Após a queda das cidades de Canaã, seguiu-se a coexistência pacífica dos cananeus das aldeias com os israelitas que fixaram residência nelas e a miscigenação dos dois grupos.
Do ponto de vista cultural, ocorreu então o que geralmente ocorre quando duas culturas materiais confluem: a menos aperfeiçoada (israelita) foi absorvida pela mais desenvolvida (cananeia).
Porém, os israelitas não experimentaram somente as vitórias narradas em Números e Josué, durante a ocupação de Canaã. Eles também provaram do cálice amargo de muitos reveses, que os cananeus lhes infligiram.
Com o passar do tempo e o continuar das refregas com os cananeus nos lugares em que não conviveram pacificamente, as baixas que os filhos de Israel sofreram quase causaram a aniquilação das tribos de Rúben, Simeão e Levi (FÖHRER, Georg. História História da religião de Israel. São Paulo: Paulus, 2008. p. 76).
Desse modo, no fim do Período das Conquistas, a vantagem numérica dos israelitas frente os cananeus deixara de existir, e a própria população israelita fora drasticamente reduzida.
Esses reveses forçaram os filhos de Israel a se manterem nas regiões altas da Judeia, que eles tinham ocupado pacificamente, como Georg Fohrer explicou: “Um exame das mais tardias localizações das tribos israelitas demonstra que eles frequentemente se estabeleceram naquelas regiões da Palestina que eram então desabitadas ou apenas escassamente povoadas. Naqueles lugares reivindicados e que não estavam ainda demarcados e, portanto, sem dono, seu estabelecimento foi essencialmente pacífico” (idem.).
Com o tempo, o acúmulo de derrotas e a necessidade de convivência pacífica com os cananeus conduziram ao abandono cabal das tentativas de conquista de terras pelos israelitas, que passaram a procurar novos meios de se estabelecer na região.
Entre as táticas de sobrevivência mais adotadas destacou-se a penetração pacífica nos territórios, inclusive urbanos, dos cananeus.
O estudioso alemão Albrecht Alt foi o primeiro propor uma teoria da penetração pacífica, na década de 20 do século passado. De acordo com ele, antes de colonizarem Canaã, os israelitas tinham sido pastores que migravam habitualmente com seus rebanhos entre a orla do deserto e as terras urbanizadas (The Bible unearthed: Archaeology’s new vision of Ancient Israel and the origin of sacred os its sacred texts. New York: Simon & Schuster, 2002. p. 102).
Um estudo histórico-arqueológico da Universidade de Boston sobre a Idade do Bronze Médio destaca a importância da teoria de Alt: “Albrecht Alt foi um dos primeiros eruditos a notarem a multiplicação de assentamentos na Palestina, durante a Idade do Bronze Médio. Como geógrafo histórico, Alt percebeu que um número muito maior de localidades é mencionado nos Textos de Execração tardios do que nos antigos. Sugeriu que isso se devia à multiplicação dos assentamentos, o que, desde então, foi confirmado por expedições arqueológicas. Hoje sabemos que muitas das cidades bíblicas mais importantes foram fundadas precisamente nessa época” (“Middle Bronze Age, 2200 - 1570 B.C.E.”. “Settlement patterns”. Boston University. Disponível em http://www.bu.edu/anep/MB.html. Acesso em 08/04/17).
A importância da penetração pacífica leva-nos a avaliar que a partilha da terra narrada em Josué 14 a 19 teve o caráter de uma declaração do direito das tribos a ela. Nem todos os israelitas tomaram posse dos quinhões que lhes couberam na partilha naquele momento. Na verdade, só uma pequena parte deles o fez.
Sinal claro disso é o fato de Calebe ter recebido a sua porção e sido forçado a lutar, em seguida, com os povos que ali habitavam para possuí-la: “Josué o abençoou, e deu a Calebe, filho de Jefoné, Hebrom em herança” (Js 14:13). “Dali expulsou Calebe os três filhos de Enaque: Sesai, Aimã e Talmai, gerados de Enaque. Subiu aos habitantes de Debir [...] Tomou-a, pois, Otniel, filho de Quenaz, irmão de Calebe” (Js 15:14-15,17).
A entrega de Hebrom a Calebe e a necessidade, que ele teve, de a conquistar constituem eloquente exemplo de que a partilha dos capítulos 14 a 19 do livro de Josué não importou a posse efetiva das terras aquinhoadas, mas a declaração do direito divino das tribos sobre elas. A declaração final da seção deve ser entendida sob essa ótica: “Dessa maneira deu o Senhor a Israel toda a terra que jurara dar a seus pais; e a possuíram e habitaram nela” (Js 21:43).
Os hebreus antigos não conheciam a diferença entre posse e propriedade. A declaração de Josué 15 foi a outorga da propriedade, porém não da posse da terra, que se dá pelo exercício do poder físico sobre o bem imóvel.
O próprio livro de Josué arrola uma série de terras outorgadas aos judeus, após a entrada em Canaã, das quais eles não se apossaram: “Esta é a terra ainda não conquistada: todas as regiões dos filisteus e toda a Gesur, desde Sior, que está defronte do Egito, até o termo de Ecrom para o norte, que se considera como dos cananeus [...] Ao sul os aveus, também toda a terra dos cananeus, e Meara, que é dos sidônios, até Afeque, ao termo dos amorreus; e ainda a terra dos gibleus, e todo o Líbano, para o nascente do sol, desde o Líbano até Misrefote-Maim, todos os sidônios” (Js 13:2-6).
O rol de Josué 13 teve a finalidade de encorajar os israelitas a conquistarem tais terras. Mas o fato de o encorajamento ter sido dado não significa que eles a possuíram de imediato.
Porém, isso não significa que os territórios do capítulo 13 de Josué não foram povoados mais tarde pelos israelitas. Os indícios históricos são no sentido de que a maior parte o foi.
A famosa estela de Mesa, rei de Moabe, por exemplo, afirma que “as gentes de Gade [uma das tribos de Israel] tinham habitado no país de Atarot desde sempre” (CAZELLES, Henri. História política de Israel – desde as origens até Alexandre Magno. 3ª ed., São Paulo: Paulus, 2008. p. 51).
Isso confirma que Gade, de fato, ocupou o território que o Antigo Testamento lhe atribui.
Há evidências de que o mesmo ocorreu com as outras tribos, embora entre muitos percalços.
Em síntese, a ocupação não se deu somente mediante conquistas, mas também por penetração pacífica e outros métodos. O fato de Josué o afirmar não implica contradição alguma, pois a afirmação de que Israel não conquistou muitos territórios que Deus lhe concedeu é feita deliberadamente e em frases abertas.
Pode ser que a tendência a engrandecer os feitos divinos da História de Israel tenha levado os hebreus a sobreporem as conquistas à ocupação gradual nas tradições que transmitiram sobre aqueles feitos. Sinais dessa sobreposição são encontrados em Salmo 44:1-2: “Ouvimos, ó Deus, com os próprios ouvidos; nossos pais nos têm contado o que outrora fizeste, em seus dias. Como por tuas próprias mãos desapossaste as nações e os estabeleceste; oprimiste os povos e aos pais deste largueza”.
“Ouvimos com os nossos próprios ouvidos” parece indicar, claramente, uma tradição oral. O mesmo acontece com a referência ao relato dos pais sobre o que teve lugar “em seus dias”.
Essas expressões indicam que a tradição oral das conquistas iniciou-se imediatamente.
A alusão exclusiva às conquistas (e não à penetração gradual), no salmo, parece mostrar como a oralidade contribuiu para a valorização maior de um dos
aspectos da história.
Porém, a consciência da extensão limitada das conquistas nunca se perdeu. No livro de Judite, considerado canônico pelos católicos e apócrifo pelos protestantes, há um resumo da História de Israel em que lemos que, após o Êxodo, eles “expulsaram todos os habitantes do deserto, estabeleceram-se na terra dos amorreus e exterminaram vigorosamente todos os habitantes de Hesebon. Atravessaram o Jordão, tomaram toda a montanha [...] e habitaram ali por muitos dias” (Jd 5:14-16).
Em suma, após a guerra narrada em Josué 6 a 12, a balança do poder, na Palestina, pendeu para o lado dos cananeus, que permaneceram alojados nas melhores terras (as das planícies), ao passo que os israelitas se estabeleceram nas regiões montanhosas.
É o que depreendemos de versos como Juízes 1:19: “Esteve o Senhor com Judá, e este despovoou as montanhas; porém não expulsou os moradores do vale”.
Entre a redação dos relatos de Juízes e a época em que Judite foi escrito, no século II a. C., a consciência de que as conquistas sob Josué e os anciãos se limitaram à região montanhosa central de Canaã permaneceu mais ou menos intacta.
Esse estado de coisas foi determinado pela superioridade dos carros de guerra cananeus: “Então disseram os filhos de José [...] todos os cananeus que habitam na terra do vale têm carros de ferro [...] Judá despovoou as montanhas; porém não expulsou os moradores do vale, porquanto tinham carros de ferro [...] Jabim tinha novecentos carros de ferro e, por vinte anos, oprimia duramente os filhos de Israel” (Js 17:16; Jz 1:19; 4:3).
Despovoar as montanhas indica expulsar os habitantes delas, o que realmente sucedeu, embora a maior parte da penetração nos pontos elevados do território tenha sido pacífica.
De todo modo, a conquista da região montanhosa central veio a ser o único sucesso de longo prazo dos empreendimentos militares israelitas sob Josué e os anciãos que o sucederam.
Só com o triunfo de Baraque sobre os cananeus, em Taanaque, por volta de 1.357 a. C., a relação de forças começaria a alterar-se a favor dos filhos de Israel. Mesmo assim, levaria séculos para que, sob a liderança de Davi, eles começassem a se impor, em maior escala, aos habitantes locais.