quinta-feira, 3 de março de 2016

Filosofia e Direito (artigos reunidos) - Parte V



EQUIDADE VERSUS DESIGUALDADE

                        A ruptura epistemológica não é uma invenção da esquerda. Foi praticada, pela primeira vez, pelos filósofos pré-socráticos, que reformularam a visão de mundo grega de um Universo eterno composto por objetos sensíveis sem abandonar o materialismo que servia de base à cultura grega. Assim, os primeiros filósofos chegaram a acomodar o imperceptível (como os átomos de Leucipo e Demócrito) na visão de mundo grega, cujo imobilismo romperam.
                        No entanto, a ruptura epistemológica dos pré-socráticos foi de pequena extensão, em comparação com outras posteriores. Talvez por isso, ela teve de ser aprofundada, nos séculos XVIII e XIX, pelos materialistas franceses e, em maior medida, por Marx e Engels, que colocaram uma base extraordinariamente ampla de dados e teorias da História, da Antropologia, da Economia, da Política e, em menor medida, também da Física a serviço da teoria social.
                        Por essa extraordinária realização, o pensamento de esquerda, com Marx e Engels à frente, concluiu uma ruptura epistemológica tão relevante e ampla quanto a que Platão e sua escola tinham encetado, em direção oposta, a partir do século V a. C. Assim, não é errado, mas necessário concluir que o pensamento metafísico e o da esquerda foram ambos frutos de rupturas levadas ao apogeu, no primeiro caso, pela Filosofia Cristã, no outro, por Marx e Engels.
                        Embora os pontos de vista materialista e metafísico sejam em ampla medida antagônicos, é inegável que eles também têm pontos de contato, a começar pela gênese em rupturas tendentes à introdução da epistème (ciência). Podem, por isso, não ser tão irreconciliáveis quanto é usual afirmar. Uma obra digna das melhores realizações das duas visões de mundo consistiria em cada qual revisar os seus pontos de vista, no campo em que é mais frágil e em que a outra mais se desenvolveu. No caso da Metafísica, essa tarefa se põe como uma revisão de seus pontos de vista sociais.
                        Felizmente, a tarefa já foi realizada em parte, principalmente pelos representantes da Doutrina Social da Igreja e da Teologia da Libertação. De sorte que, para empreender a revisão do pensamento cristão social, é preciso dar continuidade ao trabalho iniciado por esses movimentos e não reconstruí-lo ab ovo.
                        É essa uma tarefa possível? Pode a Metafísica aproximar-se, de fato, do pensamento social? Não é mais sensato concluir que eles simplesmente se excluem? A meu ver, o direito natural é a melhor resposta a indagações como essas. Sua sobrevivência aos desafios que lhe foram postos ao longo da História, a reafirmação constante do jus naturale pela Igreja e pelos filósofos cristãos, sua reaparição na obra de pensadores de Kant a Reale e de Radbruch a Alexy parecem indicar que o direito natural constitui um terreno no qual a aproximação entre a Metafísica e o pensamento de esquerda pode realizar-se.
                        Dentre as vertentes em que o direito natural se desdobra, a reflexão sobre a justiça parece ser a que mais propícia a aproximação. E a teoria da justiça como equidade, de Rawls, mesmo sem se situar na tradição jusnaturalista, pode ser usada como painel das preocupações às quais qualquer versão atualizada do direito natural deve responder. Vale, por isso, a pena considerar como o filósofo político americano lançou as bases do seu pensamento sobre a justiça.
                        Para Rawls, a equidade resulta da eleição de dois princípios pelos membros de uma sociedade hipotética que desconhecem seus próprios interesses individuais. Rawls não acredita que essa situação tenha-se jamais realizado historicamente. Mesmo assim, ela ajuda a aclarar o modo como concebemos a sociedade, pois, na situação inicial suposta, os cidadãos elegeriam os seguintes princípios fundamentais da justiça[1]:

Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras. Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos.

                        Nesse parágrafo, as palavras primeiro e segundo assinalam os princípios em que a justiça social se bifurca. Na situação emergente da escolha desses princípios, “todos os valores sociais – liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as bases sociais da auto-estima – devem ser distribuídos igualitariamente, a não ser que uma distribuição desigual de um ou de todos [os] valores traga vantagens para todos”[2].
                        Retenhamos o núcleo da teoria de Rawls, no qual ele aloja os princípios da justiça que doravante denominarei número 1 e número 2. Após tê-los enunciado da maneira acima, Rawls reelabora o princípio número 2 com base no que denomina princípio da diferença. Para que as ideias não se sobreponham de modo indevido, na mente do leitor, esclareço que o princípio da diferença não se confunde com o número 1 ou o número 2 em que as múltiplas faces da justiça se subsumem. Ele é, mais precisamente, a primeira metade do princípio número 2 reelaborado de maneira a afirmar[3]:

As desigualdades econômicas e sociais devem ser ordenadas de modo a serem ao mesmo tempo (a) para o maior benefício esperado dos menos favorecidos e (b) vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades.

                        O princípio da diferença está sintetizado na letra a do enunciado acima. Rawls o explica mais prolongadamente, em outras passagens[4]:

Supondo-se a estrutura de instituições exigida pela liberdade igual e pela igualdade equitativa de oportunidades, as maiores ex-pectativas daqueles em melhor situação são justas se, e somente se, funcionam como par-te de um esquema que melhora as expectativas dos membros menos favorecidos da sociedade.

E de novo[5]:

Quando as contribuições das posições mais favorecidas se espalham [...] parece plausível que se os menos favorecidos se beneficiam, [e] o mesmo acontece com os outros das camadas intermediárias.

                        Nesse último trecho, Rawls esclarece que o princípio da diferença não opera só a favor dos mais desfavorecidos, mas também das classes intermediárias da sociedade. Cabe, porém, uma ressalva: “O princípio da diferença certamente não é o princípio da reparação. Ele não exige que a sociedade tente contrabalançar as desvantagens [de alguns em relação a outros]”. Por isso, “os que foram favorecidos pela natureza, sejam eles quem forem, podem beneficiar-se de sua boa sorte apenas em termos que melhorem a situação dos menos felizes”[6].
                        Assim entendidas, as desigualdades naturais devem ser admitidas e postas a serviço do corpo social. Para Rawls[7],

a distribuição natural não é justa nem injusta; nem é injusto que pessoas nasçam em alguma posição particular na sociedade. Esses são simplesmente fatos naturais. O que é justo ou injusto é o modo como as instituições lidam com esses fatos.

                        Como operadoras privilegiadas dos dois princípios, as instituições a que Rawls se refere devem ser escolhidas logo em seguida à eleição dos princípios fundamentais da justiça. De acordo com ele, “as principais instituições dessa estrutura são as de uma democracia constitucional”[8].
                        Um diferencial específico da teoria de Rawls é a prioridade que ele atribui ao princípio número 1 (o da maior liberdade), em relação ao 2 (o da igualdade)[9]:

As pessoas na posição original são movidas por uma certa hierarquia de interesses. Devem primeiro assegurar o seu interesse de ordem superior e seus objetivos fundamentais (dos quais apenas a forma genérica lhes é conhecida), e esse fato se reflete na precedência que dão à liberdade; a aquisição dos meios que lhes permitem promover seus outros desejos e objetivos tem um lugar secundário.

                        Vejamos o que estudiosos da teoria de Rawls afirmaram a respeito dela. O economista e Prêmio Nobel Amartya Sen, que trabalhou com o filósofo americano na década de 1960, considera que Rawls desenvolveu uma das tradições derivadas do Iluminismo[10]:

Há duas linhas básicas e divergentes de argumentação racional sobre a justiça entre importantes filósofos ligados ao pensamento radical daquele período [...] Uma abordagem – iniciada por Thomas Hobbes no século XVII, e seguida, de diferentes modos, por destacados pensadores, como Jean-Jacques Rousseau [também Kant e o próprio Rawls] – concentrou-se na identificação de arranjos institucionais justos para uma sociedade. Essa abordagem, que pode ser chamada institucionalismo transcendental, tem duas características distintas. Primeiro, concentra a atenção no que identifica como a justiça perfeita, e não nas comparações relativas de justiça e injustiça [...] Segundo, na busca da perfeição, o institucionalismo transcendental se concentra antes de tudo em acertar as instituições, sem focalizar diretamente as sociedades reais.

                        A segunda corrente sobre a justiça emanada do Iluminismo é a dos pensadores que[11]

adotaram uma variedade de abordagens comparativas endereçadas às realizações sociais (resultantes de instituições reais, comportamentos reais e outras influências). Diferentes versões desse pensamento comparativo podem ser encontradas, por exemplo, nas obras de Adam Smith, do Marquês de Condorcet, de Jeremy Bentham, Mary Wollstonecraft, Karl Marx, John Stuart Mill.

                        Sen filia-se à segunda tradição. Para ele, a opção contratualista (de Rousseau, Kant e Rawls) quase sempre resulta da sobrevalorização da liberdade, o que equivale a colocá-la acima das outras virtudes: “É possível aceitar que a liberdade deve ter algum tipo de prioridade, mas uma prioridade totalmente irrestrita é quase com certeza um exagero”[12].
                        A preferência pela liberdade e a colocação dela acima das outras virtudes são bons motivos para classificarmos Rawls como um pensador liberal. É-nos difícil segui-lo nesse ponto, devido ao exagero que a defesa prioritária da liberdade implica. Michael Sandel expõe com argúcia uma consequência importante dessa posição de Rawls[13]:

Atualmente não pensamos na política como algo que tenha uma finalidade particular e independente, mas como algo aberto às diversas finalidades que os cidadãos venham a adotar [...] Nossa relutância em atribuir à justiça um determinado télos ou finalidade mostra uma preocupação com a líberdade.

                        Porém (é o que Sandel pensa, e concordo com ele), em muitos momentos, essa preocupação deve ceder espaço à afirmação de um télos diferenteda liberdade.
                          Porém, apesar da perícia da ponderação de Sandel, o mais forte argumento contrário a Rawls talvez seja o que Amartya Sen maneja contra[14]

a escolha única, na posição inicial, de determinado conjunto de princípios para as instituições justas necessárias para uma sociedade plenamente justa. Há interesses gerais genuinamente plurais, e às vezes conflitantes, que afetam nossa compreensão da justiça. Eles não precisam diferir [...] de forma que só um conjunto de princípios realmente incorpore a imparcialidade e a equidade, enquanto os outros não.

                        Em geral, tanto as críticas de Sem como as de Sandel à teoria de Rawls merecem ser acolhidas. Mas precisamos, não menos, admitir que elas não infirmam a posição básica de Rawls consistente em tornar a liberdade e a igualdade os pilares da justiça social. Pelo contrário, com as correções que se fazem necessárias, a teoria da justiça como equidade continua a sintetizar extraordinariamente bem as aspirações contemporâneas sobre a justiça.
                        Se considerarmos a justiça uma combinação de versões atenuadas de outras virtudes, como sustentarei seguindo as pegadas de Aristóteles, e admitirmos que a medida das atenuações deve ser estabelecida pelas instituições, poderemos utilizar o princípio da diferença para garantir que a igualdade sócio-econômica seja menos atenuada que todos os outros valores exceto a liberdade. Dessa maneira, chegaremos a um equilíbrio entre as virtudes, de modo que nem a igualdade prevalecerá sobre a liberdade, nem esta sobre aquela.
                        Sob tal concepção, os impasses na aplicação dos princípios da liberdade e da igualdade não deverão ser resolvidos à maneira de Rawls, por uma prevenção favorável à liberdade, nem pela prevenção oposta, favorável à igualdade, e sim à luz das particularidades de cada caso, mais ou menos como vimos que a proporcionalidade recomenda quando há um conflito entre dois ou mais princípios. Em algumas situações conflituosas, portanto, a liberdade será privilegiada em vez da igualdade; em outras, sucederá o contrário.
                        O arranjo de princípios que proponho seja utilizado como descrição da justiça não é, absolutamente, universal. Não pode, por isso, ser incorporado ao direito natural. Mas é fundamental perceber que ele tampouco é contrário ao direito natural. Nos termos da classificação proposta por Amartya Sen, poderia ser entendido como um institucionalismo comparativo.
                        Porém, acima de tudo e mais simplesmente, o que proponho é um aggiornamento do direito natural. Sou tentado a afirmar, até mesmo, que esse aggiornamento é o que permite a ruptura epistemológica que reduz a distância entre a metafísica e o materialismo, de modo a permitir a convivência indispensável entre os seus defensores.
                        O princípio da diferença, modificado de modo a elevar a igualdade ao patamar axiológico da liberdade, é o que faculta a ruptura. Assim conduzida, a ruptura permite-nos posicionar o pensamento sobre a justiça na fronteira entre a Metafísica Cristã e a esquerda social. Permite também invocar o princípio da diferença, quando a ordem social for ameaçada pelo uso desenfreado da liberdade, para instituir políticas públicas não reparatórias, mas aptas a mitigar a desigualdade. E é claro que o reequilíbrio contrário, em prol da liberdade, poderá ser também realizado, quando o princípio abusado for o da diferença.
                        Mostrarei em outro capítulo que a acumulação do capital pode ocorrer de modo a satisfazer ou não o princípio da diferença. Esse é um ponto de particular importância na busca de uma teoria social que não espelhe perfeitamente os dogmas liberais ou sociais. Sinto a necessidade de encarecê-lo, por envolver um dos maiores impasses da teoria social no nosso tempo.
                        Passado o choque da Revolução Industrial, a reprodução do capital disparou mecanismos que forçaram o aumento proporcional dos salários e a redução da desigual-dade, em diversos países. A tradução desse fato em termos de justiça permite concluir que o capital é capaz de satisfazer o princípio da diferença, em certo número de situações. Claro que o contrário também pode ocorrer. A acumulação do capital pode tornar-se ofensiva à justiça. Trata-se de determinar qual é a situação mais comum, se existir: a conformidade ou a inconformidade da acumulação com o princípio da diferença. Se o progresso da ciência envolve problemas, esse é um dos mais cruciais para a nossa época. A ele dedicarei minhas melhores atenções nos capítulos restantes desta obra.

JUSTIÇA INSTITUCIONAL

                        Em Filosofia do direito positivo[15], afirmei que o direito, na nossa cultura, tem fundamento metafísico e está atrelado à ideia de Deus. Isso cria um grave problema consistente no estabelecimento da missão do Estado que, nas nossas sociedades, tem caráter totalmente laico. Se o fundamento metafísico do direito está ligado a Deus, o Estado laico não deve ser ser capaz de aplicá-lo.
                        O problema reaparece em meus textos posteriores. Em A função social do lucro, lembrei que “o sentimento religioso não pode ser transformado em nota de rodapé da história” e “que a missão da religião não é separável da missão política”[16]. Porém, como é possível conciliar missões tão heterogêneas e, não raro, até opostas?
                        A perfeição do ideal do Estado laico foram os Estados ateus do século XX, alguns dos quais sobrevivem ainda hoje. Porém, o fato de quase todos terem desmoronado, não só economicamente, mas também do ponto de vista político sugere a existência de um problema com o ideal. E coloca a pergunta se já não é tempo de repensarmos o próprio princípio do Estado laico, o que talvez não signifique o abolir, mas o mitigar.
                        É de lamentar que os teóricos do Estado laico não tenham atribuído a atenção necessária à crítica a ele formulada por Montesquieu, que louvou a atitude do Imperador Augusto de “proibir pessoas jovens de qualquer sexo de frequentar cerimônias religiosas noturnas, quando não acompanhadas de um parente mais velho”[17].
                        Para o pensador setecentista, a intervenção do Estado na religião exemplificada pela atitude do Imperador romano era tão benfazeja quanto a influência reversa, da religião na política[18]:

A religião é capaz de dar sustentação a um Estado, quando as leis não o conseguem fazer. Quando um reino é frequentemente agitado por guerras civis, a religião pode contribuir muito, obrigando uma parte do Estado a se aquietar. Entre os gregos, os sacerdotes de Apolo sempre viveram em paz. No Japão, a cidade sagrada de Meaco desfruta de uma constante paz. A religião é o esteio dessa regra e império, que é único sobre a terra e que não depende, como jamais dependerá, de estrangeiros para manter um comércio que a guerra é incapaz de arruinar.

                        A relação ideal entre religião e Estado, para Montesquieu, não era a separação, mas a colaboração, uma vez preservada a autonomia de cada um. Isso significa que nem a base metafísica do direito, nem o laicismo estatal devem ser sacrificados e sim compatibilizados.
                        Como, porém, é possível compatibilizá-los em sentido prático? Em Filosofia do direito positivo, publicado em 1993, afirmei que a pergunta só pode ser respondida se levarmos em consideração que a religião e o Estado têm finalidade ética. E que a ética necessita de uma base objetiva tanto quanto de um espaço para a subjetividade[19]:

O casamento de um modo, estribado em certos valores, é tão válido e legitimado quanto o [que se dá] de outro modo, estribado em outros valores. Tudo depende da cabeça de cada um. Poder-se-ia chamar tal tendência de ética subjetivista. É o que prevalece amplamente no nosso tempo. No entanto, a tendência há de ser criticada, pois a falta de parâmetros objetivos para a construção de qualquer sistema moral só pode ser catastrófica. Assim como a afirmação de um sistema ético, seja ele qual for, não pode prescindir de um elemento subjetivo [...] tampouco pode ela abrir mão de um elemento objetivo.

                        A falta de parâmetros objetivos mutila o sistema ético e o torna disfuncional. A questão é como estabelecer esses parâmetros sem incidir em arbitrariedades. Para isso, o caminho mais adequado é atrelar tanto a Ética como o Direito à justiça concebida como valor, ao mesmo tempo, subjetivo e objetivo.
                        O fundamento subjetivo da justiça são as opções que os fundadores do sistema político realizam ao definirem o seu conteúdo. É intuitivo que a definição não pode incluir vetores axiológicos tão contraditórios que impeçam a cristalização de um vetor resultante. A justiça só é um valor social na medida em que é inteligível, o que ocorre quando os vetores axiológicos que a compõem não se cancelam. Podemos até afirmar que o fundamento objetivo da justiça é esse vetor resultante, cuja existência é incompatível com o subjetivismo moral exacerbado.
                        No capítulo anterior, vimos que a liberdade e a igualdade podem ser tomadas como primeiros princípios da justiça como agregado de valores sociais. Claro que esse é um pressuposto indemonstrável. Por isso, é indemonstrável. Mas admitamo-lo, a fim de conhecermos aonde nos leva.
                        Consideremos o espaço de liberdade reservado aos costumes numa sociedade organizada de acordo com a concepção de justiça que deflui do equilíbrio entre os valores primordiais da liberdade e da igualdade. Tomemos as uniões hétero e homoafetivas como exemplos do que tende a ocorrer, quando a justiça incorpora o respeito à opção sexual de cada um e, ao mesmo tempo, a limita por meio de outro valor. Percebemos que os valores que tendem a emergir da base biológica da união heteroafetiva (procriação e formação da prole) são compatíveis com os da união homoafetiva (assistência recíproca entre os consortes). Por isso, no que têm de fundamental, as duas formas de vida sexual podem ser consideradas justas. O que nos leva a concluir que a causa da incompatibilidade entre elas não é biológica, mas cultural. É a sobreposição da norma que ordena casar exclusivamente com alguém do outro sexo à base biológica da prática sexual. 
                        Tanto numa sociedade em que a heteroafetividade e a homoafetividade coexistem em harmonia como nos ordenamentos sociais em que elas se tornam incompatíveis (pelo advento de uma norma religiosa ou de outra espécie), é possível avaliar a coexistência das duas instituições por um procedimento em três passos. No primeiro passo, são identificamos os valores em que as instituições assentam. No segundo, verificamos se os valores identificados são compatíveis ou não. Por fim, no terceiro passo, consideramos a possibilidade de um dos valores incompatíveis ser eliminado.
                        Vimos que os valores primeiros da união heteroafetiva são a procriação e a assistência à prole. Esses valores não são incompatíveis com o amparo e o amor de um dos consortes ao outro, que fundamentam a outra espécie de união. Por isso, temos de concluir que as duas formas de vida sexual atendem as exigências da justiça social baseada no equilíbrio entre liberdade e igualdade, enquanto a sociedade se mantém simples o suficiente para que mandamentos religiosos ou outros fatores não o perturbem.
                        O aspecto objetivo da justiça a que me referi em Filosofia do direito positivo pode ser estabelecido por esse método lógico. Se a justiça é um agregado de outros valores, o funcionamento dela depende da compatibilidade recíproca dos vetores axiológicos que a compõem. Não precisamos refinar a lógica subjacente à verificação da compatibilidade para que ela se torne possível. A Lógica aristotélica basta para esse fim. Aliás, é a mais adequada ao procedimento de verificação, pois a sua aplicação à realidade social permite extrair, com clareza e simplicidade, as conclusões de que necessitamos sobre os vetores axiológicos das instituições.
                        Embora as instituições e os vetores mudem com o tempo, o método de verificação deles permanece válido. Podemos aplicá-lo às instituições de hoje tanto quanto às da época de Aristóteles e chegar às mesmas conclusões, pois o modo de conceber os aspectos objetivos da justiça não se altera. No máximo, em determinada época, um ou mais desses aspectos podem não ser prestigiados e depois passarem a ser ou o contrário. Independentemente disso, o modo de conceber os vetores axiológicos da justiça e a compatibilidade entre eles sempre esteve presente.
                        Não nego que essa interpretação da justiça conduza a complicações, pois a verificação da compatibilidade dos valores que fundamentam as instituições de todas as épocas é uma tarefa problemática e interminável. Porém, para um número restrito de instituições, o procedimento se simplifica o bastante para extrairmos conclusões a respeito dele, como vimos no caso das duas espécies de união sexual. E, uma vez executado, o procedimento em três passos, que mencionei, permite conclusões suficientemente claras sobre a influência de cada valor na formação da ideia de justiça. 
                        O desafio de Kelsen ao direito natural pode ser enunciado, com certa liberdade de expressão, da seguinte maneira: quanto maior o período histórico ou o número de sociedades considerado, maior a probabilidade de não encontrarmos um único valor moral que seja reconhecido por todas as pessoas o tempo todo. Todo valor vigente, por certo tempo, num território, é negado noutro tempo ou em outro lugar. De modo que não há valores universais, no espaço ou no tempo. Por isso também, não há também um direito natural. Esta opinião de Kelsen. Este, o desafio por ele lançado ao direito natural.
                        A crítica de Kelsen à justiça universal e ao direito natural fez escola. Foi adotada na Europa, nos Estados Unidos e onde quer que o direito não estivesse profundamente entretecido com a religião. Porém, ainda é possível aprimorá-la ou aprimorar a sua expressão do seguinte modo: em vez de afirmar peremptoriamente que não há valores universais, podemos admitir que o conteúdo desses valores se torna cada vez mais indeterminado, conforme nos referimos a períodos históricos cada vez mais amplos.
                        Assim, embora os povos tenham admitido hipóteses muito distintas em que é possível tirar a vida de alguém sem com isso cometer um crime, nenhum povo jamais permitiu o homicídio indiscriminadamente. Nenhum deixou de formular restrições ao homicídio e, por meio delas, de reprimi-lo. Com isso, todos elevaram a vida humana à condição de um valor moral. E, na medida em que o fizeram, elevaram a vida à posição de um bem universal. E o que pode ser afirmado da vida, como princípio axiológico, pode ser reproduzido, semelhantemente, da verdade, da liberdade, da integridade física e moral, da propriedade, do matrimônio, da assistência aos familiares e de outros bens morais.
                        Assim reformulada, a crítica de Kelsen não se foca tanto na inexistência quanto na indeterminação do conteúdo dos valores universais. A referência a algo tão indefinido quanto esses valores é necessariamente quimérica e destituída de importância prática. Como o direito é uma disciplina prática, não faz sentido calcá-lo em valores quiméricos, cujo conteúdo nos é desconhecido.
                        Porém, o fato de não ser possível apontar um valor que não tenha sido compreendido de maneiras diversas, em lugares e épocas diferentes, não significa que não possamos determinar como ele é produzido pelo costume e pelas instituições em cada uma delas. Quanto mais limitarmos o enfoque dos valores sociais, no tempo e no espaço, mais facilmente identificaremos o ideal de justiça resultante deles.
                        O decisivo para a formação do valor da justiça, numa sociedade, não é o modo como os estudiosos a observam a partir de fora, mas como as pessoas no seu interior a concebem. Quanto mais limitado o espaço geográfico e a tomada de tempo em que essas pessoas vivem, maior a nitidez com que elas identificam o ideal de justiça subjacente aos costumes e às instituições e mais firme é a crença nele. Como a quase totalidade das pessoas vive em espaços geográficos restritos, durante um período curto, é natural que elas percebam a justiça como um valor social claro e concreto o bastante para ser afirmado e defendido tenazmente.
                        Essencial a essa concepção da justiça é a eliminação dos valores contraditórios e a preservação dos que se revelam harmônicos. Por esses métodos, as pessoas se elevam à noção de justiça em vigor nas sociedades em que vivem, ainda que tenham grandes dificuldades para compreender a justiça em sentido mais amplo e universal. “A justiça é um valor de ordem natural-cultural. Nem só cultural, nem apenas natural. Existem conotações de justiça peculiares de um tempo e conotações de vigor universal”[20]. As conotações peculiares de um tempo são compreendidas pelas pessoas que estão nele inseridas; as universais não são compreendidas. De sorte que, quanto mais universal, mais indeterminada tende a ser a concepção de justiça.
                        O fato de a ideia de justiça ser entendida com relativa facilidade de modo nenhum significa que não assente em bases lógicas. Pelo contrário, essa base é muito evidente e, se não me equivoco, está relacionada ao procedimento de verificação discutido acima.
                        O cerne do procedimento pode ser enunciado por meio de uma pergunta: quando dois valores inerentes à concepção de justiça de uma sociedade tornam-se incompatíveis, qual deles deve ser restringido? O impasse pode ser enfrentado, retomando a ideia para mim nuclear de que, na justiça, os outros valores se congregam em versões atenuadas, com exceção da liberdade e da igualdade, que por isso constituem os primeiros princípios dela.
                        Em outras palavras, embora a justiça constitua um complexo de valores, nem todos eles se colocam no mesmo plano ou têm o mesmo peso. A liberdade e a igualdade são os valores primordiais da justiça. Por isso, deve-lhes ser reconhecido um peso maior não só na ponderação dos valores que compõem a justiça, mas também na resolução dos conflitos estabelecidos entre eles.
                        Por isso também, embora a justiça possa ser pensada em diferentes graus de generalidade, até o limiar a partir do qual seu conceito se torna indeterminado, as concepções decisivas dela, as que constituem a base do direito, são as mais menos universais e mais atreladas ao funcionamento dos costumes e das instituições. No caso das sociedades complexas, principalmente as concepções produzidas pelas instituições sociais.
                        Claro que, nas sociedades cristãs, as concepções de justiça vigentes refletem valores relacionados ao Cristianismo. E que, ainda que a epiderme do tempo arrepie, não há como negar que a justiça é, no fundo, uma constelação de valores que só se compreendem em sua histórica relação com a fé.

A JUSTIÇA E OS OUTROS VALORES

                        A faculdade pela qual o homem se distingue dos outros animais é a consciência reflexiva ou poder de conhecer objetos ausentes aos sentidos. Todavia, no ser humano, essa espécie peculiar de consciência emerge de uma faculdade que ele compartilha com os animais e que podemos enunciar como a capacidade de perceber os seres do mundo exterior.
                        Os animais conhecem o mundo fora deles, não porém como é em si mesmo. Podemos afirmar que o conhecem como o mundo exterior os afeta. O experimento narrado a seguir deixa isso claro[21]:

Lettvin e seus colegas inseriram um pequenino eletrodo no nervo ótico da rã para registrar sua reação aos estímulos externos. Os olhos da rã foram então expostos a vários estímulos óticos e se registraram os impulsos elétricos das fibras do nervo ótico do animal. Os resultados foram uma revelação [...] Algumas células reagiam, por exemplo, se um pequeno objeto passasse pelo campo visual. A equipe de pesquisa escreveu: ‘Fomos tentados a chamá-las detectoras de insetos’. Naturalmente, o olho da rã precisa reagir a peque-nos objetos voadores – insetos. Os insetos são um dos alimentos da rã. Outra classe de fibras reagia quando uma grande sombra passava repentinamente pelo seu campo visual. Essas fibras poderiam ser chamadas de detectoras de cegonhas. Detectar aves predatórias que se aproximam repentinamente é tão importante para a rã como detectar insetos. Significativamente, se os pequenos objetos ou as grandes sombras não estavam se movendo, as células óticas paravam de reagir; moscas e mosquitos não ficam parados no ar, nem uma cegonha em mergulho.

                        O experimento relatado evidencia que a consciência animal não forma ou pode não formar uma imagem do mundo exatamente como ele é, mas elimina certas características e seleciona outras do entorno, de acordo com a utilidade de que se revestem para a sobrevivência da espécie, no ambiente em que ela evoluiu. Como a sobrevivência é facultada pelo instinto peculiar de cada espécie, podemos afirmar que a consciência animal é essencialmente instintiva.
                        Mas o instinto, que é? Podemos defini-lo como o conhecimento de reações corporais que se seguem, de modo automático, a estímulos do meio. Assim concebido, o instinto coincide com a emoção, no sentido que William James conferiu a essa palavra. De acordo com esse filósofo e psicólogo, “nosso modo natural de pensar as emoções mais grosseiras é que a percepção mental de algum fato excita a afeição chamada emoção e que esse último estado da mente gera a expressão corporal”.
                        Essa é, porém, apenas a maneira comum de pensar. A ciência demonstra que a sequência real dos acontecimentos é outra, pois “as mudanças corpóreas seguem diretamente a percepção dos fatos e o nosso sentimento das mudanças constitui a emoção”[22].
                        James insiste em que a emoção não prepara a mudança corporal, mas se segue a ela. Cita uma série de fatos que provam essa ordem dos elementos na experiência emocional. Não é o caso de os repetirmos aqui, mas de retermos a conclusão a que ele chega de que a emoção é o conhecimento que a mente desenvolve das mudanças corporais provocadas, nos animais e no homem, pelos estímulos que eles recebem do mundo exterior.
                        Ocorre que, se as emoções correspondentes às reações corporais parecem automáticas, pois se desencadeiam imediatamente, assim como o estado de alerta ou o medo que resultam da presença de um predador, as reações corporais que as antecedem o são ainda mais. O animal vê o predador, seu corpo reage, e essa reação provoca emoções. Essa é a sequência dos fatos que desencadeiam as emoções e que William James faz questão de clarificar.
                        A sequência mostra que a emoção acontece sem que o animal delibere ou, nos casos em que ele o faz, sem que a deliberação a altere diretamente. Sucede o contrário nos estados de consciência reflexiva, em que o conhecimento e as reações que o seguem são simultaneamente dirigidos por forças externas e pela mente do sujeito. De sorte que a consciência reflexiva preserva marcas da consciência emocional mais profunda da qual ela emerge. Podemos até supor que o alicerce categorial da reflexão depende das emoções. O que significa que o homem pensa o infinitamente pequeno e o infinitamente grande em razão dos fins ditados por suas emoções básicas.
                        Como o homem tem consciência reflexiva, tanto as suas emoções básicas, como a fome e o medo instintivo, quanto os sentimentos que forma, a exemplo do amor e do ódio, fazem-se acompanhar de pensamentos racionais. Os pensamentos primeiros que ele concebe, nas situações que lhe inspiram emoções e sentimentos, vêm a ser os seus interesses[23]:

A cada emoção [e sentimento] correspondem interesses bem definidos. Por exemplo, ao amor que um homem sente por uma mulher correspondem os interesses de ser correspondido por ela e, em alguns casos, de unir-se em matrimônio com ela. A pessoa faminta tem interesse em comer, a sedenta se interessa em beber, e a cansada, em descansar.

                        As emoções e os sentimentos não se formam racionalmente, ao contrário dos interesses, que são objeto de ideias racionais, mas ideias de uma espécie particular[24]:

Devido ao fato de os interesses e os valores serem, em geral, designados por substantivos e as regras por orações, tendemos a pensar nos interesses e nos valores como entidades substanciais ou, pelo menos, como objetos ideais relacionados a coisas [e situações] definidas. Precisamos recordar, entretanto, que nem toda regra é expressa por meio de uma oração com sujeito, verbo e predicado. Há regras expressas por uma única palavra. Quando diz ao enfermeiro: “Bisturi”, o cirurgião quer dizer “Dê-me o bisturi”. O substantivo é empregado sozinho como uma regra, como uma proposição de dever-ser. No fundo, embora designados por substantivos, os interesses e os valores têm a natureza de regras. Ter um interesse não é um ato puramente lógico ou neutro. Ter um interesse é ter uma regra para a própria conduta. O mesmo é verdade em relação aos valores.

                        O mundo das normas ergue-se sobre a emoção e o sentimento. Isso significa que, por mais que a Ética e o Direito tenham a aparência de disciplinas racionais, o seu fundamento é irracional. O problema nuclear tanto de um como do outro consiste em os interesses e os valores a eles associados serem incomensuráveis, ou seja, não poderem ser comparados e julgados por qualquer critério racional.
                        A característica essencial dos interesses e dos valores, enquanto normas, é se referirem a bens que não podem ser comparados abstratamente. Por exemplo, é impossível comparar a vida com a liberdade, de maneira a concluir racionalmente qual delas é mais importante. É impossível definir se o interesse de se alimentar é mais importante que o de se relacionar com outras pessoas. Trata-se de bens tão diversos que não é possível medi-los por uma escala, qualquer que ela seja. E ainda mais difícil é medir a importância relativa dos interesse e dos valores em abstrato. Assim, por não poderem ser comparados, os interesses e os valores tampouco podem ser dispostos em escala hierárquica.
                        Essa é uma dificuldade que a doutrina do direito natural enfrenta. O direito natural é concebido como sistema de normas. Goffredo Telles Júnior afirma que “um Direito autenticamente natural é sempre um conjunto de normas jurídicas [...] consoante com o sistema ético de referência da coletividade em que ele vigora”[25]. Porém, existe de fato um sistema ético de referência? Se a Ética e o Direito baseiam-se em valores incomensuráveis, como eles podem formar um sistema? 
                        Apesar dessas dúvidas, é amplamente aceito que as normas morais e jurídicas constituem ordenamentos. Nem umas, nem outras dispõem-se caoticamente. Tampouco se dão à utilização arbitrária. Ora, o fato de as normas formarem ordenações implica que elas são, em algum grau, sistematizáveis. Portanto que existe um sistema ético de referência, com o qual o sistema jurídico se coordena. Trata-se de descobrir o método pelo qual esses sistemas se formam.
                        Kelsen propôs que os sistemas de normas jurídicas se formam por um método formal. Cada norma do ordenamento é considerada válida se for criada em conformidade com esse método. Porém, essa concepção formal do ordenamento jurídico é por vezes rejeitada, com base no fato de que o ter sido criada por certo método não garante que a norma seja obedecida. E, se não for obedecida, a norma não será norma. De modo que o método formal de Kelsen não explica como os ordenamentos de normas se formam.
                        O enigma da formação dos sistemas éticos e jurídicos pode ser resolvido por um método diferente do proposto por Kelsen. Por um método não formal e sim material. Assim como o direito natural pode ser concebido como o elemento mais fundamental à estrutura do sistema jurídico, a justiça é a expressão axiológica dele. Por isso, como o direito natural, ela também se dá à estruturação do sistema jurídico.
                        Só identificamos os valores que a sociedade em geral reconhece como válidos enquanto constituintes do valor maior da justiça. A justiça é, por isso, a condição de possibilidade daqueles valores. Sem ela, eles se desagregam, desconectam-se e perdem a realizabilidade por meio da qual são reconhecidos e acatados. Por isso também, quando dois daqueles valores entram em conflito, em situações concretas, o critério maior que permite a resolução do conflito é a justiça enquanto harmonia dos valores vigentes.
                        A concepção segundo a qual o sistema jurídico se estrutura com base na justiça é mais plástica e menos rígida do que a concepção concorrente de que as normas se articulam umas às outras segundo o procedimento formal de criação. Ela chega a eliminar a noção segundo a qual o ordenamento pode ser comparado a uma pirâmide de normas dispostas em diferentes níveis. A sistematização das normas é garantida, mais simplesmente, pela ideia de justiça, que funciona como a argamassa que une os demais valores e normas.
                        A importância da justiça é a mesma de toda argamassa: sem ela, pode haver normas desconexas, não sistema de normas, assim como, sem argamassa, pode haver materiais, mas não edifício. Sem a justiça, o inteiro conjunto das normas se desarticula, o edifício da Ética e do Direito desaba e sobre as suas ruínas uma só palavra é posta: arbítrio.

A JUSTIÇA E OS DESVALORES

                         A justiça é um sentimento que orienta a ação (às vezes também a revolução), mais do que a contemplação. Não é possível não reconhecer a presença dela no movimento Occupy Wall Street, nas manifestações de meados de 2013, no Brasil, e nos confrontos de fevereiro de 2014, na Ucrânia. Em todos esses casos, o sentimento de justiça motivou movimentos e transformações sociais relevantes.
                        O filósofo do direito italiano Giorgio del Vecchio referiu-se ao sentimento de justiça em termos translúcidos[26]:


O homem tem uma faculdade originária, não induzível da experiência, graças à qual nos é possível distinguir a Justiça da injustiça. Aristóteles já punha em relevo essa faculdade, também designada por sentimento do justo e do injusto [...] Deve admitir-se, portanto, que o sentimento jurídico, inerente à nossa própria natureza, é uma  força viva, originária e autônoma, e a fonte primária da evolução do Direito.


                        Indago-me se é possível entendermos a relação da justiça com as transformações sociais, à luz do princípio da prevalência das causas econômicas dos acontecimentos tão bem enunciado por Marx e Engels. Se a justiça é uma simples ideia ou um sentimento, não um fato econômico, como pode pesar nas grandes transformações sociais?
                        Geralmente, a justiça não é pensada à parte dos fatos ou, se preferirmos o enunciado inverso, os atos humanos não são eventos brutos, como uma chuva ou nevasca, mas acontecimentos movidos por ideias e sentimentos. Por isso, quando nos referimos à prevalência das causas econômicas, incluímos nelas os pensamentos que, em alguma medida, as dirigem como fatos humanos.
                        Kelsen enfatizou, com razão, o quanto o conteúdo da justiça nos escapa. Podemos acrescentar que, quando isso se dá, o valor social da justiça deixa de exercer influência sobre os acontecimentos. Porém, tanto a obscuridade como a não produção de influência pela justiça só se manifestam na medida em que tentamos extraí-la de relações por demais numerosas, no espaço ou no tempo. Quando o fazemos, a justiça se torna imediatamente indeterminada e irrelevante. Porém, tão-logo a pensamos em contextos mais limitados, ela se torna clara e passa a exercer sua força conformadora sobre os acontecimentos.
                        Ubi societas, ibi jus, diz o brocardo milenar. Se o alterássemos ligeiramente, poderíamos dizer Ubi societas, ibi justitia. Talvez assim, o brocardo passasse a exprimir algo ainda mais profundo, a saber: onde há sociedade, há justiça. Assim transformado, o brocardo implicaria que a justiça é tão real quanto a sociedade em que vigora. Mas, talvez por ser um sentimento, a justiça permanece de algum modo vaga e vaporosa, o que cria a necessidade de o jurista e o filósofo do direito precisarem o seu conteúdo. 
                        O método de determinação da justiça que propugno tem essa finalidade. Permite precisar de algum modo o que é a justiça, não em todas as sociedades, mas para cada uma delas em particular. Vimos que, nas sociedades complexas, a justiça é sempre o vetor resultante dos valores em que as instituições se fundam.
                        Nas sociedades em que o Estado ainda não se organizou, o direito à vida funda-se na vingança de sangue, por isso que, onde não há Estado, não há reação coletiva à ofensa à vida, a não ser a vindita. Caso particular dessa espécie é o das sociedades em que a religião se desenvolveu, e o Estado ainda não, a caridade coexiste com a vingança. Podemos afirmar que, em tal caso, a justiça inclui tanto a caridade quanto a vingança e que o critério de harmonização das duas é de ordem prática: se a justiça não incluísse um dos valores, ele ficaria sem proteção, o que seria prejudicial para a religião ou para o direito à vida.
                        A partir de quando o Estado se organiza, o direito à vida passa a repousar nele e em outras instituições sociais que passam a coexistir com ele. Nesse sentido é que a justiça também passa a ser produzida, diuturnamente, pelas instituições.
                        A existência da vingança não importa a inexistência da justiça. O mesmo pode ser dito de instituições e desvalores como a escravidão e a exploração. Nenhuma delas é justa em si mesma ou em todas as situações, mas encontra justificação na medida em que a sua supressão implica a não proteção de valores fundamentais, como a produção dos meios de vida e a sobrevivência. 
                        Não precisamos negar a existência da vingança, da escravidão ou da exploração econômica, na História, para afirmar a da justiça. Em todos os modos de produção, sempre houve exploração. Podemos admitir até mesmo que ela foi essencial aos arranjos econômicos do passado e que só deixará de haver exploração, quando a luta de classes e a dominação forem extintas.
                        Infelizmente, a História não fornece exemplos de tal extinção. Marx e Engels o demonstraram no Manifesto comunista. Pelo contrário, a História é marcada pela luta de classes, que leva à dominação e à exploração dos mais fracos pelos mais fortes.
                        Mesmo assim, nem a luta, nem a dominação ou a exploração podem ser reduzidas a acidentes. Embora em parte fortuitas, elas também são condicionadas por leis sociais. Marx e Engels mostraram que os modos de produção são regidos por leis. É auspicioso que, em O capital no século XXI, o economista Thomas Piketty tenha reconhecido a existência dessas leis e derivado delas a sua intepretação da desigualdade[27].
                        Prestemos atenção a este ponto. Piketty postula que a desigualdade não pode ser entendida, se o funcionamento das leis que a produzem não o forem. Mas, se assim é, a desigualdade é uma florescência de leis sociais. E, como toda lei é uma relação necessária, temos de concluir que a desigualdade é, ela própria, de certo modo, necessária. Como nenhum fato baseado em necessidade pode ser injusto, segue-se que a desigualdade, na medida em que necessária, não é injusta.
                        Estou a afirmar que a desigualdade nunca é injusta? De modo nenhum. Afirmo que ela pode ser ou não injusta e que não o é, quando decorre de uma necessidade. Há uma desigualdade desencadeada e outra não desencadeada por forças necessárias. Portanto, há desigualdade que ofende e desigualdade que não ofende a justiça. O mais fundamental é que, em nenhum caso, a existência da desigualdade impede a da justiça, exatamente como a vingança não a impede, antes coexiste com ela.
                        Não é diferente com a luta de classes, a dominação e a exploração econômica. Assim como a desigualdade, esses fenômenos também são corolários das leis que regem os modos de produção. Como corolários de leis, eles são necessários. E, por serem necessários, não ofendem a justiça, antes coexistem com ela.
                        Teço essas observações para esclarecer que a existência de fenômenos como a desigualdade, a luta de classes, a dominação e a exploração, entre muitos outros associados a desvalores, não constitui prova de que a justiça não exista. Não estou a afirmar que tais fenômenos são justos. A justiça social é um agregado de valores, nunca de desvalores. Porém, numa sociedade constituída por homens e mulheres imperfeitos, a existência do agregado não exclui dos desvalores. A justiça não existe em estado de pureza, mas em meio a impurezas. Nem por isso estou a propor uma teoria impura do direito.
                        Não penso que a justiça seja aquele ideal etéreo e irrealizável cuja existência é negada peremptoriamente por Kelsen. A justiça não só é realizável como constitui o princípio de tudo o que se pode realizar no território da ética. Nenhum objeto bom pode existir, se não for conforme a justiça. Nenhum mau o pode, se não coexistir com ela. 
                        Mais que negar a justiça, portanto, precisamos estabelecer um método que nos permita determinar o conteúdo dela com segurança. Um método que converta a justiça de ideal incerto num conceito socialmente aceito e determinado. Vimos que esse método pode consistir na identificação dos valores que as instituições promovem, na comparação deles e na restrição dos que atentam contra outros valores. Assim, a justiça passa a ter configuração clara, em sociedades concretas.
                        Essa configuração não é impedida por desequilíbrios persistentes. Pensemos na conservação da desigualdade que Piketty descreve e quantifica. Se, em todos os modos de produção, os níveis de desigualdade sempre foram semelhantes, com a notável exceção do século XX, a desigualdade deve ser considerada injusta? A resposta há de ser sim apenas para a desigualdade não baseada em necessidade. Se entendermos que a justiça como harmonia de valores vigora sem excluir os desvalores, o funcionamento básico da sociedade poderá ser considerado justo, e a prática dos desvalores, atribuída à necessidade.
                        Passemos a um fato recente: a crise financeira de 2007-2008. Sabemos que ela se deveu ao endividamento que se seguiu ao arrocho da renda da classe média, nos Estados Unidos. Deveu-se também à criação de obrigações nunca antes vistas, que multiplicaram e concentraram as dívidas nas empresas que requereram falência. Esses foram os fatos. O que invoca assombrações são as tentativas desastradas de entendê-los em termos de justiça.
                        À luz da concepção de justiça aqui defendida, o arrocho da classe média que causou a crise não foi justo, mas coexistiu com a justiça do regime capitalista, o que significa que não a eliminou. As obrigações novas que multiplicaram e concentraram as dívidas tampouco inviabilizaram a justiça social. A realização simultânea dos opostos – de um lado a justiça inerente ao sistema, de outro os arrochos e o aumento descontrolado das dívidas – é tão inegável quanto que, num sistema de normas, a justiça responde pelo todo e a injustiça pelas partes. Portanto, uma análise global e equilibrada conduz à conclusão de que justiça e injustiça coexistem e não devemos negar uma delas para afirmar a outra. A justiça existe e responde pelo sistema; as injustiças incidem nas partes dele e às vezes se disseminam. 
                        O fundamento em que essa interpretação da sociedade repousa é a admissão de que o que unifica as normas éticas e jurídicas é a justiça, sem a qual elas não formam um sistema. E, se o sistema é constituído precisamente pela justiça, não é possível afirmar que ele é injusto. Injustas são partes dele, nunca o sistema todo, nem suas bases. Portanto, para afirmar a injustiça de um modo de produção, não há alternativa a não ser negar a sua organização sistêmica, vale dizer, a sua relação com a justiça.
                        O que observamos nas sociedades, porém, é o contrário. São normas sistematizadas que regem os modos de produção, mediante a força unificadora exercida pela justiça. Assim, somos compelidos a admitir que, na medida em que são regidos por normas sistematizadas, os modo de produção são justos.
                        Vemos que é perfeitamente possível interpretar a sociedade com base na justiça, sem eliminar o contrário dela, a saber: os desvalores. Aliás, quanto mais admitirmos que a justiça e os desvalores coexistem, mais a interpretação funcionará, pois mais o comportamento das pessoas e dos grupos será explicado sem distorções. O desafio consiste em identificar o princípio da coexistência a que me refiro e demonstrar em que condições ele opera. Sem esse discernimento, tudo o que restará, na ciência social, serão interpretações tão idealizadas e particulares quanto a imaginação, em seus voos, é capaz de criar.



DESVALORES DO CAPITAL

                        O choque do liberalismo com a esquerda leva cada um dos lados a representar a posição contrária como caricatura. E não apenas a caricaturarem-se, mas a legitimarem pela utilização da mesma arma cada qual o que o outro realiza. É o triste preço de ridículo que a ideologia cobra aos seus tributários.
                        A caricatura distingue-se da representação usual por ampliar características reais do objeto. Embora o traço que ela acentua pertença, em alguma medida, ao objeto, a ampliação o deforma. Claro que, enquanto empregada para fins humorísticos, a caricatura cumpre a sua finalidade. Problemas começam quando utilizam o princípio caricatural em textos com finalidade argumentativa. Aí, o resultado costuma ser trágico.
                        As caricaturas do mercado e da revolução não fogem a essa regra. As primeiras não só aumentam os erros isolados dos agentes econômicos como sugerem que eles têm consequências morais exageradas. Para observadores isentos, o dinheiro pode ser empregado de modo tão benigno e tão nocivo quanto todos os outros bens. Por possuir o apanágio da liquidez, ele não se torna melhor ou pior do que outras coisas. Contudo, os autores de caricaturas ampliam as mazelas reais do dinheiro ao ponto de convertê-las na quinta essência do mal. Implícito fica que esse objeto transfigurado é o grande vilão e o principal responsável pelas misérias do mundo. O mesmo fazem com os vários mercados, cujos males são convertidos em mal absoluto e abstrato, isto é, no mercado que se tornou maligno.
                        Uma das características da crise financeira de 2007-2008 foi ter ensejado a proliferação de caricaturas das finanças e de outros mercados. Do extremo das acusações formuladas sem o menor conhecimento dos fatos ao extremo oposto das avaliações pautadas em argumentos sensatos, as representações exageradas dos defeitos dos mercados ganharam enorme projeção.
                        O filósofo Luc Ferry assim se pronunciou sobre a crise[28]:

A imagem otimista, segundo a qual haveria uma ‘boa’ economia, a economia real, e outra ‘ruim’, a ‘economia-cassino’, imagem que se popularizou a partir da década de 1980 junto ao grande público com o filme Wall Street[...] encontra ampla repercussão porque, em certo sentido, é tranquilizadora: bastaria [...] ‘moralizar’ o capitalismo [...] e pronto, o circo estaria armado, voltaríamos à boa prática de bancos destinados a financiar a indústria, e não a ganhar dinheiro em cima de dinheiro.

                        Ferry denuncia o hábito de associar as finanças à cupidez e à ganância. Porém, ele mostra a seguir que a intenção da sua crítica não é relativizar as que tradicionalmente são formuladas ao setor financeiro do capitalismo, mas generalizá-las a todos os setores da economia[29]:

A verdade é bastante diferente. Não há dúvida de que é a economia real, e não, em primeira instância, a cupidez de alguns financistas loucos, que está na origem do descontrole da famosa crise dos subprimes [...] O problema não reside principalmente nos desvios de certos atores (os bancos americanos), mas enterra suas raízes no próprio coração do sistema da economia moderna.

                        Para Ferry, o problema do subprime não foi localizado, mas geral. Desnudou a disfunção congênita do capitalismo, ou seja, “a bipolarização crescente do mundo do trabalho, de um lado com trabalhadores com elevada formação, que se beneficiam de altas remunerações, e, de outro, ao contrário, com uma massa de assalariados parcamente recompensados por serem menos qualificados”[30]. Essa disfunção é o problema enraizado “no próprio coração do sistema da economia moderna”. As palavras raízes e coração sugerem que Ferry percebe o arrocho salarial momentâneo, que levou os trabalhadores a se enforcarem em dívidas, como um mal mais profundo do que o descontrole financeiro no seio do capitalismo.
                        Um eco ainda mais forte desse discurso cujos traços caricaturais me parecem inegáveis, encontro-o nas encíclicas do Papa Francisco que, embora estruturadas em boas ideias e intenções ainda melhores, são temperadas por uma crítica que pressupõe a identificação ilusória entre economia (de escala) e cupidez, entre produção e injustiça. Ouçamos o trecho de Laudato si, em que o Papa trata das crises financeiras e do método de socorro aos bancos utilizado para enfrentá-las [31]:

            A salvação dos bancos a todo o custo, fazendo pagar o preço à população, sem a firme decisão de rever e reformar o sistema inteiro, reafirma um domínio absoluto da finança que não tem futuro e só poderá gerar novas crises depois duma longa, custosa e aparente cura.

                        Embora a crítica papal não tenha por foco o socorro em si mesmo, mas o fato de não vir acompanhado de maior regulamentação dos mercados, o Papa continua[32]:

            A crise financeira de 2007 e 2008 era a ocasião para o desenvolvimento duma nova economia mais atenta aos princípios éticos e para uma nova regulamentação da atividade financeira especulativa e da riqueza virtual. Mas não houve uma reação que fizesse repensar os critérios obsoletos que continuam a governar o mundo. A produção não é sempre racional, e muitas vezes está ligada a variáveis econômicas que atribuem aos produtos um valor que não corresponde ao seu valor real. Isto leva frequentemente a uma superprodução dalgumas mercadorias, com um impacto ambiental desnecessário, que simultaneamente danifica muitas economias.

                                   Nesse trecho da encíclica, a recente crise global é recuada para 2007, para melhor destacar a sua ligação com as finanças, pois depois de 2007 a desordem deixou de ser só financeira para ser também econômica. Mais do que isso, o Papa fala da crise e continua a falar da “produção”, que “não é sempre racional”, o que deixa claro o mesmo diagnóstico de Ferry, ou seja, o de que a crise se originou na produção tanto quanto no setor financeiro. Nem um, nem outro, porém, se incomoda em prover uma clara demonstração disso.
                                   Francisco é ainda mais explícito[33]:

            Habitualmente, a bolha financeira é também uma bolha produtiva. Em suma, o que não se enfrenta com energia é o problema da economia real, aquela que torna possível, por exemplo, que se diversifique e melhore a produção, que as empresas funcionem adequadamente, que as pequenas e médias empresas se desenvolvam e criem postos de trabalho.

                        Penso haver um manifesto exagero nesse diagnóstico. E que a alegação de descontrole visceral da produção, além de não comprovada, é também exagerada. O que pode ser estabelecido confiavelmente é que a crise financeira foi desencadeada pelo apetite dos bancos de investimentos e comerciais, que não esperavam que o lucro pudesse converter-se em prejuízo, num mercado tão sólido (até então, para muitos, o mais sólido de todo o setor financeiro) quanto o de financiamentos imobiliários dos Estados Unidos da América. Em essência, foi o que aconteceu e que produziu a falta de cuidado e a crise.
                        Mas isso é, precisamente, o que costumamos denominar um problema financeiro. Transpo-lo para o setor produtivo, com base na invocação de que a economia de escala é congenitamente perniciosa, envolve premissas tão certas quanto a de que o dinheiro é mau.
                        O comportamento que potencializou e exportou os riscos inerentes ao setor imobiliário consistiu em buscar o lucro proporcionado por operações complexas. Porém, essas operações são inseparáveis do desenvolvimento recente das relações econômicas. Piketty, que está longe de ser um liberal, informou que[34]

os investimentos alternativos representam pouco mais de 10% das carteiras [das Universidades públicas americanas] com dotações inferiores a 50 milhões de euros, depois atingem rapidamente 25% entre 50 e 100 milhões de euros, 35% entre 100 e 500 milhões de euros, 45% entre 500 milhões e 1 bilhão de euros, para finalmente culminar com mais de 60% da carteira para as dotações superiores a 1 bilhão.

                        Os investimentos alternativos a que Piketty se refere são semelhantes àqueles que causaram a crise do subprime. Não é pouco importante que as Universidades americanas que realizam esses investimentos geralmente são públicas. Portanto, em última instância, o Estado é quem faz a opção pelos investimentos alternativos.
                        Por se tratar de investimentos públicos, é duvidoso que o seu motor principal seja a ganância ou a exagerada propensão ao risco. “O rendimento obtido pelas maiores dotações não se deve ao fato de essas instituições adotarem uma estratégia com mais risco, mas, sobretudo, por adotarem uma estratégia de investimento mais sofisticada”[35].
                        Até prova em contrário, os motivos que levam os fundos privados a optarem por investimentos complexos não são diversos dos que determinam a opção dos fundos controlados pelo Estado. São motivos de ordem racional, nem melhores, nem piores que os dos gestores financeiros de Harvard, Yale e Princeton. Na verdade, embora os fundos soberanos sejam um pouco menos marcados pela racionalidade do lucro, também eles buscam os investimentos com maior retorno, cujos desenhos tendem a ser cada vez mais exóticos e complexos[36].
                        A crise do subprime foi gestada, no ventre de duas empresas estatais norteamericanas, a Fannie Mae e a Freddie Mac, que eram “de capital privado, patrocinadas pelo governo (government-sponsored enterprises – GSEs)”[37].  Tanto a Fannie Mae quanto a Freddie Mactinham sido criadas pelo Congresso americano[38]. Portanto, eram o que costumamos denominar empresas estatais. Juntas, elas “detinham ou garantiam mais de US$ 5 trilhões em hipotecas residenciais e em certificados de recebíveis imobiliários (mortage-backed securities) – cerca de metade do total nacional.
                        Para financiar as suas operações, a Fannie e a Freddie tinham emitido cerca de US$ 1,7 trilhão em dívidas. Estavam, por isso, incluídas no rol dos maiores emissores de dívida do mundo. Levantavam, às vezes, empréstimos superiores a US$ 20 bilhões por semana”[39]. No entanto, “nenhuma das duas concedia financiamentos diretos aos compradores. Basicamente, vendiam seguro. Garantiam o pagamento pontual das hipotecas, que eram enfardadas e fatiadas em títulos, distribuídos por bancos entre os investidores”[40].
                        A descrição não poderia ser mais fiel, nem mais simples. No epicentro da crise do subprime, duas empresas vendiam apólices de hipotecas oferecidas, por intermediação do sistema bancário, a uma multidão de clientes, com o aval e sob o comando do Estado.
                        E os membros da classe média que contraíram as dívidas com a Fannie Mae e a Freddie Mac: quem eram? Na época, só o Departamento do Tesouro norteamericano empregava 110 mil servidores públicos[41]. Imaginem todos os outros departamentos da União, dos Estados e dos municípios juntos. Na verdade, boa parte dos empregos que sustentavam a classe média americana era do setor público. Portanto, se o libelo de Ferry estiver correto, o arrocho salarial que vitimou a classe média terá sido imposto tanto pelo Estado quanto pela iniciativa privada.
                        Se olharmos um gráfico da crise e da recuperação que se seguiu, notaremos que tem a forma de um V, com os lados formando ângulos agudos com o eixo vertical. Isso confirma que tanto a paralisação como a recuperação foram bastante abruptas. Quem foi o principal responsável pela recuperação? De novo foi o Estado. O problema é que a rapidez da intervenção que minimizou os efeitos da crise impediu que as desigualdades fossem reduzidas, do modo como se deu após a Grande Depressão. É o que o livro de Piketty mostra por meio de números bastante claros.
                        Essa é a história da crise recente. Ela mostra que o capital estatal procura a rentabilidade quase exatamente como os capitais particulares. E que, para direcionar esse capital aos investimentos mais rentáveis, o Estado emprega um corpo de funcionários de classe média e uma casta privilegiada de superfuncionários. Às vezes, ele remunera de maneira justa os seus funcionários, outras vezes não. Porém, sempre, ao desenvolver a sua atuação, o Estado alcança grandes realizações, ao mesmo tempo em que causa problemas. Alguns problemas que causa são tão grandes que só ele mesmo é capaz de resolvê-los, como foi o caso da crise do subprime, que teve de ser resolvida com a rapidez do relâmpago para que não devastasse a sociedade. E, curiosamente, a presteza da solução estatal às vezes não permite que os efeitos colaterais dos problemas, que seriam benéficos no longo prazo, sejam sentidos.
                        Como se esse feixe de contradições não bastasse, porém, o Poder Público ainda se torna anêmico por ter de desempenhar, ao mesmo tempo, os trabalhos de Hércules do Estado-polícia, do Estado de bem-estar e de garante de todos os subprimes da economia! 
                        A crise de 2008 ensinou-nos de uma vez tudo isso. Renovou, por completo, as lições sobre o verdadeiro caráter do Poder Público. Mostrou-nos que Churchill não proferiu um impropério, ao declarar que o socialismo estatal promove a igual distribuição das misérias. A voracidade pelo lucro existe? Sem dúvida. Tanto no setor privado quanto no público. A desigualdade não foi eliminada? Não, e é duvidoso que convenha à sociedade erradicá-la. Voltou a aumentar? Sim, pelo comportamento do capital privado tanto quanto pelo do setor público.
                        Enfim, os desvalores seguem a nos assediar. Mesmo assim, a justiça engendrada pelas instituições ainda se impõe a eles. Acreditem-me quando informo que os maiores especialistas dentre os 110 mil funcionários do Tesouro americano se reuniram e analisaram os dados da crise, quando ela se agravou, em 2008. Chegaram à conclusão de que US$ 1,3 trilhão em hipotecas eram subprime e, na pior das hipóteses, US$ 300 bilhões não seriam honrados. De modo que as casas seriam vendidas, e o prejuízo final seria reduzido a um número ainda inferior. Ben Bernanke estimou que esse número ficaria entre US$ 50 bilhões e US$ 100 bilhões. Declarou-o ao próprio Congresso, que se tranquilizou por um dia.
                        No entanto, a inadimplência das hipotecas explodiu. Parecia o fim, mas veio outro evento improvável: a recuperação, com todos os seus equívocos, e a crise passou. Por quê? Talvez porque, se tivéssemos de designar por uma só palavra os mecanismos de defesa que permitem à sociedades e recuperar de abalos de tão grande magnitude, haveríamos de escrever em maiúsculas: JUSTIÇA!

VALORES PERENES E TRANSITÓRIOS

                        A justiça é um valor multidimensional. Existe a justiça religiosa, que inspira as pessoas a enfrentar toda a gama de dificuldades do seu dia a dia, a justiça como valor pessoal, que cada ser humano professa distintamente, e a justiça que tem o papel de agregar os homens. A forma superior da justiça gregária é a que denominamos justiça social. Tenho-me ocupado dela nesta parte do livro.
                        Do ponto de vista do monge que se refugia na sua cela, a comunhão com Deus e o repouso da alma são o fundamento da justiça. Para Antígona, o decreto que negou sepultura ao seu irmão era injusto porque afrontava valores religiosos. Porém, para Creonte, que decidiu contra Antígona, o decreto era uma incontestável materialização da justiça. Por isso, conquanto opostos, os atos do monge, de Antígona e de Creonte buscam todos realizar a justiça e a tomam por fundamento.
                        Por abrir-se em formas tão díspares, seria a justiça um valor contraditório e, por isso, nulo? Seria ela o nada, por isso que as concepções do monge, de Antígona e de Creonte cancelam-se reciprocamente? Se um desses três estiver certo, os outros não têm necessariamente de estar errados? Perguntas como essas recapitulam o mistério da justiça, vale dizer, o fato de as pessoas a buscarem com tanta intensidade e discordarem tão veementemente a respeito dela. 
                        Se admitirmos que concepções tão distintas de justiça coexistem em harmonia ou, ao menos, sem se excluírem, será preciso encontrar um conjunto de ideias e de palavras (portanto, um vocabulário) que nos permita exprimir os pontos de contato entre elas. Esse conjunto de ideias e o vocabulário respectivo pertencem ao que, historicamente, chamamos direito natural.
                        Ao longo dos séculos, o direito natural foi, às vezes, concebido de maneira dogmática e até intolerante. Mas isso não impediu que ele incluísse a concepção de justiça mais estrutural e, por isso, vital para a sociedade. Como o materialismo e a metafísica constituem os campos nos quais as doutrinas mais importantes da História da Filosofia convergem, o direito natural e o positivismo jurídico são as principais teorias do direito propostas ao longo da História. E, assim como as metavisões opostas nunca se excluem completamente, o direito natural e o positivismo jurídico podem, em alguma medida, ser considerados compatíveis.
                        Para isso, porém, é preciso explicar de que modo a existência do direito natural pode ser estabelecida, visto que a do direito positivo é manifesta. É possível agrupar as concepções do direito natural em dois campos: de um lado, ficam as doutrinas que o identificam com noções idealizadas do bem; de outro, as que o definem mediante o respeito mínimo a certos valores.
                        Em Filosofia do direito positivo, afirmei a importância superior da primeira espécie de direito natural[42]. Aliei-a à descoberta reivindicada por Miguel Reale “da natureza dialética ou dinâmica de elementos até então analisados abstraídos um do outro”[43], a saber: o fato, o valor e a norma.
                        Reale demonstra que a norma não pode ser tomada, ao modo de Kelsen, “como um dado inicial, recebido pelo jurista como ponto inamovível de partida”[44]. Para ele, “o momento nomogenético [a criação da norma] não pode ser considerado metajurídico, por maisque se insira no campo de pesquisa do sociólogo [...] É da nomogênese, em suma, que resulta o conceito da norma, não podendo ser posta entre parênteses a tensão fático-axiológica da qual e na qual ela emerge”[45].
                        Para fundamentar minha adesão ao direito natural universal, recorri ainda, naquela época, ao ensino de Goffredo Telles Júnior, que, “em sua Ética, menciona seis valores fundamentais candidatos à dignidade de universais: liberdade, justiça, bondade, verdade, beleza e poder”[46]. Com base nas lições desses juristas, que me pareciam fundamentais, escorei meu conceito de direito natural num conjunto de sete valores selecionados em função do significado prático que assumem. Eram esses valores: a vida, a intangibilidade física e moral, a liberdade, a verdade, a propriedade, o casamento e o dever familiar. Para mim, o caráter prático desses valores decorria de “a moral natural ser uma moral do respeito e uma moral mínima”[47], o que significava que eles deviam receber, ao menos, uma tutela limitada por parte do Estado.
                        Esse modo de ver a moral e o direito naturais não se distancia do argumento a partir da injustiça de Radbruch e Alexy. É, na verdade, uma expressão daquele argumento, na medida em que eu não pretendia afirmar que o conteúdo da proteção a ser dada aos sete valores da moral universal pudesse ser determinado, mas apenas que os valores a serem tutelados podiam ser determinados. Isso indicava que, apenas conforme os valores fossem desafiados, em situações concretas de vida, o modo de tutelá-los podia ser decidido.
                        A orientação dos sete valores à práxis explica a divergência do rol que propugnei ao proposto por Goffredo. É que, na época, o rol de Goffredo pareceu-me algo idealizado. Eu queria encontrar um fundamento para o direito universal que fosse mais adequado às limitações do direito humano. Por isso concebi os valores universais como mínimos.
                        Assim compreendido, o direito universal não se ajusta à concepção kantiana segundo a qual o conteúdo de um ato conforme a moral se define pela sua orientação ao bem como fim em si mesmo e não como um meio. Se o direito universal há de ser entendido como aquele que todas as pessoas respeitam, é difícil admitir que elas se tenham elevado, sempre e invariavelmente, a noções idealizadas do bem. Parece mais correto pensar que elas o concebam como um feixe de deveres mínimos.
                        Em meu livro de 1993, concluí que, do ponto de vista lógico-formal, o respeito àqueles sete valores deve ser formulado como uma inclinação a priori da razão[48]:

Só nas inclinações gerais, compostas por grupos de formas a priori da razão [prática], se encontra a generalidade e gradação mínima dos juízos da moral natural”, do que se conclui que a moral natural está latente na razão pura.

                        Claro que o mesmo pode ser afirmado do direito natural. Portanto, já em 1993, o direito natural era, para mim, um elemento lógico estrutural do direito positivo: “Há uma lógica mínima no direito de todos os povos. Jamais se concebeu que a quem empresta cinco devam ser restituídos dez, a menos que outras relações venham a compensar [a diferença entre] os valores”[49]. Embora esse elemento lógico tivesse sentido moral, este era tênue, como indicado pela insistência do livro no conceito de moral natural mínima.
                        Mas, também tão cedo quanto naquele tempo, a ideia de direito natural que defendia já estava penetrada de pessimismo. É o que as expressões “lógica mínima” e “moral natural mínima” claramente indicavam. As expressões tornam claro que eu não me inclinava às doutrinas que consideravam o direito positivo uma ampla particularização dos princípios do direito natural. A afirmação de relação tão estreita entre categorias opostas envolvia risco considerável de contradição. Pior ainda: minha inclinação ao agostinianismo levava-me a suspeitar que a particularização do direito natural sob a forma de normas positivas pudesse ser muito bem-sucedida.
                        Porém, naquela época, não explicitei como a razão concebe as normas da moral natural. Tentarei fazê-lo aqui, a partir da lição de Joseph LeDoux, do Centro de Ciência Neural da Universidade de Nova York, sobre o processamento das emoções. Em O cérebro emocional, LeDoux colocou as emoções em oposição ao conhecimento, uma vez que[50]

os sistemas [nervosos] envolvidos no processamento cognitivo [...] não estão diretamente vinculados com os sistemas de controle de reações. A marca do processamento cognitivo é a flexibilidade de respostas cuja origem é o processamento. A cognição nos dá a possibilidade de escolha.

                        As emoções se processam de um modo distinto da cognição[51]:

Os sistemas responsáveis pelas avaliações emocionais mantêm uma relação direta com os sistemas encarregados do controle das reações emocionais. Uma vez que esses sistemas realizam uma avaliação, as reações ocorrem automaticamente.

                        O homem antigo já percebia a relação entre as normas sociais e as emoções básicas da espécie humana. Ele sabia que, embora fossem criadas pelo intelecto, as normas nunca se opõem às emoções básicas da espécie humana. Pelo contrário, as emoções instintivas fixam um parâmetro ao qual as normas sempre se moldam. Por isso, quando o pensamento jurídico se tornou mais sofisticado, entre os gregos e os romanos, os jurisconsultos passaram a exprimir aquela moldagem mediante a noção de direito natural[52]:


            Direito natural é o que a natureza ensinou a todos os animais. Este direito não é peculiar ao gênero humano, mas comum a todos os animais que nascem no céu, na terra e no mar. Dele resulta a união do macho e da fêmea, a que chamamos matrimônio, a criação dos filhos, e a sua educação. Vemos, em verdade, que também os outros animais usam desse direito, como se o conhecessem.

                        Exagerada ou não, essa lição romana reflete a consciência da moldagem de todo direito nas emoções básicas da espécie. Podemos afirmar que essa moldagem dá-se mediante a noção de dever. Todas as categorias jurídicas e todas as normas que concebemos dependem dessa noção, que se funda na conformidade do pensamento normativo com as emoções básicas do ser humano. 
                        Muitos juristas rejeitam a derivação do direito a partir das emoções por considerarem que ela incide na falácia naturalista (derivação do dever a partir do ser). Vimos, porém, que nem toda formulação do direito natural incorre na falácia contra a qual Hume nos advertiu. 
                        A recta ratio não o situa o direito natural no plano da natureza, mas no da razão, que reconhece normatividade às condutas sociais reiteradas. Por isso, ela de fato extrai “da constatação de uma certa realidade (o que é um juízo de fato) uma regra de conduta (que implica num juízo de valor)”[53], mas o faz de modo não falacioso.
                        Na verdade, o Direito e a Ética não podem existir, sem alguma passagem do ser ao dever, já que, ao voltar-se para o comportamento do homem em sociedade, a consciência compreende que ele se ajusta às emoções básicas da espécie, o que implica afirmar que as normas que regem ocomportamento se ajustam às emoções. 
                        Em suma, se a ideia de direito universal há de ser explicada em termos lógico-formais, a melhor maneira de fundamentá-la é derivar as normas da noção de dever e essa noção, da moldagem das emoções básicas. Claro que isso não torna o certo e o errado tão simples e inequívocos quanto as emoções. No âmbito da cultura humana, o certo e o errado complicam-se por sofrerem influência não só dos instintos, mas também dos valores, cujo estatuto é abstrato e, por isso, complexo. Contudo, um limite é posto à abstração e complexidade dos valores por parte das instituições. 
                        Tudo indica que esse limite é posto no momento em que as instituições sociais definem o conteúdo dos valores, por motivações práticas. Embora o sentido da realização dos valores pelas instituições seja parcialmente obscuro, podemos conhecê-lo em alguma medida, mediante a observação do modo como elas afirmam os valores pelos quais se orientam.
                        É em função desses valores e do valor da justiça que exsurge da afirmação simultânea deles que a noção de direito natural se forma. Direito natural não é ou, ao menos, não precisa ser um direito ideal. Não precisa ser um dado axiológico imaginário ao qual a norma é moldada. Pode ser, ao contrário, um dado axiológico concreto, histórico: um complexo de valores realizados e não idealizados. Assim, pelo menos, é que o concebo.
                        E por concebê-lo dessa maneira, reconheço que o direito natural estruturante realiza valores universais. Isso implica que, a par dos valores, o direito natural inclui também regras, por meio das quais aqueles são realizados e aplicados.
                        Miguel Reale mostrou que, ao serem criadas, as normas perdem o caráter próprio dos valores. Normas são expressões finitas de valores inexauríveis. Por isso, a criação e a aplicação delas se dão por um movimento descendente, não ascendente, por um movimento em direção ao direito natural, não em direção aos valores enquanto bens idealizados e inexauríveis.
                        Esse movimento descendente diferencia o direito natural dos valores abstratos. Ao engastar-se ao conteúdo simultaneamente bom e mau, justo e injusto, do direito positivo, o direito natural decai, parcialmente, da pureza original dos valores. Ou, se quisermos afirmar o mesmo por outras palavras, os valores perenes dão à luz valores jurídicos transitórios.
                        A consciência humana é imantada por valores perenes e parte inevitavelmente deles, em toda a sua atividade cultural. Porém, assim como parte de algo determinado, ela desce em direção a algo definido, ao criar as normas. Parte dos valores em direção ao direito natural e à justiça realizados transitoriamente no plano da História.
                        Em suma, constituir o limite inferior, humilde e não exaltado, feito de palha e não de ouro, do processo de realização dos valores, esta é, precisamente, a função do direito natural.

CONFLITOS DE PRINCÍPIOS

                        Gustav Radbruch afirmou, na primeira linha de sua obra clássica sobre nossa disciplina, que a Filosofia do Direito é parte da Filosofia e não do Direito[54]. O que nem sempre se compreende é que a localização precisa da disciplina realizada por ele coloca a Filosofia do Direito em relação mais distante com a enorme lista de particularidades jurídicas de que o foro está repleto.
            Objetos da Filosofia Jurídica são temas gnoseológicos, deontológicos e fenomenológicos de impacto para o Direito. Alguns desses temas são de interesse permanente, como a justiça. Outros, a exemplo da multiplicação das leis nos últimos 200 anos, têm importância mais relativa.
            Agamben referiu-se à “proliferação espetacular, sem precedentes, de palavras vãs de um lado, e, de outro, de dispositivos legislativos”[55] como um grave problema contemporâneo de linguagem. Nunca tantas normas jurídicas estiveram em vigor, ao mesmo tempo, quanto na atualidade. Só no Brasil, da promulgação da Constituição de 1988 até2014, foram criados quase cinco milhões de normas[56].
                        Para combater a proliferação descontrolada das normas, torna-se necessário difundir e continuar a desenvolver a Metodologia do Direito, que trata das técnicas e outros métodos pelos quais os profissionais do Direito e os cidadãos podem manejar ou, ao menos, não se perder ante o vertiginoso número de leis. Porém, para que os métodos possam ser aplicados, é necessário que as normas sejam organizadas sistematicamente. E, para viabilizar tal organização, tanto juristas como filosófos têm sido convocados a propor novos modos de estruturação sistemática do direito.
            Uma das propostas mais completas apresentadas foi a de Kelsen, na sua Teoria geral do Direito e do Estado. O jurista austríaco parte da questão sobre o “que faz de uma profusão de normas um sistema”[57]. Ele mesmo responde que as normas se arranjam em sistema pelas relações de validade que mantêm umas com as outras: “O fundamento para a validade de uma norma é sempre uma norma, não um fato”. Por exemplo, “o fundamento para a validade da norma ‘não matarás’ é a norma geral ‘obedecerás aos mandamentos de Deus’”[58].
            Kelsen pretende que toda norma tenha em outra o seu fundamento de validade. Porém[59],

a procura do fundamento de validade de uma norma não é – como a procura da causa de um efeito – um regressus ad infinitum; ela é limitada por uma norma mais alta que é o fundamento último de validade.

                        A conclusão que Kelsen extrai disso é que “todas as normas cuja validade pode ter sua origem remontada a uma mesma norma fundamental formam um sistema”[60].
            Kelsen distingue a validade,concebida como relação formal entre normas, da veracidade[61]:

Pode-se demonstrar pela experiência que o enunciado ‘O ferro é mais pesado que a água’ é verdadeiro e que o enunciado “a água é mais pesada que o ferro’ é falso; e um deles é verdadeiro e o outro é falso mesmo se o sujeito que julga, por um motivo ou outro, deseja o contrário. Por outro lado, o enunciado de que certa organização social, que garante a liberdade individual, mas não a segurança econômica, é boa não é um enunciado sobre um fato, não pode ser verificado por experimento e não é verdadeiro nem falso. É, antes, válido ou inválido.

            A afirmação de que algo é bom ou é lícito baseia-se na relação que mantém com uma norma, não com um fato. Contrariamente, o enunciado de que o ferro é mais pesado que a água baseia-se em fatos. Validade é o nome que atribuímos à fundamentação formal de uma norma em outra. Veracidade é a relação entre um enunciado e um fato.
            A descrição do ordenamento jurídico com base na validade parece inteiramente objetiva e, nessa medida, inegável. Porém, ela esconde a preferência de cunho subjetivo pela relação formal como critério constitutivo do sistema jurídico. Para Kelsen, a unidade do ordenamento é garantida pelo modo de criação das normas, ou seja, pelo fato de umas normas serem produzidas pelo método previsto em outras.
            Assim compreendido, o critério da validade é inteiramente formal. Essa é a razão de “as normas jurídicas poderem ter qualquer tipo de conteúdo. Não existe nenhum tipo de conduta humana que não possa, por causa de sua natureza, ser transformado em um dever jurídico”[62]. Em outras palavras, se respeitarem as relações formais de validade, as normas podem prever quaisquer condutas.
            A descrição formal do sistema jurídico afasta a ideia intuitiva de que as normas se articulam em sistema em razão do seu conteúdo, como se fossem anexadas umas às outras por semelhança, a exemplo das peças de um quebra-cabeças. É comum duas normas com conteúdos semelhantes serem dispostas em níveis distantes do sistema jurídico. Por exemplo, a norma que define a família como “a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”[63] assemelha-se, pela matéria, às disposições de Direito de Família do Código Civil. Há entre elas uma semelhança de conteúdo. Porém, se adotarmos o ponto de vista de Kelsen, a razão por que elas pertencem a um sistema jurídico não são essas semelhanças e sim o fato de a Constituição constituir o fundamento de validade do Código Civil. Para Kelsen, esse desnível entre as normas constitucionais e civis define o modo como elas se articulam em sistema.
            Seria de fato impossível conhecermos um conjunto de milhões de normas se elas estivessem entrelaçadas e formassem um sistema, unicamente pelo critério do conteúdo. A inteligência humana não é capaz de entender algo tão complexo quanto o encaixe recíproco de tantas normas. Além disso, haveria tantas contradições no conjunto assim constituído que ele não formaria sistema algum, somente um complexo, uma profusão, um ordenamento mais ou menos indiscernível.
            Claus-Wilhelm Canaris mostrou que, para um conjunto de normas formar um sistema, são necessários dois requisitos, que ele denominou ordem e unidade[64]. Ordem é o arranjo ou disposição de elementos com vistas a determinado fim. A unidade, por sua vez, pode ser descrita, em linguagem kelseniana, como a fundamentação das normas umas nas outras e do sistema inteiro, na norma fundamental. De fato, se possuísse várias normas fundamentais, em vez de uma só, o ordenamento jurídico não formaria um sistema, por lhe faltar unidade.
            A explicação do sistema jurídico com base em elementos formais parece arguta e precisa, mas encobre uma série de problemas. O primeiro é o fato de os ordenamentos normativos constituírem sistemas bastante imperfeitos. Um ordenamento só se torna sistema ao resolver o problema da sua unidade interna, isto é, ao resolver as suas contradições mais básicas. Pensemos na proibição da prisão por dívida. Na Antiguidade, era comum o devedor ser preso ou escravizado. Nos tempos modernos, essas sanções foram abolidas por contrariarem direitos humanos universais. Porém, o artigo 5º, LXVII da nossa Constituição permite a prisão do alimentante e do depositário infiel por suas dívidas. Assim, os devedores em geral respondem por suas dívidas somente com o patrimônio, porém o alimentante e o depositário respondem com a liberdade.
            A prisão do depositário choca-se com princípios claramente consagrados no ordenamento jurídico brasileiro, como o da liberdade de ir e vir. Nenhum raciocínio é capaz de desfazer a contradição consistente em o ordenamento proibir a prisão de todo e qualquer devedor e, sem justificativa aparente, permitir a do depositário infiel.
            E o pior é que o nosso ordenamento contém muitas outras contradições além dessa, como o direito do acusado à ampla defesa, que se opõe à proibição de provas ilícitas. Se o acusado de um crime produzir uma prova por gravação telefônica não autorizada ou outro meio ilícito, a sua utilização no processo será, à primeira análise, garantida pela ampla defesa e vedada pela proibição das provas ilícitas, uma vez que esses dois princípios vigoram no direito brasileiro.
            Felizmente, as contradições do ordenamento jurídico costumam ser afastadas no momento da aplicação dos princípios aos casos concretos. Por exemplo, se a utilização da prova ilícita for decisiva para a absolvição do acusado de um crime apenado com vários anos de reclusão, será razoável admiti-la. Porém, se a prova for redundante ou contribuir minimamente para o estabelecimento da verdade, no caso concreto, a proibição do seu uso deverá ser mantida. 
                        Com esses esclarecimentos, é possível alcançar algumas conclusões sobre o caráter do sistema jurídico. Podemos concluir, por exemplo, que o ordenamento normativo constitui um sistema imperfeito, devido às contradições entre algumas de suas normas fundamentais. Por outro lado, a necessidade que as pessoas têm de utilizar as normas de maneira sistemática permanece inequívoca. O modo de ser do ordenamento revela que ele foi concebido para ser sistemático. Por isso, melhor que negar sistematicidade ao direito é admitir a sua imperfeição em abstrato e reconhecer que o ordenamento se aperfeiçoa no momento da aplicação das normas.
                        No entanto, só compreendemos o aperfeiçoamento do sistema jurídico na profundidade devida quando percebemos que ele tem por foco o conteúdo das normas. A validade está todo o tempo implicada, mas não determina o modo como o sistema se aperfeiçoa, posto que normas do mesmo nível não têm o seu fundamento formal uma na outra e, ainda assim, podem fundar-se uma na outra quanto ao conteúdo.
                        Na medida em que têm conteúdos distintos, nenhum princípio jurídico pode ser posto acima de outro. Pelo contrário, eles são incomensuráveis e, por isso se acham no mesmo patamar. Não é possível determinar, em abstrato, se a liberdade é mais importante do que a igualdade ou a vida ou se a liberdade de opinião é mais relevante que a de ir e vir. Só em situações concretas, é possível avaliar quais desses valores devem ser priorizados, o que ratifica a incomensurabilidade e a igualdade fundamental dos princípios.
                        Porém, quando vistos pelo prisma dos pontos em comum, uns princípios podem ser considerados mais fundamentais do que outros para a consecução de determinados fins e, por nesse critério, ser postos como fundamento deles. Nesse sentido, afirmamos que o direito à vida é mais fundamental que o direito à propriedade por lhe servir de pressuposto e suporte.
                        A harmonia que os juristas reconhecem existir entre os princípios é, ela própria, um princípio mais fundamental do que todos os outros. Vimos que essa harmonia pode ser identificada com a justiça, entendida como arranjo de outros valores (princípios). Como sem ela nenhum princípio pode subsistir ou ser aplicado, por força do seu conteúdo, a justiça é um valor superior aos demais.
                          Tudo considerado, portanto, a norma fundamental contribui para a unidade do sistema, ao definir o primeiro legislador (o rei, a Assembleia Constituinte ou outro). Porém, só lhe garante unidade formal. Penhor da unidade de conteúdo do sistema jurídico é a justiça e os primeiros princípios derivados dela. Procurei mostrar, nesta parte do livro, não como a derivação acontece, mas como ela pode ser concebida.
                        O atentado ao periódico francês Charlie Hebdo, ocorrido em janeiro de 2015, desnuda a virulência com que o choque de princípios se manifesta na sociedade. Revela, porém, algo mais. Revela que uma ruptura terrível se segue ao choque principiológico, quando nenhuma ideia de justiça pode ser invocada para resolvê-lo. Por isso, o dissídio entre extremistas religiosos e o restante da sociedade aguça o sentimento da falta de uma ideia de justiça capaz de apaziguar, em alguma medida, as partes, acomodando os princípios em conflito. Nenhuma lógica meramente formal é capaz de reduzir o sulco que a violência abre entre as pessoas. A justiça, somente ela, possui tal capacidade. Daí a necessidade de nos preocuparmos com ela, embora o um hábito de ceticismo tenha tornado comum a chamarmos pelo nome de ilusão.


[1] RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 64.
[2]  Idem. p. 66.
[3]  Idem. p. 88.
[4]  Idem. p. 79-80.
[5]  Idem. p. 87.
[6]  Idem. p. 107-108.
[7]  Idem. p. 109.
[8]  Idem. p. 211.
[9]  Idem. p. 604.
[10] SEN, Amartya. A ideia de justiça. 3ª reimpressão, São Paulo: Compa-nhia das Letras, 2009. p. 35-36.
[11]  Idem. p. 37.
[12]  Idem. p. 96.
[13] SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. 13ª ed., São Paulo: Rio de Janeiro, 2014. p. 239-240.
[14] SEN, Amartya. Ob. cit. p. 87.
[15] MORAIS, Luís Fernando Lobão. Filosofia do direito positivo. Campinas: EV, 1993.
[16] MORAIS, Luís Fernando Lobão. A função social do lucro – e a sociedade pós-capitalista. São Paulo: Themis, 2010. p. 52.
[17] MONTESQUIEU. The spirit of lawsIn Great books of the western world. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 35, p. 204
[18]  Idem. p. 204-205.
[19] MORAIS, Luís Fernando Lobão. Filosofia do direito positivo. Campinas: EV, 1993. p. 283-284.
[20]  Idem. p. 291.
[21] SZAMOSI, Gésa. Tempo e espaço – as dimensões gêmeas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. p. 33.
[22] JAMES, William. Principles of PsychologyIn Great books of the western worldChicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 53, p. 743.
[23] MORAIS, Luís Fernando Lobão. Liberdade e direito – uma reflexão a partir da obra de Goffredo Telles Júnior. Campinas: Copola, 2000. p. 365-366.
[24]  Idem. p. 367.
[25] TELLES JÚNIOR, Goffredo. O direito quântico – ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica. 7ª ed., São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003. p. 325-326.
[26] DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. 2ª ed., Coimbra: Armênio Amado, 1951. p. 394.
[27]  PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. p. 57 e 165.
[28] FERRY, Luc. Diante da crise: materiais para uma política de civi-lização. Rio de Janeiro: Bertrand, 2010. p. 9-10.
[29]  Idem. p. 10-11.
[30] I dem. p. 12.
[31] FRANCISCO. Laudato si, Cap. V, 189. Disponível em www.m. vatican.va/content.francesco/pt/encyclicals/documents. Acesso em 19/06/ 15.
[32] Idem.
[33] Idem.
[34] PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. p. 438.
[35] Idem.
[36] Idem. p. 444-445.
[37] PAULSON, Henri M. À beira do abismo financeiro – a corrida para salvar a economia global do colapso. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p. 2.
[38] Idem. p. 50.
[39] Idem. p. 3.
[40] Idem. p. 50.
[41] Idem. p. 43.
[42] MORAIS, Luís Fernando Lobão. Filosofia do direito positivo. Campinas: EV, 1993. p. 259.
[43] REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito. 4ª ed., São Paulo: Saraiva. p. 98.
[44] Idem. p. 97.
[45] Idem. p. 97, 70.
[46] MORAIS, Luís Fernando Lobão. Ob. cit. p. 267.
[47] Idem. p. 270.
[48] Idem. p. 276.
[49] Idem. p. 278.
[50] LEDOUX, Joseph. O cérebro emocional – os misteriosos alicerces da vida emocional. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. p. 63.
[51] Idem.
[52] JUSTINIANO, Flávio Pedro. Institutas. São Paulo: RT, 2000. Título II, p. 23.
[53] BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico – lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 177.
[54] RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 5.
[55] AGAMBEN, Giorgio. O sacramento da linguagem – Arqueologia do juramento. Belo Horizonte: UFMG, 2011. p. 81.
[56] Fonte: Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação. Disponívelem ttps://www.ibpt.org.br/img/uploads/novelty/estudo/1266/NormasEditadas25AnosDaCFIBPT.pdf.
[57] KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 3ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 161.
[58] Idem. p. 162.
[59] Idem. p. 163.
[60] Idem.
[61] KELSEN, Hans. O que é justiça – a justiça, o direito e a política no espelho da ciência. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 350.
[62] KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 3ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 166.
[63] Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 226.
[64] CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1989. p. 12.