terça-feira, 23 de maio de 2017

Josué em Jericó (3)

Após a queda das cidades de Canaã, seguiu-se a coexistência pacífica dos cananeus das aldeias com os israelitas que fixaram residência nelas e a miscigenação dos dois grupos.
Do ponto de vista cultural, ocorreu então o que geralmente ocorre quando duas culturas materiais confluem: a menos aperfeiçoada (israelita) foi absorvida pela mais desenvolvida (cananeia).
Porém, os israelitas não experimentaram somente as vitórias narradas em Números e Josué, durante a ocupação de Canaã. Eles também provaram do cálice amargo de muitos reveses, que os cananeus lhes infligiram.
Com o passar do tempo e o continuar das refregas com os cananeus nos lugares em que não conviveram pacificamente, as baixas que os filhos de Israel sofreram quase causaram a aniquilação das tribos de Rúben, Simeão e Levi (FÖHRER, Georg. História História da religião de Israel. São Paulo: Paulus, 2008. p. 76).
Desse modo, no fim do Período das Conquistas, a vantagem numérica dos israelitas frente os cananeus deixara de existir, e a própria população israelita fora drasticamente reduzida.
Esses reveses forçaram os filhos de Israel a se manterem nas regiões altas da Judeia, que eles tinham ocupado pacificamente, como Georg Fohrer explicou: “Um exame das mais tardias localizações das tribos israelitas demonstra que eles frequentemente se estabeleceram naquelas regiões da Palestina que eram então desabitadas ou apenas escassamente povoadas. Naqueles lugares reivindicados e que não estavam ainda demarcados e, portanto, sem dono, seu estabelecimento foi essencialmente pacífico” (idem.).
Com o tempo, o acúmulo de derrotas e a necessidade de convivência pacífica com os cananeus conduziram ao abandono cabal das tentativas de conquista de terras pelos israelitas, que passaram a procurar novos meios de se estabelecer na região.
Entre as táticas de sobrevivência mais adotadas destacou-se a penetração pacífica nos territórios, inclusive urbanos, dos cananeus.
O estudioso alemão Albrecht Alt foi o primeiro propor uma teoria da penetração pacífica, na década de 20 do século passado. De acordo com ele, antes de colonizarem Canaã, os israelitas tinham sido pastores que migravam habitualmente com seus rebanhos entre a orla do deserto e as terras urbanizadas (The Bible unearthed: Archaeology’s new vision of Ancient Israel and the origin of sacred os its sacred texts. New York: Simon & Schuster, 2002. p. 102).
Um estudo histórico-arqueológico da Universidade de Boston sobre a Idade do Bronze Médio destaca a importância da teoria de Alt: “Albrecht Alt foi um dos primeiros eruditos a notarem a multiplicação de assentamentos na Palestina, durante a Idade do Bronze Médio. Como geógrafo histórico, Alt percebeu que um número muito maior de localidades é mencionado nos Textos de Execração tardios do que nos antigos. Sugeriu que isso se devia à multiplicação dos assentamentos, o que, desde então, foi confirmado por expedições arqueológicas. Hoje sabemos que muitas das cidades bíblicas mais importantes foram fundadas precisamente nessa época” (“Middle Bronze Age, 2200 - 1570 B.C.E.”. “Settlement patterns”. Boston University. Disponível em http://www.bu.edu/anep/MB.html. Acesso em 08/04/17).
A importância da penetração pacífica leva-nos a avaliar que a partilha da terra narrada em Josué 14 a 19 teve o caráter de uma declaração do direito das tribos a ela. Nem todos os israelitas tomaram posse dos quinhões que lhes couberam na partilha naquele momento. Na verdade, só uma pequena parte deles o fez.
Sinal claro disso é o fato de Calebe ter recebido a sua porção e sido forçado a lutar, em seguida, com os povos que ali habitavam para possuí-la: “Josué o abençoou, e deu a Calebe, filho de Jefoné, Hebrom em herança” (Js 14:13). “Dali expulsou Calebe os três filhos de Enaque: Sesai, Aimã e Talmai, gerados de Enaque. Subiu aos habitantes de Debir [...] Tomou-a, pois, Otniel, filho de Quenaz, irmão de Calebe” (Js 15:14-15,17).
A entrega de Hebrom a Calebe e a necessidade, que ele teve, de a conquistar constituem eloquente exemplo de que a partilha dos capítulos 14 a 19 do livro de Josué não importou a posse efetiva das terras aquinhoadas, mas a declaração do direito divino das tribos sobre elas. A declaração final da seção deve ser entendida sob essa ótica: “Dessa maneira deu o Senhor a Israel toda a terra que jurara dar a seus pais; e a possuíram e habitaram nela” (Js 21:43).
Os hebreus antigos não conheciam a diferença entre posse e propriedade. A declaração de Josué 15 foi a outorga da propriedade, porém não da posse da terra, que se dá pelo exercício do poder físico sobre o bem imóvel.
O próprio livro de Josué arrola uma série de terras outorgadas aos judeus, após a entrada em Canaã, das quais eles não se apossaram: “Esta é a terra ainda não conquistada: todas as regiões dos filisteus e toda a Gesur, desde Sior, que está defronte do Egito, até o termo de Ecrom para o norte, que se considera como dos cananeus [...] Ao sul os aveus, também toda a terra dos cananeus, e Meara, que é dos sidônios, até Afeque, ao termo dos amorreus; e ainda a terra dos gibleus, e todo o Líbano, para o nascente do sol, desde o Líbano até Misrefote-Maim, todos os sidônios” (Js 13:2-6).
O rol de Josué 13 teve a finalidade de encorajar os israelitas a conquistarem tais terras. Mas o fato de o encorajamento ter sido dado não significa que eles a possuíram de imediato.
Porém, isso não significa que os territórios do capítulo 13 de Josué não foram povoados mais tarde pelos israelitas. Os indícios históricos são no sentido de que a maior parte o foi.
A famosa estela de Mesa, rei de Moabe, por exemplo, afirma que “as gentes de Gade [uma das tribos de Israel] tinham habitado no país de Atarot desde sempre” (CAZELLES, Henri. História política de Israel – desde as origens até Alexandre Magno. 3ª ed., São Paulo: Paulus, 2008. p. 51).
Isso confirma que Gade, de fato, ocupou o território que o Antigo Testamento lhe atribui.
Há evidências de que o mesmo ocorreu com as outras tribos, embora entre muitos percalços.
Em síntese, a ocupação não se deu somente mediante conquistas, mas também por penetração pacífica e outros métodos. O fato de Josué o afirmar não implica contradição alguma, pois a afirmação de que Israel não conquistou muitos territórios que Deus lhe concedeu é feita deliberadamente e em frases abertas.
Pode ser que a tendência a engrandecer os feitos divinos da História de Israel tenha levado os hebreus a sobreporem as conquistas à ocupação gradual nas tradições que transmitiram sobre aqueles feitos. Sinais dessa sobreposição são encontrados em Salmo 44:1-2: “Ouvimos, ó Deus, com os próprios ouvidos; nossos pais nos têm contado o que outrora fizeste, em seus dias. Como por tuas próprias mãos desapossaste as nações e os estabeleceste; oprimiste os povos e aos pais deste largueza”.
“Ouvimos com os nossos próprios ouvidos” parece indicar, claramente, uma tradição oral. O mesmo acontece com a referência ao relato dos pais sobre o que teve lugar “em seus dias”.
Essas expressões indicam que a tradição oral das conquistas iniciou-se imediatamente.
A alusão exclusiva às conquistas (e não à penetração gradual), no salmo, parece mostrar como a oralidade contribuiu para a valorização maior de um dos
aspectos da história.
Porém, a consciência da extensão limitada das conquistas nunca se perdeu. No livro de Judite, considerado canônico pelos católicos e apócrifo pelos protestantes, há um resumo da História de Israel em que lemos que, após o Êxodo, eles “expulsaram todos os habitantes do deserto, estabeleceram-se na terra dos amorreus e exterminaram vigorosamente todos os habitantes de Hesebon. Atravessaram o Jordão, tomaram toda a montanha [...] e habitaram ali por muitos dias” (Jd 5:14-16).
Em suma, após a guerra narrada em Josué 6 a 12, a balança do poder, na Palestina, pendeu para o lado dos cananeus, que permaneceram alojados nas melhores terras (as das planícies), ao passo que os israelitas se estabeleceram nas regiões montanhosas.
É o que depreendemos de versos como Juízes 1:19: “Esteve o Senhor com Judá, e este despovoou as montanhas; porém não expulsou os moradores do vale”.
Entre a redação dos relatos de Juízes e a época em que Judite foi escrito, no século II a. C., a consciência de que as conquistas sob Josué e os anciãos se limitaram à região montanhosa central de Canaã permaneceu mais ou menos intacta.
Esse estado de coisas foi determinado pela superioridade dos carros de guerra cananeus: “Então disseram os filhos de José [...] todos os cananeus que habitam na terra do vale têm carros de ferro [...] Judá despovoou as montanhas; porém não expulsou os moradores do vale, porquanto tinham carros de ferro [...] Jabim tinha novecentos carros de ferro e, por vinte anos, oprimia duramente os filhos de Israel” (Js 17:16; Jz 1:19; 4:3).
Despovoar as montanhas indica expulsar os habitantes delas, o que realmente sucedeu, embora a maior parte da penetração nos pontos elevados do território tenha sido pacífica.
De todo modo, a conquista da região montanhosa central veio a ser o único sucesso de longo prazo dos empreendimentos militares israelitas sob Josué e os anciãos que o sucederam.
Só com o triunfo de Baraque sobre os cananeus, em Taanaque, por volta de 1.357 a. C., a relação de forças começaria a alterar-se a favor dos filhos de Israel. Mesmo assim, levaria séculos para que, sob a liderança de Davi, eles começassem a se impor, em maior escala, aos habitantes locais.

segunda-feira, 8 de maio de 2017

Raízes da Crise

A Grande Depressão dos anos 30 do século passado fez surgir o mais hediondo regime político que o mundo já conheceu (o nazismo) e desencadeou a mais pestífera de todas as guerras.
Porém, em termos absolutos, a crise econômica de 2008-2009 foi muito maior do que a Grande Depressão, em que pese seus males imediatos terem sido combatidos com maior eficácia. Isso significa que os desequilíbrios gerados foram proporcionalmente maiores. Resta saber o que a crise, que se tornou conhecida como Grande Recessão, desencadeará no longo prazo.
Assim como não é possível dissociar as transformações desencadeadas pela 2ª Guerra da Grande Depressão, os grandes acontecimentos políticos e econômicos dos últimos anos guardam relações nem sempre explícitas, mas inegáveis, com a crise do subprime. As agitações no mundo islâmico, a guerra na Síria, o desarranjo das finanças públicas em vários países da Europa, a crise na Ucrânia são exemplos de fatos que, embora aparentemente dissociados da Grande Recessão de 2008-2009, num nível mais profundo, podem ser analisados em relação a ela.
Os problemas do Brasil atual não são exceção. Em que pese as reformas em discussão no Congresso Nacional terem-se tornado necessárias em razão de desarranjos internos do país, as consequências da crise global são o contexto do qual elas não podem ser desligadas. Por isso, é urgente pensar as reformas não só em conexão com os problemas internos que as fazem necessárias, mas também no contexto econômico e político global.
Se a conexão da conjuntura brasileira com esse contexto maior for reconhecida, a situação produzida pela Grande Recessão representará especial oportunidade para o Brasil realizar suas reformas, enfrentar mais eficazmente seus graves problemas históricos e completar seu processo de desenvolvimento. Mas, se ao revés a incapacidade de olhar mais longe e de enxergar o macro prevalecer, o país só entrará num ciclo virtuoso de desenvolvimento rebocado pela sorte.

Disponível em www.clubedeautores.com.br

segunda-feira, 17 de abril de 2017

O Moisés Histórico (4)

Em linhas gerais, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio tratam de dois períodos: o primeiro se estende do fim do cativeiro no Egito ao início da peregrinação no deserto; o segundo inclui as mortes de Miriã, Arão e Moisés, as vitórias sobre povos da Transjordânia e os preparativos para a entrada em Canaã.
Êxodo, Levítico, Números 1 a 19 e Deuteronômio 1—2:15 concentram-se nos primeiros dois anos da peregrinação no deserto.
Números 20 a 36 contam o que sucedeu no segundo período.
Esse o esquema geral dos fatos no Pentateuco.
Deuteronômio 1 introduz uma cunha de 37 ou 38 anos entre esses dois períodos: “Sucedeu que, no ano quadragésimo, no primeiro dia do undécimo mês, falou Moisés aos filhos de Israel [...] O Senhor, nosso Deus, nos falou em Horebe, dizendo: Tempo bastante haveis estado neste monte. Voltai-vos e parti [...] Então partimos de Horebe e caminhamos por todo aquele grande e terrível deserto que vistes, pelo caminho da região montanhosa dos amorreus, como o Senhor, nosso Deus, nos ordenara; e chegamos a Cades-Barneia [...] Desde Cades-Barneia até passarmos o ribeiro de Zerede, foram trinta e oito anos até que toda aquela geração dos homens de guerra se consumiu" (Dt 1:3,6-7,19; 2:14).
Essas palavras foram pronunciadas no fim do quadragésimo ano contado a partir do Êxodo. Elas recordam o transcurso de 38 anos entre a chegada a Cades-Barneia e a travessia do ribeiro de Zerede, onde o discurso de Moisés foi pronunciado.
Extraímos disso que os israelitas levaram dois anos para ir do Egito a Cades-Barneia e que, após a estada em Cades, passaram-se 38 anos até a travessia do ribeiro de Zerede.
Em Números 33, temos a lista dos lugares em que Israel acampou. Porém, se a examinarmos à luz do primeiro discurso de Moisés, em Deuteronômio, concluiremos que as paradas dos versículos 33:5-36 se deram nos dois primeiros anos.
Por outro lado, o verso 33:37 indica que as paradas seguintes (Nm 33:41-49) se deram após a travessia do Zerede.
Nesse quadro, os “muitos dias” (Dt 1:46) que os israelitas permaneceram em Cades-Barneia, após a humilhante derrota para os amorreus, inserem-se antes dos 38 anos.
Sabemos, portanto, o que se passou até os “muitos dias” em Cades, assim como possuímos informações detalhadas acerca dos acontecimentos posteriores à travessia do Zerede.
Porém, sobre os 38 anos entre a permanência em Cades e a travessia do Zerede não temos praticamente informações.
Moisés limita-se a declarar sobre esse período nebuloso: “O tempo que caminhamos desde Cades-Barneia até passarmos o ribeiro de Zerede foram trinta e oito anos, até que toda aquela geração dos homens de guerra se consumiu do meio do arraial, como o Senhor lhes jurara (Dt 2:14)”.
O verbo caminhar, inserto no verso acima, é o que temos de mais substancial sobre o enigmático período de 38 anos. A representação tradicional de que os israelitas perambularam 40 anos no deserto depende em grande parte dele.
O verbo informa-nos que Israel não permaneceu o período todo de 38 anos em Cades-Barneia, o que parece confirmar a teoria da perambulação.
Há muito tempo os arqueólogos identificam Cades com o Tel el-Qudeirat, situado no Neguebe.
Para entendermos se a identificação é correta, é útil investigar a localização de Cades-Barneia no Pentateuco.
Números e Deuteronômio informam que Cades ficava na extremidade de Edom, onde está Tel el-Qudeirat, às portas da região montanhosa dos amorreus, em Canaã:
“Enviou Moisés de Cades mensageiros ao rei de Edom a dizer-lhe [...] Estamos em Cades, cidade nos confins do teu país” (Nm 20:14,16).
“E chegamos a Cades-Barneia. Então eu vos disse: Ten-des chegado à região montanhosa dos amorreus” (Dt 1:19-20).
Cades também é associada ao entorno desértico da cidade referida por Moisés: “Partiram de Eziom-Geber, e acamparam-se no deserto de Zim, que é Cades” (Nm 33:36).
Isso nos leva algo além da identificação usual de Cades-Barneia com Tel el-Qudeirat. A localidade bíblica é o monte onde foram feitas escavações e também o deserto ao seu redor.
À luz desses dados, não é equivocado pensar que os israelitas acamparam em Tel el-Qudeirat e nos seus arredores, isto é, “no deserto de Zim, que é Cades”.
Esse é um ponto fundamental.
Além disso, os filhos de Israel “caminharam” 38 anos entre a permanência em Cades e a travessia do Zerede, o que indica que se afastaram ainda mais de Tel el-Qudeirat.
Embora caminhar não signifique o mesmo que dispersar-se, penso que o significado da palavra, no contexto da falta de informações sobre os 38 anos, pode ser exatamente esse.
Como os israelitas estavam acampados nos arredores do oásis de Cades, a palavra caminhar indica que eles se dispersaram dali para outros lugares.
Vemos que a imagem da dispersão do Grupo de Moisés, após os “muitos dias” em Cades-Braneia (Dt 1:46) é uma alternativa viável à do exército mobilizado durante 40 anos. Na verdade, o exército foi mobilizado duas vezes, por meio dos dois censos: uma no início da peregrinação, outra na parte final dela.
Como os censos indicam a existência de um contingente elevado de pessoas, é razoável supor que a aliança com os hicsos e outros grupos locais de hebreus ocorreu tanto num quanto no outro período de mobilização.
O intervalo maior de 38 anos sobre o qual a Bíblia se cala insere-se entre os censos da peregrinação.
Sabemos que, nesse interstício, os filhos de Israel retornaram (uma ou mais vezes) ao deserto de Zim e seu famoso oásis, pois Números 20:22 e 33:37 indicam que, após os 38 anos, eles “partiram de Cades, e acamparam-se no monte de Hor, na fronteira da terra de Edom”.
Se estavam em Cades, de onde se dispersaram, e partiram de Cades, 38 anos depois, os israelitas devem ter retornado àquele oásis. Talvez Cades tenha sido o centro de sua perambulação por 38 anos.
É oportuno lembrar que, na sua obra mais do que clássica sobre cronologia bíblica, James Ussher confirmou a inexistência de dados sobre os 37 anos intermediários da peregrinação: “Moisés registrou apenas os acontecimentos dos dois primeiros e do último ano da viagem pelo deserto” (USSHER, James. The Annals of the World. p. 48. Disponível em https:// ia801407.us. archive.org/8/items/AnnalsOfTheWorld/Annals. pdf.).
Como a Bíblia fornece pouquíssimos dados adicionais a esses, é possível e até recomendável que utilizemos, de maneira lógica e com necessário cuidado, as informações extrabíblicas disponíveis sobre os 38 anos.
Essas informações parecem confirmar à conclusão de que os israelitas realmente se dispersaram após os “muitos dias” (Dt 1:46) em Cades.
Finkelstein e Silberman afirmaram que, da lista de locais em que os israelitas acamparam, os únicos que foram identificados com segurança são Cades-Barneia e Eziom-Geber (FINKELSTEIN, Israel e SILBERMAN, Neil Asher. The Bible unearthed: Archaeology’s new vision of Ancient Israel and the origin of sacred os its sacred texts. New York: Simon & Schuster, 2002. p. 63).
Por isso, devemos voltar-nos a eles, sem desprezar as informações que outros sítios porventura possam fornecer.
O arqueólogo Israel Finkelstein publicou detalhado trabalho sobre as escavações em Cades (FINKELSTEIN, Israel. “Kadesh Barnea: A Reevaluation of Its Archaeology and History”. In Journal of the Institute of Archaeology of Tel Aviv University. 2010. Issue 1, Volume 37, p. 111-125).
O mesmo fez o também arqueólogo Rudolph Cohen (COHEN, Rudolph. "Excavations at Kadesh-Barnea: 1976-1978", Ein el-Qudeirat, Rudolph Cohen, 1981 AD”. In Biblical Archeologist. Spring 1981. Disponível em http://www.bible.ca/archeology/ bible-archeology-exodus-kadesh-barnea-in-el-qudeirat-excavations-at-kadesh-barnea-rudolph-cohen-ba1976-1982ad.htm).
Tanto um quanto o outro demonstraram de maneira exaustiva que Tel el-Qudeirat foi ocupado em escala na Idade do Bronze Antigo (3.500-2.200 a. C.) e a partir do fim do século XI ou início do X a. C.
Três fortalezas foram encontradas  nas ruínas de  Cades-Barneia.
A evidência indica que elas foram utilizadas pelo Reino de Judá, uma no século X e as outras no VII a. C.
A descoberta das fortalezas do século VII levou Finkelstein e Silberman a relacionarem a redação dos relatos bíblicos da peregrinação a essa época.
Cohen interpreta a evidência diferentemente. 
No artigo citado acima, ele descreve as minuciosas pesquisas realizadas no local por Woolley e Lawrence, que foram “os primeiros eruditos com sólido treinamento em Arqueologia a estudarem o local” (COHEN, Rudolph. Ob. cit. “The Excavations of C. L. Woolley and T. E. Lawrence” p. 94): “Nos escombros, Woolley e Lawrence encontraram fragmentos de cerâmica fabricada com roda e outros feitos à mão. Os primeiros eram do “tipo sírio”, o que associava o sítio com o norte. De acordo com a classificação de Macalister, então em uso, esses artefatos pertenciam ao Segundo e Terceiro Períodos Semíticos (aproximadamente 1800-900 a. C.), mas outros objetos com pintura refinada pareciam reduzir o tempo de ocupação ao fim do segundo ou início do primeiro milênio a. C. A cerâmica feita à mão era de aspecto notoriamente grosseiro e semelhante à observada em outros locais das vizinhanças” (1940 Lachish (Tell ed-Duweir) II: The Fosse Temple. Oxford: Oxford University, 1914-1915. Woolley C. L, and Lawrence, T. E. p. 6667).
O artigo  confirma  que  a  cerâmica grosseira forjada à mão é israelita.
Notemos que ela não foi encontrada apenas no sítio escavado, mas também “em outros locais das vizinhanças”.
Porém, o trecho transcrito não se limita a afirmar a existência das duas cerâmicas. Acrescenta que os artefatos mais refinados (de aspecto sírio) foram datados por Woolley-Lawrence entre 1.800 e 900 a. C.
Notem que Cohen não afirma que essa datação foi mais tarde revista para o século VII a. C., até porque alterações tão drásticas de idades estabelecidas por grandes arqueólogos são raríssimas. Cohen faz asseveração diferente: diz que escavações posteriores à de Woolley-Lawrence revelaram “outros objetos com pintura refinada”, os quais foram datados do fim do segundo milênio ou início do primeiro.
Ficamos, pois, com dois grupos ou conjuntos de cerâmicas: o primeiro do século XVIII ao X (descoberta por Woolley-Lawrence) e o outro do século XI ao VII a. C.
Os primeiros 250 anos do período 1.800-900 a. C., mencionado por Woolley-Lawrence, inserem-se na Idade do Bronze Médio. Parecem, pois, confirmar que a ocupação intensa da Idade do Bronze Antigo continuou nessa época.
Claro que a cerâmica síria desse período não foi fabricada pelos israelitas. Porém, é possível que tenha sido usada por hebreus da Palestina ou, mais especificamente, pelos hicos aparentados aos filhos de Israel.
Se o Êxodo aconteceu no fim do Período Hicso, como proponho, é consequente pensar que, por volta de 1.550 a. C., Cades fosse ocupada por eles.
Em outro trecho do seu artigo,
Cohen se refere às escavações de M. Dothan em Tel el-Qudeirat em 1.956, as quais tiveram por foco a primeira fortaleza encontrada no local.
Dothan localizou a edificação desse forte no século IX a. C., porém “reconheceu tanto a existência de assentamentos anteriores quanto de posteriores a ela” (DOTHAN, M. “The Fortress at Kadesh Barnea”. Israel Exploration Journal 15:134-51. 1965. Citado em COHEN, Rudolph. Ob. cit. “The excavations of M. Dothan”, p. 96.).
A cerâmica correspondente aos assentamentos anteriores à fortaleza foi datada por Dothan do século X em diante.
Esses os resultados das escavações de 1.956 em Cades.
Em 1.976-1.978, Dothan regressou ao local para novas escavações. Nessa campanha é que as outras duas fortificações foram encontradas.
Dothan descobriu que um dos seus novos achados tinha sido edificado no século X a. C. Portanto, era anterior à fortaleza desenterrada por Woolley-Lawrence.
Em ambas as fortalezas foi identi-ficado o costumeiro padrão de cerâmica mais sofisticada, forjada com aparelhos, ao lado do tipo forjado à mão.
Ficamos, assim, com três fortalezas, uma do século X e duas do VII a. C.
Dothan observou que, no forte construído primeiro, “a proporção de cerâmica feita à mão era muito maior e imitava a cerâmica feita com rodas” (idem. p. 99).
Como já vimos, a ideia que o artigo de Cohen  favorece  é  de  que  essa  cerâmica  era de fabricação israelita.
Embora não confirme, o artigo de Finkestein sobre Tel el-Cudeirat, muito focado nos séculos VIII-VII, tampouco refuta essa conclusão de Cohen para quem “as escavações foram realizadas apenas em parte restrita do sítio arqueológico. Se vestígios anteriores existem, é possível que não se estendam a toda a área. Além disso, creio que pode haver uma relação entre a concentração de assentamentos do Bronze Médio I em toda a região e a tradição bíblica da extensa jornada dos israelitas em Cades-Barneia” (COHEN, Rudolph. Ob. cit. p. 103).
Nesse trecho do seu artigo, Cohen refere-se a assentamentos da Idade do Bronze I (2.100 a 2.000 a. C.), portanto ainda mais antigos que os localizados por Woolley e Lawrence a partir de 1.800 a. C.
Temos, pois, por admissível a ideia de uma ocupação difusa dos arredores de Tel el-Cudeirat na transição da Idade do Bronze Antigo para o Bronze Intermediário. Essa ocupação continuou durante todo o Período do Bronze Médio, que inclui a época do Êxodo (cerca de 1.572 a. C.).
Voltemo-nos agora à outra localidade da lista de Números 33 que a Arqueologia localizou com pequena margem de dúvida: Eziom-Geber.
Tenho discorrido pouco sobre esse lugar até aqui, porque o Pentateuco menciona uma única estada inequívoca de Israel nele (Nm 33:35-36).
Quando tratam de Eziom-Geber, as numerosas fontes que consultei (inclusive Finkelstein e Silberman) reportam-se, invariavelmente, às escavações realizadas por Nelson Glueck entre 1.938 e 1.940 (THOMPSON, John A. A Bíblia e a Arqueologia – quando a ciência descobre a fé. São Paulo: Vida Cristã, 2004. p. 89). Trata-se, pois, de levantamentos antigos e não de revisões recentes deles.
A Enciclopaedia Britannica afirma que Eziom-Geber foi “quase certamente fundada por Salomão por volta de 1.950 a. C.” (“Ezion-Geber, ancient city, Jordan”. Enciclopaedia Britannica. Disponível em https://global.britannica.com/place/Ezion-geber. Acesso em 10/04/17).
Essa asserção deve-se ao testemunho expresso da Bíblia no sentido de que Salomão construiu navios e utilizou amplamente Eziom-Geber. Como as fontes históricas não trazem informação de que outro povo ocupou o local na mesma época, a fundação por Salomão se impõe.
Claro que o acampamento israelita em Eziom-Geber foi muito anterior ao povoamento do lugar. Por isso, devemos esperar encontrar ali o mesmo padrão de ocupação difusa observado em Cades-Barneia no século XVI a. C. ou talvez ainda mais difuso, pois em Eziom-Geber não havia sequer um centro em torno do qual acampar.
Padrão tão difuso é típico de povos nômades e seminômades.
Encontramo-lo em numerosos lugares do Oriente Próximo em toda a Antiguidade. Porém, assim como a proporção da cerâmica rústica era maior na Idade do Bronze, a ocupação nômade e seminômade também o era.
Consideradas em conjunto, essas evidências apontam para a conclusão de que os israelitas da época do Êxodo eram tribos nômades que, em dois curtos períodos, foram organizados num exército, sob a liderança de Moisés e Josué.
As famosas conquistas dos israelitas em Canaã ocorreram, principalmente, nesse último período.

terça-feira, 14 de março de 2017

Breve Comentário de Romanos

Romanos 11:32 traz uma declaração exatamente inversa à de 3:23. Enquanto este último verso atesta que "todos pecaram e carecem da glória de Deus", o capítulo 11 termina com a afirmação de que "Deus a todos encerrou na desobediência, a fim de usar de misericórdia para com todos".
Na estrutura cuidadosamente concebida da Carta aos Romanos, esse não é um pormenor irrelevante. Indica, ao contrário, que, como o pecado se tornou universal, a misericórdia divina também atinge todos os homens.
A misericórdia se estende sobre os homens, como os céus cobrem a terra. Nenhuma parte do mundo lhe escapa. E não há nela traço de ira.
Como a flor que não tem um só ponto de que se possa dizer "Não é belo!", a misericórdia divina é isenta do mais leve aspecto do qual se possa afirmar: "Não é pura bondade!".



Compre aqui o livro 'BREVE COMENTÁRIO DE ROMANOS'

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

História da Graça - Livro II: A História em Gênesis



            Neste volume, o autor defende que, assim como a Pré-História da humanidade não é considerada lendária por não possuirmos documentos escritos a seu respeito, os primeiros capítulos de Gênesis, que narram a Pré-História Patriarcal não devem ser considerados ficção apenas porque os acontecimentos neles narrados foram a princípio preservados de forma oral.

Compre aqui o livro 'HISTÓRIA DA GRAÇA'

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Deus é Pai - O Cristianismo e as outras religiões


De todos os fatos sociais, a religião é, sem dúvida, o mais fundamental e misterioso. Pensadores de áreas tão diferentes quanto Durkheim, Freud, Toynbee, Huntington e Girard são unânimes em sustentar que a cultura se funda na religião.
No entanto, pesquisa realizada em 2009, demonstrou que o percentual de ateus era de 85% na Suécia, 72% na Noruega, 80% na Dinamarca, 60% na Finlândia. No Reino Unido, 44% da população declara não possuir crença religiosa, mesmo percentual da Holanda. Na Bélgica há 43% de ateus, na Alemanha, 49%, na França, 54%. Não há sinais de que esses percentuais tenham declinado de 2009 até hoje.

Compre aqui o livro 'Deus é pai'

sábado, 17 de setembro de 2016

A Pergunta do Povo

 “E o povo já pergunta com maldade:
Onde está a honestidade,
Onde está a honestidade?”
(Noel Rosa, “Onde está a honestidade?”)

A pergunta do gostoso samba de Noel atravessou os tempos vividos pela nossa sociedade, de 1933, quando foi composto, aos episódios recentes da política nacional.
O samba é um confronto. Canta-se com o dedo apontado para certo tipo: “Você tem palacete reluzente/ Tem joias e criados à vontade/ Sem ter nenhuma herança nem parente”. E continua em versos sempre incisivos e sentidos, como em regra são os de Noel.
A pergunta que o refrão formula sobre o tipo em berlinda, ao final de cada estrofe, é tratada como pergunta do povo e de fato o é. Daí o confronto e o amargo conflito de classes que lhe subjazem: “Onde está a honestidade?”
A questão sugere que quem a formula sabe o que é o honesto. Põe em dúvida apenas que possa ser encontrado naqueles cujo dinheiro nasce sem herança, sem parente, talvez até sem trabalho. A inquietação por trás da pergunta, por isso, não é especulativa, mas prática.
É verdade que os filósofos criam questionamentos profundos sobre o que são o justo, o honesto e os outros valores morais. Porém, o homem comum não participa das suas dúvidas e preocupações. Ele sabe o que são tais valores.
Talvez por isso, definições de valores não apareçam com muita frequência nos ensinamentos dos antigos jurisconsultos. E, quando aparecem, verificamos que não são muito problematizadas. Atribui-se a Ulpiano ou a um glosador medieval a lição recolhida no Digesto (1,10,1) segundo a qual “Os preceitos do direito são estes: viver honestamente, a ninguém lesar, dar a cada um o que é seu”.
Dar a cada um o que é seu, eis uma célebre definição de justiça. Porém, a intenção de gravá-la no Digesto era muito mais estabilizá-la do que problematizá-la. Claro que a definição não inibia as mentes abertas de a discutirem. Mas os próprios escritos de sabedoria, dos provérbios de Salomão aos aforismos de Confúcio, só se compreendem na medida em que se percebe que estavam completamente voltados a colocar em circulação e em prática definições mais ou menos aceites dos valores. Esta era a convenção amplamente vigente na Antiguidade.
O Direito conservou sua orientação prática ao longo dos séculos. Hoje como ontem, o que importa a quantos trabalham com o jurídico não é tanto problematizar os conceitos quanto debater a sua aplicação prática. A pergunta do legislador, como a do povo, não é “O que é a honestidade?” É “Onde está a honestidade?”.
Essa é a razão de gelar-me, ao ver o povo indagar com tanta frequência, nestes dias lancinantes, o que vem a ser a honestidade no exercício do poder. O episódio do impeachment presidencial mostrou-o sobejamente. Que é pedalada? Pedalar é honesto? Todos os que governam pedalam? Se eu governar, também pedalarei?
Quantas assinaturas devem ser apostas no processo que faz nascer um decreto presidencial para que ele seja orientado ao legal e ao honesto? Essas assinaturas tornam o decreto um ato em cadeia, um ato jurídico complexo? Se o tornam, o legal e o honesto ou, a contrario, o ilegal e o desonesto se albergam em toda a cadeia de produção do decreto ou apenas numa de suas etapas?
Não estou a afirmar que, enfrentadas a fundo, essas questões devam ser respondidas desta ou daquela maneira. Não me importa, aqui, tanto a resposta a dar às perguntas quanto o perguntar e o responder, vale dizer, o diálogo no qual elas têm sido ultimamente formuladas.
Todo poder emana do povo e em seu nome é exercido. Mas o povo não entende o que é pedalada, nem as condições e as consequências de um decreto ser legal e honesto. E os que o representam o fazem condignamente, pois demonstram que tampouco o compreendem. Fiam-se, por isso mesmo, em pareceres técnicos lançados em termos conclusivos, os quais, no entanto, não suprem o desconhecimento profundo do que realmente ocorre ou ocorreu.
Não há como olhar para esse quadro e não desconfiar de que algo culturalmente muito equivocado se passa. O discurso do direito, o da política e o da ética já não supõem verdadeira cognição de valores. Não supõem que a honestidade, a probidade, a moralidade e outros valores sejam realmente conhecidos e que, sobre esse conhecimento, possamos discutir como mantê-los, realizá-los concretamente, talvez maximizá-los.
Um discurso só é coerente quando os que dele participam fazem uso correto e leal das palavras. Não foi o que vivemos no recente episódio do impeachment da Presidente da República. Vimos uma discussão ser travada sobre o que não se entende e dela serem extraídas drásticas consequências políticas. O que faz pensar que, entre nós, o drama da construção coerente dos valores constitucionais ainda está longe do fim.