quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Filosofia e direito (artigos reunidos) - Parte IV

Nos primórdios da Filosofia, duas teorias explicaram o conhecimento de modos inteiramente diversos. A mais antiga, adotada pelos primeiros de todos os filósofos, é essencialmente física. A outra, de cunho metafísico, surgiu com Platão e foi aperfeiçoada por Aristóteles.
A primeira teoria explica o conhecimento sensível como um encontro físico do objeto ou algo desprendido dele com aquele que o percebe. Um dos defensores tardios dela, Epicuro, escreveu [1]: "Há impressões semelhantes à figura dos corpos sólidos, que por sua sutileza superam consideravelmente as coisas que aparecem aos nossos sentidos".
As impressões a que Epicuro se referiu são eflúvios que se desprendem da superfície das coisas. Ele os chamou impressões ou imagens, porque preservam e transmitem a figura dos corpos de que emanam, portanto são semelhantes a eles [2]:

        As emanações conservam a mesma disposição e a mesma sequência dos átomos dos corpos sólidos, dos quais provêm; damos a essas impressões o nome de imagens. E seu movimento no vazio, desde que nada impeça e nada oponha resistência, leva-as a percorrerem qualquer distância imaginável num lapso de tempo inconcebivelmente breve.

Para Epicuro, tudo o que existe é corpo ou vazio. Os corpos são feitos de átomos dispostos em certa ordem. As impressões ou imagens, que se desprendem deles, também são átomos. Por isso conservam a mesma sequência e a ordem que tinham nos corpos e os reproduzem como o reflexo de uma pessoa no espelho.
Esses os traços gerais da teoria física do conhecimento desenvolvida pelos filósofos pré-socráticos. Certamente, muitos homens antigos a compreeram de modo rudimentar. Estou convencido, porém, de que a teoria, embora não tenha sido desenvolvida além do ponto em que Demócrito, Epicuro e Lucrécio a deixaram, contém uma intuição profunda.
Para percebê-la é útil percorrer a obra de Epicuro, que foi o pensador que levou a teoria física ao máximo desenvolvimento. Ele separou nitidamente o que se passa na terra do que transcorre nos céus. Desenvolveu, com isso, uma doutrina dos céus, que ensinou à parte da física aplicável à terra.
O que mais distingue a doutrina dos céus da física é o caráter incerto daquela. Epicuro explicou os movimentos celestes pela afirmação simultânea de possibilidades opostas[3]:

o surgir e o pôr do sol, da lua e dos outros astros podem verificar-se por acendimento e apagamento [...] Tais fenômenos podem também ser produzidos por aparição sobre a terra e novamente por ocultação.

Do mesmo modo, “é possível que a lua tenha luz própria, mas também é possível que a receba do sol” e “os eclipses do sol e da lua podem dever-se à extinção de sua luz, como observamos que acontece também nos fenômenos terrestres, mas podem ainda dever-se à interposição de outros corpos”[4].
A física da terra, na qual a teoria da visão se insere, não se constroi por esse método de possibilidades. Pelo contrário, Epicuro a faz derivar necessariamente de certas premissas. A primeira é a de que os sentidos constituem a fonte de toda verdade. Como os sentidos nos mostram que o real é feito de corpos e de vazio, devemos admitir esses dois elementos. E, como eles nos revelam que os corpos são compostos, ou admitimos a divisão infinita deles em partes cada vez menores, ou sustamos o pensamento em entidades que não podem ser mais divididas. A esses corpos fundamentais e indivisíveis Epicuro chamou átomos.
Movendo-se, pois, de premissas às suas consequências necessárias, Epicuro descreveu o mundo sublunar por um método que permite eliminar as possibilidades concorrentes e chegar a certezas. Não que as certezas que ele encadeou em sistema estivessem a salvo de todo questionamento. Certamente não estavam, mas Epicuro suspendeu as dúvidas que podem ser formuladas após a cristalização das consequências das premissas da sua física.
Na obra que Aristóteles escreveu sobre a alma, deparamo-nos com uma explicação muito distinta do funcionamento dos sentidos. Se a teoria de Epicuro e as pré-socráticas eram essencialmente físicas, por se basearem no contato do conhecido com o conhecedor, a de Aristóteles merece ser denominada metafísica, pois abstrai aquele contato e descreve a percepção como passagem do conhecimento potencial ao conhecimento em ato.
O mais surpreendente na teoria aristótélica do conhecimento sensível é o fato de a passagem ao conhecimento em ato não envolver qualquer perda de informação sobre a essência do objeto físico[5]:

           Tudo o que possui o poder de sensação é em potência o que o objeto percebido é em ato. Assim, no começo do processo de percepção, os dois fatores em interação [o sujeito e o objeto] são dessemelhantes, porém, ao final, o que recebe a ação do objeto é assimilado a ele e se torna idêntico em qualidade ao objeto.

Para Aristóteles, a percepção é uma espécie de assimilação, que ocorre porque o órgão sensorial é em potência o que o objeto é em ato. Dada essa condição, quando o objeto age sobre o sujeito, a potência transforma-se em ato, isto é, não no ato do objeto extramental, mas em algo idêntico a ele.
Esse algo idêntico Aristóteles denomina a forma do objeto[6]:

           Na alma, a faculdade [...] da sensação é potencialmente os objetos sensíveis. Portanto, ela deve ser ou as próprias coisas, ou as suas formas. A primeira alternativa é claramente impossível: não é a pedra que se faz presente na alma [quando o sujeito a vê], mas a sua forma.

Por forma não havemos de entender a figura visível, mas a essência do objeto físico, aquilo que nele permanece estável, enquanto continua a existir.
Aristóteles não prova que os conceitos de que parte, ao formular sua explicação são corretos. Não prova que realmente existam potências e atos. Muito menos que o órgão sensorial é o objeto sensível em estado potencial ou que o ato é a forma do objeto sensível nascida na alma durante a percepção. Apesar de terem sido discutidas por Aristóteles, as dificuldades inerentes a esses conceitos e à terminologia que os exprime nunca foram superadas por Aristóteles.
Fato é que a teoria de Aristóteles vigorou, com modificações, durante séculos, até ser substituída pela teoria do conhecimento sensível de Kant. Dessa época em diante, isto é, desde Kant, um problema inteiramente novo surgiu. Sob a vigência da teoria aristotélica, não havia dissidência significativa a respeito da essência do ato da percepção, que era entendido nos quadros da metafísica vigente.
Com o abalo imposto por Kant à teoria aristotélica, um desacordo instalou-se entre os filósofos, que tendem a aceitar a crítica kantiana à teoria aristotélica, e os cientistas dedicados ao estudo da luz e da visão, que consideram que os conhecimentos dessas especialidades não se coadunam com ela. Somos, assim, deixados sem uma opção amplamente aceita sobre a natureza da percepção visual.
Uma alternativa interessante ao impasse atual sobre a visão pode ser construída a partir da obra de Santo Agostinho. Em A grandeza da alma, esse autor escreveu[7]:

           A visão se projeta para fora e por meio dos olhos se arremessa para longe, atingindo todos os lados para poder perscrutar o que vemos. O resultado é que enxergo melhor onde está o que enxergo do que de onde saí [unde erumpit].

A projeção da visão para fora, a que Agostinho se referiu, era uma variação da teoria pré-socrática dos eflúvios criada pelos filósofos platônicos. Eles não negavam que as coisas emitissem partículas tênues e invisíveis, mas admitiam que os olhos também são coisas e, como tais, emitem seus próprios eflúvios. Mais do que isso, consideravam que os eflúvios dos olhos eram responsáveis pela maior parte do que chamamos visão.
Em outros trechos de sua obra, Agostinho chamou raios o eflúvio emanado dos olhos[8]:

           A vastidão do oceano se apresenta incomparável; mas, por maior que seja, é preciso que antes os raios de nossos olhos atravessem o ar que está sobre ele, e, depois, tudo o que está além e, então, finalmente, nossos olhos chegarão ao sol que vemos.

Para que não haja dúvida sobre a materialidade desse processo, é útil citar esta outra explicação dele por Agostinho: “Este é certamente um raio de luz corpórea, que se projeta de nossos olhos e que atinge com tamanha rapidez o que está colocado tão distante a ponto de não se poder avaliar ou comparar [sua velocidade com outra]”[9].
Boécio expõe a mesma teoria[10]: “A circularidade de um corpo esférico não é encontrada do mesmo modo pela vista e pelo tato. O olho, estando distante, per-cebe-o de uma só vez, graças aos raios que emite”.
Vemos que, em vez de usarem a metafísica para explicar a visão, nas pegadas dos filósofos platônicos, Boécio aliou a teoria física ao conhecimento da forma dos objetos, chegando à seguinte conclusão[11]:

           A alma produz pelo espírito semelhanças das coisas corporais, ou contempla as apresentadas anteriormente [durante a sensação]. Se ela produz essas semelhanças, são somente imaginações; mas se ela contempla as apresentadas antes, são visões.

Como já observamos, Boécio não se afasta da concepção platônica[12]: “Os sentidos percebem [um objeto] do ponto de vista da matéria que lhe serve de suporte, enquanto a imaginação avalia apenas a forma, abstraindo a matéria”. Nessa passagem como na anterior, imaginação é o conhecimento que se segue à percepção.
Aristóteles tinha concebido a percepção como apreensão da forma despojada de matéria. Agostinho e Boécio aplicaram essa definição não à percepção, masà imaginação, que se segue a ela. Com isso, rechaçaram a teoria metafísica que apresenta a percepção como criação da forma abstrata e optaram pela versão platônica da teoria física.
Vemos que considerar Agostinho e Boécio platônicos não implica negar certos laivos de materialismo neles. Embora fossem platônicos, os dois adotaram uma teoria física e não metafísica da visão. De algum modo, essa teoria pareceu-lhes mais próxima da visão de Universo cristã.
O exemplo deles pode ser seguido de certo modo ainda hoje, pois a teoria que descreve a visão como processo físico, embora antiquíssima, foi confirmada por uma série de descobertas científicas. Examinemo-las, ainda que sucintamente.
Por muito tempo, o espaço foi concebido como vácuo ou vazio absoluto. Essa ideia foi utilizada, inclusive, na Física newtoniana. Coube a Einstein mostrar que o espaço não é vazio[13]:
              
           Einstein esforçou-se para explicar por que seu tipo de espaço é tão diferente do de Euclides e do de Newton [...] Espaço vazio não tem significado prático: espaço não pode existir separadamente daquilo que enche o espaço, e a geometria do espaço é determinada pela matéria que ele contém.

Mas, se o espaço não é vazio, que espécie de coisa é? A Física contemporânea ensina que o espaço é um campo de energia em maior ou menor concentração. Fritjof Capra escreveu[14]:

           Na teoria quântica dos campos, todas as interações são representadas com a troca de partículas virtuais. Quanto mais forte a interação, isto é, quanto mais forte a força resultante entre as partículas, mais frequentemente ocorrerá a troca de partículas virtuais [...] As partículas virtuais podem passar a existir espontaneamente e desaparecer novamente neste último, sem que esteja presente qualquer outra partícula que interaja fortemente.

O espaço existe não só entre os corpos, mas também no interior destes. Todo corpo, por mais maciço que possa parecer, é quase inteiramente vazio, o que quer dizer ocupado por campos energéticos. A impressão de solidez que temos ao observá-lo decorre do movimento ultraveloz dos átomos que o compõem. E a energia dos campos, no interior dos objetos, faz surgir partículas virtuais a todo instante.
Com isso, os físicos assentaram que os objetos materiais são feitos de espaço, que emite partículas incessantemente, o que constitui um primeiro dado importante para a retomada da teoria física da visão.
Outra descoberta, porém, tornou ainda mais possível retomar aquela teoria. Refiro-me à recente comprovação de que a luz possui o poder de movimentar objetos. No chamado efeito fotoelétrico, para darmos um exemplo, elétrons são liberados da superfície de um corpo pela incidência da luz[15], inclusive de baixa frequência[16].
O efeito fotoquímico é considerado uma variação do fotoelétrico. Nele, objetos coloridos são desbotados pela luz incidente neles. Mário Schenberg explicou que “esse desbotamento implica a destruição de moléculas de pigmento [do objeto] por parte da luz”[17].
Mas a movimentação de objetos pela luz não se manifesta só no efeito fotoelétrico e suas variações. O ozônio também “é produzido na atmosfera pela interação de luz ultravioleta do Sol e oxigênio normal. A luz decompõe o oxigênio em átomos individuais, e estes, por sua vez, reagem com o oxigênio para formar ozônio”[18].
As descobertas citadas mostraram que os objetos materiais, de fato, emitem energia o tempo todo e que a energia emitida por eles, inclusive a luz, viaja pelo espaço e chega aos nossos órgãos sensoriais. Não é preciso acrescentar que tudo isso é perfeitamente compatível com a teoria física da visão.
Que acontece quando a luz carregada com energia dos objetos chega ao olho de um observador? Hoje, sabemos que o olho transforma a luz numa corrente elétrica que é conduzida ao cérebro pelo nervo ótico.
Sabemos também que, a despeito do comprimento de onda e da frequência variável da luz que nos che-ga, a corrente transmitida pelo nervo é sempre igual. Domenico Ravalico afirmou: “O sinal transmitido ao longo do nervo ótico não varia em amplitude, mas permanece constante; é modulado na frequência com base em determinado código”. Só por isso, explica o autor, a luz recebida não queima o nervo ótico, deixando-nos cegos[19].
Mas, se os impulsos que percorrem o nervo ótico são todos iguais, por que a mensagem que conduzem é interpretada como objetos tão diferentes quanto os que compõem o mundo ao nosso redor? Por que não é interpretado sempre da mesma maneira?
Os físicos geralmente respondem que as sensações variadas que temos devem-se ao fato de as ondas elétricas chegarem a diferentes regiões do cérebro, que as interpretam diferentemente. Porém – perguntamos – como isso é possível, se os impulsos que chegam às diferentes regiões do cérebro são idênticos? Será que o cérebro deforma o real, em vez de representá-lo?
A intuição dos antigos partidários da teoria física livra-nos dessa dificuldade, ao mostrar que os impulsos são ou podem ser interpretados como objetos, porque contêm energia extraída deles pela luz ambiente. O cérebro é como a tela de um aparelho ultracomplexo, aonde essa energia chega. Somente nele, ocorre o ato psicológico de ver, a física se faz psicologia ou, como os antigos afirmavam, a alma vê, se é que realmente vê.
Claro que o conhecimento sensível não é todo o conhecimento e que a elucidação dele não equivale à elucidação de todo o conhecimento. Por outro lado, é amplamente aceito que os sentidos fornecem a base para todos os outros processos cognitivos. Por isso, a compreensão aprofundada do modo como eles funcionam permite, ao menos, uma visão inicial de todo o conhecimento.
Toda uma série de consequências se segue à compreensão das sensações debatida neste capítulo. Não o demonstrarei em detalhes, por não ser esta uma obra dedicada ao conhecimento. Basta lembrar a principal consequência, que é o desafio à conclusão de Kant sobre a desconexão entre o conhecimento e o real.
Bertrand Russell escreveu[20]:

Se, com os matemáticos, evitarmos a suposição de que o movimento é também descontínuo, não cairemos nas dificuldades dos filósofos. Num cinematógrafo [projetor], em que há um número infinito de quadros [formando um filme], não há um único quadro seguinte, porque um número infinito vem entre dois quadros quaisquer.

A sensação não é somente um processo físico. Russell mostra que ela é um processo que pode ser compreendido e expresso em termos matemáticos[21]:

Todas as qualidades reais dos perceptos [objetos de percepção] são diferentes das de suas causas [por exemplo, os comprimentos de ondas que percebemos como cores não são verdadeiras cores], mas há uma certa semelhança estrutural entre o sistema de perceptos e o sistema de suas causas. Há, por exemplo, uma correlação entre as cores (tais como são percebidas) e os comprimentos de onda (tais como são inferidos pelos físicos).

Não é essa uma conclusão kantiana. É, ao contrário, uma revisão, e profunda, da conclusão kantiana de que o conhecimento nada nos diz sobre o mundo. Talvez ao contrário, todo conhecimento se refira a algo exterior. Embora tenhamos dúvidas sobre o modo como a referência acontece, não há tanta dúvida a respeito do fato de que ela se dá de maneira ordenada. E que, por isso, a relação regular entre a percepção e o mundo pode bem constituir o núcleo de todo conhecimento.

CATEGORIAS DA EXPERIÊNCIA

Dois pensadores marcaram época na discussão das categorias e seu papel no conhecimento. O primeiro foi Aristóteles, que enumerou e descreveu as categorias do ser. O outro foi Kant, que forneceu o rol do que denominou categorias do entendimento. 
As categorias aristotélicas são verdadeiras divisões do ser ou, pelo menos, modos pelos quais ele se revela. As de Kant, pelo contrário, nada têm de objetivo. Não descrevem o real, nem os seus modos de ser.
Um problema comum às categorias aristotélicas e kantianas é não poderem ser adotadas do modo como foram originalmente formuladas, sem grave contradição com o conhecimento presente. Por isso, o sentido no qual ainda é possível falar de categorias não é mais o objetivo, de Aristóteles, nem o subjetivo, de Kant, mas um sentido, ao mesmo tempo, objetivo e subjetivo.
Isso significa que toda categoria, como ainda é possível conceber essa ideia, corresponde a algo objetivo e é criada pelo intelecto. Exprime características do real e modulações introduzidas na tela dele pela mente humana. Devido ao alto grau de abstração das categorias, as modulações, em geral, são mais relevantes do que a correspondência ao real. Mas isso não significa que o intelecto não trabalhe com categorias ou que elas não guardem relação com o mundo.
A objetividade das categorias é menos uma relação com o ser do que com os sentidos. Ser é um conceito abstrato; os dados sensoriais são concretos. A esses dados é que as categorias se referem, em maior ou menor medida. Quero propor que o grau de correspondência de uma sensação a certa categoria não precisa coincidir com o grau de correspondência a outra. Porém, deve sempre existir uma correspondência, uma relação objetiva entre as categorias e o real.
Em suma, se as categorias não podem ser mais concebidas como dados do ser ou do entendimento, é melhor ancorá-las na experiência, posto que, por essa palavra, entendemos algo produzido, simultaneamente, pelos sentidos e pelo intelecto. A vinculação das categorias à experiência permite entender aquelas como conceitos produzidos pelo real e pelo intelecto.
Para entender o funcionamento das categorias, é útil entender o modo como a experiência se desenvolve, nas diferentes etapas da vida dos indivíduos. Num primeiro momento, o material das sensações se acumula desordenadamente no intelecto, pois o sujeito ainda não é capaz de conceber as categorias. O segundo momento é o da gênese das categorias. Por fim, o terceiro é aquele no qual se dá o reforço e a reforma delas.
A gênese das categorias depende da formação do conceito de ser, a partir das sensações. Há, porém, uma fase da vida em que, embora já seja capaz de formar tal conceito, o intelecto não extrai ordenadamente outros. A falta dessa capacidade impede o sujeito de conceber categorias, durante a primeira etapa de sua vida.
As categorias só se formam a partir de quando o intelecto passa a converter a noção de ser em dever ou a derivar uma da outra. Não me refiro ainda ao dever moral, mas à mais suave e primígena forma de dever, que conduz o intelecto a processar de modo mais regula as sensações.
A regularização do processamento das sensações supõe a concepção de regras com base nas quais os dados empíricos são interpretados e organizados. A partir desse ponto, sempre que adquire consciência de sensações regulares, o intelecto passa a processá-las também regularmente. Desse modo, um traço do ser (a regularidade das sensações) se transforma em dever.
Chamamos categorias as normas primeiras que o intelecto concebe a partir das regularidades que encontra nas sensações. Exemplos de categorias são a substância e o movimento. Delas decorrem outras, como a subjetividade (alma), a finalidade, a regularidade, o estado, a atração, a repulsão, a quantidade e a qualidade. Essas categorias são, ao mesmo tempo, objetivas e subjetivas.
Não é possível fornecer uma lista completa das categorias, pois não paramos de criá-las a partir das que venho de mencionar. Mas é possível relacionar as categorias fundamentais do conhecimento de cada época.
O princípio que rege a concepção das categorias a partir da regularidade empírica é a verdade. Por mais que modifique as categorias, na terceira fase de desenvolvimento delas, o intelecto não abandona a noção ao mesmo tempo profunda e vaga de verdade consistente na transformação de sensações regulares em normas também regulares.
Por isso, a verdade não é tanto a adequação ou correspondência de um conhecimento ao real quanto a regularidade dele: o fato de manter-se constante e de repetir-se, independentemente do conteúdo daquilo que se repete. O que conhece ou é capaz de conhecer regularmente do mundo externo, eis o que é a verdade para o homem.
Entre as noções regulares que o intelecto forma, estão as de essência e existência, com base nas quais diferenciamos o que existe objetivamente do que só existe de maneira subjetiva, ou seja, na alma. Por meio dessas noções, também distinguimos o que é do que somos capazes de conceber.
No entanto, nem as noções mais básicas que o intelecto forma, como as de essência e existência, tem valor absoluto para ele. Só a regularidade que os sentidos percebem nas sensações vale absolutamente. Dela e só dela extraímos a noção fundamental de verdade.
No entanto, embora seja rente à experiência, a verdade não deve ser confundida com as regularidades do conhecimento sensível. Estas são parte integrante da experiência; a verdade é da ordem do dever, por isso só surge quando a regularidade sensível é valorada e recebe uma carga axiológica. Quando isso acontece, certas ideias são assinaladas com o timbre da verdade e outras não.
Porém, o parto da verdade projeta uma sombra, que chamamos dúvida e que exsurge com ela. Se a primeira corresponde ao que é regular nas sensações, a última coincide com o que nelas permanece irregular. De fato, a inconstância das sensações é o que nos inspira a incerteza, fazendo surgir uma reserva de dúvida oposta à verdade. É provável que, dessas duas, a dúvida seja a mais fundamental, pois é mais conforme as variações do intelecto ainda involuído.
A terceira fase de desenvolvimento, caracterizada pelo reforço e, às vezes, pela reforma das categorias, é fortemente influenciada pelo conhecimento de cada época e, ainda mais, pela capacidade das pessoas de o absorverem. Por isso, em diferentes períodos históricos, listas diversas de categorias foram construídas. Pessoas diferentes também formularam concepções diversas das mesmas categorias.
Ao contrário do que ocorre na gênese, o reforço das categorias não se dá pela observância de regularidades, mas pela reciprocidade entre nossas considerações sobre o ser e o dever. Por reciprocidade, devemos entender os vários modos pelos quais o intelecto passa de considerações sobre o ser a considerações de dever e vice-versa. A máxima aristotélica “nada está no intelecto que não tenha estado antes nos sentidos” assinala um desses modos. O que está nos sentidos representa o ser. O intelecto, porém, é fortemente guiado pelo dever, por regras de intelecção. Assim, a passagem dos conteúdos dos sentidos aos do intelecto é um dos modos pelos quais o ser se converte em dever. E, uma vez constituídos, esses conteúdos do dever atuam na formação de novas sensações sobre o ser, moldando o seu conteúdo.
O intelecto permanece caótico, enquanto as regras da intelecção não se formam e não passam a ordenar o material que advém dos sentidos. Portanto, há também uma moldagem do ser pelo dever. Quanto mais o intelecto se desenvolve, mais se intensifica a passagem, que acabo de descrever sucintamente, de considerações de dever a considerações sobre o ser e vice-versa. Esse trânsito de sentido duplo sentido (a reciprocidade) flexibiliza a interpretação da regularidade pelo intelecto. O hábito de desenvolver conteúdos de pensamento regulares a partir de sensações regulares nunca é abolido, pelo contrário ele se reforça, mas numa direção alterada pelo balé do ser ao dever e deste de volta ao ser.
Vemos por que o reforço das categorias, no terceiro período de desenvolvimento, ocorre simultaneamente à reforma delas. Enquanto se sedimentam e enraízam, as categorias mudam. A transformação é proporcional ao nível do conhecimento de cada época e à capacidade das pessoas de o absorverem. Claro que, por isso, o que um indivíduo entende por certa categoria, em determinado momento histórico, não equivale ao que outro entende por ela, em outro momento.
Essa mutabilidade torna recomendável que a reflexão sobre as categorias tenha permanentemente em conta o contexto de quem as utiliza. Um era o significado do tempo para Aristóteles; outro era o seu sentido para Einstein. Uma coisa era a cor para Tomás de Aquino; outro é o significado do termo para um físico contemporâneo.
Porém, nada disso cancela o uso das categorias. Apesar dos debates da História da Filosofia a respeito delas, as categorias nunca foram abolidas. As mundivisões do passado e de hoje foram construídas com base nelas. Contudo, tornou-se claro que as visões de mundo não são proporcionais apenas ao conhecimento, mas também às categorias de cada época.
Mas o pensar humano não envolve só as categorias da experiência. Além delas, formamos também categorias do dever moral. Não me aprofundarei neste tema, mas deixarei assentado que, assim como as categorias da experiência dimanam da regularidade sensível, as do dever assen-am-se na verdade. Aristóteles já dividia as virtudes em morais e intelectuais. A verdade é o modelo de todas as virtudes, intelectuais e morais, por ser inevitável para o homem assimilar as virtudes ao certo, vale dizer, ao verdadeiro.
Vimos que a noção de verdade surge e se funda na regularidade sensível. Assim, o dever emana do ser. E as outras virtudes surgem, depois, por sucessivas transformações da verdade. De sorte que tanto o dever moral como o individual são concebidos a partir do ser e prendem-se a ele.
Por que a liberdade é uma categoria moral? Por que a igualdade o é? Basicamente porque o homem anseia por ser livre e tratado como igual aos seus semelhantes. Do ser do homem, ou seja, da sua natureza, provém o seu dever-ser. Ou, se quisermos dizer o mesmo por outras palavras, da verdade do ser do homem emana o seu dever-ser. Assim, a verdade permanece a primeira de todas as categorias morais.
Como não pensar o direito em termos jusnaturalistas, se o dever se coloca em tal relação umbilical com o ser? Se pensar o dever equivale a admitir a verdade de anse-ios e propensões indissociáveis de sensações do ser, como negar precisamente essa associação?
Porém, desde Hume, a derivação do dever a partir do ser tem sido considerada falaciosa, e o jusnaturalismo, reduzido a doutrina falsa. A imputação de falácia estriba-se no princípio elementar de que de um conjunto não é possível extrair a não ser elementos dele. Como no ser não se incluem normas, não é possível sacá-las de lá .
Pode parecer que o argumento de Hume destroi a arqueologia dos conceitos básicos desenvolvida acima. Mas essa é uma falsa impressão. A imputação de falácia formulada a partir de Hume é cabível a algumas, porém não a todas doutrinas do direito natural. Aplica-se ao direito natural dos animais e à concepção estoica segundo a qual as leis da natureza apresentam caráter jurídico. Mas não se aplica ao direito natural do De legibus e do De republica que, embora nascido do estoicismo, emancipa-se dele ao se colocar sobre a base empírica do direito romano.
O critério que permite definir as concepções jurídicas fulminadas pelo argumento de Hume é a diferenciação entre o ser (coisas extramentais) e os interesses huma-nos universais. As doutrinas que fazem o direito natural derivar do ser sucumbem à objeção de Hume, posto que o ser não contém normas. Porém, se considerarmos o direito natural derivado de interesses humanos, como Cícero e Agostinho pensavam, o argumento não o atingirá.
O esforço arqueológico deste capítulo terá válido a pena, se pudermos concluir que os primeiros princípios do dever derivam de interesses humanos universais e não de fatos. Se essa conclusão puder ser justificada, o sistema de normas resultante não será atingido pela objeção de Hume, uma vez que interesses não são dados extramentais, mas pensamentos que utilizamos para orientar nossa conduta.

O GIRO DE FEUERBACH

O materialismo sempre constituiu uma respeitável corrente de pensamento, desde o seu surgimento simultâneo ao da Filosofia, no século VI a. C., até o ressurgimento ocorrido nos séculos XVIII e XIX, quando uma variedade de doutrinas dessemelhantes brotou da cepa que parecia extinta de Demócrito, Lucrécio e outros com renovada força. Esse ressurgimento, pelo que teve de imprevisto e inopinado, espantou o orbe.
Mas logo se percebeu que nem todas as doutrinas propostas tinham a mesma abrangência ou a mesma coerência interna. Nem todas mobilizavam idêntica erudição ou representavam tomadas de posição revestidas de igual ousadia. O tempo se encarregou de mostrar que, dentre as doutrinas que se destacaram por esses critérios, duas podem ser apontadas como as principais: o materialismo metafísico de Feuerbach e o materialismo histórico de Marx e Engels.
É relevante lembrar que essas doutrinas, embora distintas e opostas em vários aspectos, convergiram em outros. Por isso elas se somaram para propor o maior desafio até então formulado à Metafísica Clássica, sem mencionar a repercussão que tiveram na Teologia. E o fato de o terem feito sem perder a natureza de doutrina social, com contribuições relevantes (de Marx e Engels) à Economia, Sociologia, Política, Antropologia e História, assegura ao materialismo histórico, acrescido dascontribuições de Feuerbach, o título a meu ver merecido, demais importante doutrina materialista de todos os tempos.
Curioso é que essa monumental construção teórica repousa inteira na crítica da religião de Feuerbach, como registrei no seguinte trecho de A função social do lucro[22]: “É fora de dúvida que Marx foi influenciado pela ‘crítica do céu’ de Feuerbach” e que foi a partir do materialismo metafísico deste que Marx chegou ao seu próprio materialismo histórico.
Em A essência do Cristianismo, Ludwig Feuerbach resumiu sua tese de que o conceito de Deus se reduz ao do homem. Para ele, “o verdadeiro significado da teologia é a antropologia, que entre os predicados da essência divina e humana [...] também entre o sujeito ou a essência divina e humana não há distinção, são idênticos”[23].
O conceito de essência mencionado por Feuerbach tem sua gênese em Aristóteles, o que fica claro não apenas em razão de o conceito aristotélico ser de uso comum, no século XIX, mas também por ser afirmado expressamente em A essência do Cristianismo[24]:

Sempre que os predicados [...] expressam a essência do sujeito, não existe distinção entre predicado e sujeito, podendo o predicado ser posto no lugar do sujeito, pelo que indico a Analítica de Aristóteles ou ainda a Introdução [Isagoge] de Porfírio.

Quando Feuerbach afirma que, em alguns predicados, a essência coincide como sujeito, como exposto na Analítica e na Isagoge, a essência, o sujeito e o predicado são claramente empregados no sentido dos autores daquelas obras, isto é, de Aristóteles e de Porfírio. Por isso, na construção da sua tese sobre a redução do divino ao humano, Feuerbach parte de tais conceitos.
Porém, embora parta deles, Feuerbach também modifica o conceito aristotélico de essência ao afirmar que, “na vida lidamos com indivíduos, na ciência com gêneros. Mas somente um ser para o qual o seu próprio gênero, a sua quididade [essência], torna-se objeto pode ter por objeto outras coisas”[25].
Nessa passagem, a essência não é tomada como conteúdo da definição, como em Aristóteles, mas como sinônimo de gênero. É o que depreendemos da posição paralela dos dois conceitos na frase “o seu próprio gênero, a sua quididade”, que é a essência.
Como o gênero é o conjunto de características comuns a certo número de seres, com a modificação resumida acima, Feuerbach passa a identificar a essência com o gênero e não com o objeto da definição, como Aristóteles fazia. É o que fica claro também na seguinte afirmação: “A vida interior do homem é a vida relacionada com o seu gênero, com a sua essência”. E nesta outra: “O homem é para si ao mesmo tempo Eu e Tu; ele pode se colocar no lugar do outro exatamente porque o seu gênero, a sua essência, não somente a sua individualidade, é para ele objeto”[26].
A afirmação “ele pode se colocar no lugar do outro exatamente porque o seu gênero, a sua essência [...] é para ele objeto” reproduz exatamente a anterior: “Somente um ser para o qual o seu próprio gênero, a sua quididade, torna-se objeto pode ter por objeto outras coisas”. Comparando-as, percebemos que Feuerbach emprega as palavras essência e quididade como sinônimas e faz o conceito expresso por elas equivaler ao de gênero. Assim, ele se aparta da sua fonte (Aristóteles).
Mas o gênero, que é? Não creio errar quando penso que os seres humanos, inumeráveis, têm cada qual características exclusivas e outras comuns à espécie. Estas, quando abstraídas e reunidas, formam o gênero humano, que Feuerbach faz equivaler à essência. Desse modo, a essência é transfigurada no conteúdo comum a todos os indivíduos de um gênero.
Por razões como essas, dou a identificação da essência com o gênero como certa. E, com base nela, passo a tecer uma avaliação, talvez diferente das que hoje circulam, da tese central de A essência do Cristianismo.
A ideia de essência, isto é, de gênero, aparece no título da obra de Feuerbach. É por isso absolutamente fundamental a ela. E não é preciso muito esforço para extrair da leitura do célebre livro que o conteúdo da essência do Cristianismo (Deus e o divino) a que Feuerbach se refere é o humano, pois ele afirma expressamente que “entre a essência divina e a humana não há distinção, são idênticas”[27]. Esse parece-me ser o real sentido da redução da teologia à antropologia operada por Feuerbach.
Em Aristóteles, a essência corresponde à definição de um objeto. Por isso, pode ser bem compreendida como o mínimo que basta para diferenciá-lo de outros objetos. Ou, se quisermos empregar as palavras por meio das quais Aristóteles exprimia uma definição, a essência de um ser é a soma do seu gênero próximo e da diferença que específica que o singulariza.
Curiosamente, o que Feuerbah chamou gênero está longe de ser o gênero que Aristóteles considerou parte da definição. Para Feuerbah, o gênero era a essência ou quididadede um ser. Era, portanto, o comum a todos os indivíduos daquele tipo. Em Aristóteles, diferentemente, o gênero incluído na definição não era o do ser definido, mas outro mais vasto, assim como o gênero animal em relação ao homem.
Definição, para Aristóteles, é esse gênero vasto reduzido e singularizado pela diferença específica. E, embora pertença a todos os indivíduos do gênero, a diferença específica não se confunde com qualquer outra característica compartilhada por todos eles. É, ao contrário, aquela característica em torno da qual todas as outras se estruturam de modo a formar o ser definido e não outro.
Pensemos no homem. A precariedade e o uso limitado da razão são comuns a todos os indivíduos humanos. Nem por isso, Aristóteles faz dessas características a diferença específica do humano. O mesmo pode ser afirmado da imperfeição moral e da falibilidade de todas as faculdades humanas. Também elas são compartilhadas por todos os indivíduos, porém Aristóteles não as erige em diferencial nuclear da nossa espécie. E não é menos claro que características físicas, como o fato de possuir cabeça e membros, também são comuns a todos os homens e, nem por isso, diferenciam a espécie humana.
Por isso, a diferença específica não é qualquer característica comum aos indivíduos de um gênero. É a diferença mais importante, aquela em função da qual todas as outras características do ser definido foram dispostas.
Quando evocamos a essência, essa ordenação do ser definido em função da diferença específica está implícita. Não, porém, quando falamos do gênero. Este não envolve uma ordem específica das características nele congregadas. Todo gênero é uma universalidade, um conjunto de Características. Mas é apenas isso: a universalidade, o conjunto. Não é, nem implica que os elementos que compõem a universalidade estejam dispostos nesta ou naquela ordem.
Por isso, o conceito aristotélico de essências e afasta em medida bastante considerável do conceito feuerbachiana. Repito que esse afastamento se dá, após e apesar de Feuerbach partir do conceito aristotélico e professar que se refere a ele.
Feuerbach parece ter tomado o seu conceito de essência do hegelianismo alemão. Não o encontro em Kant, nem antes dele, mas acho-o em Marx e Feuerbach, que foram ambos hegelianos. Marx escreveu[28]:

O Cristianismo é a religião kat exohin, a essência da religião, o homem deificado sob a forma de uma religião particular. Semelhantemente, a democracia é a essência de toda constituição política, o homem socializado soba forma de uma particular constituição do Estado, a qual se relaciona a outras constituições como o gênero à sua espécie.

Marx refere-se ao Cristianismo como o homem deificado. Pensa a religião cristã como fruto da confusão de Deus com o homem, em estrita conformidade com Feuerbach. E prossegue para afirmar que o Cristianismo é a essência da religião, e a democracia, a essência de toda constituição política. A democracia é o homem tornado Estado, como o Cristianismo é o homem tornado Deus. Aquela é a ilusão política; este, a ilusão religiosa.
Posto isso, Marx conclui: a democracia relaciona-se aos outros regimes como o gênero se relaciona à espécie. É possível maior clareza? Ele chama a democracia gênero, e os outros regimes, espécies. Claro que, se a democracia é a essência dos regimes políticos, segue-se que o gênero é a essência.
Marx toma a essência pelo gênero com tanta convicção quanto Feuerbach[29]:

Se as formas da existência social do homem, assim como a família, a sociedade civil, o Estado etc., devem ser consideradas como a atualização, a objetivação da essência humana, então [...] o homem permanece como o conteúdo essencial dessas realidades, e elas como a sua universalidade atualizada, portanto como algo comum a todos os homens.

A essência aqui mencionada não é a aristotélica. Não são os atributos animais organizados sob critério o racional. É antes o gênero, o simples agregado daqueles atributos. A única diferença é que, segundo a filosofia de Hegel (seguida neste passo por Marx), o agregado assume as formas concretas da família, da sociedade civil e do Estado, que são a essência humana objetivada. 
Isso basta como indicação de que o hegelianismo foi responsável por modificar o significado clássico da essência, e que o novo conceito dessa metamorfose foi utilizado por vários filósofos, principalmente alemães. Basta também para mostrar que, ao invocar Aristóteles e Porfírio, Feuerbach deu a entende que o conceito modificado corresponde ao original.
Para entender as consequências desse novo modo de pensar e da crítica à ideia fundamental de Deus que dele surgiu, é útil retornar um instante ao pensamento de Aristóteles. No capítulo sobre Kant e o direito, tive ocasião de mostrar que Aristóteles foi um dos principais responsáveis pela ampla aceitação da intuição, que Platão atribui a Sócrates, segundo a qual o conhecimento tem como eixo as essências dos objetos. Gostaria de acrescentar, neste passo, que é precisamente a essa essência que Feuerbach se reporta, embora não a ela pura, mas à essência aristotélica submetida a profunda transmutação.
Não é possível deixar de apontar que a transmutação a que me refiro foi operada por Hegel e seus seguidores e representou uma reversão ou mesmo uma distorção do giro copernicano de Kant. Vimos que este constituiu uma negação radical do essencialismo socrático do Fédon. Em Hegel e Feuerbach, também encontramos uma negação daquele essencialismo, mas uma negação parcial, que resulta na proposição de uma versão daquela doutrina. Assim, na tradição hegeliana, o giro de Kant, por si duvidoso, transformou-se em parafuso e terminou em desastre.
É difícil endossar um giro que torna as categorias tão dúbias quanto mostramos, no capítulo anterior, que elas se tornaram depois de Kant. Mas permanece certo que, dada a precariedade do conhecimento humano, o criticismo kantiano constituiu um grande avanço. Ele é visceralmente racional e inaugura uma investigação nunca antes empreendida, que tinha de ser realizada, embora conduza à conclusão de que o giro kantiano não é bem-sucedido do ponto de vista de suas premissas fundamentais.
O essencialismo de Hegel e Feuerbach não tem idêntico mérito. Ele modifica e relança o essencialismo aristotélico, a meu ver em versão piorada. Penso que a crítica de Feuerbach ao conceito de Deus, embora saudada com entusiasmo por respeitáveis filósofos, entre eles o jovem Marx, nada mais é que uma consequência do que o essencialismo hege-liano tem de mais questionável. Tratemos de entender por quê.
Antes de tudo, a essência genérica mencionada por Feuerbach e por Marx não é a que utilizamos para definir um objeto. É o contrário dela. É a definição desagregada, a definição que perdeu o eixo constituído pela diferença específica, a definição cujos elementos se desprenderam do fio que as enlaçava de modo determinado.
O problema é que a noção de essência genérica encontrada na tradição hegeliana rompe com o conceito sedimentado de essência de quase todo o restante da tradição filosófica, o que causa um grave problema de comunicação e compreensão. Problema que chega a ser, até mesmo, de Lógica.
As consequências da ruptura não foram menores. Feuerbach deve sua tese da confusão das essências de Deus e do homem ao peculiar e nem sempre coerente universo conceitual do hegelianismo. Sua sugestão tem fascínio. Brilha como a luz de uma descoberta da razão pura, mas no fundo não o é, pois nada nos diz sobre a confusão da definição de Deus com a definição do homem, mas apenas da confusão do gênero humano com o divino, em sentido hegeliano. O que é toda uma outra coisa.
A crítica de Feuerbach à religião e ao Cristianismo só faz sentido no interior do universo da filosofia desenvolvida a partir de Hegel. Nesse universo conceitual e somente nele, a essência de Deus confunde-se com a do homem. E, ainda assim, a confusão é demonstrada, como tantas outras coisas, de maneira vaga e não convincente pelos seguidores de Hegel.
Na medida em que deixamos o universo do hegelianismo e nos movemos aquele outro fundado na Analítica de Aristóteles, chegamos a conclusão muito distinta da de Feuerbach. Penso que esse outro universo conceitual sempre foi e continua a ser muito superior ao de Hegel, o qual se desmancha em mil inconsistências. 
Ao acusar o Cristianismo de tomar a essência de Deus como se fosse a do homem, Feuerbach acusou-o de atribuir substancialidade a algo, em si, irreal e a torná-lo ainda mais irreal ao pensá-lo como um ser distinto do próprio homem: Deus. Se a acusação fosse procedente, o Cristianismo seria a mais vasta e grosseira de todas as substantificações de ideias já concebidas.
Porém, a imputação de Feuerbach não parece ser procedente, na medida em que ele tomou a essência como o gênero. A ideia de Deus, como a de qualquer outro ser, não é coerente por moldar-se ao gênero a que corresponde, mas por moldar-se à essência, isto é, à definição daquele ser. E, quanto a esta, as ideias de um ser divino ou de vários deles continuam tão hígidas quanto sempre foram.
Os indivíduos humanos têm em comum seus erros. Deus é perfeito. Os homens têm em comum um poder mínimo, quimérico. Deus é todo-poderoso. Os homens têm em comum a mortalidade; Deus é imortal. Claro que, por conduzir a consequências como a igualdade entre a perfeição de Deus e a do homem, entre o poder de Deus e o do homem e entre a imortalidade divina e a mortalidade humana, a critica de Feuerbach não se sustenta. Salvo melhor juízo.
Em cada um dos capítulos de A essência do Cristianismo, um ou outro aspecto do Deus cristão é referido ao gênero humano. Página após página, a sôfrega racionalidade humana, a não menos sôfrega moralidade dos homens, a encarnação, o sofrimento, a relação mãe-filho, a relação pai-filho, os fenômenos naturais e tantas outras coisas humanas são convertidas em experiências de Deus, sem provar coisa alguma sobre a confusão (ou não) das definições de Deus e do homem. 
Apesar dessas deficiências, a crítica de Feuerbach foi saudada como grande conquista do saber humano. Em alemão, o nome Feuerbach significa riacho de fogo. Troçando, Marx afirmou que não é possível ingressar no pensamento crítico, sem passar pelo riacho de fogo da filosofia de Feuerbach. Ao que tudo indica, ele quis, com isso, referir-se precisamente à crítica do conceito de Deus por aquele filósofo. Mas a que parte o riacho realmente nos leva? Para muitos, leva à consciência crítica de que, ao adorar a Deus, o homem adora a si mesmo e, ao falar de Deus, fala de si. Para outros, leva a não mais que um feixe escolhido de tolices.
Não podemos perder de vista que, ao tratar da crítica de Feuerbach ao conceito de Deus, tratamos do que o essencialismo hegeliano possui de menos egrégio. Mesmo assim, o gigantesco vulto e o potencial revolucionário das questões postas por Kant, na Crítica da razão pura, emprestam a Feuerbach o capital que Hegel lhe retira. Não é possível negar que a tela na qual o argumento de Feuerbach se insere é a do giro copernicano da Filosofia.
Num ponto fundamental, esse giro reveste-se de incontestáveis razões. É que ele propõe ou permite propor toda uma série de questões fecundas e dignas da mais profunda reflexão, as quais não haviam sido formuladas antes de Kant. Por seu conteúdo paradoxal, o argumento de Feuerbach é uma dessas questões. Está, por isso, instalado no cerne da Gnoseologia Moderna.

A MAIOR REVOLUÇÃO

Uma característica do neoateísmo radical dos nossos dias é atribuir-se tarefas irrealizáveis, ocultando o seu desconhecimento do sentido histórico das transformações que engendraram a cultura cristã sob a denúncia das contradições produzidas em dois mil anos de Cristianismo.
Penso que as críticas do neoaiteísmo só podem ser bem sopesadas se as olharmos do ponto de vista histórico e que, para isso, é indispensável entendermos como a civilização cristã substituiu a triunfante cultura gestada na Grécia e em Roma.
Não foi pequeno o fascínio exercido por essa cultura em todas as épocas, mas especialmente nos séculos XIV a XVI, quando as obras artísticas e literárias da Grécia e de Roma foram maciçamente reestudadas, reproduzidas e disseminadas, durante o Renascimento e o Humanismo. E os homens daqueles séculos não foram os únicos a atribuírem valor elevado à Antiguidade: ainda hoje, temos a cultura clássica em tal estima que é comum associarmos os ramos recentes do conhecimento a descobertas e intuições da Grécia e de Roma Antigas.
Todavia, se os méritos da cultura clássica justificam a veneração que lhe devotamos, que dizer da civilização constituída pelo contato dela com o Cristianismo, que fez recuar a religião grecorromana e quase extinguir-se o colosso de crenças, costumes, literatura, Filosofia, História e ciência da Antiguidade Clássica? Nenhum reconhecimento histórico é tão verdadeiro quanto o de que a força vital do Cristianismo penetrou a tal ponto no Império Romano e entrecoseu-se com as culturas ali existentes de tal maneira que o fim da religião pagã e o recuo da cultura clássica fizeram-se inevitáveis.
Precisamos acrescentar, aqui, uma distinção: se as tradições mais confiáveis de que dispomos estiverem corretas, Roma era uma irmã cultural da Grécia. O parentesco associa ou aqueles povos estreitamente, muito antes de Roma abraçar a cultura grega. O mesmo não se passou no caso da cristianização do mundo grecorromano. A religião judaico-cristã, de origem semítica, vinha de outra cepa. Como tudo o que emergia de Israel, naquele tempo, ela foi, a princípio, considerada bárbara pelos romanos. Mesmo assim, virou o altar pagão e contribuiu para a desconstrução da imensa pirâmide grecorromana.
Não é incorreto considerar que o processo que conduziu à substituição da cultura clássica pela cristã constituiu a maior revolução do conhecimento humano em todos os tempos. A revolução daquela época só encontrou um termo de comparação à altura muito tempo depois, com o advento da Revolução Científica. Ainda assim, a transformação cultural produzida pelo Cristianismo suplanta a científica, senão pelo mérito intrínseco das façanhas que a constituíram, pelo papel muito mais fundamental reservado à religião na cultura humana.
Nenhuma das revoluções do conhecimento até hoje propostas parece à altura dessas duas. Por isso, é em função do Cristianismo e da ciência que devemos medir os demais avanços do conhecimento. Consideremos a primeira dessas revoluções. No início da Modernidade, após mais de um milênio de cultura cristã medieval, a Europa fervia com aspirações opostas. Primeiro o Renascimento, depois o Humanismo propuseram o retorno à Antiguidade Clássica. A eles opuseram-se, em parte, os nominalistas e o luteranos que tinham maiores reservas em relação à herança clássica e pareciam almejar a superação simultânea da cultura clássica e de suas versões cristianizadas.
A oposição entre essas correntes de pensamento envolveu a Europa num vórtice que terminou numa série de guerras. A resolução dos impasses culturais pelo derramamento de sangue tornou-se então inevitável, o que demonstrou o despreparo de ambos os lados para resolvê-los por meios pacíficos.
E a agravar a falta de análise metódica das divergências militava o baixíssimo teor empírico das filosofias e teologias que se digladiavam. A ideias com conteúdo empírico tão reduzido quanto o tomismo e o calvinismo faltava o potencial heurístico necessário para propor soluções alternativas para os conflitos. Não pode haver descobertas, onde não há observação do que realmente acontece. Por isso, na Europa embriagada com o vinho da oposição de papistas e luteranos, tomistas, occkhamistas e calvinistas, não foi possível encontrar soluções racionais e pacíficas para os antagonismos, de sorte que a brutalidade acabou invocada como juiz supremo deles.
Claro que papistas, luteranos e calvinistas, em seus arraiais, cogitavam soluções científicas para os embates da época. Porém, sacavam-nas do fundo de suas metafísicas, o que nunca permitiu que qualquer dos lados convencesse os espíritos lúcidos. Fato é que a História incumbiu-se de sacrificar todas aquelas soluções, descobertas e provas com a mesma facilidade com que o carrasco põe termo ao drama do condenado.
Restou-nos o saldo em lições do triste derramamento de sangue dos séculos XVI e XVII. E, entre as lições que o passado nos legou a esse respeito, destaca-se uma de cunho eminentemente epistemológico cujo aprendizado é urgente ainda hoje: não é possível transformar uma filosofia em ciência ou erigir uma visão teológica em descoberta empírica sem produzir desastres. A Filosofia e a Teologia não são disciplinas heurísticas. Por isso, se por ciência entendermos um saber capaz de realizar descobertas e fazer avançar o conhecimento, concluiremos que nem a Filosofia, nem a Teologia são ciências.
Infelizmente, a lição epistemológica não foi bem assimilada pelos filósofos que, ainda hoje, tentam extrair descobertas revolucionárias da sua disciplina. Não me refiro aos filósofos tomistas ou nominalistas, mas aos existencialistas, aos filósofos da linguagem e aos partidários de outras mil correntes em que o pensamento filosófico contemporâneo se capilarizou. Refiro-me ao espírito da Filosofia atual como o cultivamos. Um espírito que se inchou de soberba por causa de mil descobertas nulas que realizou e propaga, às vezes de si para si e em linguagem ininteligível.
Esse mal sempre acompanhou a Filosofia. Sempre a levou a perder-se no orgulho causado por descobertas ocas. Que pretenderam os nominalistas, a não ser revolucionar o conhecimento antigo? Que explica as extensas e laboriosas críticas deles a todas as partes daquele saber, sem exceção alguma, a não ser a intenção de alterá-las profundamente? Por que os nominalistas foram os primeiros em vários séculos a proporem alterações substanciais na Física aristotélica? No entanto, apesar dos méritos de que se cobriram e da justa admiração que conquistaram, os nominalistas fracassaram de modo retumbante nessa missão, tanto quanto outros filósofos tinham fracassado antes deles e ainda outros falharam, depois, ao tentar revolucionar o conhecimento com descobertas altamente abstratas e metafísicas.
Ante tais fatos, é justo perguntar se a Filosofia não tem maior relação com a linguagem do que com o conteúdo do conhecimento. E se a sua relação mais estreita com a linguagem do que com os fatos não constituiu um importante motivo do fracasso das escolas que tentaram revolucionar o conhecimento humano.
Essas perguntas levam-me a ainda outras: se quisermos encontrar o que de melhor foi produzido sobre a linguagem, não o devemos buscar nas ciências que se dedicam a ela e também na Filosofia? Por outro lado, se pretendermos achar o que de mais relevante pode ser afirmado a respeito do mundo concreto, não devemos realizar fechar confiadamente os livros de Filosofia e buscá-lo em outra parte?
Mais do que isso, se quisermos aprender sobre o mundo em todas as suas dimensões, teremos de lançar mão não apenas dos livros de ciência, mas também (e ainda que a contragosto) dos de Teologia. Pois, se esta não é capaz de produzir descobertas empíricas, por outro lado, a História demonstra que a Teologia sempre liderou o processo de adiantamento das culturas e, por meio disso, influenciou a História. O triunfo da civilização cristã não constitui demonstração desprezível disso.
Infelizmente, no hemisfério ocidental, perdemos a consciência que um dia possuímos do potencial revolucionário da Teologia. Por isso, ao refletir sobre o conhecimento, é importante nos pormos em busca da consciência perdida. Foi o que tentei realizar, nos dois primeiros livros que publiquei, nos quais propus que o Direito tem tanto a lucrar com a proximidade da Teologia quanto em relação à ciência.
Recordo-me de não o ter proposto em duas ou três linhas, mas de haver transformado essa na tese central de minhas primeiras obras. Implícita ou explícita nelas estava a ideia de que a Teologia e a ciência, de modos muito distintos, mas ambas dizem-nos coisas bastante relevantes sobre a realidade.
A atribuição de um papel como esse à Teologia, após o advento das ciências naturais, costuma causar mal-estar em algumas pessoas cultas. Mas, para que a atribuição se justifique, não precisamos reconhecer àquela disciplina um papel distinto do que compete à Filosofia, ou seja, o papel de uma reflexão sobre a linguagem.
Parte do mal-estar a respeito da Teologia desvanece quando a pensamos não como verdade indesafiável, mas como linguagem, portanto como uma disciplina passível de verdade e de erro, a qual desempenha a sua função na medida em que serve a transmissão de um discurso. A única diferença entre a Filosofia e a Teologia, nesse ponto, é que a linguagem teológica é sobre Deus.
Na condição que reivindica para si de linguagem acerca de Deus é que a Teologia deve ser avaliada. Desse ponto de vista é que a contribuição que ela oferece ao conhecimento há de ser julgada. Se não possuir valor linguístico, a Teologia será tão incapaz de dizer algo sobre o real quanto uma filosofia desprovida de linguagem precisa. Por isso, tanto uma como a outra dessas disciplinas deriva o seu valor da linguagem.
Coube à Filosofia Patrística fornecer a linguagem, por meio da qual a revolução cristã se deu. Essa líinguagem foi o que permitiu a absorção da cultura clássica no arcabouço do pensamento cristão. Não entendemos a Antiguidade Tardia sem dominar essa linguagem e perceber que, que, por meio dela, o Cristianismo desafiou ao mesmo tempo em que assimilou a cultura clássica.
A superação da cultura clássica não pode ser compreendida mediante o estudo da Filosofia Grega ou do Direito Romano. Para entendê-la é preciso penetrar no pensamento patrístico, no qual a grande superação se tramou. E o que encontramos, em primeiro lugar, nesse pensamento, é a linguagem não apenas bíblica, mas também filosófica que permitiu a superação.
O Cristianismo é, antes de tudo, um discurso de Deus. É um longo encadeamento de palavras atribuídas a Deus. Santo Agostinho lia a Bíblia como quem ouve Deus, uma vez que tomava o Cristianismo como uma religião revelada. Uma religião da palavra e palavra divina.
Se traduzirmos essas assertivas simples em linguagem um pouco mais sofisticada, afirmaremos que o discurso das Escrituras é proferido por Deus. E que, por isso, a Teologia Cristã vale o que vale a Filosofia, lida com o que ela lida, transmite o que ela transmite, isto é, uma linguagem, ainda que a linguagem transmitida por ela seja a de Deus.
O luteranismo só se pôs como tentativa tão clara de superação da escolástica por ter adquirido a mais elevada consciência de que a Teologia nada mais é que línguagem de Deus sobre si e sobre o ser humano. A Teologia é um discurso de Deus sobre ele mesmo e sobre nós.
Pouca dúvida há de que o colossal trabalho de tradução do Antigo Testamento a partir do hebraico e do Novo Testamento grego de Erasmo para o alemão favoreceu amplamente o aprofundamento da compreensão de Lutero sobre o caráter da Teologia como discurso de Deus lhe permitiu levar a efeito a sua proposta específica de superação da escolástica.
Pode-se perguntar se, reduzida à linguagem de Deus, a Teologia não se torna transracional e desumana? Uma pista para a resposta foi dada pelo poeta John Milton na explicação que transmitiu do Trivium (Lógica, Gramática e Retórica) medieval[30]:
 
De todas as artes [do Trivium], a primeira e mais geral é a lógica, seguida da gramática e, por último, da retórica, uma vez que pode haver muito uso da razão sem o falar, mas nenhum uso da palavra sem a razão.

Para Milton, a Gramática e a Retórica regiam-se pela Lógica. Esse é um modo muito adequado de compreender o uso das três disciplinas. Como estudo da linguagem de Deus, a Teologia não é transracional. Sujeita-se, antes, à Lógica e à Gramática, pelo simples motivo de que pode existir razão sem falar, mas não palavra de Deus sem razão. É pelos métodos da Lógica (Clássica, já que a Transcendental e as outras não se firmaram ou possuem aplicação reduzida) e da Gramática (Geral e Especial) que a Teologia deve ser estudada e exposta.
Em A hipótese de Darwin, escrevi[31]:

Se alguma mudança radical ocorreu na maneira de os homens verem o mundo e construírem o seu destino nos últimos séculos, portanto, ela se localizou na passagem à modernidade, não no advento de uma pós-modernidade. A modernidade é uma tentativa de construção de sociedades voltadas à afirmação do indivíduo, em relativa harmonia com forças externas ao mundo dos homens (forças divinas), não um projeto antirreligioso ou uma experiência de desencantamento.
[...] A atualidade não é feita pela superação total do passado. Pelo contrário, o desafio específico de cada época é inserir os fios das novidades históricas no tecido que a sua geração recebe dos antepassados. Não é diferente na época em que vivemos.

Em que parte do quadro da Modernidade o Direito há deinserir-se? A resposta, expressa ou tácita, é dada com grande desenvoltura no nosso tempo. Quase todos pensam que o Direito deve acercar-se da ciência e distanciar-se da Teologia. Falta, porém, a prova de que essa concepção cultural se justifica. Falta a demonstração de que a proximidade em relação à ciência impede ou desrecomenda o intercâmbio frutífero do Direito com teologias bem concebidas.
Os preconceitos típicos do nosso tempo nos induzem a aceitar a Revolução Científica e a esquecer o que permanece da outra grande revolução da História, a saber: da Revolução Cristã. Mais difícil ainda se faz entender que uma transformação não anula a outra, por incidirem em campos distintos do conhecimento: a revolução antiga na linguagem de Deus, e a recente, no conhecimento da natureza. Aquela decretou o fim da cultura clássica e a absorveu; a revolução atual, a julgar pelos seus mais exaltados defensores, não sabemos a que parte irá levar-nos.
Claro que há tantas teologias (e teologias cristãs) quantos gostos. Não ocorre o mesmo com a ciência, cujas variações sobre os mesmos temas são muito menos numerosas do que o leque infinito dos gostos e idiossincrasias. Não estou a propor a igual aceitação de todas as teologias, até porque, se o fizesse, teria de conceder lugar igual a todas as outras formas de crença. Não se trata, aqui, de afirmar a liberdade de consciência e de credo, mas de reconhecer, ao mesmo tempo, o valor específico do pensamento judaicocristão e a miserável consciência que as pessoas têm dele, nos nossos dias. Se, no passado, a fé foi tomada como sinônimo de alienação, hoje, a falta dela é o que produz tal efeito. E em que medida o produz!

CONHECIMENTO E EXATIDÃO

Ao longo da História, pensadores, cientistas e inventores realizaram uma longa série de descobertas que revolucionaram a vida na face da Terra. Não muitos deles foram filósofos, e os que o foram não realizaram as suas descobertas com base na Filosofia. É o caso de Aristóteles, que referiu as regras do pensamento lógico ao conhecimento comum, e de Kant, cuja hipótese sobre a origem do sistema solar deve tanto ao saber filosófico quanto as descobertas genéticas do frade Mendel à Teologia.
Essa constatação não retira o brilho da Filosofia, nem anula o fato de tantos filósofos serem arrolados, com justiça, entre os maiores pensadores da História. Sugere, porém, uma mudança no enfoque que damos à Filosofia, na medida em que exige que não a concebamos como fonte de descobertas e avanços do conhecimento.
Em tudo o que diz respeito à produção de conhecimentos novos, a Filosofia é um saber pouco relevante. Não que os filósofos não tenham proposto concepções geniais e revolucionárias sobre o Universo e o homem. Eles provavelmente o fizeram mais que os representantes de todas as outras disciplinas do saber humano. Porém, quase nunca, as concepções revolucionárias dos filósofos foram provadas e, assim, convertidas em descobertas. Enfim, é como se os mundos que os filósofos descobriram fossem mundos possíveis, imaginados e imaginários, não partes do mundo real.
Não é possível afirmar o mesmo da Filosofia enquanto crítica de outros saberes. Nesse sentido, a Filosofia tem sido mais bem-sucedida. Ela sempre foi usada, com considerável sucesso, para desintegrar outros conhecimentos. Mas é preciso reconhecer que, ao fazê-lo, ela nunca nos legou descobertas, nem forneceu provas ou confirmações de teorias rivais das que desintegrou.
Essa constatação leva-nos a indagar se a Filosofia não é um saber instrumental, que não produz resultados sozinho, mas aliado a outros saberes. Se o for, será preciso mostrar de que modo esse saber funciona: quais os métodos que permitem desenvolver todo o seu potencial e colocá-lo em relação fecunda com outros saberes.
Para buscarmos conclusões como essas, é fundamental darmos um passo atrás e lembrarmos o que, em essência, constitui o conhecimento humano. Quase todos os pensadores admitem que o conhecimento é uma relação sujeito-objeto. De fato o é, embora o objeto de certos conhecimentos seja extremamente tênue. Porém, o conhecimento é mais do que isso. Para ser funcional, ele tem de ser também preciso ou, pelo menos, regular.
No âmbito dos conceitos fundamentais, a precisão do conhecimento manifesta-se como simples regularidade. É o que acontece com as categorias da experiência, que se distinguem por desempenhar sempre as funções idênticas ou semelhantes em diversos campos do conhecimento, nas mais heterogêneas sociedades. Porém, conforme passamos das operações básicas a níveis cada vez mais complexos de cognição, o critério da regularidade se especializa, assumindo feições cada vez mais sofisticadas: identidade, não contradição, terceiro excluído e uma miríade de regras materiais em que nos pautamos ao pensar objetos das mais variadas áreas do conhecimento.
Não me parece que os filósofos tenham conseguido demonstrar que, nesse imenso processo de particularização e especialização das regras lógicas, o critério da regularidade tenha sido jamais revogado ou substituído por outros critérios. A falta dessa demonstração constitui o enigma nuclear de toda a Gnoseologia. Indica que o primado da regularidade não foi refutado. E a não refutação dele implica a sua confirmação, se a falseabilidade aplicar-se à Teoria do Conhecimento.
Chego, assim, ao resultado fundamental da reflexão aqui realizada: se as categorias são verdadeiras na medida em que regulares, é inevitável concluirmos que a verdade de qualquer conhecimento identifica-se com a regularidade categorial. E, se esta assume a feição de uma série de critérios secundários, como a não contradição e as regras lógicas materiais, é possível concluir que a regularidade mantém o seu jugo sobre o conhecimento sob as formas da precisão e da exatidão do conhecimento.
É usual considerarmos nossos conhecimentos tão mais verdadeiros quanto mais rigorosamente se moldam às regras das diversas ciências. Essa obediência é o que permite determinar o grau de precisão ou de exatidão dos saberes. Mas, se todo conhecimento se funda em categorias como em critérios supremos de verdade, segue-se que a precisão do conhecimento nada mais é que a regularidade categorial sob outra roupagem.
Seja o caso do conhecimento dos sentidos. Vimos que a sua conexão com o que os antigos filósofos chamavam eflúvios dos objetos e dos órgãos sensoriais não pode ser rompida. E, se assim é, a regularidade que define as categorias da experiência deve ser determinada por algo proveniente dos objetos (seus eflúvios). Não somos capazes de definir exatamente como essa determinação acontece, nem de a refutar, uma vez que as evidências a seu favor são maciças.
Temos, pois, de considerar que, até prova em contrário, as categorias da experiência são substancialmente determinadas pelo sujeito e também pelos objetos. E temos de concluir, também, que a regularidade das categorias particulariza-se numa série de regras que governam as diversas áreas do conhecimento.
Essas regras não são isentas de contrariedades e contradições. É que a vida está repleta de relações em que os objetos colocam-se em oposição maior ou menor uns com os outros. Posto que as regras das lógicas setoriais moldam-se ao modo como as relações se travam nos seus respectivos setores, não é possível evitar que contrariedades e contradições pululem no conhecimento.
Assim, um conhecimento é verdadeiro na medida em que consoante com a regularidade categorial, que se manifesta, nos diversos ramos do conhecimento, como obediência mais ou menos exata às regras que os regem, as quais não excluem contrariedades e contradições. Trata-se de determinar como cada ramo do conhecimento realiza isso. Neste texto, interessa-me, particularmente o modo como a Filosofia e as ciências sociais o fazem.
Penso que ambas derivam sua precisão do uso que fazem dos signos linguísticos. Da crença mais primitiva à mais adiantada ciência, todo conhecimento se desenvolve num universo simbólico complexo e dotado de considerável precisão intrínseca. O mesmo vale para os saberes instrumentais, que se dividem em ciências formais (Gramática, Lógica e Matemática), técnicas (Cirurgia, Retórica etc.) e saberes especulativos (Filosofia e Teologia).
Dentre os saberes instrumentais, o mais alto grau de precisão cabe às disciplinas formais, as técnicas vêm a seguir, e os saberes especulativos por último. Mas, por constituírem conhecimentos, todas as categorias do saber instrumental são dotadas de precisão. Nenhuma é imprecisa. Se o fosse, não seria conhecimento, posto que este não é só uma relação sujeito-objeto, mas uma relação precisa, isto é, referida à regularidade categorial. Não é diferente com a Filosofia e a Teologia.
A questão é entender de que parte essas disciplinas abstratas e problemáticas extraem sua precisão. Certamente elas não a derivam dos objetos a que se dedicam (o ser, o conhecer, Deus, os valores etc.), que estão entre os mais problemáticos de todo o conhecimento. Penso que a Filosofia e a Teologia haurem a sua precisão não do objeto, mas da linguagem. Na medida em que elucidam o significado das palavras e apenas nessa medida, é que aquelas disciplinas cumprem a alta missão de viabilizar o conhecimento dos objetos a que se aplicam.
Sejam-nos permitidos alguns exemplos. As ciências naturais foram erguidas sobre os escombros de conceitos como os de éter, flogisto e dos quatro elementos (terra, água, fogo e ar). A Filosofia desempenhou um papel relevante tanto na afirmação quanto na dissolução desses conceitos, ao realizar a crítica deles e de outras ideias concorrentes.
Nos textos patrísticos, encontramos uma comparação meticulosa da cosmologia grega e materialista dos quatro elementos com a ideia de criação ex nihilo. Orígenes, Basílio, Gregório de Nissa, Ambrósio e Agostinho analisam, modificam e fundem meticulosamente a física dos quatro elementos à ideia bíblica da criação ex nihilo. Por outro lado, a doutrina da Trindade só adquiriu a forma estabilizada nos Credos quando pôde ser formulada, ao mesmo tempo, em termos dos universos simbólicos judeu e grego, o que equivale a dizer em termos teológicos e filosóficos.
Em todos esses casos, a Filosofia e a Teologia desenvolveram as suas realizações mediante a elucidação de termos. Para que a Astronomia Moderna se constituísse, a partir de Copérnico, foi preciso desconstruir a complicada trama de conceitos e termos de Ptolomeu e Aristóteles que proveu a explicação mais aceita do Universo físico durante séculos. E, para a Química erguer-se como ciência, a terminologia de Aristóteles e dos escolásticos sobre a matéria também teve de ser desconstruída.
A desconstrução filosófica dessas ideias foi essencialmente um trabalho realizado sobre palavras e seus significados. O mesmo se deu com a teologia da criação, assentada, tijolo a tijolo, por reflexões sobre vocábulos dos dois primeiros capítulos de Gênesis em hebraico, grego e latim, e com a doutrina da Trindade, delineada mediante a discussão de palavras como ousia, hyposthasis, e seus correspondentes em latim. Do exame desses termos a Teologia hauriu o que nela existe de precisão e que lhe permite constituir um ramo do conhecimento humano.
Quando transitamos das disciplinas instrumentais às ciências naturais e sociais, muita coisa muda. O conhecimento da natureza e dos mundos sociais são fins e não meios para a construção de outros saberes. Serve-se de instrumentos formais (gramaticais, lógicos e matemáticos), técnicos e especulativos (filosóficos e teológicos), para desenvolver descrições comparáveis ao referencial objetivo do mundo e não apenas usadas como instrumentos de outros saberes. Enfim, as ciências naturais e sociais alcançam objetivos cuja consecução as disciplinas instrumentais apenas preparam.
Essa arquitetura geral do conhecimento, fundada na colocação das disciplinas instrumentais a serviço das ciências naturais e sociais, seria mais bem-sucedida, se curto-circuitos não se multiplicassem, principalmente no campo das ciências sociais, por vários motivos. Primeiro porque os objetos dessas ciências são, eles próprios, quase tão problemáticos quanto os da Filosofia e da Teologia. E, em segundo lugar, porque as disciplinas sociais valem-se de instrumentos filosóficos e teológicos (também problemáticos) em maior medida do que as ciências naturais.
Isso faz com que o estado das ciências sociais, quando analisado com a indispensável dose de realismo, pareça desanimador e que reflexos disso projetem-se no campo do Direito. Faz ainda com que, no centro geométrico do preocupante quadro, garbosamente instalado, encontre-se o dissenso sobre a justiça. Que é a justiça? Quais as suas espécies? Que concepções foram propostas sobre cada uma delas? São, tais concepções, realizáveis? Não há como negar que essas questões, em sua problematicidade, desafiem e ameacem o nosso saber sobre a sociedade.
Questões relacionadas à justiça não podem ser enfrentadas com sucesso, enquanto não nos damos conta da natureza problemática das ciências sociais e problemática ao quadrado das disciplinas instrumentais (Filosofia e Teologia) que elas utilizam. Por isso também, enquanto não reconhecermos que o desafio colocado por essa dupla complexidade (referente ao objeto e ao instrumental) é incontornável para as ciências sociais, não seremos capazes de desenvolvê-las com a precisão característica dos saberes bem-sucedidos.
O pressuposto para o desenvolvimento das disciplinas sociais é, portanto, a formação de uma consciência profunda sobre a natureza delas. Se as ciências sociais derivam sua essência não só da relação que mantêm com o seu objeto, mas também da precisão com que o tratam, cabe-lhes, antes de tudo, aprofundar essa precisão e eliminar os motivos de imprecisão no trato com o seu objeto.
Chegamos, assim, ao cerne da nossa questão. Qual é a causa da precisão das ciências sociais? Assim como no caso da Filosofia e da Teologia, também no das ciências sociais, essa causa é a linguagem. E que linguagens aquelas ciências usam, além da gramatical e da lógica? Elas utilizam a linguagem filosófica e a teológica. Isso mostra que o caminho para o desenvolvimento das ciências sociais passa pelo uso mais apurado não só da Gramática e da Lógica, mas também da Filosofia e da Teologia. Até porque a sociedade e a cultura, que aquelas ciências estudam, desconhecem os preconceitos acadêmicos, por isso fundam-se na transcendência. Gostemos ou não.
Avanços de linguagem é, pois, do que precisamos, a fim de que as ciências sociais se alcem a um patamar de precisão superior ao atual. Avanços que ajudem a exprimir, em linguagem filosófica e teológica, os dilemas sobre o social.
Voltemos ao problema da justiça. São Tomás a explicou com base no binômio constituído pelos primeiros princípios e as consequências dos primeiros princípios do direito natural. Dentre as consequências dos primeiros princípios, umas são próximas, outras, remotas. Mais que doutrinas, essas noções constituem elementos de uma linguagem, o que é fácil de ver.
Em que termos melhores que os de Tomás posso expressar a importância da justiça para a sistematização do direito? Em que termos posso tornar mais claro que a justiça não é só uma questão de valor, de princípio, mas também de sistematização normativa e, portanto, de viabilização do ordenamento jurídico? Não é, o direito das instituições, de alto a baixo, inseparável da ideia de justiça? Essa ideia não motiva os atos jurídicos e justifica as decisões jurisdicionais? Se assim é, de algum modo, as ideias mais amplas e elevadas de justiça que concebemos devem particularizar-se ao ponto de capilarizar e irrigar o direito todo. Ninguém disse isso melhor que Tomás. E, se a ciências problemáticas não convém assentar dogmas, sem ter como os comprovar, resta-lhes a alternativa de comunicar com precisão o pensamento sobre a justiça por meio de noções como as de primeiros princípios, suas consequências próximas e remotas.
Tantas vezes, numa ciência, o “como” é mais vital que o “quê”! Tantas vezes afirmar que algo é reduz-se a pedir que creiamos que é! Por isso, mais importante do que afirmá-lo é mostrar como vem a ser. A justiça se constitui a partir dos seus primeiros princípios, que são a liberdade e a igualdade. Estas têm por consequências próximas os subprincípios que, em cada povo, especificam diferentes regimes de liberdade e igualdade. E não é menos possível afirmar que os subprincípios dão origem a normas mais específicas que eles, conquanto ainda gerais, como a que fixa determinado tributo, e estas, a regras de todo específicas, a exemplo da que manda Fulano pagar tanto a título de tal tributo.
Princípios e consequências, princípios primeiros e derivados, consequências próximas e remotas são todos termos cuja elucidação é melhor conduzida com ajuda da Filosofia. Elucidá-los é imprimir precisão ao conhecimento filosófico e, por meio dele, às ciências sociais.
Não ousei, até aqui, empregar a palavra exatidão como sinônimo de precisão. É que ela foi tombada pela Matemática e outras ciências que a utilizam, com todo direito, em sentido particular. Mas faz diferença dizer exatidão, em sentido mais amplo, em lugar de precisão? Talvez, a exatidão seja mais que a precisão. Talvez ela caiba à Física e à Matemática, e a precisão fique bem às ciências sociais. Mas isso depende tanto do contexto! Em certos contextos, exatidão soa como precisão absoluta, e precisão, como exatidão aproxima4da. Seja. Mas discriminar a tal ponto entre os termos pode ser um cuidado que prescreveu no dia em que adotamos a palavra ciência, que evoca o exato, para designar o confuso e precário saber que temos das nossas sociedades. Para nós, que dizemos ciência com tanto exagero, que adotamos tão augusto nome para tão problemático saber, pode ser mais consistente chamar precisão o ideal do nosso conhecimento e conformar-nos com realizá-lo mais na linguagem do que nos fatos.

A NATUREZA HUMANA

Na História do Ocidente, o direito natural sempre foi um dos mais importantes fundamentos da ética. Só nos últimos três séculos, as críticas à indeterminação dele fez surgir o anseio de uma fundamentação imanente do direito que, em alguns casos, levou à negação pura e simples do direito natural e, em outros, à identificação parcial dele com o direito positivo.
Um dos porta-vozes mais antigos da identificação dos direitos natural e positivo foi Thomas Hobbes, que escreveu, numa obra clássica[32]:

Toda lei pode ser dividida, primeiramente, em função da diversidade de seus autores, em divina e humana. A divina, por sua vez, se bifurca em natural (ou moral) e positiva, segundo os modos pelos quais Deus deu a conhecer sua vontade aos homens.

Essa é a divisão clássica do direito. Ao reafirmá-la, porém, Hobbes fez a lei natural coincidir parcialmente com a positiva. É o que está implícito na observação de que “a lei da natureza nos ordena observar todas as leis civis, pois nos obriga a obedecer-lhes antes mesmo de conhecermos o que nos será ordenado [...] Disso se segue que nenhuma lei civil [...] pode ser contrária à lei da natureza”[33].
Em Liberdade e direito, publicado em 2000, citei esse texto de Hobbes como um dos primeiros casos de limitação posta pelo direito positivo ao conteúdo da lei natural na História[34]. Mas, se o pioneirismo de Hobbes nesse sentido é inegável, precisamos deter-nos um pouco mais no modo como ele pensou que o direito positivo é capaz de limitar o conteúdo possível do direito natural.
Esse modo está claramente exposto no seguinte trecho da sua obra: “Embora a lei da natureza proíba o roubo, o adultério etc., se a lei civil nos ordenar invadir algo, a invasão não constituirá roubo, adultério etc.”[35]. O autor fornece um exemplo histórico claro disso[36]:

Quando as leis dos antigos lacedemônios permitiam que os seus jovens tomassem os bens de outras pessoas, elas na verdade ordenavam que aqueles bens não fossem considerados de outras pessoas, mas dos jovens que os deviam tomar.

Hobbes não esvazia, nem retira autoridade ao direito natural, apenas fixa, de maneira nova, a autoridade do direito positivo em relação à dele. Nada a admirar, se o objetivo de Hobbes era afirmar o poder absoluto do rei. Na doutrina tradicional da Igreja, o conteúdo do direito positivo era fixado (e restringido) em função da lei natural. Hobbes propôs uma modificação. Propôs que as disposições do direito positivo fossem utilizadas não para restringir, mas para esclarecer o sentido do direito natural em situações específicas.
Em momento nenhum, o consagrado filósofo afirmou que o direito dos lacedemônios ou qualquer outro povo impõe mudanças no direito natural. Este continua a ser o que sempre foi, independentemente de as leis positivas afirmarem isto ou aquilo. Porém, segundo Hobbes, devemos excluir a possibilidade de conflito entre as condutas impostas por lei e pelo direito natural.
Em poucas palavras, Hobbes quis sustentar que “o direito civil inteiro é natural”. Foi a conclusão que extraí do De cive em meu livro publicado em 2000[37] e que continuo a extrair ainda hoje, pois não me parece que o teórico do absolutismo tenha pretendido outra coisa.
Contudo, naquela ocasião, citei Hobbes como ponto de partida para a reflexão que pretendia realizar sobre o conceito de natureza humana. Parecia-me, como ainda me parece, que a noção de natureza humana, tantas vezes citada como indeterminável, podia ser estabelecida com base nas emoções. Por isso afirmei que “todos os atos humanos são movidos por emoções. A criação do direito não é exceção. Também ela é causada por emoções. Como as emoções são fenômenos naturais, todo direito é inegavelmente natural”[38].
A intenção dessas considerações era dupla: por um lado, era admitir que a tendência da filosofia recente de negar a determinação necessária do direito positivo pelo natural podia ser aceita; por outro lado, desejava indicar que a natureza humana (e o direito natural) podia(m) ser concebida(os) com base nas emoções instintivas.
Todavia, a associação dos atos humanos aos instintos não fornece mais que um acesso parcial ao conteúdo da natureza humana. Se tivesse por base apenas as emoções básicas, a natureza do homem seria assimilada à do animal, o que não é obviamente o caso. O homem não é só instinto. Sua natureza é também racional. Quando afirmamos que o direito positivo deriva do natural, não estamos a propor que ambos emanam do instinto, mas da razão. É que a pedra de toque do direito não é a irracionalidade, mas o modo racional de dar voz às demandas da natureza humana. O que quis enfatizar, em 2000 é que o conteúdo da nossa natureza reivindicado pela razão é instintivo.
Essa concepção de uma natureza humana simultaneamente racional e instintiva, a que cheguei em Liberdade e direito, permite não alargar a identificação do direito positivo com o natural proposta por Hobbes, a ponto de eliminar a dicotomia entre eles. Se a nossa natureza fosse só instintiva, a identificação entre os direitos natural e humano seria total, e a dualidade de direitos seria eliminada. Porém, ao mesmo tempo em que é instintiva, a natureza do homem é racional, com a única ressalva de que, em regra, a razão serve o impulso e não o contrário.
Dirão que quebro o cânon cristão segundo o qual a razão inclina o homem às coisas espirituais e eternas, não às instintivas e terrenas. Mas só o nego aparentemente. No fundo, não há negação alguma. Tomo a inclinação racional como uma segunda natureza (natura secunda), que coexiste com a natureza terrena do homem, a depender da orientação da sua vida.
Nem todas essas conclusões foram lançadas em Liberdade e direito, por não caberem numa tese doutoral. Mas, certamente, a investigação da natureza e da ordem ética que empreendi, naquela obra, permitiu-me concluir que o direito natural e o positivo não podem coincidir totalmente[39]

[se] pudéssemos estabelecer o conteúdo do sistema ético de referência de uma sociedade, identificando-o, por exemplo, com a hierarquia de valores adotada pela lei, ainda assim restariam grandes dificuldades teóricas para a doutrina do direito natural. Se o sistema de referência fosse a lei ou os valores da lei, então uma norma seria natural na exata medida em que fosse positiva. Sob este ponto de vista, direito natural e direito positivo coincidiriam completamente.

A linguagem condicional do parágrafo acima está construída de maneira a indicar discordância com a conclusão sobre a coincidência do direito natural com o positivo. Já por isso, a ideia a que cheguei sobre a autonomia radical do direito positivo frente ao natural assemelha-se, mas não é idêntica à de Hobbes. A ideia que defendi é de que os direitos natural e positivo coincidem em parte, sem que o primeiro determine necessariamente o conteúdo possível do outro.
Essa conclusão cria o problema consistente em estabelecer o sentido que pode ter um direito positivo coincidente, ainda que em parte, com o natural. Entendemos que o direito natural imponha limites à conduta humana. Compreendemos também as demandas que um direito positivo independente do natural coloca. Mas temos dificuldade em entender o porquê e o sentido de um direito positivo que coincide com o natural.
Este o dilema em que desemboca toda reflexão sazonada sobre o papel do direito natural num mundo que parece pertencer, cada vez mais, à positividade, ao construído, vale dizer, ao que é posto pelo homem e esgota o seu sentido no humano. Talvez o melhor caminho para afirmar o papel do direito natural, num mundo reduzido a artefato humano, seja associar e até derivar o direito natural das instituições. Mas como fazê-lo sem afastar totalmente a possibilidade de as instituições, na historicidade e diversidade que as caracterizam, virem a aplicar um direito universal?
Vemos que a ideia de um direito universal e anterior ao homem rompe o esquema reducionista consistente em pensar, que o único sentido real de um mundo cujos sentidos possíveis são tantos é o humano. Mas, para alcançar o direito incoercível de afirmar valores universais, em meio ao relativismo e positivismo que hoje vigoram, é preciso encontrar uma justificação para o direito anterior ao homem e não apenas o professar.
Parece-me que o melhor caminho para isso é partir de um conceito claro de natureza humana como conjunto de impulsos instintivos, cuja satisfação é buscada pela razão. Esse foi o conceito a que cheguei em Liberdade e direito ao reconhecer que[40]

as características mais palpáveis da essência humana são físicas. O homem é um animal com duas pernas, um cérebro, um coração, dois pulmões. Há muito pouco conteúdo ético na essência do humano.

Devo admitir que, ao escrever tais palavras, em 2000, eu tinha em vista uma concepção clara e distinta de natureza humana, mas não vislumbrava como ela podia regular a aplicação de normas tão numerosas e às vezes contraditórias quanto as que constituem os ordenamentos jurídicos do nosso tempo. Permanecia cético quanto à possibilidade de tantas normas terem por base o conceito de natureza humana. Parecia-me que tal pretensão era ilusória.
Na verdade, naquele tempo, eu levava tão longe o direito de duvidar que duvidava da possibilidade de as normas do ordenamento formarem um sistema. E a razão principal de duvidar, que entretinha naquele tempo, não eram as oposições de princípios jurídicos, nem os conflitos, às vezes irreconciliáveis, de regras com que nos deparamos ao trabalhar com o direito, mas a desconexão ainda mais fundamental que parece subsistir entre o conceito de natureza humana e a aplicação das normas do ordenamento.
A meditação contínua sobre a justiça levou-me a mudar de opinião. Neste Compêndio, mostro em que sentido a mudança se deu. Mostro que a falta de “conteúdo ético na essência do humano” a que me referi, em 2000, é suprida pelas instituições (ou pelo costume, nas sociedades em que as instituições não se desenvolveram suficientemente), de acordo com as exigências cambiáveis de cada época, com vistas à satisfação da natureza física do ser humano. E o instrumento por excelência que permite suprir tal falta é a razão.
Sei que, a alguns, esse conceito de natureza humana racional e instintiva parecerá contraditório. Porém, a pedra de toque, em assuntos humanos, não é ser isento de contradições. É funcionar. Mostrar como o conceito de natureza humana funciona ou deixa de funcionar deve, por isso, ser o critério decisivo para o afirmarmos ou negarmos.
O fato de sermos capazes de construir um conceito funcional de natureza humana é significativo, pois dele podemos passar a uma concepção de direito natural que nada tem de sonhada. Refiro-me à concepção universal de justiça segundo a qual é justo e conveniente, para o homem, satisfazer suas emoções básicas. Essa concepção fornece o sentido geral do direito. Todo o direito e não só parte dele possui tal sentido. Todo o direito visa a favorecer e a otimizar a satisfação das necessidades instintivas do ser humano, em situações dotadas de diversidade tal que chegam a encobrir o sentido geral das normas que as regulam. Por isso, todo o direito é fundamentalmente irracional, ao mesmo tempo em que recoberto pela mais refinada racionalidade.
Claro que a multiplicidade das situações e dos desafios que a vida coloca faz surgirem ideais axiológicos diversos dos que são exigidos pela natureza humana. Ideais que constituem sentidos novos e particulares de justiça. Porém, esses ideais e os sentidos de justiça que eles engendram não são capazes de revogar a noção universal de justiça baseada na natureza humana.
Os sentidos da justiça podem ser acomodados em duas grandes categorias. De um lado, ficam os sentidos utópicos e ideológicos; de outro, os sentidos concretos dela. As constelações de valores incapazes de satisfazer, de maneira estável, as emoções básicas do ser humano são utópicas ou ideológicas. Os valores capazes de satisfazê-las são, ao contrário, concretos.
Em toda sociedade, coexistem concepções abstratas e concretas da justiça. Arriscaria afirmar, até mesmo, que as concepções abstratas podem tornar-se concretas ao se transformarem e evoluírem. Nenhuma doutrina está vaticinada a ser, para sempre, utópica ou ideológica, assim como nenhuma está livre do risco de perder a condição concreta após tê-la adquirido. É que essas condições são essencialmente cambiáveis. É que elas são tão provisórias quanto todas as outras coisas humanas.
Houve um tempo em que a religião chegou a ser considerada quase sinônimo de ideologia, e a política, de atividade libertária. Não nos podemos furtar a declarar quanto essa apresentação é indigna dos fatos! Quanto a História da Religião é pródiga em exemplos de doutrinas ideológicas que geraram concepções concretas e a História Política fornece casos de concepções concretas que se fizeram utópicas ou se perderam em indecifrável ideologia!

A FALÁCIA NATURALISTA

O argumento mais contundente já apresentado contra o direito natural é o da falácia naturalista, formulado pela primeira vez por David Hume, nos seguintes termos[41]:

Em todo sistema moral que encontrei até o dia de hoje, sempre percebi que o autor utiliza o método comum de arrazoamento, de modo a estabelecer a existência de um Deus ou a tecer observações sobre assuntos humanos, durante algum tempo e, então, repentinamente, surpreende-me pela substituição da cópula habitual de proposições “é” ou “não é” por “deve” ou “não deve”. Essa mudança imperceptível tem drásticas consequências, posto que “deve” ou “não deve” expressa uma relação ou afirmação nova, que deveria ser observada e explicada, assim como uma razão deveria ser fornecida para o que parece inconcebível, a saber: como essa nova relação pode ser deduzida de outras inteiramente distintas.

A história desse argumento, de sua origem na obra de Hume ao dia de hoje, é tão espantosa quanto a das doutrinas do direito natural que o antecederam sem terem aventado tal objeção. Espantosa porque, do ponto de vista do pensador hodierno que se debruça sobre o debate de ideias do passado, é difícil compreender como algo tão básico tenha sido omitido por tanto tempo.
Porém, não é menos difícil entender como, após formulado, o argumento da falácia foi adotado ou rejeitado sempre de modo peremptório, como se destruísse inteiramente ou sequer arranhasse a superfície das concepções morais em voga. Só um pequeno número de pensadores analisou o argumento de Hume em profundidade, sem o rejeitar totalmente ou sustentar a sua aplicação a todas as doutrinas morais. Curiosamente, o próprio Hume foi um deles, pois, em seguida à formulação do argumento, registrou[42]:

  Estou persuadido de que a pequena atenção dispensada à transição de “é” ou “não é” para “deve” ou “não deve” bastaria para subverter todos os sistemas vulgares de moral e nos levar a reconhecer que a distinção entre vício e virtude não se funda meramente na relação entre objetos, nem é percebida pela razão.

Com essa última afirmação, Hume indicou que nem todos os sistemas morais incorrem na falácia naturalista, mas apenas aqueles que denominou “vulgares”, isto é, apenas os sistemas que seguem o “arrazoamento comum”. Com base no contexto da crítica de Hume, portanto, os sistemas morais falaciosos são os que pudermos demonstrar terem sido construídos com base no arrazoamento comum.
Embora, na época de Hume, a maioria dos sistemas com essas características se baseasse na lei natural, do modo como formulada, a imputação de falácia não foi associada, por Hume, e toda e qualquer espécie de jus naturale, como outro autores depois dele fizeram. Por exemplo, um positivista que concebe o dever a partir da norma fundamental quase sempre supõe que esta é imperativa, quando essa interpretação não é a única possível. Essas concepções da norma fundamental tornam-se vulneráveis à falácia por extraírem o ordenamento dotado de imperatividade de uma norma fundamental não imperativa.
Do ponto de vista da estrutura gramatical, nem toda norma é imperativa. O que assegura imperatividade a um enunciado normativo é a interpretação que lhe atribuímos, não a sua formulação ou roupagem gramatical. Por exemplo, a norma “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” não está claramente formulada no modo imperativo. Não diz: “Deves amar”, mas “amarás”, no tempo verbal futuro. Portanto, do ponto de vista gramatical, é lícito interpretá-la como uma espécie de previsão tanto quanto como a instituição do dever de amar. A escolha entre essas interpretações deve ser realizada pelo intérprete à luz do contexto.
Em outros termos, mesmo quando uma norma contém palavras como “obrigatório” ou “proibido”, não é incomum a imperatividade depender da admissão de um dado não expresso de maneira clara em tais palavras. Tampouco é incomum esse dado ser identificado de diferentes maneiras por intérpretes também diferentes.
Se considerarmos que a noção de dever está umbilicalmente ligada à imperatividade, teremos de concluir que essa característica nuclear do direito costuma constituir um dado mais implícito do que explícito das normas. Depende mais da interpretação da norma, que varia de pessoa para pessoa, do que da estrutura gramatical da norma.
Isso é ainda mais verdadeiro em relação à norma fundamental do que às normas que se fundam nela, posto que aquela é pressuposta, não escrita, não positivada e, por isso mesmo, concebida de maneira nebulosa pela maior parte das pessoas. Ainda que afirmemos que a fundamentação positivista do direito não depende do que as pessoas em geral pensam e sim do modo como os especialistas concebem o ordenamento, uma concepção científica só pode ser verdadeira se for aplicável à sociedade, portanto se for conforme a práxis social.
A relação entre teoria e práxis leva-nos, pois, a concluir que a norma fundamental é concebida tão imperfeitamente do ponto de vista da imperatividade quanto de todos os outros. De modo nenhum essa norma é aquele produto claro e límpido da racionalidade que os positivistas nos apresentam. Na verdade, ela é um conceito tão ou mais problemático do que a vontade de Deus ou a conduta humana são para o jusnaturalista, uma vez que estes conceitos têm forte fundamentação cultural, o que não ocorre com a noção abstrata de norma fundamental.
Os positivistas alegarão que a sua doutrina é superior ao jusnaturalismo, porque a norma, da qual eles partem, é imperativa, o que não acontece com a conduta humana de que a maioria das versões recentes do direito natural parte. Dirão que, com isso, eles derivam as normas jurídicas do que é realmente uma norma (fundamental), ao passo que os jusnaturalistas derivam normas do que não o é.
Esse argumento envolve duas dificuldades tremendas. A primeira já foi enunciada. É o fato de o conceito positivista de norma fundamental ser obscuro e, por isso, pouco adequado ao pensamento do homem comum. A outra dificuldade decorre do fato de não ocorrer o mesmo com o direito natural, uma vez que o homem comum domina tanto a noção da vontade divina quanto a de conduta humana obrigatória.
Há quem se sinta surpreso com a afirmação de condutas que, por si sós, se revestam de obrigatoriedade. Para essas pessoas, é duvidoso que certos comportamentos, pelo simples fato de serem adotados, produzam obrigações ou deveres. Devemos reconhecer que nem toda conduta humana tem o condão de produzir esse resultado. Porém algumas realmente o produzem. É o caso do costume e das praxes institucionais comumente reconhecidos como fontes do direito. Tanto um como o outro constituem práticas reiteradas que, por esse simples fato, são concebidos obrigatórias. Portanto, embora constituam práticas, o costume e a praxe não são menos imperativos do que a norma escrita. É nessas condutas especiais dotadas de imperatividade que o jusnaturalismo de boa estirpe fundamenta o dever. Claro que, com isso, ele o faz descansar no mundo do ser (em práticas sociais empíricas), porém não de modo falacioso.
Vemos, por isso, que o argumento da falácia não pode ser aplicado de modo exclusivo ao jusnaturalismo ou, indiscriminadamente, a todas as correntes deste. O argumento só é bem utilizado quando levamos em conta os detalhes de cada teoria à qual é potencialmente aplicável. Por exemplo, ele é corretamente aplicado às doutrinas que estendem o direito natural a toda a realidade, como se fosse um constituinte tanto do mundo humano como não humano. È o que acontece com a clássica definição de Ulpiano, segundo a qual jus naturale é aquele que o homem compartilha com os animais.
Não há direito algum extensivo a toda a natureza. Mesmo assim, existe um direito natural que concebe corretamente a conduta humana como normativa. Defendo que esse direito pode ser concebido de modo adequado ao tempo atual se considerarmos as instituições sociais como as principais fontes dele. A meu ver, a enunciação mais consistente do direito natural é a que o surpreende no funcionamento cocreto das instituições, como exporei na parte seguinte deste livro.
Por ora, devo demonstrar com a maior precisão possível a estrutura lógica da noção de direito natural que prefiro e adoto, isto é, do direito natural estruturante do ordenamento que as instituições sociais produzem. Para isso, partirei do que ficou assentado no texto anterior, vale dizer, da existência de uma natureza humana. Esta afirmação é a mais decisiva de todas as que são formuladas sobre o dilema do direito natural.
Não retornarei à demonstração do conteúdo da natureza humana desenvolvida no capítulo anterior. Tê-la-ei por assentada ou, ao menos, por admissível, a fim de passar ao ponto seguinte deste arrazoado, a saber: à orientação de todo direito ao correto. Esse ponto foi estabelecido, de modo bastante aceitável, por Robert Alexy em O argumento a partir da injustiça:

         O argumento a partir da correção [...] afirma que tanto as normas e decisões jurídicas individualmente consideradas quanto o sistema legal como um todo pressupõem a ideia de correção. Um sistema de normas que não pressupõe tal ideia, de maneira explícita ou implícita, não é simplesmente jurídico. Sob esse ponto de vista, a exigência de correção funciona como um critério de classificação. Sistemas jurídicos que formulam tal exigência, mas não a satisfazem são defeituosos [...] Por outro lado, a exigência funciona como critério de qualificação no tocante às normas e decisões jurídicas individualmente consideradas, que se tornam defeituosas quando não formulam ou não satisfazem a exigência de correção.

E em outro lugar[43]:

A exigência de correção implica a de justificação. Essa exigência não se limita à justificação de uma decisão em termos de qualquer moralidade que permita considerar certa a decisão. Implica a correção da decisão em termos de uma moralidade justificável e, por isso, correta. A conexão necessária entre direito e moral correta é estabelecida pelo fato de a demanda de correção incluir a de correção moral [...] Esse é o motivo de, abaixo do limiar da injustiça extrema, uma violação da moralidade correta não conduzir à perda do caráter jurídico, mas à imperfeição jurídica [da norma ou do ordenamento].

Não existe direito onde não vigore o ideal da correção. A própria concepção positivista de um sistema de normas que repousam num postulado jurídico fundamental (basic rule) funciona com base na correta criação das normas umas a partir das outras. Para ela, direito é o que é criado dessa maneira (correta). O problema é que essa concepção repousa num conceito dogmático de correção. É como se o positivismo fosse correto (satisfizesse o critério da correção) pelo simples fato de o postulado da criação de normas do modo previsto ser observado. Porém, o postulado pode ser aplicado de modo correto ou incorreto.
Quero afirmar, com isso, que o direito não é simplesmente a norma, mas a norma tomada de maneira tal que dela derivem interpretações e aplicações corretas. Reencontramos, aqui, a assertiva de Miguel Reale: “O direito é a sua interpretação”[44], mas a reformulamos de modo a afirmar que a norma não é ela própria, nem simplesmente a sua interpretação, mas as suas interpretações corretas.
O pressuposto fundamental da interpretação correta não é a letra, mas a recta ratio da norma. Por isso, o direito é, sem dúvida, a norma e a sua interpretação, mas uma e a outra entendidas à luz da recta ratio, do espírito ou núcleo doador de sentido às interpretações corretas.
Somemos esta conclusão à existência antes proposta da natureza humana. Se ambas forem verdadeiras ao mesmo tempo, a recta ratio deve ser consentânea com a natureza humana. E, se a correção houver de ser entendida como conceito lógico e moral, como Alexy exige, poderemos utilizá-la não apenas para negar a existência de normas extremamente injustas, mas também para negar perfeição às normas injustas em todos os outros graus. Alexy não o sugere ao escrever que a “correção moral é o motivo de, abaixo do limiar da injustiça extrema, uma violação da moralidade correta não conduzir à perda do caráter jurídico, mas à imperfeição jurídica”[45]?
O mesmo princípio que permite afirmar que a injustiça extrema é antijurídica fundamenta a proposição de que a injustiça em todo e qualquer outro grau é causa de imperfeição jurídica. A última afirmação é um corolário da primeira. Deve, portanto, segui-la. E, se as duas afirmativas são igualmente corretas, segue-se que o direito natural tende tanto à eliminação da injustiça extrema quanto à correção possível da injustiça em todos os outros graus. O desafio do jurista é encontrar o método que permite realizar do melhor modo possível uma e outra tarefa.
Se adotarmos a concepção institucional do direito natural, as duas tarefas resultarão grandemente facilitadas. Perceberemos que existem instituições, como a ONU e seus organismos, cuja atuação universal não se limita à edição de normas contrárias à injustiça extrema, como as aplicadas ao genocídio e outros crimes contra a humanidade, mas também de normas tendentes a combater uma infinidade de injustiças menores. Essas normas são universalmente aceitas, embora sua aplicação ocorra de modos muito distintos nos diversos lugares do mundo.
Dirão que tais normas não são universais por não serem aceitas por absolutamente todas as pessoas? Direi que o são por serem aceitas em toda parte. Uma espécie de universalidade não cancela a outra, exatamente como um sentido de um palavra não impede outro. E será que normas universais tão abundantes não nos permitem falar de um direito natural institucional?
Em todos os séculos, o modo mais lógico e bem ordenado de pensar o direito natural consistiu em dividir as suas normas em primeiros princípios e consequências dos primeiros princípios. Se isso foi possível em relação às mais cerebrinas formulações do direito universal, por que não o seria no tocante à versão institucional dele? A divisão nada mais é que um expediente lógico empregado para permitir uma concepção mais clara e, por ela, a realização das tarefas que cabem ao direito natural.


[1]EPICURO. Epístola a Heródotos. In LAÉRCIO, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. 2ª ed. Brasília: UnB, 2008. p. 293.
[2] Idem.
[3] Idem. p. 304.
[4] Idem. p. 305.
[5]ARISTÓTELES. On the soul. I, 5, 418a. In Great books of the western world. 2ª ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol 7. p. 648.
[6] Idem. III, 8, 431b. p. 664
[7] HIPONA, Agostinho de. A grandeza da alma. São Paulo: Paulus, 2008. p. 308.
[8] HIPONA, Agostinho. Comentário literal ao Gênesis. São Paulo: Paulus, 2005. p. 164.
[9] Idem.
[10] BOÉCIO, Severino. A consolação da Filosofia. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 144.
[11]HIPONA, Agostinho. Comentário literal ao Gênesis. São Paulo: Paulus, 2005. p. 470.
[12]BOÉCIO, Severino. Ob. cit. Loc. Cit.
[13]CALDER, Nigel. O universo de Einstein. 2ª ed., Brasília: UnB, 1994. p. 63.
[14]CAPRA, Fritjof. O tao da Física. São Paulo: Cultrix, 1983. p. 166-168.
[15]RYDER, J. D. “Photoelectric effect”. Grolier Multimedia Encyclopaedia. EUA: Grolier, 1996.
[16] Idem. “Photochemistry”.
[17]SCHENBERG, Mário. Pensando a Física. 5ª ed., São Paulo: Landy, 2001. p. 105.
[18]WARD, Peter D.  e BROWNLEE, Donald. Sós no universo. Rio de Janeiro: Campus, 2001. p. 275.
[19]RAVALICO, Domenico. A criação não é um mito. 2ª ed., São Paulo: Paulinas, 1977. p. 194-195.
[20]RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1969. Livro Quarto, Cap. XXVIII, p. 370.
[21] Idem. p. 267.
[22] MORAIS, Luís Fernando Lobão. A função social do lucro – e a sociedade pós-capitalista. São Paulo: Themis, 2010. p. 32.
[23] FEUERBACH, Ludwig. A essência do Cristianismo. 2ª ed., Campinas: Papirus, 1988. p. 30.
[24] Idem. p. 30.
[25] Idem. p. 43.
[26] Idem.
[27] Idem. p. 30.
[28]MARX, Karl. Critique of Hegel’sPhilosophy of right.Part 2, c, d. Disponível em www.marxists.org.
[29] Idem.
[30] MILTON, John. Artis logicae. In The works of John Milton. Nova York: Columbus University Press, 1935. Vol. 2. p. 17.
[31]MORAIS, Luís Fernando Lobão. A hipótese de Darwin - a compatibilidade entre Deus e a evolução. São Paulo: Themis, 2008. p. 11, 13.
[32]HOBBES, Thomas. De cive. Cap. 14, 4. Disponível em: https://archive.org/details/deciveorcitizen00inhobb.
[33] Idem. Cap. 14, 10.
[34] MORAIS, Luís Fernando Lobão. Liberdade e direito – uma reflexão a partir da obra de Goffredo Telles Júnior. Campinas: Copola, 2000. p. 374-375.
[35] HOBBES, Thomas. Ob. cit. Cap. 14, 10.
[36] Idem.
[37] MORAIS, Luís Fernando Lobão. Ob. cit. p. 375.
[38] Idem.
[39] Idem. p. 379-380.
[40] Idem. p. 377.
[41] HUME, David. Treatise of human nature. Oxford: Oxford University Press, 2000. Livro III, 1, seção 1.
[42] Idem.
[43] Idem. p. 78-79.
[44] REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002. Parte II, Título X, Cap. XXXVIII, p. 597.
[45] Idem. p. 79.