou, ao avistar Jesus. Ainda mais com uma escolta mista, judaica e romana, ao seu lado. Aos olhos da multidão, Jesus pareceu não apenas culpado, mas duplamente culpado, pois judeus e romanos o tratavam da mesma forma.
Nas celebrações da Páscoa, a cada ano, a população de Jerusalém aumentava várias vezes, devido à multidão de judeus, prosélitos e gentios devotos, que afluíam de todos os lugares do mundo. Segundo Josefo, quando Jerusalém foi cercada, antes da destruição do ano 70 d. C., mais de um milhão de pessoas estava ali e nas aldeias vizinhas. Não há dúvida de que o número é exagerado, como era habitual nos cálculos de multidões dos antigos. Mesmo assim, havia tanta gente quanto era possível haver, em Jerusalém, naquela Páscoa. E o que mais importa: quase todos os integrantes da multidão aglomerada no Templo não conheciam Jesus. Por isso, abraçaram a primeira informação, a respeito dele, que lhes foi transmitida pela encenação militar.
Nenhuma informação sobre Jesus teria sido tão eloquente, nem tão eficaz para inculcar à multidão quem era aquele revolucionário (pois Jesus nunca fora outra coisa), no dia da Páscoa, quanto a cena do homem conduzido, com circunstância, por duas guardas oficiais. Nem uma só palavra foi necessária para convencer os mal informados judeus e devotos de que Jesus era um criminoso da pior espécie. Não foi preciso adicionar uma única frase para convencê-los de que estavam diante de um homem culpado. Disso persuadida, portanto, a multidão passou a difundir a informação que recebera. A notícia correu a cidade e arredores não de que Jesus era acusado, mas de que ele era culpado de um crime.
Muito provavelmente, os fariseus não tomaram parte no planejamento da farsa. Como David Flusser informou, eles eram peremptoriamente contrários à perseguição de movimentos proféticos (FLUSSER, David. Jesus. São Paulo: Perspectiva, 2002. p. 167), pregassem o que pregassem. Essa era uma das posições político-religiosas mais importantes, que distinguia os fariseus dos saduceus.
Por causa dessa divergência, os sacerdotes que prenderam Jesus devem ter sido saduceus. Os fariseus não devem ter participado ou, se participaram, devem ter sido meros observadores da reunião noturna, em que o Sinédrio considerou Jesus culpado de blasfêmia. Na verdade, eles nem devem ter sido chamados para a reunião.
Diferente deve ter sido a situação, na reunião oficial do Sinédrio, na manhã seguinte. Por se tratar de uma sessão oficial da Corte Suprema, os fariseus que compunham a Suprema Corte devem ter estado presentes, votado contra a condenação e influído, poderosamente, para que o convencimento formado, na noite anterior, não prevalecesse. Por esse motivo, Jesus deve ter sido absolvido da acusação de blasfêmia, contra o parecer proferido pelo Sumo-Sacerdote na noite anterior.
Não é incomum as cortes corrigirem seus erros. Especialmente, quando se reúnem em plenário e debatem inteiramente os casos. É o que deve ter ocorrido, na manhã daquela sexta-feira. Apesar de todos os pesares. Os votos dos fariseus não teriam bastado para absolver Jesus de blasfêmia. Alguns saduceus devem ter aderido ao parecer absolutório, arrastados por um proeminente sectário ou por algum fariseu de reputação particularmente elevada. Anás é um candidato a ter desempenhado esse papel. Com base na Lei de Moisés, ele e não Caifás devia exercer o Sumo-Sacerdócio. Portanto, aos olhos de muita gente, sua autoridade era grande. Gamaliel ou outro fariseu importante pode tê-lo influenciado a assumir posição a favor de Jesus. Porém, não temos como determinar o que aconteceu, Sabemos somente que a encenação dos saduceus foi anulada. Porém, o estrago já havia sido produzido. A multidão já considerara Jesus culpado. Com Jerusalém apinhada de visitantes, ela estava fora de controle. A notícia da prisão do criminoso galileu e dos fatos subsequentes correu Jerusalém, de boca em boca, como os discípulos a caminho de Emaús comentaram mais tarde. Não foi possível conter a multidão, no Pretório, quando Pilatos lhe perguntou se o privilégio pascal devia ser concedido a Jesus ou a Barrabás.
Desse modo, uma das contradições mais centrais da narrativa dos quatro Evangelhos, sobre a última semana (a que se estabelece entre a aclamação de Jesus como o Messias, ao entrar em Jerusalém, e o clamor da multidão para que ele fosse condenado), é eliminada. A informação de Josefo de que as portas do Templo eram abertas, na noite de Páscoa, é a informação fundamental que nos permite explicar o contraste entre as duas multidões.
A antiga ideia de que alguns sacerdotes se infiltraram, no meio da multidão aglomerada no Pretório e a incitaram à decisão capital é demais imaginativa. Beira o ridículo. As narrativas convergentes dos quatro Evangelhos mostram uma multidão convicta da culpabilidade de Jesus, mas não explicam como a convicção se formou. A informação de Josefo é o que melhor supre a lacuna. Sugere que a multidão se convenceu da culpa de Jesus, na noite anterior, pelos mecanismos teatrais de poder concentrados no Templo.
sábado, 30 de abril de 2011
sábado, 9 de abril de 2011
Páscoa (3): Culpado ou inocente?
Após a Última Ceia, Jesus retirou-se para o Getsêmani, onde foi preso por uma força militar. Imediatamente à prisão, tiveram início os procedimentos jurídicos contra ele. É preferível falar em dois processos e em dois julgamentos de Jesus: um conduzido pelos judeus, outro pelos romanos.
O Sinédrio foi o primeiro órgão a examinar o rabi que a todos impressionara e a alguns infundira secreto terror. Não era costume daquele tribunal reunir-se à noite, como os Evangelhos informam ter ocorrido no caso de Jesus. Porém, se lermos os textos atentamente, veremos que a reunião noturna está inserida num quadro excepcional, que a justifica. Nos dias que antecederam a sua prisão, Jesus havia sido aclamado rei de Israel e Messias, por uma multidão de seguidores, havia derrubado as mesas dos cambistas e os expulsado do Templo, respondido asperamente aos representantes das principais seitas judaicas e criticado, em termos bastante duros, os escribas e os fariseus, no interior de um Templo apinhado. A situação produzida por esses fatos estava longe de ser normal. O caráter extraordinário dela explica a urgência com que a prisão e o interrogatório noturno foram conduzidos pelo Sinédrio.
Marcos e Mateus informam que Caifás presidiu a sessão noturna em que as acusações contra Jesus foram examinadas. Seus dados concordam com os de Josefo, que afirma que Caifás presidia a Suprema Corte judaica naquela época. Lucas, por sua vez, se refere ao Sumo-Sacerdote, sem declinar-lhe o nome (Lc 22:54). Como ele informa que Anás e Caifás ocuparam o cargo, no início do ministério de Jesus (Lc 3:2) e após a crucificação (Atos 4:6), Paul Winter concluiu que, para Lucas, o Sumo-Sacerdote que interrogou Jesus foi Anás (Sobre o processo de Jesus. Rio de Janeiro: Imago, 1998. Cap. 10).
A opinião suscita dúvidas. É difícil de imaginar que um autor, que relacionou os governantes das diversas partes da Palestina e forneceu os nomes de incontáveis autoridades romanas de alto, médio e baixo escalões, no Livro de Atos, tenha-se equivocado, sobre o Sumo-Sacerdote que presidiu o processo contra Jesus. O nome dessa autoridade era tão conhecido e divulgado, nas comunidades cristãs primitivas, quanto o de Pôncio Pilatos. Portanto, a ideia de que Lucas se equivocou, nesse ponto, não parece verossímil.
O que causou estranheza a Paul Winter foi o fato de Lucas ter-se referido a um ex-Sumo-Sacerdote como se estivesse no cargo. Porém, isso estava de acordo com o costume judeu da época. No Antigo Testamento, o sumo-sacerdócio era vitalício. Com base nesse princípio, os judeus piedosos consideravam que o mais velho integrante vivo da linhagem pontifícia tinha o direito de exercer o cargo de Sumo-Sacerdote. Na época da crucificação, essa pessoa era Anás. Porém, os romanos exigiam a alternância no cargo de Sumo-Sacerdote, razão pela qual Anás deu lugar a Caifás ainda em vida. Daí Lucas mencionar os dois. Assim, a atribuição do sumo-sacerdócio a Anás e Caifás não deve ser considerada um erro histórico, mas decorrência de duas maneiras de ver o sumo-sacerdócio naquele tempo.
Se os judeus tinham uma maneira própria de entender a sucessão no cargo de Sumo-Sacerdote, os romanos nomeavam e destituíam essas autoridades, de tempos em tempos, para dividir o poder entre elas e dificultar a organização de rebeliões. Na época, o Sumo-Sacerdote nomeado pelos romanos era Caifás. Lucas reconheceu essa segunda maneira de tratar o sumo-sacerdócio, sem desprestigiar a primeira.
Esclarecido isso, nada nos autoriza a considerar que “a casa do sumo sacerdote” mencionada por Lucas (Lc 22:54) fosse distinta da que Mateus denomina “a casa de Caifás, o sumo sacerdote” (Mt 26:57). Marcos menciona o mesmo edifício, diferenciando-o de outro em que se deu a reunião matinal do Sinédrio (Mc 14:53; 15:1). As expressões quase iguais dos dois primeiros demonstram que Lucas, o último a escrever, seguiu Mateus e Marcos, por concordar com eles. Claro que não os teria seguido, nem concordado com eles, se pensasse num Sumo-Sacerdote (Anás), e eles, em outro (Caifás). Portanto, não há divergência alguma, entre os sinóticos, na identificação do Sumo-Sacerdote da época: há apenas diferentes maneiras de expressar quem era essa autoridade.
A narrativa do julgamento de Jesus, pelo Sinédrio, em Marcos, é impressionante:
"E levaram Jesus ao sumo sacerdote, e reuniram-se todos os principais sacerdotes, os anciãos e os escribas [...] E os principais sacerdotes e todo o Sinédrio procuravam algum testemunho contra Jesus para o condenar à morte, e não achavam. Pois muitos testemunhavam falsamente contra Jesus, mas os depoimentos não eram coerentes" (Mc 14:53,55-56).
A imputação de incoerência aos depoimentos tem claro sentido jurídico. Na lei judaica, nenhuma condenação podia ser proferida, com base num único depoimento. Testemunhos incoerentes, não corroborados por outros, permaneciam isolados. Por isso, não eram aceitos. O julgamento noturno de Jesus, no Sinédrio, começou com uma série de depoimentos desse feitio. Até que duas testemunhas falsas, finalmente, proferiram imputações que soaram minimamente convergentes:
"E, levantando-se alguns, testificavam falsamente, dizendo: Nós o ouvimos declarar: Eu destruirei este santuário edificado por mãos humanas e em três dias construirei outro, não por mãos humanas". Porém, o texto continua, "nem assim o testemunho deles era coerente" (Mc 14:57-59).
Diante de tantas dificuldades para se produzir prova testemunhal válida contra Jesus, repentinamente, o Sumo-Sacerdote mudou de estratégia e passou a interrogar Jesus sobre a imputação de messianismo que os acusadores tinham formulado:
"Tornou a interrogá-lo o sumo sacerdote, e lhe disse: És tu o Cristo, o Filho do Deus Bendito? Jesus respondeu: Eu sou, e vereis o Filho do homem assentado à direita do Todo-Poderoso e vindo com as nuvens do céu" (Mc 14:61-62).
Essas palavras nada acrescentaram que pudesse servir de fundamento para a aplicação da pena capital. Não era incomum indivíduos se dizerem o Messias. Alguns já haviam sido aclamados por isso. Outros ainda o seriam. É célebre o caso da entronização de Bar Kochba como Messias, pelo maior sábio judeu de sua época. Nem a assunção do papel de Messias, nem a atribuição dele a outra pessoa eram considerados crimes. Porém, surpreendentemente, "o sumo sacerdote rasgou as suas vestes e disse: Que mais necessidade temos de testemunhas? Ouvistes a blasfêmia: que vos parece? E todos o julgaram réu de morte" (Mc 14:63-64).
Por um passe de mágica, a resposta à pergunta sobre messianismo deu base a uma condenação por blasfêmia. Na legislação mosaica, a blasfêmia era um crime passível de morte: “Aquele que blasfemar o nome do Senhor será morto; toda a congregação o apedrejará” (Lv 24:16). Porém, em nada se confundia com o messianismo. Além disso, como Geza Vermes recorda (VERMES, Geza. A paixão – a verdadeira história do acontecimento que mudou os rumos da humanidade. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 98), o delito de blasfêmia era um tanto vago, não só em Levítico como na literatura rabínica. A única coisa historicamente certa, a respeito dele, é que o uso do tetragrama IHWH (o nome divino Iahweh) era considerado blasfemo.
Pode ser que as palavras “Eu sou” pronunciadas, por Jesus (Mc 14:62), tenham soado como o nome de Deus (IHWH) declarado a Moisés: “Eu Sou o que Sou” (Êx 3:14). No ambiente acalorado do julgamento, elas podem ter sido deturpadas, de modo a assumir significado blasfemo. Não o sabemos ao certo. Mas Marcos é claro ao informar que não foi esse o sentido da resposta de Jesus a Caifás. Pelo contrário, de acordo com ele, o rabi acusado por todos foi cuidadoso, ao se referir a Deus pelo título Todo-Poderoso, a fim de evitar o uso do tetragrama proibido. Mesmo assim, os líderes judeus consideraram Jesus culpado daquele crime.
Para surpresa dos que acompanhavam o caso, porém, na manhã seguinte, uma nova reviravolta ocorreu, no curso dos acontecimentos. Ao invés de condenar Jesus, após reunir-se segunda vez, o Sinédrio voltou atrás e resolveu enviá-lo a Pilatos: “Logo pela manhã entraram em conselho os principais sacerdotes com os anciãos, escribas e todo o Sinédrio; e, amarrando a Jesus, levaram-no e o entregaram a Pilatos” (Mc 15:1).
O giro das autoridades judaicas e do Sinédrio foi de 180 graus. Não faltava competência àquela corte, para aplicar a pena de morte. Roma o reconhecia, em matérias de índole religiosa e de costumes, embora não admitisse que os judeus julgassem crimes políticos. Portanto, nada impedia que a Suprema Corte judaica condenasse Jesus, por um crime religioso. Se ela o tivesse feito, o caso em nada diferiria da condenação e apedrejamento de Estêvão ocorridos, meses mais tarde (At 7:1-2,57-58). Porém, surpreendentemente, o Sinédrio não condenou Jesus.
Tal decisão foi uma verdadeira revisão tácita da conclusão a que a Suprema Corte havia chegado, na noite anterior. Não podemos falar, propriamente, em revisão de sentença condenatória ou de veredito, pois a reunião noturna do Sinédrio não havia sido oficial. De uma reunião não oficial, nenhum veredito judicial podia ser extraído. Não havia o que revogar. Porém, uma mudança de conclusão sobre o caso realmente ocorreu. O motivo não é esclarecido, por qualquer dos evangelistas, mas sabemos que a mudança determinou o encerramento do processo contra Jesus, perante as autoridades judaicas, e a abertura de um novo, na corte de Pôncio Pilatos. As palavras de Marcos não deixam dúvida: “amarrando a Jesus, levaram-no e o entregaram a Pilatos” (Mc 15:1).
As palavras "levaram-no e o entregaram a Pilatos" devem ser interpretadas como a citação de Jesus num processo perante os romanos. Citação era o ato pelo qual um processo judicial era aberto. Nos tempos antigos, ela se dava pela condução coercitiva do réu perante o juiz. Embora outras formas de citação fossem empregadas, no Direito Romano, há evidências de que a condução física do acusado continuou a ser praticada, nos séculos I e II. Tertuliano, o escritor e advogado romano, denunciou práticas de corrupção no processo romano, ao escrever: "Onde se encontra o homem que, ao arrastar o acusado perante o juiz, é comprado para manter-se em silêncio?" (TERTULIANO. Apologético. Cap. 7). Exatamente como o acusado a que Tertuliano se refere, Jesus foi arrastado perante Pilatos. Foi, portanto, citado num novo processo, o que implica que aquele aberto pelos judeus contra ele se encerrara.
Shimon Gibson considera o procedimento ocorrido, no Pretório romano, como um segundo processo (GIBSON, Shimon. Os últimos dias de Jesus - a evidência arqueológica. São Paulo: Landscape, 2009. p. 76). A meu juízo, essa é a opinião mais acertada. No segundo processo, a pergunta com a qual Pilatos abriu o interrogatório de Jesus indica o teor da acusação formulada, pelos judeus, contra ele: “És tu o rei dos judeus?” (Mc 15:2). Lucas tem idêntico parecer, sobre a mudança de foco no julgamento: “Levantando-se toda a assembleia, levaram Jesus a Pilatos. E ali passaram a acusá-lo, dizendo: Encontramos este homem pervertendo a nossa nação, vedando pagar tributo a César e afirmando ser ele o Cristo, Rei” (Lc 23:1-2).
Por essa modalidade de química, Jesus passou a responder já não por blasfêmia, mas por desobediência política. De repente, a vítima do Nazareno deixara de ser Deus e passara a ser César. Um olhar retrospectivo permite entender que exame assim tão completo quanto o que foi realizado de Jesus, no tocante a Deus e aos homens, por duas cortes, só serviu para tornar irrecorrível a verdade de que, no caso do primeiro processo, a acusação de blasfêmia era injusta e, no derradeiro, a imputação de desobediência política era absurda. Jesus era um homem justo, alguém que dava a Deus o que é de Deus, e a César, o que é de César.
Para abreviarmos a narrativa, o segundo processo produziu em Pilatos o mais fundo convencimento da inocência de Jesus. Após ter ouvido os acusadores, interrogado Jesus e o enviado a Herodes, para que fizesse o mesmo, Pilatos concluiu e manifestou reiteradamente que o réu era inocente. No entanto, os Evangelhos sugerem que Pilatos inclinou-se à condenação, após consultar a multidão reunida diante do Pretório sobre o privilégio pascal, isto é, o costume que Pilatos criara de libertar um prisioneiro a rogo dos judeus, por ocasião da Páscoa.
Os evangelistas afirmam que, ao ser consultado sobre o benefício, o povo decidiu que Barrabás e não Jesus fosse libertado. Paul Winter relaciona a consulta de Pilatos ao fato de Barrabás também se chamar Jesus. Com efeito, certo número de manuscritos dos Evangelhos afirma que o primeiro nome de Barrabás era Jesus. Isso se coaduna com a circunstância de que Barrabás, em hebraico, significa "filho de Abás", o que indica um patronímico e não um nome. Seu nome pode, portanto, ter sido Jesus. Em tais circunstâncias, pendendo dúvida em seu espírito sobre qual dos dois prisioneiros os judeus desejavam que fosse objeto do indulto, uma vez que eles tinham o mesmo nome, Pilatos perguntou à multidão qual dos dois devia ser agraciado. A multidão escolhe Barrabás.
Porém, o fato de ter consultado a multidão pode ter levado Pilatos a mudar de posição. Ele havia perguntado: "quem devo soltar: Jesus de Nazaré ou Jesus Barrabás?" A multidão tinha respondido: "Barrabás". E tinha reiterado o clamor para que o outro fosse condenado. Esse clamor soou-lhe como um reforço à acusação que os líderes judeus tinham formulado contra Jesus Cristo. A convergência das autoridades e do povo, portanto, pode ter levado Pilatos a decidir-se pela condenação de Jesus.
A multidão aglomerada defronte o Pretório não se confunde com a que aclamou Jesus, quando ele entrou em Jerusalém. Trata-se de duas multidões diferentes. A última era composta por discípulos de Jesus; a turba que gritou a Pilatos “Crucifica-o! crucifica-o!” era integrada por estranhos. Quando Jesus foi preso, o cortejo dos seus seguidores acovardou-se e se dispersou. Então, entrou em cena a segunda multidão que não conhecia Jesus, pois viera a Jerusalém apenas para a Páscoa.
O fato de a culpa do acusado ter sido resumida, nas palavras “Jesus de Nazaré, rei dos judeus”, que encimaram a sua cruz, mostra que o processo que levou Jesus à morte não foi o religioso, perante o Sinédrio, mas o político, que competia a Pilatos julgar. Portanto, Pilatos manifestou seu convencimento sobre a inocência de Cristo, lavou as mãos e depois o condenou.
Lucas registrou que “se ajuntaram nesta cidade contra o teu santo Servo Jesus, ao qual ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com gentios e povos de Israel” (At 4:27). Os gentios e os povos de Israel foram a multidão que clamou pela condenação de Jesus. Esse clamor não pode ser confundido com uma decisão do caso. Não foi decisão; foi reforço à acusação. Mas teve grande peso sobre a decisão condenatória proferida por Pilatos.
Em suma, dos dois julgamentos extraímos que, ao contrário da conclusão difundida que aponta numerosos erros judiciários, no processo contra Jesus, as acusações contra Jesus foram conduzidas de forma acalorada e tumultuada, mas juridicamente correta. O ponto a meu ver mais duvidoso - a consulta à multidão - explica-se pelo costume que Mateus e Marcos atribuem a Pilatos de libertar um prisioneiro judeu por ocasião da Páscoa. Fosse a prática de Pilatos legítima ou não, permanecia em suas mãos, absolver ou condenar Jesus, depois de Barrabás ter sido libertado. A libertação deste não o obrigava a condenar Jesus. Portanto, não era uma causa de nulidade. Por outro lado, Pilatos era o juiz natural, a autoridade competente para decidir se Jesus era culpado ou inocente da acusação de crime político. Decidiu injustamente, mas seu julgamento não foi nulo do ponto de vista do processo judicial romano.
A conclusão de que Jesus era culpado que o Sinédrio cogitou, na reunião noturna, tampouco foi um erro judiciário, pois não foi oficial. Por isso, ela pôde ser revertida, na sessão oficial da manhã seguinte. Porém, ainda assim, ela demonstra que alguns líderes judeus estavam cegos de ódio a Jesus e ciosos da hegemonia que detinham, no multifário quadro político e religioso de Israel.
Por trás de todos os disfarces, quem tinha motivos políticos para matar Jesus eram os líderes judeus. Somente eles. O crescimento do cortejo de seguidores do rabi galileu e o poder arrebatador do seu ensino ameaçavam esvaziar a liderança dos principais sacerdotes, anciãos e saduceus. Talvez ameaçassem, até mesmo, formar um vácuo de poder religioso em Israel. No entanto, de alguma maneira, por um motivo ainda desconhecido, o problema político-religioso foi obviado, pela decisão do Sinédrio de não condenar Jesus.
O Sinédrio foi o primeiro órgão a examinar o rabi que a todos impressionara e a alguns infundira secreto terror. Não era costume daquele tribunal reunir-se à noite, como os Evangelhos informam ter ocorrido no caso de Jesus. Porém, se lermos os textos atentamente, veremos que a reunião noturna está inserida num quadro excepcional, que a justifica. Nos dias que antecederam a sua prisão, Jesus havia sido aclamado rei de Israel e Messias, por uma multidão de seguidores, havia derrubado as mesas dos cambistas e os expulsado do Templo, respondido asperamente aos representantes das principais seitas judaicas e criticado, em termos bastante duros, os escribas e os fariseus, no interior de um Templo apinhado. A situação produzida por esses fatos estava longe de ser normal. O caráter extraordinário dela explica a urgência com que a prisão e o interrogatório noturno foram conduzidos pelo Sinédrio.
Marcos e Mateus informam que Caifás presidiu a sessão noturna em que as acusações contra Jesus foram examinadas. Seus dados concordam com os de Josefo, que afirma que Caifás presidia a Suprema Corte judaica naquela época. Lucas, por sua vez, se refere ao Sumo-Sacerdote, sem declinar-lhe o nome (Lc 22:54). Como ele informa que Anás e Caifás ocuparam o cargo, no início do ministério de Jesus (Lc 3:2) e após a crucificação (Atos 4:6), Paul Winter concluiu que, para Lucas, o Sumo-Sacerdote que interrogou Jesus foi Anás (Sobre o processo de Jesus. Rio de Janeiro: Imago, 1998. Cap. 10).
A opinião suscita dúvidas. É difícil de imaginar que um autor, que relacionou os governantes das diversas partes da Palestina e forneceu os nomes de incontáveis autoridades romanas de alto, médio e baixo escalões, no Livro de Atos, tenha-se equivocado, sobre o Sumo-Sacerdote que presidiu o processo contra Jesus. O nome dessa autoridade era tão conhecido e divulgado, nas comunidades cristãs primitivas, quanto o de Pôncio Pilatos. Portanto, a ideia de que Lucas se equivocou, nesse ponto, não parece verossímil.
O que causou estranheza a Paul Winter foi o fato de Lucas ter-se referido a um ex-Sumo-Sacerdote como se estivesse no cargo. Porém, isso estava de acordo com o costume judeu da época. No Antigo Testamento, o sumo-sacerdócio era vitalício. Com base nesse princípio, os judeus piedosos consideravam que o mais velho integrante vivo da linhagem pontifícia tinha o direito de exercer o cargo de Sumo-Sacerdote. Na época da crucificação, essa pessoa era Anás. Porém, os romanos exigiam a alternância no cargo de Sumo-Sacerdote, razão pela qual Anás deu lugar a Caifás ainda em vida. Daí Lucas mencionar os dois. Assim, a atribuição do sumo-sacerdócio a Anás e Caifás não deve ser considerada um erro histórico, mas decorrência de duas maneiras de ver o sumo-sacerdócio naquele tempo.
Se os judeus tinham uma maneira própria de entender a sucessão no cargo de Sumo-Sacerdote, os romanos nomeavam e destituíam essas autoridades, de tempos em tempos, para dividir o poder entre elas e dificultar a organização de rebeliões. Na época, o Sumo-Sacerdote nomeado pelos romanos era Caifás. Lucas reconheceu essa segunda maneira de tratar o sumo-sacerdócio, sem desprestigiar a primeira.
Esclarecido isso, nada nos autoriza a considerar que “a casa do sumo sacerdote” mencionada por Lucas (Lc 22:54) fosse distinta da que Mateus denomina “a casa de Caifás, o sumo sacerdote” (Mt 26:57). Marcos menciona o mesmo edifício, diferenciando-o de outro em que se deu a reunião matinal do Sinédrio (Mc 14:53; 15:1). As expressões quase iguais dos dois primeiros demonstram que Lucas, o último a escrever, seguiu Mateus e Marcos, por concordar com eles. Claro que não os teria seguido, nem concordado com eles, se pensasse num Sumo-Sacerdote (Anás), e eles, em outro (Caifás). Portanto, não há divergência alguma, entre os sinóticos, na identificação do Sumo-Sacerdote da época: há apenas diferentes maneiras de expressar quem era essa autoridade.
A narrativa do julgamento de Jesus, pelo Sinédrio, em Marcos, é impressionante:
"E levaram Jesus ao sumo sacerdote, e reuniram-se todos os principais sacerdotes, os anciãos e os escribas [...] E os principais sacerdotes e todo o Sinédrio procuravam algum testemunho contra Jesus para o condenar à morte, e não achavam. Pois muitos testemunhavam falsamente contra Jesus, mas os depoimentos não eram coerentes" (Mc 14:53,55-56).
A imputação de incoerência aos depoimentos tem claro sentido jurídico. Na lei judaica, nenhuma condenação podia ser proferida, com base num único depoimento. Testemunhos incoerentes, não corroborados por outros, permaneciam isolados. Por isso, não eram aceitos. O julgamento noturno de Jesus, no Sinédrio, começou com uma série de depoimentos desse feitio. Até que duas testemunhas falsas, finalmente, proferiram imputações que soaram minimamente convergentes:
"E, levantando-se alguns, testificavam falsamente, dizendo: Nós o ouvimos declarar: Eu destruirei este santuário edificado por mãos humanas e em três dias construirei outro, não por mãos humanas". Porém, o texto continua, "nem assim o testemunho deles era coerente" (Mc 14:57-59).
Diante de tantas dificuldades para se produzir prova testemunhal válida contra Jesus, repentinamente, o Sumo-Sacerdote mudou de estratégia e passou a interrogar Jesus sobre a imputação de messianismo que os acusadores tinham formulado:
"Tornou a interrogá-lo o sumo sacerdote, e lhe disse: És tu o Cristo, o Filho do Deus Bendito? Jesus respondeu: Eu sou, e vereis o Filho do homem assentado à direita do Todo-Poderoso e vindo com as nuvens do céu" (Mc 14:61-62).
Essas palavras nada acrescentaram que pudesse servir de fundamento para a aplicação da pena capital. Não era incomum indivíduos se dizerem o Messias. Alguns já haviam sido aclamados por isso. Outros ainda o seriam. É célebre o caso da entronização de Bar Kochba como Messias, pelo maior sábio judeu de sua época. Nem a assunção do papel de Messias, nem a atribuição dele a outra pessoa eram considerados crimes. Porém, surpreendentemente, "o sumo sacerdote rasgou as suas vestes e disse: Que mais necessidade temos de testemunhas? Ouvistes a blasfêmia: que vos parece? E todos o julgaram réu de morte" (Mc 14:63-64).
Por um passe de mágica, a resposta à pergunta sobre messianismo deu base a uma condenação por blasfêmia. Na legislação mosaica, a blasfêmia era um crime passível de morte: “Aquele que blasfemar o nome do Senhor será morto; toda a congregação o apedrejará” (Lv 24:16). Porém, em nada se confundia com o messianismo. Além disso, como Geza Vermes recorda (VERMES, Geza. A paixão – a verdadeira história do acontecimento que mudou os rumos da humanidade. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 98), o delito de blasfêmia era um tanto vago, não só em Levítico como na literatura rabínica. A única coisa historicamente certa, a respeito dele, é que o uso do tetragrama IHWH (o nome divino Iahweh) era considerado blasfemo.
Pode ser que as palavras “Eu sou” pronunciadas, por Jesus (Mc 14:62), tenham soado como o nome de Deus (IHWH) declarado a Moisés: “Eu Sou o que Sou” (Êx 3:14). No ambiente acalorado do julgamento, elas podem ter sido deturpadas, de modo a assumir significado blasfemo. Não o sabemos ao certo. Mas Marcos é claro ao informar que não foi esse o sentido da resposta de Jesus a Caifás. Pelo contrário, de acordo com ele, o rabi acusado por todos foi cuidadoso, ao se referir a Deus pelo título Todo-Poderoso, a fim de evitar o uso do tetragrama proibido. Mesmo assim, os líderes judeus consideraram Jesus culpado daquele crime.
Para surpresa dos que acompanhavam o caso, porém, na manhã seguinte, uma nova reviravolta ocorreu, no curso dos acontecimentos. Ao invés de condenar Jesus, após reunir-se segunda vez, o Sinédrio voltou atrás e resolveu enviá-lo a Pilatos: “Logo pela manhã entraram em conselho os principais sacerdotes com os anciãos, escribas e todo o Sinédrio; e, amarrando a Jesus, levaram-no e o entregaram a Pilatos” (Mc 15:1).
O giro das autoridades judaicas e do Sinédrio foi de 180 graus. Não faltava competência àquela corte, para aplicar a pena de morte. Roma o reconhecia, em matérias de índole religiosa e de costumes, embora não admitisse que os judeus julgassem crimes políticos. Portanto, nada impedia que a Suprema Corte judaica condenasse Jesus, por um crime religioso. Se ela o tivesse feito, o caso em nada diferiria da condenação e apedrejamento de Estêvão ocorridos, meses mais tarde (At 7:1-2,57-58). Porém, surpreendentemente, o Sinédrio não condenou Jesus.
Tal decisão foi uma verdadeira revisão tácita da conclusão a que a Suprema Corte havia chegado, na noite anterior. Não podemos falar, propriamente, em revisão de sentença condenatória ou de veredito, pois a reunião noturna do Sinédrio não havia sido oficial. De uma reunião não oficial, nenhum veredito judicial podia ser extraído. Não havia o que revogar. Porém, uma mudança de conclusão sobre o caso realmente ocorreu. O motivo não é esclarecido, por qualquer dos evangelistas, mas sabemos que a mudança determinou o encerramento do processo contra Jesus, perante as autoridades judaicas, e a abertura de um novo, na corte de Pôncio Pilatos. As palavras de Marcos não deixam dúvida: “amarrando a Jesus, levaram-no e o entregaram a Pilatos” (Mc 15:1).
As palavras "levaram-no e o entregaram a Pilatos" devem ser interpretadas como a citação de Jesus num processo perante os romanos. Citação era o ato pelo qual um processo judicial era aberto. Nos tempos antigos, ela se dava pela condução coercitiva do réu perante o juiz. Embora outras formas de citação fossem empregadas, no Direito Romano, há evidências de que a condução física do acusado continuou a ser praticada, nos séculos I e II. Tertuliano, o escritor e advogado romano, denunciou práticas de corrupção no processo romano, ao escrever: "Onde se encontra o homem que, ao arrastar o acusado perante o juiz, é comprado para manter-se em silêncio?" (TERTULIANO. Apologético. Cap. 7). Exatamente como o acusado a que Tertuliano se refere, Jesus foi arrastado perante Pilatos. Foi, portanto, citado num novo processo, o que implica que aquele aberto pelos judeus contra ele se encerrara.
Shimon Gibson considera o procedimento ocorrido, no Pretório romano, como um segundo processo (GIBSON, Shimon. Os últimos dias de Jesus - a evidência arqueológica. São Paulo: Landscape, 2009. p. 76). A meu juízo, essa é a opinião mais acertada. No segundo processo, a pergunta com a qual Pilatos abriu o interrogatório de Jesus indica o teor da acusação formulada, pelos judeus, contra ele: “És tu o rei dos judeus?” (Mc 15:2). Lucas tem idêntico parecer, sobre a mudança de foco no julgamento: “Levantando-se toda a assembleia, levaram Jesus a Pilatos. E ali passaram a acusá-lo, dizendo: Encontramos este homem pervertendo a nossa nação, vedando pagar tributo a César e afirmando ser ele o Cristo, Rei” (Lc 23:1-2).
Por essa modalidade de química, Jesus passou a responder já não por blasfêmia, mas por desobediência política. De repente, a vítima do Nazareno deixara de ser Deus e passara a ser César. Um olhar retrospectivo permite entender que exame assim tão completo quanto o que foi realizado de Jesus, no tocante a Deus e aos homens, por duas cortes, só serviu para tornar irrecorrível a verdade de que, no caso do primeiro processo, a acusação de blasfêmia era injusta e, no derradeiro, a imputação de desobediência política era absurda. Jesus era um homem justo, alguém que dava a Deus o que é de Deus, e a César, o que é de César.
Para abreviarmos a narrativa, o segundo processo produziu em Pilatos o mais fundo convencimento da inocência de Jesus. Após ter ouvido os acusadores, interrogado Jesus e o enviado a Herodes, para que fizesse o mesmo, Pilatos concluiu e manifestou reiteradamente que o réu era inocente. No entanto, os Evangelhos sugerem que Pilatos inclinou-se à condenação, após consultar a multidão reunida diante do Pretório sobre o privilégio pascal, isto é, o costume que Pilatos criara de libertar um prisioneiro a rogo dos judeus, por ocasião da Páscoa.
Os evangelistas afirmam que, ao ser consultado sobre o benefício, o povo decidiu que Barrabás e não Jesus fosse libertado. Paul Winter relaciona a consulta de Pilatos ao fato de Barrabás também se chamar Jesus. Com efeito, certo número de manuscritos dos Evangelhos afirma que o primeiro nome de Barrabás era Jesus. Isso se coaduna com a circunstância de que Barrabás, em hebraico, significa "filho de Abás", o que indica um patronímico e não um nome. Seu nome pode, portanto, ter sido Jesus. Em tais circunstâncias, pendendo dúvida em seu espírito sobre qual dos dois prisioneiros os judeus desejavam que fosse objeto do indulto, uma vez que eles tinham o mesmo nome, Pilatos perguntou à multidão qual dos dois devia ser agraciado. A multidão escolhe Barrabás.
Porém, o fato de ter consultado a multidão pode ter levado Pilatos a mudar de posição. Ele havia perguntado: "quem devo soltar: Jesus de Nazaré ou Jesus Barrabás?" A multidão tinha respondido: "Barrabás". E tinha reiterado o clamor para que o outro fosse condenado. Esse clamor soou-lhe como um reforço à acusação que os líderes judeus tinham formulado contra Jesus Cristo. A convergência das autoridades e do povo, portanto, pode ter levado Pilatos a decidir-se pela condenação de Jesus.
A multidão aglomerada defronte o Pretório não se confunde com a que aclamou Jesus, quando ele entrou em Jerusalém. Trata-se de duas multidões diferentes. A última era composta por discípulos de Jesus; a turba que gritou a Pilatos “Crucifica-o! crucifica-o!” era integrada por estranhos. Quando Jesus foi preso, o cortejo dos seus seguidores acovardou-se e se dispersou. Então, entrou em cena a segunda multidão que não conhecia Jesus, pois viera a Jerusalém apenas para a Páscoa.
O fato de a culpa do acusado ter sido resumida, nas palavras “Jesus de Nazaré, rei dos judeus”, que encimaram a sua cruz, mostra que o processo que levou Jesus à morte não foi o religioso, perante o Sinédrio, mas o político, que competia a Pilatos julgar. Portanto, Pilatos manifestou seu convencimento sobre a inocência de Cristo, lavou as mãos e depois o condenou.
Lucas registrou que “se ajuntaram nesta cidade contra o teu santo Servo Jesus, ao qual ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com gentios e povos de Israel” (At 4:27). Os gentios e os povos de Israel foram a multidão que clamou pela condenação de Jesus. Esse clamor não pode ser confundido com uma decisão do caso. Não foi decisão; foi reforço à acusação. Mas teve grande peso sobre a decisão condenatória proferida por Pilatos.
Em suma, dos dois julgamentos extraímos que, ao contrário da conclusão difundida que aponta numerosos erros judiciários, no processo contra Jesus, as acusações contra Jesus foram conduzidas de forma acalorada e tumultuada, mas juridicamente correta. O ponto a meu ver mais duvidoso - a consulta à multidão - explica-se pelo costume que Mateus e Marcos atribuem a Pilatos de libertar um prisioneiro judeu por ocasião da Páscoa. Fosse a prática de Pilatos legítima ou não, permanecia em suas mãos, absolver ou condenar Jesus, depois de Barrabás ter sido libertado. A libertação deste não o obrigava a condenar Jesus. Portanto, não era uma causa de nulidade. Por outro lado, Pilatos era o juiz natural, a autoridade competente para decidir se Jesus era culpado ou inocente da acusação de crime político. Decidiu injustamente, mas seu julgamento não foi nulo do ponto de vista do processo judicial romano.
A conclusão de que Jesus era culpado que o Sinédrio cogitou, na reunião noturna, tampouco foi um erro judiciário, pois não foi oficial. Por isso, ela pôde ser revertida, na sessão oficial da manhã seguinte. Porém, ainda assim, ela demonstra que alguns líderes judeus estavam cegos de ódio a Jesus e ciosos da hegemonia que detinham, no multifário quadro político e religioso de Israel.
Por trás de todos os disfarces, quem tinha motivos políticos para matar Jesus eram os líderes judeus. Somente eles. O crescimento do cortejo de seguidores do rabi galileu e o poder arrebatador do seu ensino ameaçavam esvaziar a liderança dos principais sacerdotes, anciãos e saduceus. Talvez ameaçassem, até mesmo, formar um vácuo de poder religioso em Israel. No entanto, de alguma maneira, por um motivo ainda desconhecido, o problema político-religioso foi obviado, pela decisão do Sinédrio de não condenar Jesus.
domingo, 3 de abril de 2011
Páscoa (1): Descristianização
Jesus tornou-se pessoalmente conhecido das autoridades romanas, quando foi acusado pelos judeus que o prenderam. Coube a Pilatos, então, formular a pergunta que os séculos tanto repetiriam: quem foi Jesus?
A pergunta voltou a ressoar, de maneira particularmente intensa, nos dois últimos séculos, quando a investigação da figura histórica de Jesus deflagrou uma revolução tão ampla quanto a produzida pela investigação cristológica nos primeiros séculos. Naqueles tempos, a consciência teológica sobre a figura de Jesus levou à substituição da cultura grecorromana pela cristã; a partir do décimo-nono século, quando os estudos históricos sobre Jesus se intensificaram, uma segunda reviravolta se preparou, com sentido contrário à primeira. Ainda vivemos essa última revolução, a saber: a descristianização do mundo.
Descristianização não significa que Jesus tenha passado a ser menos importante do que antes. Pelo contrário, o fortalecimento da consciência sobre a sua figura é que tem desencadeado as transformações atuais. No entanto, a figura histórica recentemente plasmada de Jesus como homem comum eclipsou a do Cristo enviado por Deus ao mundo a fim de salvá-lo. Nesse sentido, descristianização é a substituição do Cristo por Jesus, principalmente pelo Jesus histórico, como a ciência humana o representa por meio do método crítico.
A Páscoa é uma rara oportunidade senão para revermos todas as questões, sobre o Jesus descristianizado, pelo menos para refletirmos mais acuradamente sobre os momentos finais da sua vida terrena. Tratarei a seguir de três grandes momentos da existência histórica de Jesus: os julgamentos perante o Sinédrio e Pilatos, a crucificação e a ressurreição. A abordagem peculiar que distinguirá os artigos será a da crítica da descristianização.
Em Tratado de ateologia, o filósofo francês Michel Onfray, também autor de uma Contra-História da Filosofia, defendeu, simplesmente, que Jesus não existiu. Essa posição mostra como um movimento crítico iniciado, por impulsos racionais, pode conduzir, perigosamente, à irracionalidade histórica. Por mais que autores respeitáveis como Hitchens, Avalos, Humphreys e Doherty tenham parecer semelhante ao de Onfray, o despropósito da opinião de que Jesus nunca existiu impede-nos não sentir um odor ideológico semelhante ao da antiga União Soviética.
Um dos maiores especialistas no Jesus histórico do nosso tempo, Bart D. Ehrman, publicou, em 2012, um livro para reafirmar a existência de Jesus (EHRMAN, Bart D. Jesus existiu ou não? Rio de Janeiro: Agir, 2014). O húngaro Geza Vermes, por sua vez, afirmou que a morte de Jesus por crime político é o fato mais bem estabelecido sobre a sua vida . Não lhes faltam boas razões em que fundamentar essas posições. Embora os Evangelhos canônicos contenham detalhes divergentes sobre as histórias do ensino e dos milagres de Jesus, quando se trata de narrar a morte na cruz, todos convergem em ampla medida, numa mesma narrativa básica, cujos fatos se dão, aliás, quase sempre, na mesma sequência.
A morte na cruz é o centro dessa sequência, em todas as narrativas. Ela é ainda atestada em Josefo (por quê, se não houve crucificação?), o maior historiador judeu da época, e em Tácito ("Cristo [...] sofreu a pena de morte no reino de Tibério, por sentença do procurador Pôncio Pilatos" - Anais, 15,44,3). O Talmude igualmente a indica ("Na véspera da Páscoa eles suspenderam Jesus" - Talmude Babilônico, Sinédrio, 43a).
É comum historiadores aceitarem como verdadeiro um evento narrado por uma única fonte dotada de credibilidade. Quando duas fontes convergem, o fato é considerado fora do alcance da dúvida razoável. No caso de Jesus, temos pelo menos sete testemunhos de boa qualidade sobre a sua morte. Sabemos, pois, com certeza, que Jesus existiu e foi crucificado pelo poder romano.
No entanto, a pergunta reclama resposta mais satisfatória: quem foi Jesus? Por maiores que sejam as discordâncias entre os estudiosos, é possível responder que Jesus nasceu na Palestina, entre os anos 7 e 4 do primeiro século a. C., com quase tanta certeza quanto a que temos de que ele morreu na cruz. Um exame realmente detido de todas as evidências permite focarmos o derradeiro quadrimestre desse último ano (4 a. C.) como o tempo da natividade.
O principal problema dessa datação é o fato de o capítulo 2 de Mateus localizar o nascimento do filho de Maria e José, na época de Herodes. O relato informa que a família de Jesus refugiou-se no Egito, quando Herodes resolveu matar as crianças de menos de três anos, para evitar que o nascido rei dos judeus viesse a ocupar o seu trono. Diz o texto bíblico que os pais de Jesus só retornaram de lá, “quando Herodes morreu” (Mateus 2:19).
Vários governantes da época chamaram-se Herodes. Porém, só um deles morreu, no período entre o nascimento de Jesus e a crucificação, como Mateus claramente indica. Esse foi o maior dos Herodes, cuja perícia militar e vocação como construtor foram exaltadas, por Josefo, tanto quanto seus bárbaros crimes foram execrados.
Nos historiadores contemporâneos, a morte de Herodes é geralmente localizada, em março ou abril do ano 4 a. C. Essa é a data fornecida por Michael White, em Scripting Jesus (Prologue). Porém, White faz a sua datação depender de Josefo. Um retorno a essa fonte (Josefo) permite apurar que ela localizou o falecimento de Herodes 37 anos após a sua nomeação pelos romanos (Antiguidades, XVII, 10). A Bíblia de Jerusalém situa a nomeação, no final do ano 40 a. C., embora tenha exercido efetivamente o poder de 37 a. C. em diante (Bíblia de Jerusalém. 5ª impressão, São Paulo: Paulus, 2008. Quadro cronológico, p. 2181). Trinta e sete anos depois de ser nomeado, portanto, Herodes morreu, o que nos remete ao ano 3, não ao ano 4 a. C. Essa conclusão é confirmada ainda por outra informação de Josefo, que afirmou que Herodes morreu 34 anos após ter expulso Antígono da Judeia, o que se passou em 37 a. C. Também se contarmos 34 anos a partir de 37 a. C., chegaremos a 3 a. C.
Claro que, se Herodes tivesse morrido em março-abril do ano 4, e Jesus houvesse nascido no fim daquele ano, a perseguição por Herodes seria um erro histórico. Porém, quando examinamos atentamente Josefo, percebemos que não nos permite a datação mais recuada. Josefo localiza a morte de Herodes, no fim do ano 3 a. C., o que concorda com a fixação da natividade um ano antes.
Tudo o que sabemos sobre a vida de Jesus, antes dos 30 anos, é que ele foi criado num lar especial, até para os padrões de Israel. Ao lermos os Evangelhos com atenção, percebemos que alguns acontecimentos são de tal natureza que só podem ter sido preservados por quem criou o menino Jesus. É o caso da concepção de Jesus e de seu precursor João Batista, do nascimento de ambos, da fuga para o Egito, da infância de Jesus em Nazaré, do seu Bar Mitzvah aos 12 anos e da juventude na Galileia. Como José não é mencionado, após a infância do filho (provavelmente porque falecera), os dados indicam que Maria deve ter sido a principal fonte dos evangelistas para esses fatos. Como José não é mencionado, após a infância do filho (possivelmente porque falecera), os dados indicam que Maria deve ter sido a principal fonte dos evangelistas para esses fatos.
Mas se serviu de fonte de tantos acontecimentos, é natural que a mãe de Jesus tenha sido consultada, também, sobre outros fatos, inclusive alguns do período ministerial. Somadas às prolíficas citações do Antigo Testamento, que Lucas coloca na boca dela, essas informações permitem-nos traçar o perfil de uma mulher extremamente culta, para os padrões da época. Portanto, o amplo conhecimento do Antigo Testamento que Jesus demonstrou, seu espírito agudo e crítico devem-se, em parte, às características do lar em que foi criado, sob a ação educadora de Maria de Nazaré.
Por outro lado, nenhuma informação sobre a vida de Jesus é tão precisa quanto a que Lucas fornece, nos dois primeiros versículos do capítulo três do seu Evangelho. Diz ele que João Batista começou o seu ministério, pouco antes de Jesus dar início ao seu, no décimo-quinto ano de Tibério César, quando Pilatos era governador da Judeia, Herodes (não o Magno, mas Antipas), da Galileia, Filipe da Itureia e Traconites, Lisânias era tetrarca de Abilene, e Anás e Caifás, Sumos-Sacerdotes em Jerusalém. Por essa época, Jesus tinha cerca de 30 anos (Lucas 3:23).
Para não descermos a demasiados detalhes, Pilatos governou a Judeia entre 26 e 36 d. C. Se nasceu no ano 4 a. C., Jesus completou 30 anos em 27 d. C. Como Alford ensina, no grego do Novo Testamento, a expressão de Lucas 3:23 significa que Jesus tinha entre 30 e 31 anos, quando foi batizado por João. Portanto, ele iniciou o seu ministério em 27 ou 28 d. C. Essa é uma das razões por que não se pode recuar o nascimento muito além do ano 4: se o fizermos, a inauguração ministerial de Jesus ficará fora do período de Pilatos. Assim, o conhecimento que temos sobre o início da vida terrena de Jesus também está longe de ser tão impreciso quanto às vezes é sugerido.
A Crítica Literária e Histórica desenvolvida, nos últimos 200 anos, em geral, afirma que o ministério público de Jesus durou menos de um ano. A principal razão para isso é o fato de os Evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) só mencionarem uma Páscoa. Para a maioria dos especialistas, os sinóticos foram escritos entre 10 e 30 anos antes do último Evangelho (João), que fala de três ou quatro Páscoas. Essa divergência sobre a extensão do ministério público costuma ser resolvida a favor dos sinóticos.
No entanto, os referenciais relevantes para fixarmos a cronologia do ministério não se restringem às festas anuais judaicas e às referências a autoridades públicas. Antes das Críticas Histórica e Literária se desenvolverem, Isaac Newton, o físico, escreveu um esquema cronológico importante sobre as Sagradas Escrituras que, felizmente, se conservou até hoje. O interesse imediato de Newton eram as profecias dos Livros de Daniel e Apocalipse, mas sua obra contém tantas informações cronológicas, do século VI a. C. ao XVIII d. C., que assume interesse bem mais geral. Para inserir os dados dos Evangelhos no seu esquema, Newton utilizou não só as informações sobre as Páscoas e personalidades históricas, mas também fenômenos naturais mencionados nos textos, assim como colheitas, alusões à temperatura etc. Da análise simultânea desses dados evangélicos, ele extraiu a conclusão de que a cronologia completa do ministério é a de João (três anos e meio), que não apenas menciona vários anos como deixa entrever a passagem de um número correspondente de estações, momentos de semeadura, colheita e outras informações que confirmam a sua cronologia. Se os três anos e meio de ministério mencionados em João fossem resultado de um equívoco, dificilmente informações tão concordantes sobre aqueles fatos naturais e humanos seriam fornecidas. Portanto, a cronologia dos sinóticos corresponde a um corte, uma seção da estrutura maior de tempo que João fornece.
Os três anos e meio do ministério levam-nos, pois, a fixar, no ano 32, a Páscoa em que Jesus foi crucificado. Como se vê, estamos longe de desconhecer o que ocorreu, durante o ministério público e quando ele terminou. Embora muitos detalhes permaneçam obscuros, a pregação de Jesus de Nazaré é um dos fatos religiosos melhor conhecidos do período anterior à sua morte. Não é preciso reiterar que o mesmo se dá com a crucificação.
O ministério público de Jesus pode ser dividido em cinco períodos: o primeiro, com duração de seis meses, ocorreu na Galileia; o segundo, de oito meses, se desenvolveu na Judeia, o terceiro consistiu em quatro meses de ensino na Galileia; a quarta etapa (de 15 meses) incluiu os milagres de Marcos-Mateus na Galileia; por fim, a última etapa, também com diversas curas, se deu na Judeia-Pereia e durou nove meses. Os milagres operados na Judeia concentraram-se na segunda etapa; os da Galileia, na quarta. Nos demais períodos, o ministério de Jesus centrou-se no ensino e não em milagres.
Josefo nos fala de três ou quatro grupos principais existentes, em Israel, naquela época: os saduceus, que eram os líderes da nação e do Templo; os fariseus eram o grupo religioso de maior sucesso que, ao contrário dos saduceus, aceitava uma lei escrita e outra oral; os essênios formavam uma comunidade isolada, ao redor do Mar Morto; e os zelotes, que eram revolucionários. Tanto pela composição do cortejo de seus seguidores como pelas suas falas, Jesus não pertenceu a qualquer desses grupos. Suas crenças e ensinos são uma mistura de convicções variadas: a exemplo dos saduceus, Jesus colocava a lei escrita (o Pentateuco) acima da oral e acreditava na ressurreição, em anjos e espíritos; como os essênios, seu pensamento era marcado por fortes convicções escatológicas. Talvez Jesus tivesse menos pontos de contato com os zelotes. Mesmo assim, possuía discípulos dessa seita e não desconsiderava a importância da restauração do reino a Israel (At 1:6).
A vinda do reino de Deus e a ressurreição dos mortos diferenciam a pregação de Jesus de tudo o que se contém no Antigo Testamento. Por meio delas, Jesus pregou uma terminação das modalidades de vida religiosa que os judeus haviam experimentado até então. Ele também pôs fim às obrigações decorrentes de todos os tratos de Deus com os homens, em épocas anteriores, e instituiu uma nova aliança, para os que nele creem. Essa aliança é representada pela Última Ceia e está baseada no sangue e no corpo de Jesus; portanto, na sua morte.
Contudo, a confirmação do ensinamento do mestre da Galileia e o sentido particular, que os apóstolos atribuíram à fé em Jesus, estão associados à ressurreição. Assim como narram a crucificação, os quatro Evangelhos também testificam, unanimemente, a ressurreição de Jesus.
Não é possível abordar, aqui, todos os aspectos históricos da ressurreição. Por isso, farei referência a um só. O versículo 7 do capítulo 20 de João narra que, entre os objetos encontrados no túmulo vazio de Jesus, no domingo da ressurreição, estava um lenço. Gostaria de me deter nesse dado tão frequentemente desprezado, nas apresentações contemporâneas do Jesus histórico.
O Sudário de Turim, réplica medieval dos lençois que envolveram o corpo de Jesus, no sepulcro, é conhecido de praticamente todos os interessados em religião cristã. Um ou mais objetos com pontos de semelhança com ele foram usados, por José de Arimateia e Nicodemos, ao prepararem e depositarem o corpo de Jesus na sepultura. Porém, além dos lençois, aqueles membros do Sinédrio também colocaram um lenço na cabeça do rabi galileu. O autor do Evangelho de João escreveu, sobre o ponto: “Simão Pedro, seguindo-o, chegou e entrou no sepulcro. Ele também viu os lençois, e o lenço que estivera sobre a cabeça de Jesus, e que não estava com os lençois, mas deixado num lugar à parte” (João 20:6-7).
Se considerarmos que o Evangelho de João foi escrito, cerca de 70 anos depois da crucificação, seremos forçados a reconhecer que a posição relativa dos lençois e do lenço, no interior do sepulcro, só pode ter sido recordada por uma testemunha ocular da cena da época. Há muitas razões para alguém inventar um milagre, mas não para inventar algo como a posição apartada dos lençois e do lenço. Nenhum outro evangelista transmitiu essa informação, além do escritor de João. Coincidentemente, o único a falar do lenço foi aquele que se apresentou como testemunha ocular de histórias ministeriais. Pode ser, pois, que o autor de João tenha mencionado o lenço, por ter visto o sepulcro vazio, enquanto os escritores sinóticos não o viram e, por isso, não se referiram àquele pormenor.
Isso permite nos permite pensar na ressurreição como uma hipótese histórica, além de um dado de fé. Propor que a memória desse fato corresponde a algo objetivo não é ainda afirmar a interpretação dos apóstolos a respeito dela, mas já é reconhecer um dado de enorme importância e impacto, na Jerusalém da época.
A pergunta voltou a ressoar, de maneira particularmente intensa, nos dois últimos séculos, quando a investigação da figura histórica de Jesus deflagrou uma revolução tão ampla quanto a produzida pela investigação cristológica nos primeiros séculos. Naqueles tempos, a consciência teológica sobre a figura de Jesus levou à substituição da cultura grecorromana pela cristã; a partir do décimo-nono século, quando os estudos históricos sobre Jesus se intensificaram, uma segunda reviravolta se preparou, com sentido contrário à primeira. Ainda vivemos essa última revolução, a saber: a descristianização do mundo.
Descristianização não significa que Jesus tenha passado a ser menos importante do que antes. Pelo contrário, o fortalecimento da consciência sobre a sua figura é que tem desencadeado as transformações atuais. No entanto, a figura histórica recentemente plasmada de Jesus como homem comum eclipsou a do Cristo enviado por Deus ao mundo a fim de salvá-lo. Nesse sentido, descristianização é a substituição do Cristo por Jesus, principalmente pelo Jesus histórico, como a ciência humana o representa por meio do método crítico.
A Páscoa é uma rara oportunidade senão para revermos todas as questões, sobre o Jesus descristianizado, pelo menos para refletirmos mais acuradamente sobre os momentos finais da sua vida terrena. Tratarei a seguir de três grandes momentos da existência histórica de Jesus: os julgamentos perante o Sinédrio e Pilatos, a crucificação e a ressurreição. A abordagem peculiar que distinguirá os artigos será a da crítica da descristianização.
Em Tratado de ateologia, o filósofo francês Michel Onfray, também autor de uma Contra-História da Filosofia, defendeu, simplesmente, que Jesus não existiu. Essa posição mostra como um movimento crítico iniciado, por impulsos racionais, pode conduzir, perigosamente, à irracionalidade histórica. Por mais que autores respeitáveis como Hitchens, Avalos, Humphreys e Doherty tenham parecer semelhante ao de Onfray, o despropósito da opinião de que Jesus nunca existiu impede-nos não sentir um odor ideológico semelhante ao da antiga União Soviética.
Um dos maiores especialistas no Jesus histórico do nosso tempo, Bart D. Ehrman, publicou, em 2012, um livro para reafirmar a existência de Jesus (EHRMAN, Bart D. Jesus existiu ou não? Rio de Janeiro: Agir, 2014). O húngaro Geza Vermes, por sua vez, afirmou que a morte de Jesus por crime político é o fato mais bem estabelecido sobre a sua vida . Não lhes faltam boas razões em que fundamentar essas posições. Embora os Evangelhos canônicos contenham detalhes divergentes sobre as histórias do ensino e dos milagres de Jesus, quando se trata de narrar a morte na cruz, todos convergem em ampla medida, numa mesma narrativa básica, cujos fatos se dão, aliás, quase sempre, na mesma sequência.
A morte na cruz é o centro dessa sequência, em todas as narrativas. Ela é ainda atestada em Josefo (por quê, se não houve crucificação?), o maior historiador judeu da época, e em Tácito ("Cristo [...] sofreu a pena de morte no reino de Tibério, por sentença do procurador Pôncio Pilatos" - Anais, 15,44,3). O Talmude igualmente a indica ("Na véspera da Páscoa eles suspenderam Jesus" - Talmude Babilônico, Sinédrio, 43a).
É comum historiadores aceitarem como verdadeiro um evento narrado por uma única fonte dotada de credibilidade. Quando duas fontes convergem, o fato é considerado fora do alcance da dúvida razoável. No caso de Jesus, temos pelo menos sete testemunhos de boa qualidade sobre a sua morte. Sabemos, pois, com certeza, que Jesus existiu e foi crucificado pelo poder romano.
No entanto, a pergunta reclama resposta mais satisfatória: quem foi Jesus? Por maiores que sejam as discordâncias entre os estudiosos, é possível responder que Jesus nasceu na Palestina, entre os anos 7 e 4 do primeiro século a. C., com quase tanta certeza quanto a que temos de que ele morreu na cruz. Um exame realmente detido de todas as evidências permite focarmos o derradeiro quadrimestre desse último ano (4 a. C.) como o tempo da natividade.
O principal problema dessa datação é o fato de o capítulo 2 de Mateus localizar o nascimento do filho de Maria e José, na época de Herodes. O relato informa que a família de Jesus refugiou-se no Egito, quando Herodes resolveu matar as crianças de menos de três anos, para evitar que o nascido rei dos judeus viesse a ocupar o seu trono. Diz o texto bíblico que os pais de Jesus só retornaram de lá, “quando Herodes morreu” (Mateus 2:19).
Vários governantes da época chamaram-se Herodes. Porém, só um deles morreu, no período entre o nascimento de Jesus e a crucificação, como Mateus claramente indica. Esse foi o maior dos Herodes, cuja perícia militar e vocação como construtor foram exaltadas, por Josefo, tanto quanto seus bárbaros crimes foram execrados.
Nos historiadores contemporâneos, a morte de Herodes é geralmente localizada, em março ou abril do ano 4 a. C. Essa é a data fornecida por Michael White, em Scripting Jesus (Prologue). Porém, White faz a sua datação depender de Josefo. Um retorno a essa fonte (Josefo) permite apurar que ela localizou o falecimento de Herodes 37 anos após a sua nomeação pelos romanos (Antiguidades, XVII, 10). A Bíblia de Jerusalém situa a nomeação, no final do ano 40 a. C., embora tenha exercido efetivamente o poder de 37 a. C. em diante (Bíblia de Jerusalém. 5ª impressão, São Paulo: Paulus, 2008. Quadro cronológico, p. 2181). Trinta e sete anos depois de ser nomeado, portanto, Herodes morreu, o que nos remete ao ano 3, não ao ano 4 a. C. Essa conclusão é confirmada ainda por outra informação de Josefo, que afirmou que Herodes morreu 34 anos após ter expulso Antígono da Judeia, o que se passou em 37 a. C. Também se contarmos 34 anos a partir de 37 a. C., chegaremos a 3 a. C.
Claro que, se Herodes tivesse morrido em março-abril do ano 4, e Jesus houvesse nascido no fim daquele ano, a perseguição por Herodes seria um erro histórico. Porém, quando examinamos atentamente Josefo, percebemos que não nos permite a datação mais recuada. Josefo localiza a morte de Herodes, no fim do ano 3 a. C., o que concorda com a fixação da natividade um ano antes.
Tudo o que sabemos sobre a vida de Jesus, antes dos 30 anos, é que ele foi criado num lar especial, até para os padrões de Israel. Ao lermos os Evangelhos com atenção, percebemos que alguns acontecimentos são de tal natureza que só podem ter sido preservados por quem criou o menino Jesus. É o caso da concepção de Jesus e de seu precursor João Batista, do nascimento de ambos, da fuga para o Egito, da infância de Jesus em Nazaré, do seu Bar Mitzvah aos 12 anos e da juventude na Galileia. Como José não é mencionado, após a infância do filho (provavelmente porque falecera), os dados indicam que Maria deve ter sido a principal fonte dos evangelistas para esses fatos. Como José não é mencionado, após a infância do filho (possivelmente porque falecera), os dados indicam que Maria deve ter sido a principal fonte dos evangelistas para esses fatos.
Mas se serviu de fonte de tantos acontecimentos, é natural que a mãe de Jesus tenha sido consultada, também, sobre outros fatos, inclusive alguns do período ministerial. Somadas às prolíficas citações do Antigo Testamento, que Lucas coloca na boca dela, essas informações permitem-nos traçar o perfil de uma mulher extremamente culta, para os padrões da época. Portanto, o amplo conhecimento do Antigo Testamento que Jesus demonstrou, seu espírito agudo e crítico devem-se, em parte, às características do lar em que foi criado, sob a ação educadora de Maria de Nazaré.
Por outro lado, nenhuma informação sobre a vida de Jesus é tão precisa quanto a que Lucas fornece, nos dois primeiros versículos do capítulo três do seu Evangelho. Diz ele que João Batista começou o seu ministério, pouco antes de Jesus dar início ao seu, no décimo-quinto ano de Tibério César, quando Pilatos era governador da Judeia, Herodes (não o Magno, mas Antipas), da Galileia, Filipe da Itureia e Traconites, Lisânias era tetrarca de Abilene, e Anás e Caifás, Sumos-Sacerdotes em Jerusalém. Por essa época, Jesus tinha cerca de 30 anos (Lucas 3:23).
Para não descermos a demasiados detalhes, Pilatos governou a Judeia entre 26 e 36 d. C. Se nasceu no ano 4 a. C., Jesus completou 30 anos em 27 d. C. Como Alford ensina, no grego do Novo Testamento, a expressão de Lucas 3:23 significa que Jesus tinha entre 30 e 31 anos, quando foi batizado por João. Portanto, ele iniciou o seu ministério em 27 ou 28 d. C. Essa é uma das razões por que não se pode recuar o nascimento muito além do ano 4: se o fizermos, a inauguração ministerial de Jesus ficará fora do período de Pilatos. Assim, o conhecimento que temos sobre o início da vida terrena de Jesus também está longe de ser tão impreciso quanto às vezes é sugerido.
A Crítica Literária e Histórica desenvolvida, nos últimos 200 anos, em geral, afirma que o ministério público de Jesus durou menos de um ano. A principal razão para isso é o fato de os Evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) só mencionarem uma Páscoa. Para a maioria dos especialistas, os sinóticos foram escritos entre 10 e 30 anos antes do último Evangelho (João), que fala de três ou quatro Páscoas. Essa divergência sobre a extensão do ministério público costuma ser resolvida a favor dos sinóticos.
No entanto, os referenciais relevantes para fixarmos a cronologia do ministério não se restringem às festas anuais judaicas e às referências a autoridades públicas. Antes das Críticas Histórica e Literária se desenvolverem, Isaac Newton, o físico, escreveu um esquema cronológico importante sobre as Sagradas Escrituras que, felizmente, se conservou até hoje. O interesse imediato de Newton eram as profecias dos Livros de Daniel e Apocalipse, mas sua obra contém tantas informações cronológicas, do século VI a. C. ao XVIII d. C., que assume interesse bem mais geral. Para inserir os dados dos Evangelhos no seu esquema, Newton utilizou não só as informações sobre as Páscoas e personalidades históricas, mas também fenômenos naturais mencionados nos textos, assim como colheitas, alusões à temperatura etc. Da análise simultânea desses dados evangélicos, ele extraiu a conclusão de que a cronologia completa do ministério é a de João (três anos e meio), que não apenas menciona vários anos como deixa entrever a passagem de um número correspondente de estações, momentos de semeadura, colheita e outras informações que confirmam a sua cronologia. Se os três anos e meio de ministério mencionados em João fossem resultado de um equívoco, dificilmente informações tão concordantes sobre aqueles fatos naturais e humanos seriam fornecidas. Portanto, a cronologia dos sinóticos corresponde a um corte, uma seção da estrutura maior de tempo que João fornece.
Os três anos e meio do ministério levam-nos, pois, a fixar, no ano 32, a Páscoa em que Jesus foi crucificado. Como se vê, estamos longe de desconhecer o que ocorreu, durante o ministério público e quando ele terminou. Embora muitos detalhes permaneçam obscuros, a pregação de Jesus de Nazaré é um dos fatos religiosos melhor conhecidos do período anterior à sua morte. Não é preciso reiterar que o mesmo se dá com a crucificação.
O ministério público de Jesus pode ser dividido em cinco períodos: o primeiro, com duração de seis meses, ocorreu na Galileia; o segundo, de oito meses, se desenvolveu na Judeia, o terceiro consistiu em quatro meses de ensino na Galileia; a quarta etapa (de 15 meses) incluiu os milagres de Marcos-Mateus na Galileia; por fim, a última etapa, também com diversas curas, se deu na Judeia-Pereia e durou nove meses. Os milagres operados na Judeia concentraram-se na segunda etapa; os da Galileia, na quarta. Nos demais períodos, o ministério de Jesus centrou-se no ensino e não em milagres.
Josefo nos fala de três ou quatro grupos principais existentes, em Israel, naquela época: os saduceus, que eram os líderes da nação e do Templo; os fariseus eram o grupo religioso de maior sucesso que, ao contrário dos saduceus, aceitava uma lei escrita e outra oral; os essênios formavam uma comunidade isolada, ao redor do Mar Morto; e os zelotes, que eram revolucionários. Tanto pela composição do cortejo de seus seguidores como pelas suas falas, Jesus não pertenceu a qualquer desses grupos. Suas crenças e ensinos são uma mistura de convicções variadas: a exemplo dos saduceus, Jesus colocava a lei escrita (o Pentateuco) acima da oral e acreditava na ressurreição, em anjos e espíritos; como os essênios, seu pensamento era marcado por fortes convicções escatológicas. Talvez Jesus tivesse menos pontos de contato com os zelotes. Mesmo assim, possuía discípulos dessa seita e não desconsiderava a importância da restauração do reino a Israel (At 1:6).
A vinda do reino de Deus e a ressurreição dos mortos diferenciam a pregação de Jesus de tudo o que se contém no Antigo Testamento. Por meio delas, Jesus pregou uma terminação das modalidades de vida religiosa que os judeus haviam experimentado até então. Ele também pôs fim às obrigações decorrentes de todos os tratos de Deus com os homens, em épocas anteriores, e instituiu uma nova aliança, para os que nele creem. Essa aliança é representada pela Última Ceia e está baseada no sangue e no corpo de Jesus; portanto, na sua morte.
Contudo, a confirmação do ensinamento do mestre da Galileia e o sentido particular, que os apóstolos atribuíram à fé em Jesus, estão associados à ressurreição. Assim como narram a crucificação, os quatro Evangelhos também testificam, unanimemente, a ressurreição de Jesus.
Não é possível abordar, aqui, todos os aspectos históricos da ressurreição. Por isso, farei referência a um só. O versículo 7 do capítulo 20 de João narra que, entre os objetos encontrados no túmulo vazio de Jesus, no domingo da ressurreição, estava um lenço. Gostaria de me deter nesse dado tão frequentemente desprezado, nas apresentações contemporâneas do Jesus histórico.
O Sudário de Turim, réplica medieval dos lençois que envolveram o corpo de Jesus, no sepulcro, é conhecido de praticamente todos os interessados em religião cristã. Um ou mais objetos com pontos de semelhança com ele foram usados, por José de Arimateia e Nicodemos, ao prepararem e depositarem o corpo de Jesus na sepultura. Porém, além dos lençois, aqueles membros do Sinédrio também colocaram um lenço na cabeça do rabi galileu. O autor do Evangelho de João escreveu, sobre o ponto: “Simão Pedro, seguindo-o, chegou e entrou no sepulcro. Ele também viu os lençois, e o lenço que estivera sobre a cabeça de Jesus, e que não estava com os lençois, mas deixado num lugar à parte” (João 20:6-7).
Se considerarmos que o Evangelho de João foi escrito, cerca de 70 anos depois da crucificação, seremos forçados a reconhecer que a posição relativa dos lençois e do lenço, no interior do sepulcro, só pode ter sido recordada por uma testemunha ocular da cena da época. Há muitas razões para alguém inventar um milagre, mas não para inventar algo como a posição apartada dos lençois e do lenço. Nenhum outro evangelista transmitiu essa informação, além do escritor de João. Coincidentemente, o único a falar do lenço foi aquele que se apresentou como testemunha ocular de histórias ministeriais. Pode ser, pois, que o autor de João tenha mencionado o lenço, por ter visto o sepulcro vazio, enquanto os escritores sinóticos não o viram e, por isso, não se referiram àquele pormenor.
Isso permite nos permite pensar na ressurreição como uma hipótese histórica, além de um dado de fé. Propor que a memória desse fato corresponde a algo objetivo não é ainda afirmar a interpretação dos apóstolos a respeito dela, mas já é reconhecer um dado de enorme importância e impacto, na Jerusalém da época.
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