domingo, 24 de março de 2013

O Processo de Cristo



DESCRISTIANIZAÇÃO

Jesus tornou-se pessoalmente conhecido das autoridades romanas, quando foi acusado pelos judeus que o prenderam. Coube a Pilatos, então, formular a pergunta que os séculos tanto repetiriam: quem foi Jesus?
A pergunta voltou a ressoar, de maneira particularmente intensa, nos dois últimos séculos, quando a investigação da figura histórica de Jesus deflagrou uma revolução tão ampla quanto a produzida pela investigação cristológica nos primeiros séculos. Naqueles tempos, a consciência teológica sobre a figura de Jesus levou à substituição da cultura grecorromana pela cristã; a partir do décimo-nono século, quando os estudos históricos sobre Jesus se intensificaram, uma segunda reviravolta se preparou, com sentido contrário à primeira. Ainda vivemos essa última revolução, a saber: a descristianização do mundo.
Descristianização não significa que Jesus tenha passado a ser menos importante do que antes. Pelo contrário, o fortalecimento da consciência sobre a sua figura é que tem desencadeado as transformações atuais. No entanto, a figura histórica recentemente plasmada de Jesus como homem comum eclipsou a do Cristo enviado por Deus ao mundo a fim de salvá-lo. Nesse sentido, descristianização é a substituição do Cristo por Jesus, principalmente pelo Jesus histórico, como a ciência humana o representa por meio do método crítico.
A Páscoa é uma rara oportunidade senão para revermos todas as questões, sobre o Jesus descristianizado, pelo menos para refletirmos mais acuradamente sobre os momentos finais da sua vida terrena. Tratarei a seguir de três grandes momentos da existência histórica de Jesus: os julgamentos perante o Sinédrio e Pilatos, a crucificação e a ressurreição. A abordagem peculiar que distinguirá os artigos será a da crítica da descristianização.

Em Tratado de ateologia, o filósofo francês Michel Onfray, também autor de uma Contra-História da Filosofia, defendeu, simplesmente, que Jesus não existiu. Essa posição mostra como um movimento crítico iniciado por impulsos racionais pode conduzir, perigosamente, à irracionalidade histórica. Da Contra-História em Filosofia Onfray transita, com facilidade, à anti-história teológica. Por mais que autores respeitáveis como Hitchens, Avalos, Humphreys e Doherty tenham externado pareceres semelhantes ao de Onfray, o despropósito representado pela opinião de que Jesus não existiu faz-nos sentir um cheiro inequívoco de passado exalado por ideologias semelhantes à que vigorou na antiga União Soviética.
Um dos maiores especialistas no Jesus histórico do nosso tempo, Bart D. Ehrman, publicou, em 2012, um livro para reafirmar a existência de Jesus (EHRMAN, Bart D. Jesus existiu ou não? Rio de Janeiro: Agir, 2014). O húngaro Geza Vermes, por sua vez, afirmou que a morte de Jesus por crime político é o fato mais bem estabelecido sobre a sua vida . Não lhes faltam boas razões em que fundamentar essas posições. Embora os Evangelhos canônicos contenham detalhes divergentes sobre as histórias do ensino e dos milagres de Jesus, quando se trata de narrar a morte na cruz, todos convergem em ampla medida, numa mesma narrativa básica, cujos fatos se dão, aliás, quase sempre, na mesma sequência.
A morte na cruz é o centro dessa sequência, em todas as narrativas. Ela é ainda atestada em Josefo (por quê, se não houve crucificação?), o maior historiador judeu da época, e em Tácito ("Cristo [...] sofreu a pena de morte no reino de Tibério, por sentença do procurador Pôncio Pilatos" - Anais, 15,44,3). O Talmude igualmente a indica ("Na véspera da Páscoa eles suspenderam Jesus" - Talmude Babilônico, Sinédrio, 43a).
É comum historiadores aceitarem como verdadeiro um evento narrado por uma única fonte dotada de credibilidade. Quando duas fontes convergem, o fato é considerado fora do alcance da dúvida razoável. No caso de Jesus, temos pelo menos sete testemunhos de boa qualidade sobre a sua morte. Sabemos, pois, com certeza, que Jesus existiu e foi crucificado pelo poder romano.
No entanto, a pergunta reclama resposta mais satisfatória: quem foi Jesus? Por maiores que sejam as discordâncias entre os estudiosos, é possível responder que Jesus nasceu na Palestina, entre os anos 7 e 4 do primeiro século a. C., com quase tanta certeza quanto a que temos de que ele morreu na cruz. Um exame realmente detido de todas as evidências permite focar o derradeiro quadrimestre desse último ano (4 a. C.) como o tempo da natividade.
O principal problema dessa datação é o fato de o capítulo 2 de Mateus localizar o nascimento do filho de Maria e José, na época de Herodes. O relato informa que a família de Jesus refugiou-se no Egito, quando Herodes resolveu matar as crianças de menos de três anos, para evitar que o nascido rei dos judeus viesse a ocupar o seu trono. Diz o texto bíblico que os pais de Jesus só retornaram de lá, “quando Herodes morreu” (Mateus 2:19).
Vários governantes da época chamaram-se Herodes. Porém, só um deles morreu, no período entre o nascimento de Jesus e a crucificação, como Mateus claramente indica. Esse foi o maior dos Herodes, cuja perícia militar e vocação como construtor foram exaltadas, por Josefo, tanto quanto seus bárbaros crimes foram execrados.
Nos historiadores contemporâneos, a morte de Herodes é geralmente localizada, em março ou abril do ano 4 a. C. Essa é a data fornecida por Michael White, em Scripting Jesus (Prologue). Porém, White faz a sua datação depender de Josefo. Um retorno a essa fonte (Josefo) permite apurar que ela localizou o falecimento de Herodes 37 anos após a sua nomeação pelos romanos (Antiguidades, XVII, 10). A Bíblia de Jerusalém situa a nomeação, no final do ano 40 a. C., embora tenha exercido efetivamente o poder de 37 a. C. em diante (Bíblia de Jerusalém. 5ª impressão, São Paulo: Paulus, 2008. Quadro cronológico, p. 2181). Trinta e sete anos depois de ser nomeado, portanto, Herodes morreu, o que nos remete ao ano 3, não ao ano 4 a. C. Essa conclusão é confirmada ainda por outra informação de Josefo, que afirmou que Herodes morreu 34 anos após ter expulso Antígono da Judeia, o que se passou em 37 a. C. Também se contarmos 34 anos a partir de 37 a. C., chegaremos a 3 a. C.
Claro que, se Herodes tivesse morrido em março-abril do ano 4, e Jesus houvesse nascido no fim daquele ano, a perseguição por Herodes seria um erro histórico. Porém, quando examinamos atentamente Josefo, percebemos que não nos permite a datação mais recuada. Josefo localiza a morte de Herodes, no fim do ano 3 a. C., o que concorda com a fixação da natividade um ano antes.
Tudo o que sabemos sobre a vida de Jesus, antes dos 30 anos, é que ele foi criado num lar especial, até para os padrões de Israel. Ao lermos os Evangelhos com atenção, percebemos que alguns acontecimentos são de tal natureza que só podem ter sido preservados por quem criou o menino Jesus. É o caso da concepção de Jesus e de seu precursor João Batista, do nascimento de ambos, da fuga para o Egito, da infância de Jesus em Nazaré, do seu Bar Mitzvah aos 12 anos e da juventude na Galileia. Como José não é mencionado, após a infância do filho (possivelmente porque falecera), os dados indicam que Maria deve ter sido a principal fonte dos evangelistas para esses fatos.
Mas se serviu de fonte de tantos acontecimentos, é natural que a mãe de Jesus tenha sido consultada, também, sobre outros fatos, inclusive alguns do período ministerial. Somadas às prolíficas citações do Antigo Testamento, que Lucas coloca na boca dela, essas informações permitem-nos traçar o perfil de uma mulher extremamente culta, para os padrões da época. Portanto, o amplo conhecimento do Antigo Testamento que Jesus demonstrou, seu espírito agudo e crítico devem-se, em parte, às características do lar em que foi criado, sob a ação educadora de Maria de Nazaré.
Por outro lado, nenhuma informação sobre a vida de Jesus é tão precisa quanto a que Lucas fornece, nos dois primeiros versículos do capítulo três do seu Evangelho. Diz ele que João Batista começou o seu ministério, pouco antes de Jesus dar início ao seu, no décimo-quinto ano de Tibério César, quando Pilatos era governador da Judeia, Herodes (não o Magno, mas Antipas), da Galileia, Filipe da Itureia e Traconites, Lisânias era tetrarca de Abilene, e Anás e Caifás, Sumos-Sacerdotes em Jerusalém. Por essa época, Jesus tinha cerca de 30 anos (Lucas 3:23).
Para não descermos a demasiados detalhes, Pilatos governou a Judeia entre 26 e 36 d. C. Se nasceu no ano 4 a. C., Jesus completou 30 anos em 27 d. C. Como Alford ensina, no grego do Novo Testamento, a expressão de Lucas 3:23 significa que Jesus tinha entre 30 e 31 anos, quando foi batizado por João. Portanto, ele iniciou o seu ministério em 27 ou 28 d. C. Essa é uma das razões por que não se pode recuar o nascimento muito além do ano 4: se o fizermos, a inauguração ministerial de Jesus ficará fora do período de Pilatos. Assim, o conhecimento que temos sobre o início da vida terrena de Jesus também está longe de ser tão impreciso quanto às vezes é sugerido.
A Crítica Literária e Histórica desenvolvida, nos últimos 200 anos, em geral, afirma que o ministério público de Jesus durou menos de um ano. A principal razão para isso é o fato de os Evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) só mencionarem uma Páscoa. Para a maioria dos especialistas, os sinóticos foram escritos entre 10 e 30 anos antes do último Evangelho (João), que fala de três ou quatro Páscoas. Essa divergência sobre a extensão do ministério público costuma ser resolvida a favor dos sinóticos.
No entanto, os referenciais relevantes para fixarmos a cronologia do ministério não se restringem às festas anuais judaicas e às referências a autoridades públicas. Antes das Críticas Histórica e Literária se desenvolverem, Isaac Newton, o físico, escreveu um esquema cronológico importante sobre as Sagradas Escrituras que, felizmente, se conservou até hoje. O interesse imediato de Newton eram as profecias dos Livros de Daniel e Apocalipse, mas sua obra contém tantas informações cronológicas, do século VI a. C. ao XVIII d. C., que assume interesse bem mais geral. Para inserir os dados dos Evangelhos no seu esquema, Newton utilizou não só as informações sobre as Páscoas e personalidades históricas, mas também fenômenos naturais mencionados nos textos, assim como colheitas, alusões à temperatura etc. Da análise simultânea desses dados evangélicos, ele extraiu a conclusão de que a cronologia completa do ministério é a de João (três anos e meio), que não apenas menciona vários anos como deixa entrever a passagem de um número correspondente de estações, momentos de semeadura, colheita e outras informações que confirmam a sua cronologia. Se os três anos e meio de ministério mencionados em João fossem resultado de um equívoco, dificilmente informações tão concordantes sobre aqueles fatos naturais e humanos seriam fornecidas. Portanto, a cronologia dos sinóticos corresponde a um corte, uma seção da estrutura maior de tempo que João fornece.
Os três anos e meio do ministério levam-nos, pois, a fixar, no ano 32, a Páscoa em que Jesus foi crucificado. Como se vê, estamos longe de desconhecer o que ocorreu, durante o ministério público e quando ele terminou. Embora muitos detalhes permaneçam obscuros, a pregação de Jesus de Nazaré é um dos fatos religiosos melhor conhecidos do período anterior à sua morte. Não é preciso reiterar que o mesmo se dá com a crucificação.

O ministério público de Jesus pode ser dividido em cinco períodos: o primeiro, com duração de seis meses, ocorreu na Galileia; o segundo, de oito meses, se desenvolveu na Judeia, o terceiro consistiu em quatro meses de ensino na Galileia; a quarta etapa (de 15 meses) incluiu os milagres de Marcos-Mateus na Galileia; por fim, a última etapa, também com diversas curas, se deu na Judeia-Pereia e durou nove meses. Os milagres operados na Judeia concentraram-se na segunda etapa; os da Galileia, na quarta. Nos demais períodos, o ministério de Jesus centrou-se no ensino e não em milagres.
Josefo nos fala de três ou quatro grupos principais existentes, em Israel, naquela época: os saduceus, que eram os líderes da nação e do Templo; os fariseus eram o grupo religioso de maior sucesso que, ao contrário dos saduceus, aceitava uma lei escrita e outra oral; os essênios formavam uma comunidade isolada, ao redor do Mar Morto; e os zelotes, que eram revolucionários. Tanto pela composição do cortejo de seus seguidores como pelas suas falas, Jesus não pertenceu a qualquer desses grupos. Suas crenças e ensinos são uma mistura de convicções variadas: a exemplo dos saduceus, Jesus colocava a lei escrita (o Pentateuco) acima da oral e acreditava na ressurreição, em anjos e espíritos; como os essênios, seu pensamento era marcado por fortes convicções escatológicas. Talvez Jesus tivesse menos pontos de contato com os zelotes. Mesmo assim, possuía discípulos dessa seita e não desconsiderava a importância da restauração do reino a Israel (At 1:6).
A vinda do reino de Deus e a ressurreição dos mortos diferenciam a pregação de Jesus de tudo o que se contém no Antigo Testamento. Por meio delas, Jesus pregou uma terminação das modalidades de vida religiosa que os judeus haviam experimentado até então. Ele também pôs fim às obrigações decorrentes de todos os tratos de Deus com os homens, em épocas anteriores, e instituiu uma nova aliança, para os que nele creem. Essa aliança é representada pela Última Ceia e está baseada no sangue e no corpo de Jesus; portanto, na sua morte.
Contudo, a confirmação do ensinamento do mestre da Galileia e o sentido particular, que os apóstolos atribuíram à fé em Jesus, estão associados à ressurreição. Assim como narram a crucificação, os quatro Evangelhos também testificam, unanimemente, a ressurreição de Jesus.
Não é possível abordar, aqui, todos os aspectos históricos da ressurreição. Por isso, farei referência a um só. O versículo 7 do capítulo 20 de João narra que, entre os objetos encontrados no túmulo vazio de Jesus, no domingo da ressurreição, estava um lenço. Gostaria de me deter nesse dado tão frequentemente desprezado, nas apresentações contemporâneas do Jesus histórico.
O Sudário de Turim, réplica medieval dos lençois que envolveram o corpo de Jesus, no sepulcro, é conhecido de praticamente todos os interessados em religião cristã. Um ou mais objetos com pontos de semelhança com ele foram usados, por José de Arimateia e Nicodemos, ao prepararem e depositarem o corpo de Jesus na sepultura. Porém, além dos lençois, aqueles membros do Sinédrio também colocaram um lenço na cabeça do rabi galileu. O autor do Evangelho de João escreveu, sobre o ponto: “Simão Pedro, seguindo-o, chegou e entrou no sepulcro. Ele também viu os lençois, e o lenço que estivera sobre a cabeça de Jesus, e que não estava com os lençois, mas deixado num lugar à parte” (João 20:6-7).
Se considerarmos que o Evangelho de João foi escrito, cerca de 70 anos depois da crucificação, seremos forçados a reconhecer que a posição relativa dos lençois e do lenço, no interior do sepulcro, só pode ter sido recordada por uma testemunha ocular da cena da época. Há muitas razões para alguém inventar um milagre, mas não para inventar algo como a posição apartada dos lençois e do lenço. Nenhum outro evangelista transmitiu essa informação, além do escritor de João. Coincidentemente, o único a falar do lenço foi aquele que se apresentou como testemunha ocular de histórias ministeriais. Pode ser, pois, que o autor de João tenha mencionado o lenço, por ter visto o sepulcro vazio, enquanto os escritores sinóticos não o viram e, por isso, não se referiram àquele pormenor.
Isso permite nos permite pensar na ressurreição como uma hipótese histórica, além de um dado de fé. Propor que a memória desse fato corresponde a algo objetivo não é ainda afirmar a interpretação dos apóstolos a respeito dela, mas já é reconhecer um dado de enorme importância e impacto, na Jerusalém da época.

DEBATES NO TEMPLO

Ao examinarmos o material dos quatro Evangelhos sobre o processo de Cristo com um olhar jurídico, notamos que contém diferentes enfoques dos motivos da crucificação. Um é o modo como os sinóticos explicam esse fato; outra, a maneira de João apresentá-lo. Mateus, Marcos e Lucas não se preocupam em ligar o processo de Cristo a uma orquestração anterior das autoridades; João, ao contrário, mostra que tanto os fariseus como os principais sacerdotes, os escribas e os anciãos quiseram matar Jesus, desde o início do seu ministério, e tramaram acusá-lo perante o Sinédrio ou o procurador romano.
Os debates de Jesus com os judeus, no Templo, nos dias que antecederam a sua prisão, estão registrados nos sinóticos, mas não em João. Na estrutura dos primeiros Evangelhos, isso indica que os debates não só introduzem a prisão que sucederia alguns dias depois como a anunciam e explicam. Isso porque a arte de narrar fatos verdadeiros envolve não apenas os mencionar, mas também explicar. Na arquitetura dos Evangelhos sinóticos, a prisão e o processo contra Jesus ficariam desprovidos de explicação se não houvesse a entrada triunfal, a expulsão dos vendilhões e os debates no Templo. Esses são os fatos que explicam o processo perante Pilatos, do ponto de vista sinótico. Portanto, mais que apontar para as divergências doutrinárias ou o conteúdo do ensinamento de Jesus, eles descrevem a formação do temporal que se avizinhava. Mostra como foram gestadas as acusações que seriam formuladas contra Jesus e o levariam à morte alguns dias depois.
A primeira questão apresentada a Jesus, no Templo, foi a respeito da autoridade com que ele expulsara os vendilhões na véspera. Se a considerarmos à luz das acusações contra Jesus, compreenderemos que a pergunta tinha por foco a identidade dele como o Cristo, assim como a questão do tributo formulada em seguida preparou a acusação de desobediência a Roma. Era Jesus o Messias? Sua autoridade decorria do fato de ser o libertador de Israel? Os líderes judeus queriam conhecer as respostas a essas indagações.
Quando Jesus foi conduzido ao Sinédrio, na noite em que foi preso, os primeiros questionamentos que lhe foram dirigidos tinham o propósito de investigar esse ponto. Foram, portanto, o prolongamento direto e inquisitorial da questão a respeito da autoridade proposta no Templo. Sabemos que, ao ouvir tal pergunta, Jesus formulou aos arguidores outra indagação, a propósito de João. Perguntou-lhes se o batismo deste era do céu ou da terra, divino ou humano? Como ninguém respondeu tal pergunta, ele declarou que tampouco daria resposta à inquietação dos judeus sobre a sua autoridade. Com isso, como de costume, evitou afirmar publicamente que era o Cristo. Dias mais tarde, ele o evitaria de novo, perante o Sinédrio.
A pergunta sobre a autoridade trai a acusação de messianismo. Mostra que esse ponto particular do libelo contra Jesus já estava preparado e que seus acusadores só aguardavam a ocasião mais adequada para apresentá-lo oficialmente. Era, contudo, uma acusação frágil, pois vários candidatos a Messias tinham surgido e ainda surgiriam, no palco da Judeia, sem que tivessem sido ou viessem a ser acusados de crime religioso. Alguém proclamar-se o Messias ou ser proclamado tal não era considerado crime em Israel. Mesmo assim, o questionamento de Jesus foi aberto com a questão a respeito da autoridade. Isso mostra, a meu ver claramente, que os judeus não tinham uma razão mais forte para acusarem Jesus. Não deixa de evidenciar, também, que, à luz dos sinóticos, o processo contra Jesus foi montado do fim para o começo. Seus acusadores partiram do fim colimado (a morte), para alcançar o qual reuniram elementos escassos e desarticulados que, em alguns casos, sequer conduziam àquele resultado.
É provável que os sacerdotes e os outros líderes que formularam a primeira questão fossem fariseus e saduceus. Tudo aponta para essa conclusão. Não foi diferente no tocante ao segundo questionamento a que Jesus foi submetido naquele dia. Em estrita concordância com Marcos, Mateus afirma que esse questionamento foi articulado por fariseus e herodianos. Sabemos que o último termo designa, basicamente, os saduceus alinhados a Roma. Apenas enfatiza a ligação mais direta dessa seita com Herodes do que com César. Portanto, também dessa vez, vemos os fariseus e os saduceus se aliarem, a fim de questionar Jesus.
Repelidos no ponto atinente à autoridade, esses grupos retornaram à carga com a questão do tributo. Perguntaram se era ou não correto pagar tributo a César. De novo, a resposta que Jesus lhes ofereceu não traduz uma escolha tão nítida quanto entre o preto e o branco. Após ter pedido um denário, perguntado de quem era a efígie na face daquela moeda e ouvido que era de César, Jesus mandou darem a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Nem só preto, nem apenas branco, mas preto e branco. A resposta deixou os futuros acusadores admirados com o futuro acusado.
Não é difícil entender o que significava dar a César o que é de César, no contexto daquela pergunta. Significava pagar tributos. Mas e dar a Deus o que é de Deus? Nada tinha sido indagado a Jesus a esse respeito. Mesmo assim, a intenção implícita da resposta pode ser inferida, a partir da pergunta anterior, que permanecera aberta, pois não tinha sido respondida. Se Jesus era o Cristo, dar a Deus o que é de Deus provavelmente significava reconhecer que ele não viera por si ou em seu próprio nome, mas fora enviado por Deus. Dar a Deus o que é de Deus, nesse contexto, era reconhecer a missão messiânica de Jesus.
No entanto, ao responder a segunda questão, tanto quanto ao dar resposta à primeira, Jesus não declarou ser o Cristo. E, ainda que o tivesse afirmado, ele não poderia ser acusado de crime, pois o messianismo não era propriamente ilegal. Vemos que, todo o tempo, Jesus se manteve dentro de uma margem de segurança, em relação às afirmações que poderiam ser usadas para imputar-lhe crimes.
Não foi diferente com o mandamento de dar a César o que é de César. Também nesse ponto, a resposta de Jesus repeliu a pretensão dos questionadores de virem a acusá-lo de desobediência política. Nem os fariseus nacionalistas, nem os herodianos pró-Roma podiam encontrar em tal resposta o mais leve motivo para processarem Jesus.
Até aquele momento, os fariseus e os saduceus tinham formulado questões em conluio. A intenção subjacente a essa estratégia era levar Jesus a desagradar fortemente um dos dois partidos e, com isso, minar a possibilidade de ele vir a protegê-lo do complô que se armava. Como o Sinédrio era composto por membros das duas seitas (At 23:6), a falta dos votos de uma delas podia ter as mais sérias consequências. Porém, a atitude de Jesus ante a intenção dos dois grupos mostrou que a sua única preocupação era realizar o propósito de se entregar, a fim de cumprir as profecias segundo as quais o Messias seria perseguido e morto. Para isso, em vez de se opor, ele usou o propósito dos grupos de se colocarem em choque com ele, oferecendo respostas que afrontavam diretamente as doutrinas dos saduceus e proferindo, em seguida, os famosos ais contra os escribas e os fariseus. Isso deixa claro que Jesus serviu-se do propósito de seus questionadores de se colocarem em confronto com ele para levar o litígio a um ponto em que não houvesse retorno, e o processo se tornasse o único caminho possível. 
Mesmo assim, as respostas às duas primeiras questões foram suficientes para que os fariseus e saduceus, que até então tinham agido juntos, mudassem de estratégia e passassem a questionar Jesus separadamente. É o que percebemos na terceira e na quarta perguntas, nas quais os saduceus questionaram Jesus a respeito da ressurreição, e os fariseus, sobre o maior mandamento. 
A primeira dessas indagações foi proposta a partir da instituição judaica conhecida como levirato, de acordo com a qual, se um homem falecesse, deixando mulher e irmãos, o mais velho deveria desposá-la. Se esse irmão morresse também, o seguinte deveria tomá-la por esposa e assim sucessivamente, até o último irmão. Os saduceus vislumbraram nessa implicação bizarra, mas inevitável e legítima do levirato uma refutação da doutrina farisaica da ressurreição: se Deus havia ordenado o matrimônio com a cunhada e mortes sucessivas de irmãos podiam ocorrer, como era possível pensar em ressurreição? A implicação era que, se os mortos ressuscitassem, a mulher pertenceria a todos os irmãos, na vida futura, o que era proibido pela Lei de Moisés.
Os saduceus formularam a questão sobre essa implicação do levirato com uma clareza e uma força argumentativa nunca vistas nos integrantes do seu partido, ao menos nos quatro Evangelhos. Sugeriram que a ressurreição era uma contradição em termos, quando formulada à luz do Pentateuco. Ou o Pentateuco era a palavra de Deus, ou havia ressurreição. As duas coisas não podiam ser verdadeiras ao mesmo tempo.
Jesus discordou deles. E o fez com base num método argumentativo semelhante ao que os fariseus adotavam. Como os saduceus só consideravam sagrada a Torá (Pentateuco), Jesus utilizou uma informação externa a esses cinco livros para fundamentar sua resposta. Afirmou que, na ressurreição, não há homem e mulher, marido e esposa, pois as pessoas se tornam semelhantes aos anjos. Em nenhuma passagem do Pentateuco essa informação havia sido fornecida. Portanto, Jesus procedia como os fariseus, que inovavam, em certos limites, não só a doutrina da Torá, mas também a dos Profetas, a fim de adaptá-las ao tempo.
Invocou ainda a passagem da Torá em que o Senhor diz ser o “Deus de Abraão, Isaque e Jacó”. Acrescentou que ele não é Deus de mortos, mas de vivos. O que significa não só que Abraão, Isaque e Jacó estavam vivos como que haviam ressuscitado. Portanto, o conceito de ressurreição que Jesus utilizou foi um tanto elástico, como elástico era aquele defendido pelos fariseus. Jesus não se referiu, simplesmente, à ressurreição do último dia. Deixou, ao contrário, implícito que, se Deus não o era dos mortos e sim de vivos, Abraão, Isaque e Jacó tinham ressuscitado.
Assim, do cerne da questão política (o pagamento de tributos a César), Jesus e seus indagadores retornaram a um ponto eminentemente doutrinário. Diria que eles retornaram ao próprio cerne desse ponto que, mais que a ressurreição, envolvia as interpretações variantes da Lei por parte dos saduceus e dos fariseus. 
A questão por trás de compreensões tão diversas da Lei era saber onde estava a verdade em matéria de fé. A verdade era o Pentateuco ou os 22 livros das Escrituras? Devia a Torá ser interpretada à risca? Nesse caso, o processo contra Jesus havia de ser conduzido do modo previsto em Deuteronômio 17:2-13. Veremos que os saduceus não agiram de maneira distinta, no processo contra Jesus. Eles se pautaram nas instruções da passagem de Deuteronômio ao examinar, sucessivamente, as acusações de messianismo e blasfêmia formuladas contra Jesus. Ao final, inclinaram-se à condenação, mas não conseguiram votos suficientes para aprovar esse veredito, provavelmente em razão de divergências por parte dos fariseus.
Assim, a brecha entre os dois partidos, no tocante ao rabi galileu, abriu-se durante os debates no Templo. É o que a formulação das duas últimas perguntas separadamente, pelos partidos, sugere. Ela haveria de alargar-se, até o ponto da divergência a respeito da acusação de blasfêmia, que pode não ter prosperado por falta de acordo entre os dois partidos.
As divergências doutrinárias entre as duas seitas emanavam de os fariseus verem a palavra de Deus de modo distinto dos saduceus. Eles a consideravam algo mais flexível e, por assim dizer, relativo a cada época. Pensavam que, em cada momento histórico, as palavras das Escrituras diziam algo um pouco diferente. Esse modo de ver a Bíblia levava os fariseus a se absterem de condenar pessoas acusadas de proferir profecias, fossem elas verdadeiras ou falsas, embora Saulo de Tarso adotasse outro comportamento (At 9:1; 26:10)
À pergunta sobre a ressurreição seguiu-se o questionamento final, movido pelos fariseus, que perguntaram a Jesus qual é o maior mandamento da Lei. Jesus respondeu-lhes: "Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Este é o grande e primeiro mandamento. O segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22:37-39).
Como de costume, Jesus não apenas respondeu o que lhe perguntaram, mas formulou, ele próprio, uma pergunta conexa à dos seus indagadores. Ele disse: “Que pensais vós do Cristo? De quem é filho? Responderam eles: de Davi. Replicou-lhes Jesus: Como, pois, Davi, pelo Espírito, chama-lhe Senhor, dizendo: Disse o Senhor ao meu Senhor: Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos debaixo dos teus pés? Se Davi, pois, lhe chama Senhor, como é ele seu filho?” (Mt 22:42-45).
Com essas palavras, Jesus tornou evidente que, em matéria de perguntas, não menos do que de respostas, ele estava à frente de seus opositores. Estes tinham o objetivo manifesto de o questionar, mas coube a Jesus, não a eles, formular a pergunta final, que permaneceria em todos os corações. Uma vez feito isso, os questionadores não mais retornaram. Ao menos, não o fizeram com novas perguntas. Do questionamento no campo das ideias, eles preferiram passar ao processo.
Assim, a grande pergunta da mais refinada teologia que o mundo conhecera até então não era sobre a ressurreição ou o maior mandamento. À luz das Escrituras, a pergunta das gerações era a respeito do Cristo. Quem é o Cristo? É ele filho ou Senhor de Davi? Jesus não respondeu tal pergunta, como não tinha oferecido resposta à outra a respeito da autoridade. Somente mostrou aos intérpretes criativos, aos fariseus que lhe questionaram, que se tratava de uma pergunta legítima, de uma pergunta que não emanava do texto do Pentateuco, mas de um Salmo em que eles também criam. Portanto, era obrigação dos fariseus formular tal questão.
Quantas coisas estão envolvidas na pergunta final do debate! O Cristo é filho de Davi? A questão pressupõe o conhecimento de quem foi Davi. Sabiam-no os fariseus? A resposta pode parecer óbvia a nós, dois milênios depois. Não era tão óbvia no primeiro século, posto que os fariseus criam numa revelação continuada, que se iniciara com Moisés e prosseguira com os profetas. Eles acreditavam na lei escrita, mas também na oral. Criam na lei, escrita e oral, tanto quanto nos Profetas. Na Lei e nos Profetas, assim como nas glosas da Tradição. Isso tornava a palavra de Deus menos rígida e mais flexível para eles.
Se hoje ainda se ouve a pergunta sobre o que Jesus fez e o que ele falou, os fariseus, no seu tempo, tinham razões para indagar o que Davi fez e falou. Para eles, isso só estava estabelecido em parte. E, se o Cristo era ao mesmo tempo filho e Senhor de Davi, as coisas se embaralhavam ainda mais. Para empregar a expressão de Paulo, esses mistérios permaneciam ocultos dos séculos e das gerações. O véu continuava sobre o rosto dos fariseus, quando liam Moisés e ouviam os Profetas.
As facções em que Israel estava dividido não eram, em si mesmas, fruto de um erro, porém erraram ao considerar os pontos debatidos no Templo. Foi o que Jesus procurou mostrar-lhes, em Mateus 21-22, Marcos 11-12 e Lucas 20. Porém, a favor dos partidos judeus, pode ser afirmado que erraram ao tentar acertar. Erraram ao julgar, não por terem julgado. Isso nunca constituiu um erro. Buscar a verdade com o rigor de um processo não pode ser equiparado a erro. É antes um grande acerto. Talvez o maior de todos os acertos que uma cultura é capaz de produzir. O equívoco lamentável, o irremediável tropeço, consistiu em terem condenado Jesus, o que, do ponto de vista dos Evangelhos sinóticos, não foi mais do que consequência de terem escolhido respostas erradas aos exatos questionamentos ouvidos no Templo. 

CULPADO OU INOCENTE?

Após a Última Ceia, Jesus retirou-se para o Getsêmani, onde foi preso por uma força militar. Imediatamente à prisão, tiveram início os procedimentos jurídicos contra ele. É preferível falar em dois processos e em dois julgamentos de Jesus: um conduzido pelos judeus, outro pelos romanos.
O Sinédrio foi o primeiro órgão a examinar o rabi que a todos impressionara e a alguns infundira secreto terror. Não era costume daquele tribunal reunir-se à noite, como os Evangelhos informam ter ocorrido no caso de Jesus. Porém, se lermos os textos atentamente, veremos que a reunião noturna está inserida num quadro excepcional, que a justifica. Nos dias que antecederam a sua prisão, Jesus havia sido aclamado rei de Israel e Messias, por uma multidão de seguidores, havia derrubado as mesas dos cambistas e os expulsado do Templo, respondido asperamente aos representantes das principais seitas judaicas e criticado, em termos bastante duros, os escribas e os fariseus, no interior de um Templo apinhado. A situação produzida por esses fatos estava longe de ser normal. O caráter extraordinário dela explica a urgência com que a prisão e o interrogatório noturno foram conduzidos pelo Sinédrio.
Marcos e Mateus informam que Caifás presidiu a sessão noturna em que as acusações contra Jesus foram examinadas. Seus dados concordam com os de Josefo, que afirma que Caifás presidia a Suprema Corte judaica naquela época. Lucas, por sua vez, se refere ao Sumo-Sacerdote, sem declinar-lhe o nome (Lc 22:54). Como ele informa que Anás e Caifás ocuparam o cargo, no início do ministério de Jesus (Lc 3:2) e após a crucificação (Atos 4:6), Paul Winter concluiu que, para Lucas, o Sumo-Sacerdote que interrogou Jesus foi Anás (Sobre o processo de Jesus. Rio de Janeiro: Imago, 1998. Cap. 10).
A opinião suscita dúvidas. É difícil de imaginar que um autor, que relacionou os governantes das diversas partes da Palestina e forneceu os nomes de incontáveis autoridades romanas de alto, médio e baixo escalões, no Livro de Atos, tenha-se equivocado, sobre o Sumo-Sacerdote que presidiu o processo contra Jesus. O nome dessa autoridade era tão conhecido e divulgado, nas comunidades cristãs primitivas, quanto o de Pôncio Pilatos. Portanto, a ideia de que Lucas se equivocou, nesse ponto, não parece verossímil.
O que causou estranheza a Paul Winter foi o fato de Lucas ter-se referido a um ex-Sumo-Sacerdote como se estivesse no cargo. Porém, isso estava de acordo com o costume judeu da época. No Antigo Testamento, o sumo-sacerdócio era vitalício. Com base nesse princípio, os judeus piedosos consideravam que o mais velho integrante vivo da linhagem pontifícia tinha o direito de exercer o cargo de Sumo-Sacerdote. Na época da crucificação, essa pessoa era Anás. Porém, os romanos exigiam a alternância no cargo de Sumo-Sacerdote, razão pela qual Anás deu lugar a Caifás ainda em vida. Daí Lucas mencionar os dois. Assim, a atribuição do sumo-sacerdócio a Anás e Caifás não deve ser considerada um erro histórico, mas decorrência de duas maneiras de ver o sumo-sacerdócio naquele tempo.
Se os judeus tinham uma maneira própria de entender a sucessão no cargo de Sumo-Sacerdote, os romanos nomeavam e destituíam essas autoridades, de tempos em tempos, para dividir o poder entre elas, evitar que o Sumo-Sacerdote parecesse um rei vitalício e dificultar a organização de rebeliões. Na época, o Sumo-Sacerdote nomeado pelos romanos era Caifás. Lucas reconheceu essa segunda maneira de tratar o sumo-sacerdócio, sem desprestigiar a primeira.
Esclarecido isso, nada nos autoriza a considerar que “a casa do sumo sacerdote” mencionada por Lucas (Lc 22:54) fosse distinta da que Mateus denomina “a casa de Caifás, o sumo sacerdote” (Mt 26:57). Marcos menciona o mesmo edifício, diferenciando-o de outro em que se deu a reunião matinal do Sinédrio (Mc 14:53; 15:1). As expressões quase iguais dos dois primeiros demonstram que Lucas, o último a escrever, seguiu Mateus e Marcos, por concordar com eles. Claro que não os teria seguido, nem concordado com eles, se pensasse num Sumo-Sacerdote (Anás), e eles, em outro (Caifás). Portanto, não há divergência alguma, entre os sinóticos, na identificação do Sumo-Sacerdote da época: há apenas diferentes maneiras de expressar quem era essa autoridade.
A narrativa do julgamento de Jesus, pelo Sinédrio, em Marcos, é impressionante:
"E levaram Jesus ao sumo sacerdote, e reuniram-se todos os principais sacerdotes, os anciãos e os escribas [...] E os principais sacerdotes e todo o Sinédrio procuravam algum testemunho contra Jesus para o condenar à morte, e não achavam. Pois muitos testemunhavam falsamente contra Jesus, mas os depoimentos não eram coerentes" (Mc 14:53,55-56).
A imputação de incoerência aos depoimentos tem claro sentido jurídico. Na lei judaica, nenhuma condenação podia ser proferida, com base num único depoimento. Testemunhos incoerentes, não corroborados por outros, permaneciam isolados. Por isso, não eram aceitos. O julgamento noturno de Jesus, no Sinédrio, começou com uma série de depoimentos desse feitio. Até que duas testemunhas falsas, finalmente, proferiram imputações que soaram minimamente convergentes:
"E, levantando-se alguns, testificavam falsamente, dizendo: Nós o ouvimos declarar: Eu destruirei este santuário edificado por mãos humanas e em três dias construirei outro, não por mãos humanas". Porém, o texto continua, "nem assim o testemunho deles era coerente" (Mc 14:57-59).
Diante de tantas dificuldades para se produzir prova testemunhal válida contra Jesus, repentinamente, o Sumo-Sacerdote mudou de estratégia e passou a interrogar Jesus sobre a imputação de messianismo que os acusadores tinham formulado:
"Tornou a interrogá-lo o sumo sacerdote, e lhe disse: És tu o Cristo, o Filho do Deus Bendito? Jesus respondeu: Eu sou, e vereis o Filho do homem assentado à direita do Todo-Poderoso e vindo com as nuvens do céu" (Mc 14:61-62).
Essas palavras nada acrescentaram que pudesse servir de fundamento para a aplicação da pena capital. Não era incomum indivíduos se dizerem o Messias. Alguns já haviam sido aclamados por isso. Outros ainda o seriam. É célebre o caso da entronização de Bar Kochba como Messias, pelo rabino Akiva, o maior sábio judeu de sua época. Nem a assunção do papel de Messias, nem a atribuição dele a outra pessoa eram considerados crimes. Porém, surpreendentemente, "o sumo sacerdote rasgou as suas vestes e disse: Que mais necessidade temos de testemunhas? Ouvistes a blasfêmia: que vos parece? E todos o julgaram réu de morte" (Mc 14:63-64).
Como num passe de mágica, a resposta à pergunta sobre messianismo deu base a uma condenação por blasfêmia. Na legislação mosaica, a blasfêmia era um crime passível de morte: “Aquele que blasfemar o nome do Senhor será morto; toda a congregação o apedrejará” (Lv 24:16). Porém, em nada se confundia com o messianismo. Além disso, como Geza Vermes recorda (VERMES, Geza. A paixão – a verdadeira história do acontecimento que mudou os rumos da humanidade. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 98), o delito de blasfêmia era um tanto vago, não só em Levítico como na literatura rabínica. A única coisa historicamente certa, a respeito dele, é que o uso do tetragrama IHWH (Iahweh) era considerado blasfemo.
Pode ser que as palavras “Eu sou” pronunciadas, por Jesus (Mc 14:62), tenham soado como o nome de Deus (IHWH) declarado a Moisés: “Eu Sou o que Sou” (Êx 3:14). No ambiente acalorado do julgamento, elas podem ter sido deturpadas, de modo a assumir significado blasfemo. Não o sabemos ao certo. Mas Marcos é claro ao informar que não foi esse o sentido da resposta de Jesus a Caifás. Pelo contrário, de acordo com ele, o rabi acusado por todos foi cuidadoso, ao se referir a Deus pelo título Todo-Poderoso, a fim de evitar o uso do tetragrama proibido. Mesmo assim, os líderes judeus consideraram Jesus culpado daquele crime.
Para surpresa dos que acompanhavam o caso, porém, na manhã seguinte, uma nova reviravolta ocorreu, no curso dos acontecimentos. Ao invés de condenar Jesus, após reunir-se segunda vez, o Sinédrio voltou atrás e resolveu enviá-lo a Pilatos: “Logo pela manhã entraram em conselho os principais sacerdotes com os anciãos, escribas e todo o Sinédrio; e, amarrando a Jesus, levaram-no e o entregaram a Pilatos” (Mc 15:1).
O giro das autoridades judaicas e do Sinédrio foi de 180 graus. Não faltava competência àquela corte, para aplicar a pena de morte. Roma o reconhecia, em matérias de índole religiosa e de costumes, embora não admitisse que os judeus julgassem crimes políticos. Portanto, nada impedia que a Suprema Corte judaica condenasse Jesus, por um crime religioso. Se ela o tivesse feito, o caso em nada diferiria da condenação e apedrejamento de Estêvão ocorridos, meses mais tarde (At 7:1-2,57-58). Porém, surpreendentemente, o Sinédrio não condenou Jesus.
Tal decisão foi uma verdadeira revisão tácita da conclusão a que a Suprema Corte havia chegado, na noite anterior. Não podemos falar, propriamente, em revisão de sentença condenatória ou de veredito, pois a reunião noturna do Sinédrio não havia sido oficial. De uma reunião não oficial, nenhum veredito judicial podia ser extraído. Não havia o que revogar. Porém, uma mudança de conclusão sobre o caso realmente ocorreu. O motivo não é esclarecido, por qualquer dos evangelistas, mas sabemos que a mudança determinou o encerramento do processo contra Jesus, perante as autoridades judaicas, e a abertura de um novo, na corte de Pôncio Pilatos. As palavras de Marcos não deixam dúvida: “amarrando a Jesus, levaram-no e o entregaram a Pilatos” (Mc 15:1).
As palavras "levaram-no e o entregaram a Pilatos" devem ser interpretadas como a citação de Jesus num processo perante os romanos. Citação era o ato pelo qual um processo judicial era aberto. Nos tempos antigos, ela se dava pela condução coercitiva do réu perante o juiz. Embora outras formas de citação fossem empregadas, no Direito Romano, há evidências de que a condução física do acusado continuou a ser praticada, nos séculos I e II. Tertuliano, o escritor e advogado romano, denunciou práticas de corrupção no processo romano, ao escrever: "Onde se encontra o homem que, ao arrastar o acusado perante o juiz, é comprado para manter-se em silêncio?" (TERTULIANO. Apologético. Cap. 7). Exatamente como o acusado a que Tertuliano se refere, Jesus foi arrastado perante Pilatos. Foi, portanto, citado num novo processo, o que implica que aquele aberto pelos judeus contra ele se encerrara.
Shimon Gibson considera o procedimento ocorrido, no Pretório romano, como um segundo processo (GIBSON, Shimon. Os últimos dias de Jesus - a evidência arqueológica. São Paulo: Landscape, 2009. p. 76). A meu juízo, essa é a opinião mais acertada. No segundo processo, a pergunta com a qual Pilatos abriu o interrogatório de Jesus indica o teor da acusação formulada, pelos judeus, contra ele: “És tu o rei dos judeus?” (Mc 15:2). Lucas tem idêntico parecer, sobre a mudança de foco no julgamento: “Levantando-se toda a assembleia, levaram Jesus a Pilatos. E ali passaram a acusá-lo, dizendo: Encontramos este homem pervertendo a nossa nação, vedando pagar tributo a César e afirmando ser ele o Cristo, Rei” (Lc 23:1-2).
Por essa modalidade de química, Jesus passou a responder já não por blasfêmia, mas por desobediência política. De repente, a vítima do Nazareno deixara de ser Deus e passara a ser César. Um olhar retrospectivo permite entender que exame assim tão completo quanto o que foi realizado de Jesus, no tocante a Deus e aos homens, por duas cortes, só serviu para tornar irrecorrível a verdade de que, no caso do primeiro processo, a acusação de blasfêmia era injusta e, no derradeiro, a imputação de desobediência política era absurda. Jesus era um homem justo, alguém que dava a Deus o que é de Deus, e a César, o que é de César.
Para abreviarmos a narrativa, o segundo processo produziu em Pilatos o mais fundo convencimento da inocência de Jesus. Após ter ouvido os acusadores, interrogado Jesus e o enviado a Herodes, para que fizesse o mesmo, Pilatos concluiu e manifestou reiteradamente que o réu era inocente. No entanto, os Evangelhos sugerem que Pilatos inclinou-se à condenação, após consultar a multidão reunida diante do Pretório sobre o privilégio pascal, isto é, sobre o costume que ele próprio criara de libertar um prisioneiro a rogo dos judeus, por ocasião da Páscoa.
Os evangelistas afirmam que, ao ser consultado sobre o benefício, o povo decidiu que Barrabás e não Jesus fosse libertado. Paul Winter relaciona a consulta de Pilatos ao fato de Barrabás também se chamar Jesus (WINTER, Paul. Ob. cit. p. 194). Com efeito, certo número de manuscritos dos Evangelhos afirma que o primeiro nome de Barrabás era Jesus (idem). Isso se coaduna com o fato de que Barrabás significa "filho de Abá", o que indica um patronímico e não um nome. Seu nome pode, portanto, ter sido Jesus. Em tais circunstâncias, a consulta de Pilatos à multidão pode explicar-se por uma dúvida que, no calor do momento, surgiu em seu espírito sobre qual dos dois prisioneiros os judeus desejavam que fosse objeto do indulto, uma vez que eles tinham o mesmo nome, Pode ser que, por causa disso, Pilatos tenha perguntado à multidão qual dos dois devia ser libertado. O fato, como sabemos, é que a multidão escolheu Barrabás.
Porém, essa escolha parece ter influído na mudança de posição de Pilatos sobre o caso de Cristo. Ele tinha perguntado ao povo: "quem devo soltar: Jesus de Nazaré ou Jesus Barrabás?" E tinha ouvido a resposta: "Barrabás" seguida do clamor para que o outro prisioneiro fosse condenado. Esse clamor soou-lhe como um reforço à acusação que os líderes judeus tinham formulado contra Jesus Cristo. É possível que a convergência das autoridades e do povo tenha levado Pilatos a mudar de parecer e a condenar Jesus à morte.
A multidão aglomerada defronte o Pretório não se confunde com a que aclamou Jesus, quando ele entrou em Jerusalém. Trata-se de duas multidões diferentes. A última era composta por discípulos de Jesus; a turba que gritou a Pilatos “Crucifica-o! crucifica-o!” era integrada por estranhos. Quando Jesus foi preso, o cortejo dos seus seguidores acovardou-se e se dispersou. Então, entrou em cena a segunda multidão que não conhecia Jesus, pois viera a Jerusalém apenas para a Páscoa.
O fato de a culpa do acusado ter sido resumida, nas palavras “Jesus de Nazaré, rei dos judeus”, que encimaram a sua cruz, mostra que o processo que levou Jesus à morte não foi o religioso, perante o Sinédrio, mas o político, que competia a Pilatos julgar. Podemos concluir, portanto, que Pilatos, a autoridade competente para julgar um acusado de crime político, a princípio, manifestou seu convencimento sobre a inocência de Cristo, lavou as mãos, mas depois o condenou.
Lucas registrou que “se ajuntaram nesta cidade contra o teu santo Servo Jesus, ao qual ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com gentios e povos de Israel” (At 4:27). Os gentios e os povos de Israel foram a multidão que clamou pela condenação de Jesus. Porém, esse clamor não pode ser confundido com uma decisão do caso. Foi muito mais um reforço à acusação dos líderes judeus, mas teve grande peso na decisão condenatória proferida por Pôncio Pilatos.
Em suma, dos dois julgamentos extraímos que, ao contrário da conclusão difundida que aponta numerosos erros judiciários, no processo contra Jesus, as acusações contra Jesus foram conduzidas de forma acalorada e tumultuada, mas juridicamente correta. O ponto a meu ver mais duvidoso - a consulta à multidão - explica-se pelo costume que Mateus e Marcos atribuem a Pilatos de libertar um prisioneiro judeu por ocasião da Páscoa. Fosse a prática de Pilatos legítima ou não, permanecia em suas mãos, absolver ou condenar Jesus, depois de Barrabás ter sido libertado. A libertação deste não o obrigava a condenar Jesus. Portanto, não era uma causa de nulidade. Por outro lado, Pilatos era o juiz natural, a autoridade competente para decidir se Jesus era culpado ou inocente da acusação de crime político. Decidiu injustamente, mas seu julgamento não foi nulo do ponto de vista do processo judicial romano.
A conclusão de que Jesus era culpado que o Sinédrio cogitou, na reunião noturna, tampouco foi um erro judiciário, pois não foi oficial. Por isso, ela pôde ser revertida, na sessão oficial da manhã seguinte. Porém, ainda assim, ela demonstra que alguns líderes judeus estavam cegos de ódio a Jesus e ciosos da hegemonia que detinham, no multifário quadro político e religioso de Israel.
Por trás de todos os disfarces, quem tinha motivos políticos para matar Jesus eram os líderes judeus. Somente eles. O crescimento do cortejo de seguidores do rabi galileu e o poder arrebatador do seu ensino ameaçavam esvaziar a liderança dos principais sacerdotes, anciãos e saduceus. Talvez ameaçassem, até mesmo, formar um vácuo de poder religioso em Israel. No entanto, de alguma maneira, por um motivo ainda desconhecido, o problema político-religioso foi obviado, pela decisão do Sinédrio de não condenar Jesus.

A ESCOLHA DA MULTIDÃO

2- Tribunal, lugar chamado Lithóstrotos [Pavimento], em hebraico Gabbathá (Jo 18, 13)
3- «Ágora de cima» (praça do mercado e do tribunal)
5- Átrio da flagelação
12- Saída para o Calvário

Em Antiguidades, Josefo inseriu a famosa passagem sobre Jesus, logo após a narrativa de dois episódios em que Pilatos entra em confronto com multidões de judeus. Esse parece ter sido o contexto imediato do julgamento. À luz dos acontecimentos antecedentes, Pilatos deve ter considerado o caso de Jesus muito diferente: dessa vez, os acusadores do rabi galileu eram as autoridades máximas da nação de Israel.
Por outro lado, de todos os ângulos, o caso de Jesus parecia ser irrelevante para os romanos. Isso significava uma oportunidade para Pilatos agradar os maiorais da sua província, a fim de ganhar a sua simpatia. Afinal, se não havia conflito de interesses, entre Roma e Israel, por que desagradar os sacerdotes judeus? Por que lhes negar o que suplicavam com tantas instâncias?
No entanto, a passagem mais elucidativa da morte de Cristo, que se encontra em Josefo, é a meu ver a informação transmitida por ele, não propriamente a respeito do caso, mas sobre o costume das autoridades judaicas de abrir as portas do Templo, à meia-noite da Páscoa. A passagem do historiador judeu diz exatamente: “Copônio governava a Judeia, quando chegou o dia da festa dos Ázimos, a que chamamos Páscoa; os sacrificadores, segundo o costume, abrem[iram] as portas do templo à meia-noite” (JOSEFO, Flávio. Antiguidades judaicas. In História dos hebreus – obra completa. 5ª ed., Rio de Janeiro: CPAD, 1999. Livro Décimo-Oitavo, Capítulo 3, p. 417).
Na cronologia da última semana, Jesus foi preso, na noite da Páscoa. A ordem de prisão emanara das autoridades do Templo, que parecem ter-se sentido desprestigiadas por ele ter expulsado os cambistas e vendilhões do Templo, sem autorização delas, quatro dias antes. Ora, se as autoridades haviam ordenado a prisão, nada mais adequado que Jesus ser apresentado a elas, após preso.


Porém, de acordo com Josefo, os sacerdotes e os chefes do Templo deviam estar naquele lugar sagrado, cujas portas haviam sido abertas, no horário em que a prisão ocorreu. Embora os Evangelhos não afirmem que Jesus foi levado ao Templo, mas à casa do Sumo-Sacerdote, um edifício ficava no caminho do outro. Qualquer mapa da Jerusalém da época de Jesus mostra que as portas mais próximas do caminho para o Getsêmani (onde ocorreu a prisão) abriam-se uma para o interior do Templo e a outra, para o muro lateral deste. Como a prisão de Jesus foi ordenada, pelos principais sacerdotes, que provavelmente estavam no Templo, quando ela foi executada, é provável que os guardas que o conduziram tenham entrado por uma dessas duas portas para avisar os sacerdotes de que a ordem fora cumprida.
Shimon Gibson escreveu Os últimos dias de Jesus, com o objetivo confesso de estabelecer, o mais definitivamente possível, a posição da Arqueologia sobre a última semana. A repercussão de sua obra, no meio especializado, pode ser resumida na seguinte declaração: "[O livro de Gibson] permeia a mitologia do século IV com evidências do século I, levantadas através do seu conhecimento profundo da notável cidade de Jerusalém" (KROSNEY, Herbert, co-autor de O Evangelho perdido: como o mundo veio a conhecer a versão de Judas Iscariotes sobre a morte de Cristo).
Gibson discorda dos especialistas que fazem o percurso do Getsêmani à casa de Caifás passar pela porta por mim mencionada. Ele encontra um caminho talvez mais consentâneo com a mentalidade militar, que passa por aquela porta e segue até a entrada seguinte de Jerusalém, situada rente ao Tanque de Siloé.
Uma pequena tropa como a que realizou a prisão de Jesus deve ter definido o seu itinerário de acordo com as suas finalidades militares. Para Gibson, como tinham de ir à casa de Caifás, os soldados o fizeram da maneira mais discreta possível. Se uma multidão estava aglomerada no Templo, eles entraram pela porta mais distante do grande edifício religioso, em toda a extensão da muralha ao lado do Getsêmani. Porém, o caminho que penso ter sido o real sugere outro plano. Sugere que as autoridades judaicas planejaram e mandaram executar a prisão de Jesus de modo teatral. Foi seu propósito colocar Jesus contra a multidão de judeus que tinham ido celebrar a Páscoa e não o conheciam. Para isso, era importante que Jesus fosse aprisionado por uma escolta romana e outra judaica, o que indicaria a concordância das autoridades de ambos os povos. E era preciso fazer o cortejo com o prisioneiro passar rente ao Templo para que a convergência das autoridades e a culpabilidade patente do prisioneiro fossem demonstradas. Assim, a prisão ganharia relevo muito maior e imediato sentido político.
Ao avistar a escolta mista, o intrépido, mas precipitado Pedro reagiu da maneira mais apropriada à cena: atacou um dos guardas. Jesus o repreendeu por isso. Ele não faria parte da encenação. No que lhe dizia respeito, a sua morte seria um ato inteiramente autêntico, não encenado, jamais representado.
Antes de ser conduzido à casa do Sumo-Sacerdote, portanto, Jesus e a escolta passaram pelo Templo, segundo o que fora planejado pelos autores da ordem de prisão. É provável que o pomposo cortejo tenha até mesmo parado, algum tempo, onde a multidão se encontrava, antes de prosseguir para a residência do chefe da nação, que ficava no fim, à esquerda de uma linha reta traçada a partir da lateral do Templo. Foi nesse momento que a multidão aglomerada, nos arredores do imenso lugar sagrado, viu Jesus pela primeira vez. Porém, ela o viu, como as autoridades o tinham fantasiado: como um criminoso preso por seus atos contrários à lei. Jesus foi-lhes apresentado como uma personagem, não como uma pessoa. Foi-lhes apresentado como malfeitor.
Qualquer um que avistar um homem algemado conduzido por guardas para depor, no Fórum, nos nossos dias, pensará que se trata de um criminoso. Guardadas as diferenças devidas à época, foi o que a multidão reunida no Templo pensou, ao avistar Jesus. Ainda mais com uma escolta mista, judaica e romana, ao seu lado. Aos olhos da multidão, Jesus pareceu não apenas culpado, mas duplamente culpado, pois judeus e romanos o tratavam da mesma forma.
Nas celebrações da Páscoa, a cada ano, a população de Jerusalém aumentava várias vezes, devido à multidão de judeus, prosélitos e gentios devotos, que afluíam de todos os lugares do mundo. Segundo Josefo, quando Jerusalém foi cercada, antes da destruição do ano 70 d. C., mais de um milhão de pessoas estava ali e nas aldeias vizinhas. Não há dúvida de que o número é exagerado, como era habitual nos cálculos de multidões dos antigos. Mesmo assim, havia tanta gente quanto era possível haver, em Jerusalém, naquela Páscoa. E o que mais importa: quase todos os integrantes da multidão aglomerada no Templo não conheciam Jesus. Por isso, abraçaram a primeira informação, a respeito dele, que lhes foi transmitida pela encenação militar.
Nenhuma informação sobre Jesus teria sido tão eloquente, nem tão eficaz para inculcar à multidão quem era aquele revolucionário (pois Jesus nunca fora outra coisa), no dia da Páscoa, quanto a cena do homem conduzido, com circunstância, por duas guardas oficiais. Nem uma só palavra foi necessária para convencer os mal informados judeus e devotos de que Jesus era um criminoso da pior espécie. Não foi preciso adicionar uma única frase para convencê-los de que estavam diante de um homem culpado. Disso persuadida, portanto, a multidão passou a difundir a informação que recebera. A notícia correu a cidade e arredores não de que Jesus era acusado, mas de que ele era culpado de um crime.
Muito provavelmente, os fariseus não tomaram parte no planejamento da farsa. Como David Flusser informou, eles eram peremptoriamente contrários à perseguição de movimentos proféticos (FLUSSER, David. Jesus. São Paulo: Perspectiva, 2002. p. 167), pregassem o que pregassem. Essa era uma das posições político-religiosas mais importantes, que distinguia os fariseus dos saduceus.
Por causa dessa divergência, os sacerdotes que prenderam Jesus devem ter sido saduceus. Os fariseus não devem ter participado ou, se participaram, devem ter sido meros observadores da reunião noturna, em que o Sinédrio considerou Jesus culpado de blasfêmia.
Diferente deve ter sido a situação, na reunião oficial do Sinédrio, na manhã seguinte. Por se tratar de uma sessão oficial da Corte Suprema, os fariseus que compunham a Suprema Corte devem ter estado presentes, votado contra a condenação e influído, poderosamente, para que o convencimento formado, na noite anterior, não prevalecesse. Por esse motivo, Jesus deve ter sido absolvido da acusação de blasfêmia, contra o parecer proferido pelo Sumo-Sacerdote na noite anterior.
Não é incomum as cortes corrigirem seus erros. Especialmente, quando se reúnem em plenário e debatem inteiramente os casos. É o que deve ter ocorrido, na manhã daquela sexta-feira. Apesar de todos os pesares. Os votos dos fariseus não teriam bastado para absolver Jesus de blasfêmia. Alguns saduceus devem ter aderido ao parecer absolutório, arrastados por um proeminente sectário ou por algum fariseu de reputação particularmente elevada. Anás é um candidato a ter desempenhado esse papel. Com base na Lei de Moisés, ele e não Caífás devia exercer o Sumo-Sacerdócio. Portanto, aos olhos de muita gente, sua autoridade era grande. Gamaliel ou outro fariseu importante pode tê-lo influenciado a assumir posição a favor de Jesus. Porém, não temos como determinar o que aconteceu, na sessão oficial da manhã de Páscoa, e quem realmente influiu na tomada de posição do Sinédrio.
Sabemos somente que a encenação dos saduceus foi anulada. Porém, o estrago já havia sido produzido. A multidão já considerara Jesus culpado. Com Jerusalém apinhada de visitantes, ela estava fora de controle. A notícia da prisão do criminoso galileu e dos fatos subsequentes correu Jerusalém, de boca em boca, como os discípulos a caminho de Emaús comentaram mais tarde. Não foi possível conter a multidão, no Pretório, quando Pilatos lhe perguntou se o privilégio pascal devia ser concedido a Jesus ou a Barrabás.
Desse modo, uma das contradições mais centrais da narrativa dos quatro Evangelhos, sobre a última semana (a que se estabelece entre a aclamação de Jesus como o Messias, ao entrar em Jerusalém, e o clamor da multidão para que ele fosse condenado), é eliminada. A informação de Josefo de que as portas do Templo eram abertas, na noite de Páscoa, é a informação fundamental que nos permite explicar o contraste entre as duas multidões.
A antiga ideia de que alguns sacerdotes se infiltraram, no meio da multidão aglomerada no Pretório e a incitaram à decisão capital é demais imaginativa. Beira o ridículo. As narrativas convergentes dos quatro Evangelhos mostram uma multidão convicta da culpabilidade de Jesus, mas não explicam como a convicção se formou. A informação de Josefo é o que melhor supre a lacuna. Sugere que a multidão se convenceu da culpa de Jesus, na noite anterior, pelos mecanismos teatrais de poder concentrados no Templo.

PAIXÃO E MORTE

Homologada a condenação de Jesus por Pilatos, ele foi entregue aos soldados romanos, para ser crucificado. A paixão começou com o espancamento de que Jesus foi vítima.
Pouca dúvida resta sobre a historicidade desse espancamento. Embora abusiva, a prática fora introduzida no exército romano. Porém, o grau de flagelamento a que Jesus foi submetido envolve dúvidas. Foi ele torturado ao ponto extremo de A Paixão de Cristo, do diretor Mel Gibson? Vejamos o que o outro Gibson, arqueólogo, tem a declarar:
“A crucificação era, com frequência, precedida por açoitamento, amarrando a vítima a uma coluna e espancando-a com um flagellum – vara com cordões de couro ou correias com pontas de ferro duro ou de ossos. O espancamento não poderia constituir ameaça à vida, pois o condenado ainda deveria ter força suficiente para carregar a trava de madeira, horizontalmente, nos ombros até o local da crucificação. A vítima era levada por soldados, um dos quais levava o titulus – uma inscrição com o nome do criminoso e sua ofensa, para ser afixado na cruz, acima do moribundo” (GIBSON, Shimon. Os últimos dias de Jesus - a evidência arqueológica. São Paulo: Landscape, 2009. p. 125).
As palavras de (Shimon) Gibson são um bom resumo histórico do açoitamento. Cumpre acrescentar somente que a prática também podia constituir uma pena autônoma, ministrada aos culpados de delitos menores. Nesse caso, era preciso moderar o açoitamento, por não se tratar de pena de morte. Os soldados romanos eram adestrados para aplicar, corretamente, todas essas diversas penas. Eles eram particularmente condicionados a desassociar o flagelamento com açoites dos castigos que resultavam em morte. Teria sido uma inépcia sem paralelo aplicarem, em Jesus, o flagelo que antecede a crucificação em A Paixão, de Mel Gibson.
Não foi por outro motivo que (Shimon) Gibson declarou: “Saí de uma sessão do filme de Mel Gibson sobre os últimos dias de Jesus, A Paixão de Cristo, sentindo-me ensopado com o desnecessário sangue de Hollywood” (idem. p. 13). De fato, o sangue que o filme faz Jesus derramar, durante o açoitamento, é demasiado. Esse primeiro flagelo era ministrado, na dose necessária para debilitar o condenado, sem que os executores se arriscassem a matá-lo.
Mesmo assim, sabemos que Jesus foi rudemente golpeado, pelos soldados, e teve de carregar a própria cruz, como a Arqueologia descobriu ser comum na época. A cruz não podia ser pequena, nem leve demais, pois devia suster o corpo de um homem sem desabar. No entanto, não deve ter sido o objeto alto que se costuma representar.
Em 1968, arqueólogos descobriram os restos de um homem crucificado, numa cova judaica do século I d. C. O calcanhar direito estava atravessado por um prego de 11,5 centímetros de comprimento (idem. p. 126). Essa é a evidência física mais direta, de que dispomos de uma crucificação ocorrida, em Jerusalém, no século de Jesus.
Sabemos que os métodos de crucificação eram tão variados quanto as vítimas desse suplício. Por isso, os restos da vítima do primeiro século não nos dizem algo aplicável a todas as ocorrências da pena capital romana. As posturas do condenado na cruz variavam, conforme os tipos de traves e vigas disponíveis. Tudo dependia das circunstâncias. Normalmente, o condenado era preso à cruz, despido, por meio de cordas e pregos de ferro (idem. pp. 129, 131). Como não suportava o peso do próprio corpo, ele sofria espasmos musculares e morria asfixiado, em algumas horas.
Jesus caminhou com a cruz, do Pretório ao Monte Calvário. Embora ficasse fora da cidade, o lugar não era muito distante do Pretório. Porém, por se tratar de um monte, a sua escalada com a cruz foi particularmente extenuante. Por isso, Jesus teve de ser auxiliado por Simão Cireneu. O papel de Simão empresta autenticidade ao relato dos evangelistas, pois teria sido humanamente impossível a alguém carregar a cruz sozinho, por aquele percurso íngreme. No Calvário, Jesus foi crucificado.
Holger Kersten considera que o vinagre, que ofereceram a Jesus, quando ele estava na cruz, foi responsável pela perda de consciência e a morte aparente, que se seguiram. Kersten buscou essa teoria nos versículos de João que afirmam: “Disse: Tenho sede! Estava ali um vaso cheio de vinagre. Embeberam de vinagre uma esponja e, fixando-a num caniço de hissopo, lha chegaram à boca. Quando, pois, Jesus tomou o vinagre, disse: Está consumado! E, inclinando a cabeça, rendeu o espírito” (Jo 19:28-30).
De acordo com o autor do best-seller sobre a peregrinação de Jesus à Índia, o vinagre era utilizado para animar os condenados às galés (KERSTEN, Holger. Jesus viveu na Índia – a desconhecida história de Cristo antes e depois da crucificação. 24ª ed., Rio de Janeiro: Best Seller, 2007. p. 173). Não há dúvida de que os romanos ofereciam essa substância, também, aos condenados à morte. Kersten cita a passagem do Talmude que narra: “Aquele que caminhava para a execução recebeu um copo de vinho, com um pequeno pedaço de incenso, para que ficasse inconsciente (Sanh. 43a)” (idem). O vinho e o vinagre eram ministrados aos condenados, para entorpecê-los.
Até aí, Kersten caminha bem. Como a pena de crucificação era aplicada amiúde, em Israel (Josefo narra centenas de crucificações concomitantes), os judeus estavam familiarizados com os efeitos do vinagre ministrado aos condenados. A passagem de João é particularmente sugestiva de que Jesus desfaleceu, após ingerir o vinagre. Porém, nada disso significa que ele não morreu. A perda da consciência não significa que o processo de liquidação do seu corpo cessou. Muito pelo contrário, esse processo continuou, durante o período em que os judeus foram solicitar a Pilatos que mandasse quebrar as pernas dos condenados, para que morressem logo (Jo 19:30-33).
Para direcionar a perda dos sentidos por Jesus à sua teoria da sobrevivência, Kersten cita relatos de drogas que produzem tal estado de torpor, nos seus usuários, que eles parecem morrer. Fiel à sua tendência de ligar Jesus à Índia, esse autor busca evidências do uso de drogas com esses poderes, naquele país e na vizinha Pérsia. Nesta, ele encontra a haoma; naquela, o soma. Ambas eram extraídas da planta asclepias acida:
“Na Índia, a bebida do soma permitia que as pessoas familiarizadas com a droga ficassem aparentemente mortas por vários dias, despertando depois em um estado de euforia que durava também vários dias. Em tal estado de êxtase religioso podia manifestar-se uma consciência mais elevada, dotada de novos poderes de percepção” (idem. p. 173).
O problema é que não há provas de que os romanos ministrassem soma indiana aos seus condenados. Embora pudesse entorpecer, o vinagre que Jesus bebeu tampouco tinha as propriedades da asclepias. Ele foi ministrado, porque Jesus reclamou de sede, e era proibido dar água aos condenados.
Os sinóticos relatam que houve trevas, na terra, durante a crucificação. A localização de um fenômeno natural “na terra” ou “em toda a terra” é comum nas Escrituras. A palavra terra indica um lugar determinado, não o planeta todo. No caso, a cidade de Jerusalém.
As trevas mencionadas, nos sinóticos, foram interpretadas como um eclipse, pelos historiadores Talo e Flegão, citados por Júlio Africano. Embora adotada por vários estudiosos, a teoria do eclipse foi afastada, pela ciência moderna, que não identificou a possibilidade de um fenômeno assim ter ocorrido, nas datas prováveis da crucificação. Mais verossímil é que as trevas tenham sido causadas por nuvens pesadas e negras, que encheram o céu de Jerusalém, encobrindo o sol.
Mateus ainda informa que um terremoto ocorreu, na hora da morte: “Tremeu a terra, fenderam-se as rochas, abriram-se os sepulcros, e muitos corpos de santos, que dormiam, ressuscitaram” (Mt 27:51-52). O véu do santuário rasgou-se de cima a baixo, na mesma hora.
A ocorrência de um terremoto, na hora exata em que Jesus expirou, é improvável. Porém, não é esse o sentido do texto de Mateus. Seria absurdo um autor pretender estabelecer, décadas depois, de maneira exata, o momento em que um tremor se verificou. Não é isso que Mateus realiza ou sugere. O texto quer, tão-somente, informar que houve um terremoto em Jerusalém, naquele dia. Tanto é que ele continua: “e, saindo dos sepulcros depois da ressurreição de Jesus, entraram na cidade santa e apareceram a muitos” (Mt 27:53).
A ressurreição e as aparições a que Mateus se refere foram um processo, não um fato pontual. Os mortos só saíram dos sepulcros, “depois da ressurreição de Jesus”. Portanto, o terremoto não foi simultâneo à crucificação.
É provável que Mateus tenha em mente uma ressurreição continuada, que durou vários dias, meses ou mesmo anos. Sua intenção é associar a obra de Jesus, na cruz, à ressurreição dos santos. É mostrar que a ressurreição foi e é o efeito contínuo do evangelho. Como o termo ressurreição tinha sentido bastante elástico, muito provavelmente, Mateus se refere a visões, que várias pessoas tiveram de indivíduos mortos, nos dias que se seguiram à morte de Jesus.
O terremoto também causou avarias, no recinto interior do Templo, onde só o Sumo-Sacerdote podia ingressar, uma vez por ano. A tradução da frase “o véu se rasgou de alto a baixo” é um tanto enigmática. Parece indicar um movimento anormal. O véu ficava pendurado numa estrutura, que o encimava e que deve ter sido abalada pelo terremoto. Se essa estrutura tivesse duas partes, elas poderiam se desencaixar, e o véu poderia voltar ao repouso em posição inclinada, após o terremoto. Se isso tiver ocorrido, o verbo rasgou-se seria melhor traduzido fendeu-se ou abriu-se.
O interesse particular dos judeus na crucificação de Jesus fez com que o encerramento do ato fosse apressado, pois o dia seguinte era sábado, quando não podem realizar trabalhos. O método de antecipação da morte, que os romanos mancomunados com as autoridades judaicas se dispuseram a usar, consistiu em quebrar os ossos de Jesus e dos ladrões crucificados com ele. Porém, quando os soldados foram fazê-lo, Jesus já havia morrido.
Nesse momento, um soldado perfurou o lado de Jesus com a lança, para se certificar de que ele estava morto. Do lugar perfurado, saiu sangue misturado com água. A maior parte dos autores explica essa mistura como o soro que se forma em lugar do sangue, durante o processo de decomposição. Numa época pré-científica, esse soro sanguíneo foi descrito, com admirável precisão, como uma mistura de “sangue e água”.
Porém, o sangue só entra em decomposição, seis horas após a morte. Por isso, talvez tenhamos de optar entre a exatidão do horário da morte, em Mateus e Marcos (a hora nona, três da tarde), e o jorro de sangue e água do lado de Jesus pouco antes do sepultamento. Como esse jorro foi testemunhado de modo específico (Jo 19:34-35), na necessidade de optar, parece melhor fazê-lo em favor da perfuração e recuar o horário da morte. Talvez até o da crucificação.
Sobre esse ponto, vale recordar que Marcos fornece duas informações de horário: as trevas que envolveram Jerusalém e arredores estenderam-se da sexta à nona hora, e Jesus morreu na hora nona (Mc 15:33-37). Mateus, que segue a narrativa de Marcos quase palavra por palavra, relativiza o horário do segundo acontecimento, ao dizer "por volta da hora nona" (Mt 27:46). Mas o mais importante é que Lucas recua as trevas (portanto, a própria crucificação) para antes da hora sexta e retira toda referência ao horário da morte: "Já era quase a hora sexta e, escurecendo-se o sol, houve trevas sobre toda a terra até a hora nona. E rasgou-se pelo meio o véu do santuário. Então Jesus clamou em alta voz: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito! E, dito isto, expirou" (Lc 23:44,46). A localização da morte, em Lucas, é dada pela palavra então ("Então Jesus clamou [...] e expirou"). Mas essa palavra se refere ao momento em que o véu se rasgou, não à hora nona.
Morto, Jesus foi sepultado, por Arimateia e Nicodemos. Shimon Gibson considera que a localização exata do túmulo é impossível de ser determinada, com base no conhecimento atual. Ele não descarta uma localização próxima da Igreja do Santo Sepulcro, mas deixa a questão em aberto.
Ao relato do sepultamento, Mateus acrescenta o da designação de uma guarda para o sepulcro. Mateus não inventou esse relato, mas recolheu-o do meio religioso em que vivia e o registrou no seu livro. Em todos os evangelistas, o processo de recepção, seleção e transmissão de uma história, em forma escrita, é orientado por seus propósitos redacionais. No caso de Mateus, o propósito foi provar que Jesus cumpriu as profecias messiânicas. A ressurreição era uma predição messiânica. Para aumentar o grau de certeza de que Jesus a cumprira, o autor de Mateus selecionou o relato da guarda do sepulcro.
Claro que a pergunta merece ser formulada: houve de fato uma guarda? Não é preciso responder que sim, para que o relato de Mateus seja considerado histórico. Pode ser que o ponto em questão tenha sido adicionado por copistas interessados em afastar a versão do furto do corpo de Jesus. Devemo lembrar-nos de que o relato da guarda não aparece em qualquer dos outros Evangelhos e de que Mateus recua o horário da ressurreição de 10 a 12 horas em relação aos demais Evangelhos. Isso pode indicar algum grau de manipulação do relato desse livro, por copistas interessados em exacerbar o propósito original de Mateus, que era provar o cumprimento das profecias messiânicas.

AS HIPÓTESES DA SOBREVIVÊNCIA E DA MORTE COMUM

Cinquenta dias transcorreram, entre a Páscoa e o Pentecoste, quando Lucas afirma que a ressurreição de Jesus foi anunciada, publicamente, pela primeira vez. Esse foi o provável período de tempo, durante o qual a versão dos discípulos sobre a ressurreição foi elaborada. Discutirei a seguir como a elaboração se deu.
Para enfrentar a questão, o melhor caminho será considerar, à maneira de uma perquirição judicial, as principais hipóteses explicativas do evento, por trás da ressurreição, e as evidências que as corroboram ou infirmam. Quatro são essas hipóteses: a) Jesus sobreviveu à crucificação; b) o corpo de Jesus permaneceu onde foi sepultado; c) o corpo foi transferido do sepulcro para outro lugar; d) Jesus ressuscitou. Irei discuti-las nesta e nas próximas postagens.

a) A hipótese da sobrevivência
A hipótese da sobrevivência foi defendida pelos primeiros muçulmanos (nesse sentido, KHALID, Tarif, org. O Jesus muçulmano - provérbios e histórias na Literatura Islâmica. Rio de Janeiro: Imago, 2001. Introdução). Modernamente, foi retomada por Holger Kersten, no livro Jesus viveu na Índia (24ª ed., Rio de Janeiro: Best Seller, 2007). As tradições escritas sobre a sobrevivência não recuam além da época de Maomé. Não foi por outro motivo que Kersten teve de buscar na Índia evidências mais críveis de que Jesus teria sobrevivido. Porém, as evidências reunidas, no livro dele, fazem prova mais eficaz de que a Índia abrigou um enclave cristão, como o que comprovadamente existiu antes do primeiro século na Etiópia, do que da ida de Jesus para lá, após a crucificação.
Do modo como os etíopes criaram lendas, ligando a recepção das tradições judaicas, nas suas terras, a Moisés, Salomão e outras personalidades bíblicas, os indianos fizeram o mesmo com Jesus. Não precisamos emprestar crédito à tradição etíope de que uma parte dos israelitas que saiu do Egito desceu para lá, e outra parte foi para Canaã. Pelas mesmas razões, não precisamos tomar como fidedignos os relatos da ida de Jesus à Índia, que ali circularam durante algum tempo. O que há de certo, em ambos os casos, é que judeus migraram para a Etiópia e a Índia. No último caso, o sinal mais visível dessa migração é o fato de a Caxemira ter, até hoje, um idioma quase idêntico ao aramaico usado em Israel na época de Jesus.
A tradição cristã primitiva, recolhida em Eusébio (CESAREIA, Eusébio de. História Eclesiástica. Rio de Janeiro: CPAD, 1999), reza que Tomé foi pregar o evangelho na Índia. Não é impossível que a ida de um dos apóstolos tenha sido, ao depois, transformada no comparecimento do próprio Jesus.
Porém, nenhuma dessas evidências faz da ideia da sobrevivência mais do que uma invenção muito posterior à morte de Jesus. Ela é contrariada, pelo testemunho convergente dos quatro Evangelhos, de dois historiadores (Josefo e Tácito) e dos judeus (Talmude), que afirmaram que Jesus morreu crucificado.
Quando Josefo, Tácito e os autores do Talmude escreveram, os cristãos ainda não eram a comunidade numerosa e de âmbito mundial, que vieram a se tornar mais tarde. Apesar da Diáspora ou por causa dela, os judeus eram mais importantes que eles. Por isso, tanto Josefo como Tácito e os autores do Talmude tinham motivos de sobra, para expressar um ponto de vista judeu discrepante do cristão, sobre a morte de Jesus, caso tivesse existido. Como nenhum deles o fez, é de se concluir que nem os partidários, nem os opositores de Jesus acreditaram na hipótese da sobrevivência à crucificação.
A posição de Josefo sobre esse assunto é particularmente significativa. Os três últimos Livros das Antiguidades têm características diferentes dos dezessete que os precedem. Estes informam, concisamente, os fatos de cada época. Já os Livros XVIII, XIX e XX, que tratam do século em que Josefo viveu (I d. C.), trazem narrativas muito mais pormenorizadas. O poder dos irmãos Asineu e Anileu, da colônia judaica em Babilônia (Antiguidades. 5ª ed., Rio de Janeiro: CPAD, 1999. pp. 432-435), e o assassinato de Calígula (idem. pp. 436-443) são exemplos de acontecimentos narrados com tal riqueza de detalhes que chegam a causar espanto. É pouco provável que um autor tão bem informado, sobre os acontecimentos do primeiro século, tenha omitido os rumores da sobrevivência de Jesus à morte, se eles tivessem existido ou sido relevantes. Em suma: se as obras mais detalhadas da época não contêm o menor vestígio de que as testemunhas da morte de Cristo a entenderam de outra maneira, por que razão alguém de boa-fé, que não testemunhou aquele acontecimento, iria alterar o seu conteúdo séculos depois?
Há mais: por que os romanos, que condenaram Jesus à morte por crucificação, nunca se importaram em procurá-lo, se rumores consistentes de sobrevivência circularam? Os romanos não se interessarem pelo caso equivaleria a desautorizarem a sua própria ordem de execução do prisioneiro galileu. Equivaleria a proclamar ao mundo que as sentenças romanas não precisavam ser cumpridas, pois Jesus fora condenado à morte, escapara com vida, e os romanos haviam deixado tudo nesse mesmo estado.

b) A hipótese da morte comum
Não há indícios de que a ideia da permanência do corpo de Jesus no sepulcro tenha encontrado seguidores no primeiro século. Ainda assim, temos de considerar essa hipótese como uma das maneiras pelas quais se pode, teoricamente, explicar os fatos que se seguiram à morte e ao sepultamento.
A razão pela qual essa hipótese não pode ser verdadeira é simples: os cristãos tiveram nos saduceus, nos sacerdotes, nos escribas e em outras autoridades exaltados adversários. No entanto, nenhum deles mandou abrir o sepulcro, para provar que a pregação dos cristãos era falsa. Não há a menor notícia disso, em toda a literatura conhecida. Como teria sido extremamente fácil para qualquer indivíduo daqueles grupos mandar fazê-lo, a hipótese de que o corpo permaneceu no sepulcro parece profundamente equivocada.
Mesmo assim, em pleno século XXI, uma obra sensacionalista foi lançada, anunciando a descoberta da tumba de Jesus Cristo, em plena Jerusalém. A prova fornecida pelo descobridor - ninguém menos que o cineasta norte-americano James Cameron - é uma sepultura com os nomes de Jesus, Maria (Madalena, para Cameron e talvez para Dan Brown) e o filho dos dois denominado Judas. Nada mais do que isso; porém, foi o bastante para o autor anunciar a maior descoberta da História.
Claro que o achado não foi realizado pelo próprio cineasta, mas por peritos em Arqueologia. Curiosamente, um desses peritos, o arqueólogo Amos Kloner, veio a público, depois de Cameron divulgar sua interpretação, para desmenti-la. De acordo com ele, a gruta encontrada continha caixões pertencentes a uma família judia cujos nomes são parecidos com os de Jesus e seus parentes. Nada mais do que isso. "Posso dizer positivamente que não aceito a identificação como pertencendo à família de Jesus em Jerusalém", declarou o arqueólogo à Agência Reuters (www.tumbadejesus. tripod.com/oglobo2).
Mesmo assim, o descobridor apresentou-se como autor da façanha imortal de vender dezenas de milhares de cópias do seu documentário e de um livro, em cima desse conto. Que me desculpem a obstinação em dizê-lo e em não aceitar tão boa prova de que os Evangelhos precisam ser reescritos, já que não houve ressurreição, e Jesus desposou Maria. De fato, nunca se matou dois coelhos mais importantes com a mesma cajadada.
Cameron arrazoa: como poderiam os nomes de três pessoas de uma família judaica do primeiro século serem idênticos aos de Jesus, Maria e Judas (o irmão de Jesus, como é óbvio) sem se tratar dos próprios? A conclusão é tão elementar quanto a inferência de que uma sepultura com os nomes João, José e Maria, localizada no Brasil, pertence por certo à família dos três indivíduos mais famosos com esses nomes e algum parentesco recíproco.
O apêndice "A tumba de Talpiot e o ossário de Tiago", incluído no livro de Shimon Gibson sobre a última semana de Jesus, esclarece, a meu ver cabalmente, a descoberta. O arqueólogo mostra que "dez ossários foram descobertos na tumba Talpiot". As inscrições mencionadas acima foram encontradas num deles. Outro ossário contém a frase: "Tiago, filho de José, irmão de Jesus". Gibson continua: "Os nomes Yehuda (Judas) e Yeshua (Jesus) eram muito populares no século I [...] Tem havido muita polêmica em todo o mundo sobre a sugestão de que a tumba Talpiot, talvez, seja a tumba familiar de Jesus. Além da semelhança entre certos nomes nos ossários de Talpiot e nomes conhecidos dos evangelhos (Jesus, Maria e José), o principal aspecto a favor desse argumento tem sido que Mariamene, inscrito em um dos ossários, é uma forma de Mariamne, que deveria ser identificada como Maria Madalena, e que o nome José, em outro ossário, deveria ser identificado como sendo o de José, irmão de Jesus [...] Contudo, conforme mencionado antes, a leitura apropriada da suposta inscrição Mariamne parece ser Mariame kai Mara, como grande número de estudiosos concluiu recentemente [...] Isso daria a entender que os restos de esqueleto de duas mulheres foram colocados no ossário [...] O nome Yosé, em um dos outros ossários, poderia, na verdade, ser uma forma abreviada de Yehosef, e, na minha opinião, é provável que seja o mesmo Yehosef pai de Yeshua de outro ossário da tumba" (GIBSON, Shimon. Os últimos dias de Jesus - a evidência arqueológica. São Paulo: Landscape, 2009. pp. 199-200).

A HIPÓTESE DO FURTO

Um olhar atento percebe que a cronologia rigorosa e quase universalmente aceita, que localiza a morte de Jesus no fim da sexta-feira, e a ressurreição, no nascer do sol do domingo, exige que o furto do seu cadáver tenha ocorrido no sábado ou durante a noite (parte inicial) do domingo, para que essa hipótese possa ser verdadeira. Não mais do que essas 35 horas estiveram disponíveis, portanto, para que a transferência fosse realizada.
Porém, é difícil imaginar alguém animado a retirar o corpo de Jesus do sepulcro, num período tão curto de tempo. Afinal, as primeiras 24 horas após o sepultamento foram as do sábado de descanso. Uma pessoa interessada em simular a ressurreição, teria sido um judeu piedoso: um fariseu, um cristão ou, no mínimo, um simpatizante desses grupos. O imaginário homem, porém, exatamente por ser piedoso, não poderia realizar trabalhos no sábado. Além disso, Jerusalém estava cheia demais para que o furto pudesse ocorrer sem mais. Isso torna bastante improvável que a transferência do corpo tenha ocorrido no sábado.
Restaria a possibilidade de ele ter acontecido, às ocultas, na noite de domingo. Para os judeus, o dia começava com o pôr do sol e terminava no ocaso do dia imediato. Marcos, Lucas e João situam a descoberta da ressurreição, no nascer do sol. O primeiro afirma que ela ocorreu “muito cedo, no primeiro dia da semana, ao despontar do sol” (Mc 16:2). Lucas diz que era “o primeiro dia da semana” e “alta madrugada” (Lc 24:1). E João, que era “o primeiro dia da semana”, “de madrugada” e que estava “ainda escuro” (Jo 20:1).
Essas expressões de sentido cronológico indicam que os evangelistas desdobraram-se para situar, com a maior exatidão possível, o horário da descoberta. Marcos deu três referenciais de tempo, Lucas, dois, e o autor de João, três. Todos apontaram a madrugada do domingo como o momento da descoberta.
O autor de Mateus foi o único a dissentir dos outros evangelistas. De acordo com ele, a ida de Maria Madalena e da outra Maria ao sepulcro se deu, “no findar do sábado, ao entrar o primeiro dia da semana” (Mt 28:1).
A diferença de cerca de 10 horas, entre a primeira ida de discípulos ao sepulcro, em Marcos, Lucas e João, e em Mateus, sugere a existência de duas versões de horário. O fato de nem Marcos, nem Lucas, nem João terem afirmado que as mulheres, que foram ao sepulcro, encontraram guardas, como Mateus o fez (Mt 27:66), ou que ocorreu um terremoto (Mt 28:2), parece indicar que versões abrangiam também outros pontos. Provavelmente, as versões nasceram de testemunhos oculares parcialmente divergentes.
Não faltaram testemunhos divergentes sobre a ressurreição. Nem poderia ter sido diferente. Mateus fala de duas mulheres que foram ao sepulcro, Marcos, de três, Lucas, de um número indeterminado. Isso para nos atermos apenas ao primeiro grupo que entrou no túmulo. Mais tarde, o discípulo amado, Pedro e muitas outras pessoas foram até lá ou ouviram falar o que se passara. É claro que dessas múltiplas observações e comunicações resultaram versões diferentes do horário da descoberta do túmulo vazio.
O horário de Mateus é uma dessas versões. Não é sequer a versão mais crível, por um simples motivo: as mulheres que descobriram o túmulo vazio não foram lá por curiosidade, mas com o objetivo de embalsamar o corpo de Jesus (Mc 16:1). Para isso, tiveram de comprar os aromas usados no embalsamamento, após o sábado. É improvável que elas os tenham adquirido na noite de domingo. Além disso, como e por que mulheres teriam ido ao túmulo à noite, quando poderiam tê-lo feito na manhã imediata? Por ansiedade? Os costumes sociais e as regras religiosas da época tornariam, no mínimo, muito difícil mulheres darem vazão à sua ansiedade, de modo a comparecerem a um sepulcro de madrugada, nas condições específicas daquele domingo pascal.
É preciso observar, porém, que vários aspectos da versão de Mateus são aprovados no teste lógico. Mateus não afirma que as mulheres entraram no sepulcro de noite, o que teria sido de se duvidar ou admirar. Além disso, na Páscoa, a cidade e seus arredores estavam lotados de peregrinos, o que pode ter encorajado as seguidoras de Jesus a saírem da cidade à noite.
Esses pormenores, sem dúvida, salvam o horário de Mateus do descrédito total, mas não o tornam mais provável que o de Marcos, adotado também por Lucas e ratificado por João. Ambas as versões são lógicas. Porém, diferentemente de Mateus, Marcos, Lucas e João deixam um lapso de tempo, também no domingo, para que o furto do corpo possa ter ocorrido.
Mas, se o lapso provavelmente existiu, não se pode afirmar o mesmo das condições e do motivo para que o furto se consumasse. Shimon Gibson afirma que, nas três grandes festas anuais (Páscoa, Pentecoste e Tabernáculos), Jerusalém recebia "dezenas de milhares de peregrinos" (GIBSON, Shimon. Os últimos dias de Jesus - a evidência arqueológica. São Paulo: Landscape, 2009. p. 80). Não seria fácil a alguém perpetrar o furto de um cadáver nessa situação. O caso se agrava, ao considerarmos que "muitos dos peregrinos ficavam em acampamentos formados por tendas fora da cidade, nas áreas norte e leste do Gólgota" (idem. p. 58). Basta olharmos um mapa da Jerusalém do século I para nos darmos conta de que essas áreas eram muito próximas do túmulo de Jesus. Nesse contexto, não seria fácil a alguém sair com o cadáver, sem ser visto.
Quanto ao motivo do furto, João relata que, após encontrar o túmulo aberto, Maria Madalena avisou Pedro e o discípulo amado, retornou ao túmulo e ali permaneceu chorando (Jo 20:11). Maria chorou, porque a ideia da ressurreição não lhe ocorreu. O mesmo deve ser afirmado de Pedro e do outro discípulo. Após declarar que estes viram o túmulo vazio, o Evangelho acrescenta: “pois ainda não tinham compreendido a Escritura, que era necessário ressuscitar ele dentre os mortos” (Jo 20:9). Os discípulos viram, mas não entenderam.
Como discípulos que nem sequer pensavam em ressurreição poderiam ter furtado o corpo, para simular uma? A tristeza de Maria não foi diferente da de Pedro e do outro discípulo que viram o túmulo logo depois dela. Nenhum deles entendeu que Jesus haveria de ressuscitar.
Poderia alguém ter tomado atitude totalmente diversa da de Maria, de Pedro e do condiscípulo que o acompanhou ao sepulcro? É claro que poderia, mas isso não é provável. De todos os seguidores de Jesus, ninguém excedia aqueles, em proximidade e diligência. Como os discípulos mais próximos e mais diligentes poderiam ter permanecido na ignorância sobre a ressurreição, enquanto outros tramavam simulá-la? Como o contexto da Páscoa poderia ter produzido atitudes tão opostas quanto essas, em meras 35 horas?
No entanto, há um outro obstáculo à hipótese em consideração. O fato de Jesus ter sido aclamado, ao entrar em Jerusalém, e ter sido condenado pela multidão, cinco dias depois, indica que os seus seguidores se dispersaram e emudeceram, quando ele foi preso. Nesse contexto, como imaginar tanta ousadia quanto a necessária para furtar ou transferir o corpo de Jesus, a fim de simular a ressurreição? Como imaginar que isso possa ter sido pensado e executado, ainda por cima, em parcas 35 horas?
Na verdade, os discípulos de Jesus tremeram. Eles foram possuídos de medo. Por isso, sumiram dos locais dos julgamentos e da paixão. Por isso também, não podem ter reunido forças para desfechar, tão imediatamente, o contra-ataque da transferência.
Apesar disso tudo, a transferência do cadáver do santo sepulcro para outro local tem sido a tese defendida por praticamente todos os críticos. Raros deles aceitam as hipóteses da morte comum ou da sobrevivência. Ao que parece, tampouco creem na ressurreição. O mais curioso nesse entendimento é que contraria, frontalmente, o método crítico, como acabo de demonstrar. Analisados criticamente, os dados dos Evangelhos sobre o pós-morte não deixam perceber que o corpo de Jesus foi furtado ou transferido do sepulcro.
A tese absurda da transferência sustenta-se, ou é sustentada, sobre uma única base: o senso comum, não a própria Crítica. O senso comum demonstra que os homens morrem e não ressuscitam. Os críticos não precisam de mais do que isso. Não precisam sequer da Crítica que inventaram. Para eles, Jesus não pode ter ressurgido dos mortos.
Mas se realizou seu trabalho hercúleo para, ao final, trocá-lo pelo prato de lentilhas do senso comum, por que a Crítica ainda se bate contra a fé e o senso comum? Sua atitude, nesse ponto específico, não se mantém em dívida para com eles? Não se reduz à fé no senso comum?

A RESSURREIÇÃO: HIPÓTESE OU FATO?

Uma lição imortal se enuncia da seguinte maneira: o senso comum se divide em senso comum comum e senso comum incomum. O último é a regra para o homem humilde, que abarca o sol com a mão espalmada e uns poucos centímetros de chão com os pés. O primeiro é o guia dos que constroem ciências vertiginosas para negá-las por meio do óbvio.
O depoimento de Pedro, sobre a ressurreição de Jesus, é importante por se tratar de uma testemunha presencial dos fatos. No entanto, o próprio Pedro nunca o registrou por escrito. Seu testemunho foi reconstruído, por Lucas, nos seguintes termos:
"Jesus, o Nazareno, varão aprovado por Deus [...] vós o matastes, crucificando-o por mãos de iníquos; ao qual, porém, Deus ressuscitou, rompendo os grilhões da morte.
[...] A este Jesus Deus ressuscitou, do que todos nós somos testemunhas.
[...] Matastes o Autor da vida, a quem Deus ressuscitou dentre os mortos, do que nós somos testemunhas [...] Em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, a quem vós crucificastes, e a quem Deus ressuscitou dentre os mortos, sim, em seu nome é que este está curado perante vós.
[...] O Deus de nossos pais ressuscitou a Jesus, a quem vós matastes, pendurando-o num madeiro [...] Nós somos testemunhas destes fatos.
[...] Ao qual também tiraram a vida, pendurando-o no madeiro. A este ressuscitou Deus no terceiro dia, e concedeu que fosse manifesto, não a todo o povo, mas às testemunhas que foram anteriormente escolhidas por Deus, isto é, a nós que comemos e bebemos com ele, depois que ressurgiu dentre os mortos" (At 2:22-24,32; 3:15; 4:10; 5: 30; 10:40-41).
Apesar de claro e incisivo, como já vimos, esse testemunho de Pedro é indireto, pois foi redigido por Lucas, décadas depois de ter sido prestado. O único testemunho, aparentemente, de primeira mão, sobre a ressurreição de Jesus, é o do autor do Evangelho de João, que o transmitiu, cerca de 65 anos após a crucificação.
Uma marca da observação direta da ressurreição, pelo escritor de João, é a observação, presente somente nele, de que o lençol que envolvera o corpo de seu mestre estava apartado do lenço, que havia sido colocado na sua cabeça (Jo 20:7-8). Pormenores visuais como esse, invariavelmente, se apagam da memória com o tempo. É comum a testemunha visual de uma cena lembrar-se mais da sequência em que observou os diversos componentes dela do que de detalhes particulares. Estes só são recordados, se têm importância para a sequência ou para a memória do observador como um todo. Por exemplo: uma pessoa pode-se recordar de ter ficado doente e de ter sido levada para o hospital, num carro de marca e cor tais, há 20 anos, se o carro já fosse conhecido dela. Por se tratar de um objeto importante, a lembrança de detalhes como a sua cor se torna possível. Porém, se ela tivesse sido levada para o hospital num táxi, normalmente, a cor e a marca não seriam lembrados.
O sepultamento de Jesus foi realizado, por José de Arimateia e Nicodemos (Jo 19:38-39), não pelo autor de João. No entanto, ao contrário de hoje, naquela época, o sepultamento não era feito, por técnicos especializados, pois cada detalhe dele tinha significado religioso. Um povo sofrido, num tempo em que a expectativa de vida era baixíssima, enterrava seus mortos frequentemente, e cada família o fazia por si. João 19:40 dispõe: “Tomaram, pois, o corpo de Jesus e o envolveram em lençois com os aromas, como é de uso entre os judeus na preparação para o sepulcro”.
Por não se tratar de uma obra de especialistas, muitas pessoas sabiam realizar a "preparação para o sepulcro", que era "de uso entre os judeus", assim como as mulheres, que acompanharam o desfecho da crucificação e “se retiraram para preparar aromas e bálsamos” (Lc 23:56), a fim de embalsamarem Jesus. O autor de João também estava acostumado com o rito de exéquias. Por isso e somente por isso, muitos anos depois, ele pôde se recordar de ter visto um item importante dele: o lenço usado para cobrir o rosto.
A forma como o autor sagrado narra esse pormenor é bastante significativa. Ele afirma que Pedro entrou primeiro e viu os lençois “e o lenço”: "Saiu, pois, Pedro e o outro discípulo e foram ao sepulcro. Ambos corriam juntos, mas o outro discípulo correu mais depressa do que Pedro e chegou primeiro ao sepulcro; e, abaixando-se, viu os lençois de linho; todavia, não entrou. Então, Simão Pedro, seguindo-o, chegou e entrou no sepulcro. Ele também viu os lençois, e o lenço que estivera sobre a cabeça de Jesus, e que não estava com os lençois, mas deixado num lugar à parte. Então, entrou também o outro discípulo, que chegara primeiro ao sepulcro, e viu" (Jo 20:3-8).
O relato é o de uma testemunha ocular, direta, presencial. Não há outra razão para o pormenor do lenço ter sido mencionado. Quem afirmou ter visto o túmulo vazio e não compreendido que Jesus ressuscitara foi alguém que ali esteve. Isso significa que o alheamento dos discípulos à ressurreição é um dado verídico. Os discípulos não cogitavam disso.
O alheamento não fica sem consequências, para a hipótese do furto do corpo, que já discutimos. Se os discípulos mais próximos de Jesus, que o seguiam o tempo todo, viram o túmulo vazio, mas não atinaram que ele havia ressuscitado, como poderiam outros ter concebido o plano de furtar o corpo, para forjar a ressurreição? A ideia da ressurreição não surgiu, no curto período de 35 horas, entre o sepultamento e a descoberta do túmulo vazio, mas depois. Portanto, não houve furto do corpo.
Shimon Gibson considera que a utilização de um lenço para cobrir o rosto do morto, nos rituais fúnebres, quando o sudário seria suficiente para envolver o corpo todo, devia-se ao estágio embrionário da Medicina, na época, e aos relatos comparativamente frequentes de pessoas que despertavam nos túmulos. Como os mortos eram sepultados com pés e mãos atados, ser-lhes-ia mais fácil remover o lenço do que o sudário. Pela mesma razão, os mortos não eram propriamente enterrados, mas colocados em cavernas, onde poderiam sobreviver se não tivessem verdadeiramente morrido (GIBSON, Shimon. Os últimos dias de Jesus - a evidência arqueológica. São Paulo: Landscape, 2009. p. 46).
Tudo isso ajuda a entender por que milhares de pessoas começaram a aderir à fé cristã, 50 dias após a crucificação. Tantas conversões, inclusive de incrédulos tão proeminentes quanto Saulo de Tarso e Tiago, irmão de Jesus, demandam uma razão suficiente. A ressurreição aparece como essa razão, como a explicação natural e única do complexo contexto dos últimos capítulos dos Evangelhos e dos primeiros de Atos dos Apóstolos.
Assim como a Páscoa reunira judeus e gentios piedosos de todo o mundo, a Festa de Pentecoste seguinte operara algo semelhante. Nessa última solenidade, muitas pessoas que haviam pedido a Pilatos que Jesus fosse crucificado foram feridas no coração, pela pregação de Pedro. Como se não bastasse a conversão, o grau de arrependimento daquelas pessoas, ante as evidências oculares da ressurreição de Jesus, pode ser aquilatado por haverem vendido seus bens para entregar à comunidade cristã. Como explicar tudo isso, a não ser pelo reconhecimento de que algo extraordinário ocorrera?
A ressurreição é o extraordinário, que se ergue acima do ordinário e do óbvio. É o despertar do espírito imortal, o triunfo da chama sobre o ar que a alimenta e sufoca. É a insurreição contra os versos: “Que não seja imortal/posto que é chama/mas que seja infinito/enquanto dure”.

AMOU-OS ATÉ O FIM

Do polo cultural da televisão, em que abundam programas sobre Jesus, ao polo oposto da ciência, que há dois séculos se dedida à investigação dos Evangelhos, tudo confirma que Jesus de Nazaré continua a ser fundamental para o que costumamos denominar Ocidente. Por outro lado, não é menos inegável que o Cristo profético, o Cristo como ele próprio se viu, tem sido apagado das mentes e dos corações pelo Jesus construído por uma nova cultura disseminada por meios eletrônicos e científicos.
O objetivo deste texto foi mostrar que a perda de Jesus, não como homem comum, mas como o Cristo, é muito mais que um problema científico. É um mal civilizacional, na medida em que diz respeito à identidade profunda do mundo ocidental e de partes do oriental. Aquele mundo brilhante, que se tornou perverso e violento, é antes de tudo cristão. Por esse motivo, ao perder a consciência do Cristo, ao se descristianizar (em parte, é claro), o Ocidente se despojou da sua própria identidade. E, ao fazê-lo, ele colocou em risco a sua própria civilização.
O declínio do Ocidente é um tema reiterado, na literatura universal. Desde Spengler, ele tem sido explicitamente elaborado. Alguns acontecimentos reforçaram a tese da decadência. Foi o caso das Guerras Mundiais do século passado. Outros fatos pareceram refutá-la. Por exemplo: a era de prosperidade encravada, entre a Segunda Guerra e a primeira crise do petróleo. Ao combinar a superação dos conflitos globais com a descoberta de uma saída para a Grande Depressão, o desenvolvimento tecnológico, as liberdades democráticas e os benefícios do Estado de bem-estar, esse período brilhante pareceu sugerir que o declínio era uma falácia.
Fato é que o tempo passou, o sonho do comunismo acabou, a bipolaridade política encerrou-se, as utopias tiveram seu caráter ilusório desmascarado e, ainda assim, o que avultou foram graves problemas. A prosperidade da era de ouro do século XX se foi. A crise de 2008-2009 encerrou o outro ciclo de prosperidade, que se esboçou a partir de 1990. Ao mesmo tempo, o fim da Guerra Fria não produziu a redução dos índices de violência, alcançados pelo Nazismo e o Socialismo Soviético. É o que nos lembram os atentados terroristas e as intervenções militares norte-americanas em vários lugares do mundo. Por esses motivos, voltamos a nos perguntar, seriamente, o que se passa com o Ocidente. Voltamos a nos perguntar se ele não retomou, ou simplesmente manteve, seu prolongado processo de decadência.
O Ocidente acusa o Islã de atraso e obscurantismo. No entanto, o entusiasmo que os muçulmanos demonstram com o seu próprio desenvolvimento, a vontade de mudança que eles revelam, as taxas de crescimento demográfico que ostentam sugerem que os seus povos não estão em maior decadência que o Ocidente. O Islã vive um dilema profundo, uma dúvida essencial, sobre como se modernizar sem se ocidentalizar. Nós não temos tal dilema: temos outros e piores; temos espasmos de identidade tão violentos que levam intelectuais a indagar se não atravessamos uma crise de regressão.
Civilizações surgem, desenvolvem-se, atingem o apogeu, decaem e se extinguem. As duas últimas etapas do ciclo da sua existência assinalam-se por crises de identidade e pelo afrouxamento da disciplina empregada para desenvolver a cultura. Nem sempre uma civilização decadente se extingue, porém ela pode retroceder aos núcleos originais de que nasceu. Pode ser que o Ocidente atravesse um processo tendente a esse fim.
Depois de haver perdido a noção do que o Cristo foi em si e por si, após tê-la substituído pela noção que as igrejas fizeram dele, a civilização ocidental ameaça voltar-se, em definitivo, contra a figura de Cristo. Não se voltar abertamente, não atacar essa figura de frente, é verdade, mas substituí-la, quase imperceptivelmente, pelo Jesus histórico entendido como o Jesus comum, que no fundo e em síntese não faz sentido religioso algum; por um Jesus que faz, até mesmo, escasso sentido civilizatório. Aonde esse processo leva, a não ser à perda da identidade civilizacional do Ocidente?
Este texto procurou mostrar que a troca do Cristo por Jesus, do Messias divino pelo homem comum, deu-se pela moeda da história, porém a moeda era falsa. Foi o que procurei mostrar, pelo menos, em relação à última semana. A crítica científica, histórica e literária ao Cristo das Escrituras cresceu a ponto de se transformar numa hipercrítica, que ameaça descarrilar de vez. O super-homem que concebeu esta última veio a óbito, porém deixou como herdeira a obstinação por liquidar o núcleo da religião e, com ele, o da própria civilização.
Nesse contexto, nada é mais útil ou necessário do que reestudar quem realmente foi Jesus. Se o câmbio do Cristo da religião pelo Jesus humano se deu, mediante a moeda da história, é preciso celebrar a transação inversa, por meio da mesma moeda. É preciso verificar se podemos, sim, reencontrar o Cristo, por meio do Jesus histórico. Foi o que tentei realizar, em parte, neste longo artigo sobre os acontecimentos da última semana.

Em O choque de civilizações (Rio de Janeiro: Objetiva, 2010), o cientista político norteamericano Samuel Huntington afirmou a importância central da religião para a formação e a sobrevivência de qualquer civilização. Não é possível negar-lhe razão. Porém, o papel destacado da religião, na ordem social, não se deve a suas posições reacionárias, mas à sua capacidade de se renovar e assumir formas revolucionárias. Não é outro o valor específico da fé cristã demonstrado na última semana da vida de Jesus.
Jesus de Nazaré foi um homem da sua época, um adorador de Jeová, um cultor do Tanaque, a Bíblia hebraica, um observante das leis de Israel, um rabi que ensinava nas sinagogas e no Templo de Jerusalém. Antes de ser preso, Jesus discutiu, longamente, com representantes das principais correntes de pensamento da época. Essa era uma atividade rabínica bastante típica. Porém, o que distinguiu Jesus foi a maneira como ele denunciou os desvios das várias correntes da religião que professou, como se preocupou em introduzir uma nova aliança com Deus, pautada no amor e na compaixão, como pôs em movimento essa pregação e esse ensino, na sua própria vida, compadecendo-se dos fracos, doentes, pobres e oprimidos. Com isso, Jesus não criou uma religião totalmente nova, mas fez tudo o que era preciso para redirecionar e renovar a religião judaica. É inegável, também, que Jesus obteve o mais amplo sucesso nesse desiderato.
Mais que em qualquer outro momento dos Evangelhos, o caráter revolucionário do ministério de Cristo demonstra-se na sua última semana de vida. Nesse curto período, Jesus entrou em Jerusalém montado num jumentinho, cumprindo intencionalmente a profecia messiânica de Zacarias, expulsou os vendilhões do Templo sem permissão das autoridades, afirmou que o Templo seria destruído (um ultraje grave), curou pessoas, discutiu asperamente, em momentos consecutivos, com representantes das principais correntes de pensamento da época, com exceção dos essênios, condenou os escribas e os fariseus no discurso inflamado que proferiu no Templo, assumiu seu papel messiânico ante o Sumo-Sacerdote e respondeu, incisivamente, os interrogatórios judiciais a que foi submetido.
Durante todo esse tempo, inclusive nos interrogatórios, Jesus nunca se retraiu. Pelo contrário, ele se manteve sempre na ofensiva, respondendo não só com firmeza, mas até com agressividade aos juízes e líderes que o interrogaram. Chegou ao ponto de recusar a bebida oferecida para roubar-lhe os sentidos e atenuar-lhe o sofrimento na cruz. Jesus só tomou o vinagre, minutos antes de expirar. Portanto, ele decidiu enfrentar o maior e mais humilhante castigo público daquela época, em toda a sua brutalidade e sem atenuações. Tudo isso ele fez sozinho, pois seus seguidores o abandonaram. Fê-lo com resultado espantoso, pois a maioria dos juízes que o examinaram convenceu-se da sua inocência.
Esses dados indicam que o sentido da última semana é o de uma grande revolução espiritual. O Evangelho de João abre a narrativa desse tempo, que excede todos os outros em importância, com as seguintes palavras: “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim” (Jo 13:1). Essa frase é a chave para abrirmos os mistérios do que Jesus realizou nos capítulos seguintes, a saber, os acontecimentos revolucionários da última semana.
Ao mesmo tempo, ela desvenda o sentido da inteira vida de Jesus, antes e durante a última semana. De acordo com o célebre verso, até aquele momento Jesus amara os seus que estavam no mundo; depois dele, amou-os até o fim. Talvez saibamos, embora mal, o que é amar. Porém, certamente, o mundo não havia conhecido, até então, o que é amar até o fim. Essa é razão bastante para dividirmos o Evangelho entre o que vem antes de João 13:1 e o que vem depois. A última semana, somente ela, desvenda o amor terminal, o amor sem limites, o amor até o fim, o amor diferente de tudo o que é terreno, de tudo o que é temporal, de tudo o que histórico.
Até João 13, vemos o amor temporal, o amor encarnado, o amor dentro do mundo e da história; a partir de João 13, contemplamos o amor atemporal na mais exata definição, o amor divino oculto dos séculos e das gerações, cuja luz não brilhara na Terra até então e que rutilou, de repente, como um raio saído da espessa treva que envolveu Jerusalém, nas horas finais. A luz resplandece nas trevas, é o que nos diz o prólogo de João. Trevas por definição foram as que tomaram o Gólgota; amor foi o de Jesus.