sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Filosofia e Direito (12): Legalismo e Positivismo

Hans Kelsen
É comum os estudiosos reduzirem a multiplicidade de opiniões sobre os grandes temas da História a certo número de correntes que expressam pontos de convergência entre os pensadores. Embora essa redução facilite a compreensão das discussões ocorridas, ainda assim, o número de escolas permanece elevado, o que impede que a perplexidade do observador ante tanta variação e divergência se dissipe. 
Para sanar esse problema de cognição, é possível agrupar as próprias correntes de opinião em um número ainda mais reduzido de posições básicas, que tenho denominado metavisões do real. Metavisões são pontos nos quais convergem não apenas os pensadores individualmente considerados, mas também as escolas de pensamento. É possível propor que, no tocante à ideia básica de direito, as escolas de pensamento e opinião congregam-se nos campos fundamentais do direito natural e do positivismo.
Norberto Bobbio
Norberto Bobbio expressou convicção análoga, muito antes de mim, em seu livro O positivismo jurídico, em que lemos que “toda a tradição do pensamento jurídico ocidental é dominada pela distinção entre ‘direito positivo’ e ’direito natural’, distinção que, quanto ao conteúdo conceitual, já se encontra no pensamento grego e latino; o uso da expressão ‘direito positivo’ é, entretanto, relativamente recente, de vez que se encontra apenas nos textos latinos medievais” (BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. São Paulo: Ícone, 1999. p. 15). 
O mesmo se pode afirmar de Alexy, para quem "o problema central no debate acerca do conceito de direito é a relação entre lei e moral. Em que pese a discussão sobre esses temas estender-se por mais de dois milênios, continuam a existir só duas posições básicas e concorrentes sobre eles: a posição positivista e a não positivista" (ALEXY, Robert. The argument from injustice – a reply to legal positivism. New York: Oxford, 2002. p. 3).
Devo advertir, no entanto, que nem sempre essas duas posições filosóficas foram claramente formuladas ou gozaram de prestígio comparável. Na Antiguidade e na Idade Média, os jurisconsultos e filósofos do direito de maior nomeada entenderam o direito pelo ângulo da lei natural mais frequentemente do que sob o ponto de vista de qualquer das suas fontes históricas. É o que encontramos nos filósofos estoicos, em Cícero, nos jurisconsultos romanos, em filósofos patrísticos como Lactâncio e Santo Agostinho e num extenso rol de autores medievais. Nenhum desses pensadores que, juntos, lançaram as bases de compreensão do direito antigo e medieval identificou o direito definitivamente com a palavra do rei, a lei, o costume ou qualquer outra fonte particular de normas. Preferiram, ao contrário, fazê-lo coincidir com algo presente na lei, no costume e nas outras fontes, mas que não se reduz a elas. E, a esse objeto essencial do direito, os pensadores citados atribuíram nomes como justo por natureza e recta ratio.
Pode parecer que Aristóteles colocou as duas concepções no mesmo patamar, ao reconhecer tanto o justo por natureza como aquele que se estabelece por convenção. Porém, sua explanação da justiça permite entender que não as situava no mesmo plano, antes propunha que o justo por natureza é mais determinante para a configuração geral do direito que o que se constitui por convenção. Na Ética a Nicômaco, lemos:
"Uma parte da justiça política é natural, e outra parte, legal. Natural é a parte da justiça que tem a mesma força em todo lugar e que não existe em razão de as pessoas pensarem isso ou aquilo; legal é aquela que, originalmente, é considerada indiferente, mas, uma vez promulgada, deixa de o ser, por exemplo o resgate de um prisioneiro por uma mina ou a oferta de um bode e não de duas ovelhas em sacrifício” (ARISTÓTELES. Nicomachean Ethics. Book V, Chapter 7. 2ª ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 8, p. 382).
Bobbio parece exagerar a importância relativa do direito natural e do positivo, na Antiguidade, no trecho em que afirma que “na época clássica o direito natural não era considerado superior ao positivo: de fato o direito natural era concebido como ‘direito comum’ (koinós nómos conforme o designa Aristóteles) e o positivo como direito especial ou particular de uma dada civitas; assim, baseando-se no princípio pelo qual o direito particular prevalece sobre o geral (‘lex specialis derogat generali’), o direito positivo prevalecia sobre o natural sempre que entre ambos ocorresse um conflito (basta lembrar o caso da Antígona, em que o direito positivo – o decreto de Creonte – prevalece sobre o direito natural – o ‘direito não escrito’ posto pelos próprios deuses, a quem a protagonista da tragédia apela” (BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 25).
Tenho dúvidas sobre esse ponto da reflexão de Bobbio. Cícero não recolheu incorretamente o pensamento grego, nem o modificou, ao definir o direito como “razão suprema, ínsita na natureza, que manda o que se deve fazer e proíbe o contrário” (CÍCERO, Marco Túlio. De legibus. I, 16-17). Sua definição permite ver que o direito, nos autores gregos e romanos, não coincide com suas fontes na sua integralidade, posto que não se pode voltar contra a essência racional que as permeia. No caso de Antígona, o decreto de Creonte citado por Bobbio não se podia voltar contra o preceito que manda prestar honra aos mortos, pois esse princípio informava todo o direito grego. Portanto, ainda que reconhecessem os dois sentidos básicos do direito (natural e positivo), os antigos não lhes atribuíam o mesmo peso.
Lex specialis derogat generalis, acrescenta Bobbio, a fim de justificar a preponderância do direito positivo. Mas não há evidência de que o brocardo latino tenha sido formulado ou o seu conteúdo, reconhecido na época de Sófocles ou de Aristóteles. Tampouco o conflito de Antígona ecoa a concepção defendida por Bobbio de que o direito positivo prevalece sobre o natural, quando entre eles se estabelece um conflito. Nem mesmo em questões políticas, está claro que os gregos simplificassem as coisas a esse ponto. Por isso, o conteúdo do adágio romano citado por Bobbio só podia ser nebulosamente concebido, em tempos tão recuados. Mesmo na fase áurea do Direito Romano, a palavra lex indicava “uma deliberação de vontade com efeitos obrigatórios. Fala-se neste sentido em leges privatae, como cláusula de um contrato (lex venditionis, lex comissória), o estatuto de uma sociedade (lex collegii)” (CORREIA, Alexandre e SCIASCIA, Gaetano. Manual de Direito Romano. 4ª ed., São Paulo: Saraiva, 1961. Vol. I, p. 23). Nem para os próprios romanos, portanto, a derrogação da lei geral pela especial era, na maior parte das vezes, um epifenômeno do encontro entre o que chamamos leis, mas do encontro de cláusulas.
Mesmo assim, a dicotomia direito natural – direito positivo há de ser reconhecida como fato, tanto entre os gregos como entre os romanos. O que confirma que os dois modos de conceber o direito surgiram muito cedo e influenciaram toda a formação do pensamento jurídico.
É possível fornecer uma explicação sucinta das duas concepções básicas do direito. O ponto essencial da recta ratio (reta razão) consiste em não se confundir com as fontes históricas por meio das quais o direito se manifesta, mas as anteceder. A concepção positivista, por sua vez, identifica o direito inteiramente com suas fontes ou, ao menos, com uma delas. Sob essa concepção, uma ou mais fontes do direito (a palavra do rei, o costume, a lei etc.) são consideradas irrestritamente jurídicas. Por isso, não podem ser afastadas por outras fontes ou por métodos lógicos.
Assim, o positivismo é identificado não apenas com as suas versões modernas, mas também com a tendência muito mais antiga de emprestar validade rígida ou absoluta a uma ou mais fontes do direito e a conceber a própria justiça a partir delas. Exemplos dessa concepção jurídica, na Antiguidade, são os regimes tirânicos, nos quais os decretos dos reis tinham força absoluta, e os legalistas, como aquele implantado em Israel entre os séculos II a. C. e I d. C., no tocante às questões religiosas. É possível apontar como modelo do legalismo judaico antigo o indivíduo fariseu.
Característica da concepção positivista da Antiguidade era não se colocar em oposição absoluta, mas apenas relativa com o direito natural. Praticamente todas as vezes em que uma fonte do direito adquiriu enorme prestígio num povo culto, a tendência positivista se fortaleceu, sem que a ideia de direito natural fosse afastada.
Só nos tempos modernos, a concepção positivista radicalizou-se a ponto de elidir o jusnaturalismo. Bobbio observa que “o positivismo jurídico é uma concepção do direito que nasce quando ‘direito positivo’ e ‘direito natural’ não mais são considerados direito no mesmo sentido, mas o direito positivo passa a ser considerado como direito em sentido próprio [...] A partir deste momento o acréscimo do adjetivo ‘positivo’ ao termo ‘direito’ torna-se um pleonasmo mesmo porque, se quisermos usar uma fórmula sintética, o positivismo jurídico é aquela doutrina segundo a qual não existe outro direito senão o positivo” (BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 26).
Essa pretensão não está presente apenas em autores continentais, como Bobbio e Kelsen, e nos positivistas ingleses, de Austin a Raz. Ela é, portanto, a novidade específica do positivismo atual, aquilo que o diferencia das outras modalidades dessa metavisão. Geralmente se funda em motivos lógicos, como a crítica de David Hume à derivação de proposições do dever-ser a partir do conhecimento do ser. De acordo com Hume, esses dois conhecimentos são estruturalmente distintos, o que impede a derivação de um a partir do outro.
A denúncia de Hume deu origem à noção de "falácia naturalista", à qual Bobbio se refere como o procedimento consistente em "extrair da constatação de uma certa realidade (o que é um juízo de fato) uma regra de conduta (que implica num juízo de valor)" (idem. p. 177). Todavia, embora a acusação de falácia contenha uma ressalva importante, fico a considerar se não é, ela própria, falaciosa, uma vez que a recta ratio em que o direito natural se funda não o situa no plano da natureza, mas no da razão. O fato de as normas desse direito serem derivadas de juízos de fato nada mais é do que corolário de uma lei necessária que rege o funcionamento da razão humana e, portanto, se aplica tanto ao jusnaturalismo como ao positivismo. Ou as normas básicas do ordenamento jurídico não são concebidas e postas a partir da observação do que é?
Não só isso. É possível inverter a situação e tecer restrições lógicas à parte do positivismo contemporâneo que adota a doutrina de Kelsen. Vimos que, assim como o jusnaturalismo foi fecundado pela filosofia de Kant, o mesmo aconteceu com Kelsen e seus seguidores. Porém, Goffedo afirmou que a Teoria Pura do Direito, de Kelsen, parece repousar num equívoco lógico apontado nos seguintes termos:
“[Para Kelsen], o dever-ser constitui uma categoria formal para o conhecimento do material jurídico. Kelsen o declara com precisão, quando afirma que essa categoria é gnosiológico-transcendental, no sentido kantiano, e não metafísico-transcendente [...] Ora, para a Teoria Pura, o direito é, antes de tudo, a regulamentação do próprio direito: o direito só é direito em virtude de haver sido criado de acordo com a forma estabelecida pelo próprio direito. Por exemplo: uma sentença é direito porque ‘contém uma norma individual, cuja validade se funda numa lei, cuja validade, por sua vez, assenta na Constituição’” (TELLES JÚNIOR, Goffredo. A criação do direito. São Paulo, 1954. pp. 214, 216).
Nosso autor prossegue: “A norma fundamental exerce, no sistema jurídico da Escola de Viena [a que Kelsen pertenceu], papel análogo ao exercido pelas condições transcendentes ou formas puras [especialmente as categorias], na filosofia de Kant". “Em que se fundou a Escola de Viena para atribuir à norma a qualidade de categoria? A resposta é imediata: fundou-se na conclusão kantiana de que a categoria produz o conhecimento. Para a referida Escola, a norma é o elemento que confere significação jurídica aos fatos, e exerce, relativamente ao conhecimento do direito, a função que as categorias kantianas exercem relativamente ao conhecimento em geral"
"Não creio", continua Goffredo, "que a concessão de tal título à norma de direito exprima rigorosa fidelidade aos princípios kantianos. A norma [fundamental] jamais poderia ser considerada uma categoria, e isto pelo simples fato de que não constitui uma forma a priori do entendimento, pois [...] só pode ser estabelecida a posteriori, isto é, depois da verificação de um fato” (idem. p. 230). E exemplifica: “Se um jurista quiser fundamentar a validade de um sistema normativo republicano, não escolherá uma norma fundamental como a seguinte: ‘deves obedecer ao rei’. Esta proposição não tem nenhum valor para a consecução do fim almejado. A hipótese originária [norma fundamental] que se há de escolher, não depende, portanto, da livre vontade do jurista, uma vez que tal hipótese só pode ser formulada em consideração ao conteúdo do sistema normativo”.
O que só pode ser estabelecido após consulta ao conteúdo do sistema normativo não pode ser a priori. É o caso da norma fundamental de Kelsen. Sofre, assim, fraturas o edifício de uma das mais prestigiosas correntes positivistas contemporâneas, e o faz por falta de sustentação lógica.
Bobbio funda o seu próprio positivismo em outros dados. Funda-o na superação da sociedade medieval pela moderna e, mais especificamente, no fenômeno tipicamente contemporâneo da estatização do direito. Esse fenômeno torna-se visível sob a forma do primado da lei, que teve lugar até mesmo em países, como a Inglaterra, que adotam a tradição do common law: "Nem todos os países formularam a codificação (resultado último e conclusivo da legislação), mas em todos os países ocorreu a supremacia da lei sobre as demais fontes de direito. Isto aconteceu também na Inglaterra" (BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 120). 
A estatização do direito pode ser entendida como corolário da complexificação da vida social. O advento das sociedades de massas, associado à industrialização e à hipertrofia urbana, aumentou o volume e fez surgir novas modalidades de relações sociais, que tiveram de ser disciplinadas por meio de normas jurídicas. Para que essa disciplina não se desse de modo espontâneo, o que significaria dizer caótico, o Estado passou a concentrar o poder de criar e sistematizar as normas jurídicas. Um dos mecanismos mais importantes pelos quais ele o fez foi a codificação. Bobbio sugere que o juspositivismo contemporâneo ou positivismo jurídico propriamente dito é a filosofia que preside o manejo do direito nesse novo contexto social.  
Cabe à ciência, e somente a ela, explicar o direito produzido pelo Estado. Como a ciência lida com objetos definidos e invariáveis de sujeito para sujeito, não é mais possível conceber o direito como uma ratio subjacente às normas, que cada um entende algo diferentemente. Daí o reconhecimento do direito positivo como único direito e a redução do direito natural à condição de direito em sentido impróprio.
O ideal de superação de um pensamento tradicional por outro científico, que o positivismo jurídico conduziu à culminância, na seara do Direito, põe-se, ele próprio, em via de ser superado. Longo e quase inconteste foi o reinado dessa espécie de positivismo durante o século XX. Nas academias de Direito, ele chegou a ser a corrente dominante, até ser amplamente contestado e, em vários lugares, deposto nas últimas décadas. 
Mesmo assim, o normativismo deixou um legado positivo, sob a forma da teoria do ordenamento jurídico desenvolvida pelos seus teóricos, e uma herança negativa, consistente na crítica do direito natural. Essa crítica revelou os seus próprios limites, ao propor a eliminação pura e simples do direito natural, em vez de se combinar com ele, como tinha ocorrido com o antijusnaturalismo anterior. Confiando eliminar um erro, o positivismo excluiu, simplesmente, a doutrina mais utilizada da História para explicar o sentido do direito. E, para dizer o mínimo, nunca tornou claro por que podá-lo pode constituir o caminho mais indicado para levar adiante a reflexão jusfilosófica.
Infelizmente, erros como esses são tão comuns, nos momentos de revolução no conhecimento, quanto pouco reconhecidos. Kelsen é, às vezes, citado como o maior jurista do século XX. Reconheço que tem títulos e obra para isso. Foi, talvez, tão grande para o Direito quanto Kant para a Filosofia. Mas o dito de Aristóteles ainda ressoa: Amicus Plato... Platão é amigo, mas maior amiga é a verdade. Não valerá, ainda, o dito, em tempos, como o atual, em que a vanglória desafiou a verdade?

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Evidências da Criação (7): Os Répteis e o Tempo

A criação dos répteis é narrada nos versículos 24 e 25 de Gênesis 1 nos seguintes termos: “Disse também Deus: Produza a terra seres viventes, conforme a sua espécie: animais domésticos, répteis e animais selváticos, segundo a sua espécie. E assim se fez. E fez Deus os animais selváticos, conforme a sua espécie, e todos os répteis da terra, conforme a sua espécie. E viu Deus que isso era bom”.
Um dos pontos mais importantes para a compreensão desses versos é o sentido da palavra espécie. Não é incomum ela ser entendida como se tivesse sido empregada no plural, porém, no hebraico, a palavra se encontra no singular. Por isso, cada grupo de seres vivos mencionado no texto constitui uma espécie e não várias.
Isso muda bastante a interpretação, em relação à que nos é sugerida pelo emprego da palavra espécies, no plural. Se estivesse escrito que Deus criou os animais domésticos e selvagens conforme as suas espécies, teríamos de entender que ele criou todas as espécies desses grupos. Mas não é isso que está afirmado e sim que Deus criou os animais domésticos segundo a sua espécie, no singular, os selvagens conforme a sua espécie e os répteis, também, de acordo com a sua única espécie.
O significado disso não pode ser outro, a não ser que os animais domésticos formam uma espécie, no sentido bíblico da palavra, os selvagens, uma espécie, e os répteis também uma espécie. Felizmente, não é difícil estabelecer o sentido de cada uma dessas espécies para os judeus, uma vez que só há uma classificação de animais na Bíblia: a de Levítico 11, repetida em Deuteronômio 14:3-21. Não há informação de que os judeus tenham usado qualquer outra classificação além dessa, até muito tempo depois da redação do Novo Testamento.
Em Levítico 11:2-8, um grupo de quadrúpedes é mencionado, que inclui o camelo, o arganaz, a lebre e o porco. O mesmo grupo aparece em Deuteronômio 14:4-8, porém, além desses quatro animais, vários outros são citados: o boi, a ovelha, a cabra, o veado, a gazela, a corça, a cabra montês, o antílope, a ovelha montês e o gamo. Com exceção do arganaz e da lebre, todos os outros são animais com quatro pernas grandes. Essa é a principal característica anatômica do grupo. A outra é o fato de incluir animais que têm a unha fendida e o casco dividido, além dos não plantígrados (que não andam sobre as plantas dos pés).
Alguns animais desse grupo são domesticáveis, outros não. A cabra montês é descrita como não domesticável em Jó 39:1-4. O veado, a gazela, a corça, o antílope e o gamo podem ser mantidos em cativeiro, mas tampouco são domesticáveis. Esses são animais ditos selvagens. O camelo, o boi e o porco, por sua vez, são domesticáveis. Embora não citados, o cão, o gato e outros animais também estão incluídos nesse grupo. Portanto, os quadrúpedes bíblicos incluem tanto os animais domésticos quanto os selvagens de Gênesis 1.
Saltemos os grupos que não nos interessam diretamente, aqui, por não serem mencionados em Gênesis 1, assim como os peixes e os insetos, claramente definidos em Levítico. As aves mencionadas no quinto dia da criação também aparecem em Levítico como um grupo definido. E os répteis são mencionados nos versos 29-30 e 43-44.
Assim, uma classificação completa dos animais é fornecida em Levítico, incluindo um grupo de quadrúpedes (domésticos e selvagens), um de peixes, um de aves, um de insetos e dois de répteis. A base da classificação é o modo de locomoção dos animais: sobre pernas, sobre o ventre, sobre pés, por meio de nadadeiras ou com asas. E, para não restar dúvida de que cada grupo é tido como definido e estanque, cada qual possui um critério de pureza ritual distinto: para os quadrúpedes, o critério é a ruminação, a posse de unhas fendidas e casco dividido e o fato de não ser plantígrado; para os peixes, são as barbatanas e escamas; para as aves é pertencer a um rol definido de espécies consideradas puras; para os insetos, é ter pernas traseiras mais compridas que as dianteiras.
Os grupos de répteis são dois e não um, por motivos, a meu ver, também claros. O primeiro é o fato de nenhum dos animais dos versos 29 e 30 ser artrópode (miriápode, aracnídeo etc.). Os do versículo 42 (“tudo o que anda sobre o ventre, e tudo o que anda sobre quatro pés ou que tem muitos pés”), ao contrário, são basicamente artrópodes. Portanto, do ponto de vista anatômico, há tão boas razões para diferenciar os animais de 29 e 30 dos do versículo 42 quanto há para distingui-los dos quadrúpedes de 2 a 8.
Além disso, os critérios de pureza dos grupos de 11:29-30 e de 11:42 são diferentes. Todos os integrantes do primeiro grupo têm quatro pés, porém a maioria é considerada pura. Só oito espécies são impuras. No segundo grupo, ao contrário, todos os seres de quatro pés ou que têm muitos pés (miriápodes) são impuros. Por exclusão, só os que têm seis pés (hexápodes) são considerados puros. Esses critérios tão bem diferenciados de pureza confirmam que tratamos de grupos distintos.
Ambos os grupos de répteis são mencionados em Gênesis 8:19, que afirma que “todos os animais, todos os répteis, todas as aves e tudo o que se move sobre a terra” saíram da arca de Noé. O grupo de Levítico 11:29-30 são "todos os répteis" mencionados em Gênesis 8:19; o de Levítico 11:42-43 é o composto por “tudo o que se move sobre a terra”. De sorte que não há dúvida que a Bíblia e Gênesis, em particular, referem-se a dois grupos de répteis e não somente a um.
No entanto, Gênesis 1:25 afirma que Deus fez “todos os répteis da terra, conforme a sua espécie”. O termo espécie, no singular, significa que apenas um dos grupos de répteis de Levítico 11 e de Gênesis 8:19 foi criado no sexto dia. De novo, há pouca dúvida de que o grupo foi aquele do qual os artrópodes estão excluídos, já que, no quarto dia, Deus criou os luzeiros a fim de servirem “para sinais e para estações”. Plantas não se orientam por sinais emitidos por corpos celestes. Portanto, a referência deve ser a algum animal terrestre. Como os marinhos do quinto dia e os terrestres do sexto ainda não tinham sido produzidos, restam os artrópodes, aos quais a referência aos sinais e às estações parece ter sido feita. Portanto, eles já deviam existir no quarto dia.
Por esses motivos, podemos concluir que apenas os seres do grupo dos répteis superiores de Levítico 11:29-30 foram feitos no sexto dia. De todos os pontos da teoria da criação que tenho defendido na presente série, este é um dos mais decisivos, pois alude a um número muito grande de formas de vida ("todos os répteis").
Com base na diferença entre os verbos criar (em hebraico, bara) e fazer (asah), que discutimos em outro texto, sabemos que os seres criados não haviam existido antes, ao passo que os que foram feitos em Gênesis 1, na verdade, foram recriados. Um dos motivos desse entendimento é o fato de Gênesis 1:1-2:4 ter sido escrito com o propósito de contar a história das origens, o que está manifesto não só na narrativa dos sete dias como no versículo final da passagem, que afirma expressamente: “Esta é a gênese dos céus e da terra” (Gn 2:4).
Como a opção do autor sagrado foi narrar as origens por uma sequência de dias, estamos diante de duas e somente duas alternativas: se não admitirmos que houve recriação, mas apenas criação, os dias narrarão uma só sequência de atos divinos; porém, se reconhecermos como válida a interpretação de que houve uma criação original e uma recriação, teremos duas séries de atos originadores e não uma só.  Nesse último caso, os dias serão aplicados em sequência tanto à criação original quanto à recriação, com a única exceção do quinto e da última parte do sexto dias, durante os quais Deus criou seres antes inexistentes.
Assim, a diferença entre criar e fazer é o critério que nos permite compor a sequência em que a criação original se deu. Essa sequência é constituída pelos quatro primeiros dias e pela primeira parte do sexto. Quando a comparamos com a série de origens que a ciência descobriu, temos a seguinte situação:

Texto Bíblico
Origem dos Mesmos Itens Segundo a Ciência
1º dia (origem da luz)
4,5 a 3,9 bilhões de anos atrás
2º dia (origem da atmosfera, das nuvens e do oceano)
3,9 a 3,5 bilhões de anos atrás
3º dia (origem da crosta terrestre, das ervas e árvores frutíferas)
3,5 bilhões a 360 milhões de anos atrás
4º dia (origem dos luzeiros - desanuviamento da atmosfera)
360 milhões de anos atrás
1ª parte do 6º dia (origem dos animais terrestres)
360 milhões a 50 milhões de anos atrás

Como mostrei detalhadamente em A hipótese de Darwin, a tabela acima recorda que, de acordo com os dados científicos disponíveis, os itens da criação original surgiram na exata sequência dos dias de Gênesis 1. Claro que essa interpretação depende de entendermos os quatro dias e meio como eras, mas essa é uma das traduções possíveis da palavra hebraica yom (dia), o que também demonstrei no meu livro.
É importante recordar, ainda, que a origem dos corpos celestes mencionada na tabela consistiu no desanuviamento da atmosfera, após a colisão de um meteorito com a Terra, há 360 milhões de anos. A colisão foi com-provada pela descoberta, em 2013, de uma gigantesca cratera na bacia de East Warburton, no sul da Austrália, com nada menos que 10 a 20 km de diâmetro. O cientista Andrew Glikson, da Universidade Nacional da Austrália, declarou que a queda desse asteroide provocou um "impacto regional e mundial" (GLIKSON, Andrew. UOL News. 20/02/2013, 19h32)
Esse evento cataclísmico marca o momento em que a obra do quarto dia ocorreu. O período dos répteis começou não muito depois, do ponto de vista da escala geológica de tempo. Assim, além dos itens cuja origem está mencionada na tabela (luz, atmosfera etc.), temos de situar a criação de "todos os répteis" entre 360 milhões e 50 milhões.
Felizmente, a época da origem desse grande número de formas de vida pode ser obtida na Wikipedia. De 123 famílias de animais com as características dos répteis de Gênesis 1:24-25 e Levítico 11:29-30 que pude pesquisar nessa fonte, 92 se originaram entre 360 e 50 milhões de anos atrás, somente cinco surgiram depois, nenhuma antes. Sobre 26 famílias não são fornecidas informações.
Isso significa que temos 92 outras localizações corretas de grupos de seres vivos, além das compreendidas na tabela. Para formarmos uma noção, ainda que grosseira, do que isso significa, basta considerarmos quantas combinações desses 92 itens com os demais mencionados nos quatro dias e meio são possíveis. O link http://matematica2.no.sapo.pt/ 12ano/Matemilhoes2.htm nos ajuda a estimar esse número, pois calcula quantas combinações de apostas a partir dos 49 números da loteria conhecida como Totoloto são possíveis. A resposta é 13.983.816.
O cálculo é simples. Para ganhar no Totoloto, um apostador precisa acertar a combinação de seis dos 49 números incluídos no sorteio. Não é necessário acrescentar que a chance de alguém acertar a combinação “certa” é quase zero, pois, do contrário, a loteria não existiria por absoluta falta de meios para pagar os prêmios.
Que dizer das /92 famílias de seres vivos localizadas corretamente em Gênesis 1? Na realidade, a escolha dos grupos de seres vivos que compõem a sequência bíblica é muito mais improvável do que a dos números da loteria, já que 92 não é o número de opções das quais devemos escolher as que integrarão a sequência de seres vivos. As 92 famílias de répteis estão para a sequência bíblica como os seis números sorteados estão para a Totoloto. Portanto, o número de opções das quais devemos retirar as 92 famílias é muito maior. Ele é igual ao número total de famílias de seres vivos que o homem antigo conhecia. Portanto, além das 92 famílias de répteis, precisamos considerar as de plantas, de árvores, de peixes, de artrópodes etc. que eram do conhecimento do homem antigo.
O número de famílias desses outros grupos é muito maior que o de répteis, o que aumenta a dificuldade de acertar a sequência correta de itens. Se a sequência correta contém 92 itens (na verdade, tem mais de 100, pois inclui também os seres inanimados), o universo do qual elas foram retiradas é muito maior. Certamente, inclui milhares de combinações diferentes de famílias de seres vivos que podiam ter sido mencionadas em lugar da que encontramos no texto bíblico. 
Quantas formas de peixes diferentes, quantos insetos, quantos artrópodes os antigos conheciam? A verdade é que não sabemos. Porém sabemos que eram muitíssimas. Quantos peixes, insetos e outros artrópodes conhecia Aristóteles, que escreveu uma História dos animais com centenas de páginas, em que se refere um sem-número de seres vivos? Quando menciona “todos os répteis” e outros grupos de animais, a Bíblia não parte de um conhecimento muito inferior ao de Aristóteles, por um motivo simples: a necessidade de separar animais limpos de impuros foi levada a tal ponto, em Israel, que os judeus foram constrangidos a criar uma classificação extremamente abrangente e rigorosa dos animais para os padrões da Antiguidade.
Esse é um ponto importantíssimo. Sabemos por incontáveis testemunhos históricos que a necessidade de separar animais puros de impuros deixou de ser apenas religiosa para se tornar uma das bases da convivência social em Israel. Por isso, os judeus criaram a ampla classificação de animais puros e impuros que encontramos em Levítico e Deuteronômio e que é repetida, com certa rigidez, ao longo de toda a Bíblia. É fundamental perceber que o único modo de um judeu decidir se um animal era puro ou impuro era criar uma classificação abrangente como eles fizeram. Por isso, por volta da época do Exílio babilônico, quando os judeus foram expostos a uma alimentação diferente daquela a que estavam habituados, deixou de ser concebível que a tábua de seres vivos da sua Lei não incluísse, ao menos, alguns milhares de animais. 
Assim, somos forçados concluir que, quando Gênesis 1 se refere aos grandes grupos de seres vivos, tais como ervas, árvores, aves e quadrúpedes, sem a palavra todos(as), a origem dos próprios grupos é mencionada. Porém, quando o versículo 25 alude a todos os répteis, algo diferente é implicado. A alusão não é ao grupo geral dos répteis, ou seja, à primeira espécie dele que veio a existir, mas a todas as espécies de seres compreendidas no grupo. Isso faz uma grande diferença, pois adiciona centenas e não apenas uma forma de vida à sequência bíblica.
Por tudo isso, o mais importante para entendermos as chances de menção da sequência correta de origens não é o número de seres vivos citados, efetivamente, em Gênesis 1, mas o número de seres conhecidos pelos antigos judeus. Só esse número permite termos uma ideia realista do grau de dificuldade envolvido em compor as sequências da criação e da recriação. É espantoso que esse número não seja 49, nem 92, mas milhares! E que desse número tenhamos de retirar não apenas um que foi colocado na posição correta da sequência de origens, mas 92!
Não é fácil entender corretamente o paralelo entre a sequência de origens de Gênesis e o Totoloto. Como a estrutura da sequência não é composta só pelos répteis do sexto dia, mas por todos os itens que se originaram nos outros dias, colocar um grupo de répteis no lugar correto dessa se-quência corresponde a acertar a Totoloto uma vez. Logo, colocar os 92 grupos nos lugares certos equivale a acertar 92 vezes consecutivas. Sem esquecer, é claro, que a Totoloto sorteia 6 números dentre 49, ao passo que os 92 grupos de répteis foram escolhidos dentre centenas ou mesmo milhares.
Sentemos e arrazoemos com toda calma: quantas combinações de centenas ou milhares de números inteiros são possíveis? Podemos até calcular, mas será debalde: não temos a menor noção da diferença entre um simples milhão e esse número desafiadoramente elevado. As ordens de grande-za envolvidas são tais que não somos capazes de compreender qual é, exatamente, a magnitude do acerto na escolha sequência de origens em Gênesis 1.
Terminamos? Ainda não. Temos de considerar ainda outras coisas que fazem aumentar o número de combinações possíveis de itens criados e feitos. Os resultados dos sorteios da Totoloto ou da Megasena são considerados apenas enquanto conjuntos de números. A tarefa de escolher a sequência certa de origens é muito mais complexa. Na verdade, é infinitamente mais complexa, pois, além de escolher os itens certos dentre milhares de outros, é preciso localizá-los numa estrutura de tempo, já que os seres vivos não foram criados em uma semana, nem em um mês. Não será de proveito algum colocarmos a sequência certa nos lugares errados da linha do tempo. Somente a sequência certa nos lugares certos será de proveito.
Dirão que a sequência bíblica não é datada. Que a Bíblia se limita a colocar os itens criados uns após os outros, sem localizá-los aqui ou ali no tempo. Acrescentarão que só a sequência científica é datada. Concordarei em parte. A sequência científica é realmente datada, mas em lugar ne-nhum de Gênesis está escrito que a bíblica é atemporal. Mais do que isso: a implicação é de que ela se ajusta à linha do tempo de uma só maneira dentre infinitas possíveis.
Quero dizer que a mesma sequência pode ser vista diferentemente, conforme a estiquemos mais ou menos na linha do tempo. De quantas maneiras distintas podemos enxergá-la? Sob quantas variações cronológicas podemos concebê-la? De infinitas maneiras e sob infinitas variações, já que o tempo e os números são infinitos. No entanto, a pretensão do texto bíblico não é afirmar que qualquer uma das infinitas maneiras e das infinitas variações da sequência no tempo é a verdadeira. A pretensão é afirmar que uma só maneira e uma só variação é a correta.
Isso implica que, à medida que um único fato (por exemplo, a origem dos oceanos) for identificado com um acontecimento específico na linha do tempo, a localização de cada um dos outros ficará fixada, necessariamente, antes ou depois dele. Esse método não nos leva a qualquer distribuição da sequência bíblica no tempo. Leva-nos a uma localização específica. Assim, quanto mais identificarmos os enunciados de Gênesis com fatos da História Cósmica, mais rígida a sequência ficará, no tocante ao seu significado crono-lógico. Como o tempo é infinito, a escolha da sequência certa de origens tende, desse modo, a se identificar com um número dentre infinitos outros.
Essa me parece a maneira mais correta de ex-trair o significado da sequência de origens de Gênesis. Façamos, porém, uma concessão a mais ao ceticismo. Digamos não estar claro se a sequência correta de origens foi sacada dentre infinitas outras possíveis, mas que essa é apenas uma hipótese. Ficamos, assim, com duas maneiras de estimar a dimensão do acerto da sequência correta. Uma maneira consiste em considerar que ela dispõe uma centena de itens dentre milhares de outros que poderiam ter sido citados, já que os judeus conheciam milhares de grupos de seres vivos. O número de combinações de milhares de itens é altíssimo, porém finito. Por outro lado, podemos considerar que a intenção de colocar cada ato de criação em paralelo com um evento cósmico permite entender que, ao realizar os paralelos corretamente, a sequência distribui os itens numa seção cada vez mais restrita do tempo infinito. Com isso, a chance de composição da sequência correta por acaso deve ser avaliada como um sobre um número infinito.
Que diferença faz, para uma ciência não alienada da práxis, um número entre milhões de milhões de outros e um número entre infinitos outros? As chances de escolha casual dos dois números não são iguais para todos os fins relevantes à existência do homem na Terra? E o uso que aqui fizemos da empiria aliada à matemática, para demonstrar as duas probabilidades, não é um método válido de demonstração científica? Por que não poderíamos chegar, por esse método, a estabelecer um fato?
Que é um fato? A criação é um fato? E a evolução? Em A hipótese de Darwin, admiti que ela o é e que a criação foi considerada por Darwin uma hipótese. Não é o caso de considerarmos que a hipótese foi confirmada?
No século IV d. C, Hilário de Poitiers expressou a diferença não apenas lógica, mas existencial que existe entre acreditar que o mundo é obra do acaso e que ele foi criado por Deus: "Não seria digno de Deus fazer participar do conselho e da prudência [isto é, atribuir dotes racionais], nesta vida, o homem [...] de tal sorte que aquele que não existia apenas seria trazido a este mundo para deixar de existir. Pelo contrário, deve entender-se que a única razão de ser de nossa criação está em que o que não era começasse a ser, e não em que o que começou a ser deixasse de existir (POITIERS, Hilário de. Tratado sobre a Santíssima Trindade. São Paulo: Paulus, 2005. p. 31).
É possível ignorar tão grande diferença? Ignorar que a descrença produz o incôngruo de um ser que aspira à imortalidade pelos seus dotes racionais existir apenas para deixar de existir? Não é mais racional pensar, com Hilário, que fomos amorosamente criados por Deus para que por ele tenhamos acesso à imortalidade?