Em
linhas gerais, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio tratam de dois períodos:
o primeiro se estende do fim do cativeiro no Egito ao início da peregrinação no
deserto; o segundo inclui as mortes de Miriã, Arão e Moisés, as vitórias sobre
povos da Transjordânia e os preparativos para a entrada em Canaã.
Êxodo, Levítico, Números 1 a 19 e Deuteronômio 1—2:15 concentram-se nos primeiros dois anos da peregrinação no deserto.
Números 20 a 36 contam o que sucedeu no segundo período.
Esse o esquema geral dos fatos no Pentateuco.
Deuteronômio 1 introduz uma cunha de 37 ou 38 anos entre esses dois períodos: “Sucedeu que, no ano quadragésimo, no primeiro dia do undécimo mês, falou Moisés aos filhos de Israel [...] O Senhor, nosso Deus, nos falou em Horebe, dizendo: Tempo bastante haveis estado neste monte. Voltai-vos e parti [...] Então partimos de Horebe e caminhamos por todo aquele grande e terrível deserto que vistes, pelo caminho da região montanhosa dos amorreus, como o Senhor, nosso Deus, nos ordenara; e chegamos a Cades-Barneia [...] Desde Cades-Barneia até passarmos o ribeiro de Zerede, foram trinta e oito anos até que toda aquela geração dos homens de guerra se consumiu" (Dt 1:3,6-7,19; 2:14).
Essas palavras foram pronunciadas no fim do quadragésimo ano contado a partir do Êxodo. Elas recordam o transcurso de 38 anos entre a chegada a Cades-Barneia e a travessia do ribeiro de Zerede, onde o discurso de Moisés foi pronunciado.
Extraímos disso que os israelitas levaram dois anos para ir do Egito a Cades-Barneia e que, após a estada em Cades, passaram-se 38 anos até a travessia do ribeiro de Zerede.
Em Números 33, temos a lista dos lugares em que Israel acampou. Porém, se a examinarmos à luz do primeiro discurso de Moisés, em Deuteronômio, concluiremos que as paradas dos versículos 33:5-36 se deram nos dois primeiros anos.
Por outro lado, o verso 33:37 indica que as paradas seguintes (Nm 33:41-49) se deram após a travessia do Zerede.
Nesse quadro, os “muitos dias” (Dt 1:46) que os israelitas permaneceram em Cades-Barneia, após a humilhante derrota para os amorreus, inserem-se antes dos 38 anos.
Sabemos, portanto, o que se passou até os “muitos dias” em Cades, assim como possuímos informações detalhadas acerca dos acontecimentos posteriores à travessia do Zerede.
Porém, sobre os 38 anos entre a permanência em Cades e a travessia do Zerede não temos praticamente informações.
Moisés limita-se a declarar sobre esse período nebuloso: “O tempo que caminhamos desde Cades-Barneia até passarmos o ribeiro de Zerede foram trinta e oito anos, até que toda aquela geração dos homens de guerra se consumiu do meio do arraial, como o Senhor lhes jurara (Dt 2:14)”.
O verbo caminhar, inserto no verso acima, é o que temos de mais substancial sobre o enigmático período de 38 anos. A representação tradicional de que os israelitas perambularam 40 anos no deserto depende em grande parte dele.
O verbo informa-nos que Israel não permaneceu o período todo de 38 anos em Cades-Barneia, o que parece confirmar a teoria da perambulação.
Há muito tempo os arqueólogos identificam Cades com o Tel el-Qudeirat, situado no Neguebe.
Para entendermos se a identificação é correta, é útil investigar a localização de Cades-Barneia no Pentateuco.
Números e Deuteronômio informam que Cades ficava na extremidade de Edom, onde está Tel el-Qudeirat, às portas da região montanhosa dos amorreus, em Canaã:
“Enviou Moisés de Cades mensageiros ao rei de Edom a dizer-lhe [...] Estamos em Cades, cidade nos confins do teu país” (Nm 20:14,16).
“E chegamos a Cades-Barneia. Então eu vos disse: Ten-des chegado à região montanhosa dos amorreus” (Dt 1:19-20).
Cades também é associada ao entorno desértico da cidade referida por Moisés: “Partiram de Eziom-Geber, e acamparam-se no deserto de Zim, que é Cades” (Nm 33:36).
Isso nos leva algo além da identificação usual de Cades-Barneia com Tel el-Qudeirat. A localidade bíblica é o monte onde foram feitas escavações e também o deserto ao seu redor.
À luz desses dados, não é equivocado pensar que os israelitas acamparam em Tel el-Qudeirat e nos seus arredores, isto é, “no deserto de Zim, que é Cades”.
Esse é um ponto fundamental.
Além disso, os filhos de Israel “caminharam” 38 anos entre a permanência em Cades e a travessia do Zerede, o que indica que se afastaram ainda mais de Tel el-Qudeirat.
Embora caminhar não signifique o mesmo que dispersar-se, penso que o significado da palavra, no contexto da falta de informações sobre os 38 anos, pode ser exatamente esse.
Como os israelitas estavam acampados nos arredores do oásis de Cades, a palavra caminhar indica que eles se dispersaram dali para outros lugares.
Vemos que a imagem da dispersão do Grupo de Moisés, após os “muitos dias” em Cades-Braneia (Dt 1:46) é uma alternativa viável à do exército mobilizado durante 40 anos. Na verdade, o exército foi mobilizado duas vezes, por meio dos dois censos: uma no início da peregrinação, outra na parte final dela.
Como os censos indicam a existência de um contingente elevado de pessoas, é razoável supor que a aliança com os hicsos e outros grupos locais de hebreus ocorreu tanto num quanto no outro período de mobilização.
O intervalo maior de 38 anos sobre o qual a Bíblia se cala insere-se entre os censos da peregrinação.
Sabemos que, nesse interstício, os filhos de Israel retornaram (uma ou mais vezes) ao deserto de Zim e seu famoso oásis, pois Números 20:22 e 33:37 indicam que, após os 38 anos, eles “partiram de Cades, e acamparam-se no monte de Hor, na fronteira da terra de Edom”.
Se estavam em Cades, de onde se dispersaram, e partiram de Cades, 38 anos depois, os israelitas devem ter retornado àquele oásis. Talvez Cades tenha sido o centro de sua perambulação por 38 anos.
É oportuno lembrar que, na sua obra mais do que clássica sobre cronologia bíblica, James Ussher confirmou a inexistência de dados sobre os 37 anos intermediários da peregrinação: “Moisés registrou apenas os acontecimentos dos dois primeiros e do último ano da viagem pelo deserto” (USSHER, James. The Annals of the World. p. 48. Disponível em https:// ia801407.us. archive.org/8/items/AnnalsOfTheWorld/Annals. pdf.).
Como a Bíblia fornece pouquíssimos dados adicionais a esses, é possível e até recomendável que utilizemos, de maneira lógica e com necessário cuidado, as informações extrabíblicas disponíveis sobre os 38 anos.
Essas informações parecem confirmar à conclusão de que os israelitas realmente se dispersaram após os “muitos dias” (Dt 1:46) em Cades.
Finkelstein e Silberman afirmaram que, da lista de locais em que os israelitas acamparam, os únicos que foram identificados com segurança são Cades-Barneia e Eziom-Geber (FINKELSTEIN, Israel e SILBERMAN, Neil Asher. The Bible unearthed: Archaeology’s new vision of Ancient Israel and the origin of sacred os its sacred texts. New York: Simon & Schuster, 2002. p. 63).
Por isso, devemos voltar-nos a eles, sem desprezar as informações que outros sítios porventura possam fornecer.
O arqueólogo Israel Finkelstein publicou detalhado trabalho sobre as escavações em Cades (FINKELSTEIN, Israel. “Kadesh Barnea: A Reevaluation of Its Archaeology and History”. In Journal of the Institute of Archaeology of Tel Aviv University. 2010. Issue 1, Volume 37, p. 111-125).
O mesmo fez o também arqueólogo Rudolph Cohen (COHEN, Rudolph. "Excavations at Kadesh-Barnea: 1976-1978", Ein el-Qudeirat, Rudolph Cohen, 1981 AD”. In Biblical Archeologist. Spring 1981. Disponível em http://www.bible.ca/archeology/ bible-archeology-exodus-kadesh-barnea-in-el-qudeirat-excavations-at-kadesh-barnea-rudolph-cohen-ba1976-1982ad.htm).
Tanto um quanto o outro demonstraram de maneira exaustiva que Tel el-Qudeirat foi ocupado em escala na Idade do Bronze Antigo (3.500-2.200 a. C.) e a partir do fim do século XI ou início do X a. C.
Três fortalezas foram encontradas nas ruínas de Cades-Barneia.
A evidência indica que elas foram utilizadas pelo Reino de Judá, uma no século X e as outras no VII a. C.
A descoberta das fortalezas do século VII levou Finkelstein e Silberman a relacionarem a redação dos relatos bíblicos da peregrinação a essa época.
Cohen interpreta a evidência diferentemente.
No artigo citado acima, ele descreve as minuciosas pesquisas realizadas no local por Woolley e Lawrence, que foram “os primeiros eruditos com sólido treinamento em Arqueologia a estudarem o local” (COHEN, Rudolph. Ob. cit. “The Excavations of C. L. Woolley and T. E. Lawrence” p. 94): “Nos escombros, Woolley e Lawrence encontraram fragmentos de cerâmica fabricada com roda e outros feitos à mão. Os primeiros eram do “tipo sírio”, o que associava o sítio com o norte. De acordo com a classificação de Macalister, então em uso, esses artefatos pertenciam ao Segundo e Terceiro Períodos Semíticos (aproximadamente 1800-900 a. C.), mas outros objetos com pintura refinada pareciam reduzir o tempo de ocupação ao fim do segundo ou início do primeiro milênio a. C. A cerâmica feita à mão era de aspecto notoriamente grosseiro e semelhante à observada em outros locais das vizinhanças” (1940 Lachish (Tell ed-Duweir) II: The Fosse Temple. Oxford: Oxford University, 1914-1915. Woolley C. L, and Lawrence, T. E. p. 6667).
O artigo confirma que a cerâmica grosseira forjada à mão é israelita.
Notemos que ela não foi encontrada apenas no sítio escavado, mas também “em outros locais das vizinhanças”.
Porém, o trecho transcrito não se limita a afirmar a existência das duas cerâmicas. Acrescenta que os artefatos mais refinados (de aspecto sírio) foram datados por Woolley-Lawrence entre 1.800 e 900 a. C.
Notem que Cohen não afirma que essa datação foi mais tarde revista para o século VII a. C., até porque alterações tão drásticas de idades estabelecidas por grandes arqueólogos são raríssimas. Cohen faz asseveração diferente: diz que escavações posteriores à de Woolley-Lawrence revelaram “outros objetos com pintura refinada”, os quais foram datados do fim do segundo milênio ou início do primeiro.
Ficamos, pois, com dois grupos ou conjuntos de cerâmicas: o primeiro do século XVIII ao X (descoberta por Woolley-Lawrence) e o outro do século XI ao VII a. C.
Os primeiros 250 anos do período 1.800-900 a. C., mencionado por Woolley-Lawrence, inserem-se na Idade do Bronze Médio. Parecem, pois, confirmar que a ocupação intensa da Idade do Bronze Antigo continuou nessa época.
Claro que a cerâmica síria desse período não foi fabricada pelos israelitas. Porém, é possível que tenha sido usada por hebreus da Palestina ou, mais especificamente, pelos hicos aparentados aos filhos de Israel.
Se o Êxodo aconteceu no fim do Período Hicso, como proponho, é consequente pensar que, por volta de 1.550 a. C., Cades fosse ocupada por eles.
Em outro trecho do seu artigo,
Cohen se refere às escavações de M. Dothan em Tel el-Qudeirat em 1.956, as quais tiveram por foco a primeira fortaleza encontrada no local.
Dothan localizou a edificação desse forte no século IX a. C., porém “reconheceu tanto a existência de assentamentos anteriores quanto de posteriores a ela” (DOTHAN, M. “The Fortress at Kadesh Barnea”. Israel Exploration Journal 15:134-51. 1965. Citado em COHEN, Rudolph. Ob. cit. “The excavations of M. Dothan”, p. 96.).
A cerâmica correspondente aos assentamentos anteriores à fortaleza foi datada por Dothan do século X em diante.
Esses os resultados das escavações de 1.956 em Cades.
Em 1.976-1.978, Dothan regressou ao local para novas escavações. Nessa campanha é que as outras duas fortificações foram encontradas.
Dothan descobriu que um dos seus novos achados tinha sido edificado no século X a. C. Portanto, era anterior à fortaleza desenterrada por Woolley-Lawrence.
Em ambas as fortalezas foi identi-ficado o costumeiro padrão de cerâmica mais sofisticada, forjada com aparelhos, ao lado do tipo forjado à mão.
Ficamos, assim, com três fortalezas, uma do século X e duas do VII a. C.
Dothan observou que, no forte construído primeiro, “a proporção de cerâmica feita à mão era muito maior e imitava a cerâmica feita com rodas” (idem. p. 99).
Como já vimos, a ideia que o artigo de Cohen favorece é de que essa cerâmica era de fabricação israelita.
Embora não confirme, o artigo de Finkestein sobre Tel el-Cudeirat, muito focado nos séculos VIII-VII, tampouco refuta essa conclusão de Cohen para quem “as escavações foram realizadas apenas em parte restrita do sítio arqueológico. Se vestígios anteriores existem, é possível que não se estendam a toda a área. Além disso, creio que pode haver uma relação entre a concentração de assentamentos do Bronze Médio I em toda a região e a tradição bíblica da extensa jornada dos israelitas em Cades-Barneia” (COHEN, Rudolph. Ob. cit. p. 103).
Nesse trecho do seu artigo, Cohen refere-se a assentamentos da Idade do Bronze I (2.100 a 2.000 a. C.), portanto ainda mais antigos que os localizados por Woolley e Lawrence a partir de 1.800 a. C.
Temos, pois, por admissível a ideia de uma ocupação difusa dos arredores de Tel el-Cudeirat na transição da Idade do Bronze Antigo para o Bronze Intermediário. Essa ocupação continuou durante todo o Período do Bronze Médio, que inclui a época do Êxodo (cerca de 1.572 a. C.).
Voltemo-nos agora à outra localidade da lista de Números 33 que a Arqueologia localizou com pequena margem de dúvida: Eziom-Geber.
Tenho discorrido pouco sobre esse lugar até aqui, porque o Pentateuco menciona uma única estada inequívoca de Israel nele (Nm 33:35-36).
Quando tratam de Eziom-Geber, as numerosas fontes que consultei (inclusive Finkelstein e Silberman) reportam-se, invariavelmente, às escavações realizadas por Nelson Glueck entre 1.938 e 1.940 (THOMPSON, John A. A Bíblia e a Arqueologia – quando a ciência descobre a fé. São Paulo: Vida Cristã, 2004. p. 89). Trata-se, pois, de levantamentos antigos e não de revisões recentes deles.
A Enciclopaedia Britannica afirma que Eziom-Geber foi “quase certamente fundada por Salomão por volta de 1.950 a. C.” (“Ezion-Geber, ancient city, Jordan”. Enciclopaedia Britannica. Disponível em https://global.britannica.com/place/Ezion-geber. Acesso em 10/04/17).
Essa asserção deve-se ao testemunho expresso da Bíblia no sentido de que Salomão construiu navios e utilizou amplamente Eziom-Geber. Como as fontes históricas não trazem informação de que outro povo ocupou o local na mesma época, a fundação por Salomão se impõe.
Claro que o acampamento israelita em Eziom-Geber foi muito anterior ao povoamento do lugar. Por isso, devemos esperar encontrar ali o mesmo padrão de ocupação difusa observado em Cades-Barneia no século XVI a. C. ou talvez ainda mais difuso, pois em Eziom-Geber não havia sequer um centro em torno do qual acampar.
Padrão tão difuso é típico de povos nômades e seminômades.
Encontramo-lo em numerosos lugares do Oriente Próximo em toda a Antiguidade. Porém, assim como a proporção da cerâmica rústica era maior na Idade do Bronze, a ocupação nômade e seminômade também o era.
Consideradas em conjunto, essas evidências apontam para a conclusão de que os israelitas da época do Êxodo eram tribos nômades que, em dois curtos períodos, foram organizados num exército, sob a liderança de Moisés e Josué.
As famosas conquistas dos israelitas em Canaã ocorreram, principalmente, nesse último período.
Êxodo, Levítico, Números 1 a 19 e Deuteronômio 1—2:15 concentram-se nos primeiros dois anos da peregrinação no deserto.
Números 20 a 36 contam o que sucedeu no segundo período.
Esse o esquema geral dos fatos no Pentateuco.
Deuteronômio 1 introduz uma cunha de 37 ou 38 anos entre esses dois períodos: “Sucedeu que, no ano quadragésimo, no primeiro dia do undécimo mês, falou Moisés aos filhos de Israel [...] O Senhor, nosso Deus, nos falou em Horebe, dizendo: Tempo bastante haveis estado neste monte. Voltai-vos e parti [...] Então partimos de Horebe e caminhamos por todo aquele grande e terrível deserto que vistes, pelo caminho da região montanhosa dos amorreus, como o Senhor, nosso Deus, nos ordenara; e chegamos a Cades-Barneia [...] Desde Cades-Barneia até passarmos o ribeiro de Zerede, foram trinta e oito anos até que toda aquela geração dos homens de guerra se consumiu" (Dt 1:3,6-7,19; 2:14).
Essas palavras foram pronunciadas no fim do quadragésimo ano contado a partir do Êxodo. Elas recordam o transcurso de 38 anos entre a chegada a Cades-Barneia e a travessia do ribeiro de Zerede, onde o discurso de Moisés foi pronunciado.
Extraímos disso que os israelitas levaram dois anos para ir do Egito a Cades-Barneia e que, após a estada em Cades, passaram-se 38 anos até a travessia do ribeiro de Zerede.
Em Números 33, temos a lista dos lugares em que Israel acampou. Porém, se a examinarmos à luz do primeiro discurso de Moisés, em Deuteronômio, concluiremos que as paradas dos versículos 33:5-36 se deram nos dois primeiros anos.
Por outro lado, o verso 33:37 indica que as paradas seguintes (Nm 33:41-49) se deram após a travessia do Zerede.
Nesse quadro, os “muitos dias” (Dt 1:46) que os israelitas permaneceram em Cades-Barneia, após a humilhante derrota para os amorreus, inserem-se antes dos 38 anos.
Sabemos, portanto, o que se passou até os “muitos dias” em Cades, assim como possuímos informações detalhadas acerca dos acontecimentos posteriores à travessia do Zerede.
Porém, sobre os 38 anos entre a permanência em Cades e a travessia do Zerede não temos praticamente informações.
Moisés limita-se a declarar sobre esse período nebuloso: “O tempo que caminhamos desde Cades-Barneia até passarmos o ribeiro de Zerede foram trinta e oito anos, até que toda aquela geração dos homens de guerra se consumiu do meio do arraial, como o Senhor lhes jurara (Dt 2:14)”.
O verbo caminhar, inserto no verso acima, é o que temos de mais substancial sobre o enigmático período de 38 anos. A representação tradicional de que os israelitas perambularam 40 anos no deserto depende em grande parte dele.
O verbo informa-nos que Israel não permaneceu o período todo de 38 anos em Cades-Barneia, o que parece confirmar a teoria da perambulação.
Há muito tempo os arqueólogos identificam Cades com o Tel el-Qudeirat, situado no Neguebe.
Para entendermos se a identificação é correta, é útil investigar a localização de Cades-Barneia no Pentateuco.
Números e Deuteronômio informam que Cades ficava na extremidade de Edom, onde está Tel el-Qudeirat, às portas da região montanhosa dos amorreus, em Canaã:
“Enviou Moisés de Cades mensageiros ao rei de Edom a dizer-lhe [...] Estamos em Cades, cidade nos confins do teu país” (Nm 20:14,16).
“E chegamos a Cades-Barneia. Então eu vos disse: Ten-des chegado à região montanhosa dos amorreus” (Dt 1:19-20).
Cades também é associada ao entorno desértico da cidade referida por Moisés: “Partiram de Eziom-Geber, e acamparam-se no deserto de Zim, que é Cades” (Nm 33:36).
Isso nos leva algo além da identificação usual de Cades-Barneia com Tel el-Qudeirat. A localidade bíblica é o monte onde foram feitas escavações e também o deserto ao seu redor.
À luz desses dados, não é equivocado pensar que os israelitas acamparam em Tel el-Qudeirat e nos seus arredores, isto é, “no deserto de Zim, que é Cades”.
Esse é um ponto fundamental.
Além disso, os filhos de Israel “caminharam” 38 anos entre a permanência em Cades e a travessia do Zerede, o que indica que se afastaram ainda mais de Tel el-Qudeirat.
Embora caminhar não signifique o mesmo que dispersar-se, penso que o significado da palavra, no contexto da falta de informações sobre os 38 anos, pode ser exatamente esse.
Como os israelitas estavam acampados nos arredores do oásis de Cades, a palavra caminhar indica que eles se dispersaram dali para outros lugares.
Vemos que a imagem da dispersão do Grupo de Moisés, após os “muitos dias” em Cades-Braneia (Dt 1:46) é uma alternativa viável à do exército mobilizado durante 40 anos. Na verdade, o exército foi mobilizado duas vezes, por meio dos dois censos: uma no início da peregrinação, outra na parte final dela.
Como os censos indicam a existência de um contingente elevado de pessoas, é razoável supor que a aliança com os hicsos e outros grupos locais de hebreus ocorreu tanto num quanto no outro período de mobilização.
O intervalo maior de 38 anos sobre o qual a Bíblia se cala insere-se entre os censos da peregrinação.
Sabemos que, nesse interstício, os filhos de Israel retornaram (uma ou mais vezes) ao deserto de Zim e seu famoso oásis, pois Números 20:22 e 33:37 indicam que, após os 38 anos, eles “partiram de Cades, e acamparam-se no monte de Hor, na fronteira da terra de Edom”.
Se estavam em Cades, de onde se dispersaram, e partiram de Cades, 38 anos depois, os israelitas devem ter retornado àquele oásis. Talvez Cades tenha sido o centro de sua perambulação por 38 anos.
É oportuno lembrar que, na sua obra mais do que clássica sobre cronologia bíblica, James Ussher confirmou a inexistência de dados sobre os 37 anos intermediários da peregrinação: “Moisés registrou apenas os acontecimentos dos dois primeiros e do último ano da viagem pelo deserto” (USSHER, James. The Annals of the World. p. 48. Disponível em https:// ia801407.us. archive.org/8/items/AnnalsOfTheWorld/Annals. pdf.).
Como a Bíblia fornece pouquíssimos dados adicionais a esses, é possível e até recomendável que utilizemos, de maneira lógica e com necessário cuidado, as informações extrabíblicas disponíveis sobre os 38 anos.
Essas informações parecem confirmar à conclusão de que os israelitas realmente se dispersaram após os “muitos dias” (Dt 1:46) em Cades.
Finkelstein e Silberman afirmaram que, da lista de locais em que os israelitas acamparam, os únicos que foram identificados com segurança são Cades-Barneia e Eziom-Geber (FINKELSTEIN, Israel e SILBERMAN, Neil Asher. The Bible unearthed: Archaeology’s new vision of Ancient Israel and the origin of sacred os its sacred texts. New York: Simon & Schuster, 2002. p. 63).
Por isso, devemos voltar-nos a eles, sem desprezar as informações que outros sítios porventura possam fornecer.
O arqueólogo Israel Finkelstein publicou detalhado trabalho sobre as escavações em Cades (FINKELSTEIN, Israel. “Kadesh Barnea: A Reevaluation of Its Archaeology and History”. In Journal of the Institute of Archaeology of Tel Aviv University. 2010. Issue 1, Volume 37, p. 111-125).
O mesmo fez o também arqueólogo Rudolph Cohen (COHEN, Rudolph. "Excavations at Kadesh-Barnea: 1976-1978", Ein el-Qudeirat, Rudolph Cohen, 1981 AD”. In Biblical Archeologist. Spring 1981. Disponível em http://www.bible.ca/archeology/ bible-archeology-exodus-kadesh-barnea-in-el-qudeirat-excavations-at-kadesh-barnea-rudolph-cohen-ba1976-1982ad.htm).
Tanto um quanto o outro demonstraram de maneira exaustiva que Tel el-Qudeirat foi ocupado em escala na Idade do Bronze Antigo (3.500-2.200 a. C.) e a partir do fim do século XI ou início do X a. C.
Três fortalezas foram encontradas nas ruínas de Cades-Barneia.
A evidência indica que elas foram utilizadas pelo Reino de Judá, uma no século X e as outras no VII a. C.
A descoberta das fortalezas do século VII levou Finkelstein e Silberman a relacionarem a redação dos relatos bíblicos da peregrinação a essa época.
Cohen interpreta a evidência diferentemente.
No artigo citado acima, ele descreve as minuciosas pesquisas realizadas no local por Woolley e Lawrence, que foram “os primeiros eruditos com sólido treinamento em Arqueologia a estudarem o local” (COHEN, Rudolph. Ob. cit. “The Excavations of C. L. Woolley and T. E. Lawrence” p. 94): “Nos escombros, Woolley e Lawrence encontraram fragmentos de cerâmica fabricada com roda e outros feitos à mão. Os primeiros eram do “tipo sírio”, o que associava o sítio com o norte. De acordo com a classificação de Macalister, então em uso, esses artefatos pertenciam ao Segundo e Terceiro Períodos Semíticos (aproximadamente 1800-900 a. C.), mas outros objetos com pintura refinada pareciam reduzir o tempo de ocupação ao fim do segundo ou início do primeiro milênio a. C. A cerâmica feita à mão era de aspecto notoriamente grosseiro e semelhante à observada em outros locais das vizinhanças” (1940 Lachish (Tell ed-Duweir) II: The Fosse Temple. Oxford: Oxford University, 1914-1915. Woolley C. L, and Lawrence, T. E. p. 6667).
O artigo confirma que a cerâmica grosseira forjada à mão é israelita.
Notemos que ela não foi encontrada apenas no sítio escavado, mas também “em outros locais das vizinhanças”.
Porém, o trecho transcrito não se limita a afirmar a existência das duas cerâmicas. Acrescenta que os artefatos mais refinados (de aspecto sírio) foram datados por Woolley-Lawrence entre 1.800 e 900 a. C.
Notem que Cohen não afirma que essa datação foi mais tarde revista para o século VII a. C., até porque alterações tão drásticas de idades estabelecidas por grandes arqueólogos são raríssimas. Cohen faz asseveração diferente: diz que escavações posteriores à de Woolley-Lawrence revelaram “outros objetos com pintura refinada”, os quais foram datados do fim do segundo milênio ou início do primeiro.
Ficamos, pois, com dois grupos ou conjuntos de cerâmicas: o primeiro do século XVIII ao X (descoberta por Woolley-Lawrence) e o outro do século XI ao VII a. C.
Os primeiros 250 anos do período 1.800-900 a. C., mencionado por Woolley-Lawrence, inserem-se na Idade do Bronze Médio. Parecem, pois, confirmar que a ocupação intensa da Idade do Bronze Antigo continuou nessa época.
Claro que a cerâmica síria desse período não foi fabricada pelos israelitas. Porém, é possível que tenha sido usada por hebreus da Palestina ou, mais especificamente, pelos hicos aparentados aos filhos de Israel.
Se o Êxodo aconteceu no fim do Período Hicso, como proponho, é consequente pensar que, por volta de 1.550 a. C., Cades fosse ocupada por eles.
Em outro trecho do seu artigo,
Cohen se refere às escavações de M. Dothan em Tel el-Qudeirat em 1.956, as quais tiveram por foco a primeira fortaleza encontrada no local.
Dothan localizou a edificação desse forte no século IX a. C., porém “reconheceu tanto a existência de assentamentos anteriores quanto de posteriores a ela” (DOTHAN, M. “The Fortress at Kadesh Barnea”. Israel Exploration Journal 15:134-51. 1965. Citado em COHEN, Rudolph. Ob. cit. “The excavations of M. Dothan”, p. 96.).
A cerâmica correspondente aos assentamentos anteriores à fortaleza foi datada por Dothan do século X em diante.
Esses os resultados das escavações de 1.956 em Cades.
Em 1.976-1.978, Dothan regressou ao local para novas escavações. Nessa campanha é que as outras duas fortificações foram encontradas.
Dothan descobriu que um dos seus novos achados tinha sido edificado no século X a. C. Portanto, era anterior à fortaleza desenterrada por Woolley-Lawrence.
Em ambas as fortalezas foi identi-ficado o costumeiro padrão de cerâmica mais sofisticada, forjada com aparelhos, ao lado do tipo forjado à mão.
Ficamos, assim, com três fortalezas, uma do século X e duas do VII a. C.
Dothan observou que, no forte construído primeiro, “a proporção de cerâmica feita à mão era muito maior e imitava a cerâmica feita com rodas” (idem. p. 99).
Como já vimos, a ideia que o artigo de Cohen favorece é de que essa cerâmica era de fabricação israelita.
Embora não confirme, o artigo de Finkestein sobre Tel el-Cudeirat, muito focado nos séculos VIII-VII, tampouco refuta essa conclusão de Cohen para quem “as escavações foram realizadas apenas em parte restrita do sítio arqueológico. Se vestígios anteriores existem, é possível que não se estendam a toda a área. Além disso, creio que pode haver uma relação entre a concentração de assentamentos do Bronze Médio I em toda a região e a tradição bíblica da extensa jornada dos israelitas em Cades-Barneia” (COHEN, Rudolph. Ob. cit. p. 103).
Nesse trecho do seu artigo, Cohen refere-se a assentamentos da Idade do Bronze I (2.100 a 2.000 a. C.), portanto ainda mais antigos que os localizados por Woolley e Lawrence a partir de 1.800 a. C.
Temos, pois, por admissível a ideia de uma ocupação difusa dos arredores de Tel el-Cudeirat na transição da Idade do Bronze Antigo para o Bronze Intermediário. Essa ocupação continuou durante todo o Período do Bronze Médio, que inclui a época do Êxodo (cerca de 1.572 a. C.).
Voltemo-nos agora à outra localidade da lista de Números 33 que a Arqueologia localizou com pequena margem de dúvida: Eziom-Geber.
Tenho discorrido pouco sobre esse lugar até aqui, porque o Pentateuco menciona uma única estada inequívoca de Israel nele (Nm 33:35-36).
Quando tratam de Eziom-Geber, as numerosas fontes que consultei (inclusive Finkelstein e Silberman) reportam-se, invariavelmente, às escavações realizadas por Nelson Glueck entre 1.938 e 1.940 (THOMPSON, John A. A Bíblia e a Arqueologia – quando a ciência descobre a fé. São Paulo: Vida Cristã, 2004. p. 89). Trata-se, pois, de levantamentos antigos e não de revisões recentes deles.
A Enciclopaedia Britannica afirma que Eziom-Geber foi “quase certamente fundada por Salomão por volta de 1.950 a. C.” (“Ezion-Geber, ancient city, Jordan”. Enciclopaedia Britannica. Disponível em https://global.britannica.com/place/Ezion-geber. Acesso em 10/04/17).
Essa asserção deve-se ao testemunho expresso da Bíblia no sentido de que Salomão construiu navios e utilizou amplamente Eziom-Geber. Como as fontes históricas não trazem informação de que outro povo ocupou o local na mesma época, a fundação por Salomão se impõe.
Claro que o acampamento israelita em Eziom-Geber foi muito anterior ao povoamento do lugar. Por isso, devemos esperar encontrar ali o mesmo padrão de ocupação difusa observado em Cades-Barneia no século XVI a. C. ou talvez ainda mais difuso, pois em Eziom-Geber não havia sequer um centro em torno do qual acampar.
Padrão tão difuso é típico de povos nômades e seminômades.
Encontramo-lo em numerosos lugares do Oriente Próximo em toda a Antiguidade. Porém, assim como a proporção da cerâmica rústica era maior na Idade do Bronze, a ocupação nômade e seminômade também o era.
Consideradas em conjunto, essas evidências apontam para a conclusão de que os israelitas da época do Êxodo eram tribos nômades que, em dois curtos períodos, foram organizados num exército, sob a liderança de Moisés e Josué.
As famosas conquistas dos israelitas em Canaã ocorreram, principalmente, nesse último período.