domingo, 31 de janeiro de 2016

Filosofia e direito (artigos reunidos) - Parte III

A JUSTIÇA NATURAL NA ÉTICA A NICÔMACO

Embora Cícero seja em geral considerado o primeiro filósofo do direito da História, por ter utilizado conhecimentos jurídicos especializados para expor suas ideias filosóficas, Platão e Aristóteles foram os primeiros a desenvolver discussões profundas e exaustivas sobre a justiça, o primeiro nos Livros I e II de A república e o outro no Livro V da Ética a Nicômaco, entre outras obras.
Para Aristóteles, tudo o que existe pode ser explicado por suas causas material, formal, eficiente e final. A causa material da justiça são relações humanas regidas por leis. Nas palavras do nosso filósofo, “a justiça só existe entre homens cujas relações recíprocas são governadas por leis”[1].
Ninguém começa a entender o sentido da justiça em Aristóteles sem tomar consciência disso e de que, na visão de mundo da quase totalidade dos pensadores antigos, o funcionamento dos objetos reais constituídos de causas material e formal só pode ser compreendido mediante a causa final. Isso aplicava-se tanto à natureza quanto à sociedade.
Michael Sandel retorna ao cerne do pensamento de Aristóteles sobre a ordem social ao lembrar que, para aquele pensador, numa sociedade justa, os bens devem ser distribuídos de acordo com as aptidões dos indivíduos. O filósofo norteamericano cita um exemplo concreto[2]:

"O motivo mais óbvio para que se deem as melhores flautas aos melhores flautistas é que isso produzirá a melhor música, proporcionando a nós, ouvintes, maior prazer. Mas essa não é a razão de Aristóteles. Ele acha que as melhores flautas devem ser dadas aos melhores flautistas porque é para isso que elas existem – ser bem tocadas".

As coisas existem (e funcionam) em razão da sua causa final. Mostrei, no Capítulo 3, que o desafio colocado pela ciência contemporânea ao finalismo de Aristóteles, no plano da natureza, pode ter algo de exagerado. Não retornarei a esse tema aqui. Limitarei a exposição do capítulo a indicar que, no plano da sociedade, embora a resistência ao finalismo seja menor, ela também é infundada, como Sandel observa[3]:

"Ao rejeitarmos o raciocínio teleológico na ciência, também somos levados a rejeitá-lo na política e na moral. Mas não é fácil abandonar o raciocínio teleológico em relação às instituições sociais e às práticas políticas. Atualmente, nenhum cientista lê os trabalhos de Aristóteles sobre biologia ou física e os leva a sério. Mas quem estuda ética e política continua a ponderar sobre a filosofia moral e política de Aristóteles".

Sandel propõe que o finalismo de Aristóteles deve ser prestigiado, no campo social. Esclarece, porém, que o télos da política, para Aristóteles, era formar bons cidadãos e cultivar o bom caráter, ao passo que, para nós, não corresponde necessariamente a isso, pois as sociedades abertas do nosso tempo têm como fundamento a preservação da maior liberdade individual possível, o que não permite a predeterminação de um fim de ordem geral, como a formação de bons cidadãos.
Sandel propõe um limite ao antifinalismo (geral) da teoria liberal[4]:

"As teorias baseadas na liberdade [...] levam a sério os direitos e insistem no fato de que justiça é mais do que um mero cálculo. Ainda que discordem entre si quanto a quais direitos devem ter maior peso do que as considerações utilitárias, elas concordam que certos direitos são fundamentais e devem ser respeitados. Mas, além de destacar determinados direitos como merecedores de respeito, elas aceitam as preferências dos indivíduos, quaisquer que sejam.
[...] Isso me parece equivocado. Não se pode alcançar uma sociedade justa simplesmente maximizando a utilidade ou garantindo a liberdade de escolha. Para alcançar uma sociedade justa, precisamos raciocinar juntos sobre o significado da vida boa."

Essa postura é convergente com o finalismo de Aristóteles e o adota, embora apenas no plano social. Sandel fornece um exemplo histórico claro das consequências que a atitude finalista tem[5]:

"No meu tempo, a voz mais promissora nesse sentido foi a de Robert F. Kennedy quando tentava, em 1968, ser indicado pelo Partido Democrata à eleição para a presidência. Para ele, a justiça envolvia mais do que o tamanho e a distribuição do produto nacional. Tratava-se também de propósitos morais mais elevados [...] 'Ainda que trabalhemos para erradicar a pobreza material', disse Kennedy, 'há outra tarefa de grande importância: enfrentar a pobreza de aspirações (...) que nos aflige a todos'. Os cidadãos dos Estados Unidos estavam entregues, a seu ver, 'ao mero acúmulo de bens materiais'”.

Não é possível entender o que Aristóteles propôs sobre a justiça, sem vislumbrar como ele concebeu a sociedade. Daí as considerações introdutórias ao seu pensamento que Sandel apresenta. Mas a doutrina aristotélica da justiça, além de estruturar-se sobre essas bases, extrai seu sentido da enunciação das espécies daquele valor cardeal.
Do ponto de vista do conteúdo, a justiça pode ser tomada em sentido amplo ou restrito. Em sentido lato, justiça é toda a virtude. É o compêndio, o equilíbrio possível entre elas. Em sentido estrito, porém, a justiça é apenas parte da virtude[6]. No Livro V da Ética a Nicômaco, Aristóteles trata da justiça em sentido estrito.
Porém, o filósofo propõe uma segunda classificação da justiça, não mais sob o ponto de vista do alcance, mas da relação que mantém com a lei. Sob esse critério, a justiça pode ser legal ou equitativa. A primeira, a justiça em consonância com a lei, engloba a segunda. Aristóteles a identifica, de modo aproximado, com a justiça em sentido amplo (mencionada na classificação anterior): “A maioria dos atos que a lei ordena são prescritos do ponto de vista da virtude em sentido global, pois a lei nos manda praticar tudo que é justo e abster-se de todo o vício”[7]. Ele denomina a justiça equitativa particular e define-a como o ponto médio entre dois vícios.
Essa justiça particular (equidade)divide-se, por sua vez, em justiça distributiva e retificativa. Por força de um hábito, a justiça retificativa passou à História com o nome de comutativa. É dessas duas espécies de justiça que a Ética a Nicômaco trata precipuamente.
Roscoe Pound interpreta o pensamento de Aristóteles sobre a equidade à luz das convenções vigentes na Antiguidade. Para ele, o filósofo grego “acreditava que o homem, isolado do Estado, se tornava o animal mais maligno e perigoso entre todos, de sorte que somente lhe era dado realizar o próprio destino moral no Estado”[8].
Porém, a ordem social tutelada e mantida pelo Estado possuía desequilíbrios. Por isso, a lei tinha de “levar em conta, em primeiro lugar, relações de desigualdade, nas quais os indivíduos são tratados em proporção ao que valem, e só secundariamente relações de igualdade. A bem conhecida exortação de São Paulo, em que convoca a todos para que se esforcem por cumprir os deveres na classe em que se encontram, põe em relevo essa ideia”. Em suma, “a filosofia grega adotava a ideia de lei como meio de preservar o status quo social”[9]. É preciso não perder de vista que essa mesma ideia de lei foi aceita, igualmente, na Idade Média[10].
Assim, no contexto em que Aristóteles desenvolveu suas ideias, o ponto médio (mesótes) entre dois vícios, que ele identifica com a justiça particular, não podia ser compreendido como consequência de um desacordo a respeito do bom e do honesto semelhante ao que assinala o nosso tempo. Era antes o meio-termo entre o hábito de fazer o mal e o de sofrê-lo.
Se, para nós, esses conceitos estão sujeitos a discussões extremamente amplas, na Antiguidade não era assim. Bem e mal, naquele tempo, eram o que o Estado reconhecia como tais, ainda que o reconhecimento servisse para justificar desigualdades flagrantes, como a escravidão, uma vez que, fora do Estado, só restava a depravação. Assim, bem e mal eram aproximadamente o mesmo para todos, posto que o mesmo Estado os definia. As variações possíveis desses valores eram muito mais devidas a falhas na compreensão e expressão das suas definições do que dados da realidade.
No arcabouço dessas ideias é que o pensamento de Aristóteles sobre a justiça natural e legal se ajusta. Recordemos os exatos termos em que ele descreve o justo[11]:

"Da justiça política [também chamada particular e civil] uma parte é natural, outra parte, legal. Natural é a que possui a mesma força em todo lugar e que não existe porque as pessoas pensam isso ou aquilo. Justiça legal, por sua vez, é a que, a princípio, é indiferente, mas se faz relevante a partir de quando é instituída".

É notável que, em nenhum momento, Aristóteles se refere a uma justiça ideal ou abstrata, mas à justiça efetivamente implantada na pólis. Parte dessa justiça, para ele, é natural e parte, legal ou convencional. Portanto, a justiça natural não emana de relações ideais, mas profundamente marcadas pela desigualdade, como eram as relações entre reis e súditos, possuidores de escravos e plebeus, na pólis.
Bobbio atribui a Aristóteles a utilização do fogo como exemplo de justiça natural[12]. Porém, uma leitura atenta do trecho em que o filósofo grego alude a esse exemplo permite entender que ele não é adotado sem restrições. Logo após descrever a justiça legal, na Ética a Nicômaco, o Estagirita escreveu[13]:

"Alguns pensam que a justiça é dessa espécie [legal], porque o que é por natureza imutável tem a mesma força em todo lugar (como o fogo queima aqui e na Pérsia), ao passo que eles enxergam mudanças nas coisas reconhecidas como justas. Isso, porém, não é verdadeiro de modo geral".

As palavras “isso não é verdadeiro” referem-se à afirmativa anterior, que Aristóteles não emite como sua, mas atribui aos pensadores (principalmente sofistas) que entendiam que “a justiça [inteira] é dessa espécie [legal]” [14]. Os sofistas por ele mencionados usavam o exemplo do fogo, a fim de negar a existência de uma justiça imutável e, assim, igualavam toda a justiça à modalidade legal ou convencional.
Aristóteles não escreveu o Livro V da sua obra para apoiar essas ideias, mas para as combater. Ele as refutou, claramente, ao declarar que a concepção segundo a qual toda a justiça é mutável, “no que diz respeito aos deuses, talvez nada tenha de verdadeira”. De fato, muitos gregos e romanos pensavam que o divino não estava sujeito a mudanças. Mas isso só corresponde a parte da mundivisão do Estagirita: “No que diz respeito a nós [ou seja, no nível humano da realidade]”, continua ele, “há coisas que são justas por natureza e, no entanto, são inteiramente mutáveis”.
Que quis Aristóteles afirmar com “há coisas que são justas por natureza e, no entanto, são inteiramente mutáveis”? A meu ver, essa declaração implica que uma parte da justiça natural é mutável. Portanto, o exemplo do fogo não se aplica indiscriminadamente a todos os atos justos por natureza. Essa conclusão é confirmada, na sequência do texto, quando Aristóteles afirma ser “evidente quais coisas, dentre as que podem ser de modo diverso [coisas mutáveis], são por natureza e quais não o são”.
Com essas derradeiras palavras, o filósofo claramente reafirmou que há coisas justas por natureza que são mutáveis. Porém, como o trecho se refere exclusivamente às coisas mutáveis, não está excluído que, em outro contexto, as imutáveis sejam por natureza aquilo que são. Portanto que haja um justo por natureza imutável e universal.
Para encontrarmos exemplos de leis naturais, precisamos fechar a Ética a Nicômaco e buscá-los em outra parte. Achamos alguns na Retórica, mas não são de Aristóteles e sim de outros autores[15]:

"A personagem Antígona refere-se à lei da Natureza, numa obra de Sófocles, quando afirma que o enterro de Polinice era justo, apesar de ter sido proibido por um decreto. Antígona quis dizer que o enterro era justo por natureza: 'Essa justiça não nasceu hoje ou ontem/ Vive desde sempre: seu parto não pode ser datado'[16]. E Empédocles, quando nos diz para não matar qualquer criatura, declara que fazê-lo não é justo para alguns e injusto para outros, pois 'uma lei que a todos abrange, sob todas as partes do céu/ Inviolável se estende sobre a imensidão da terra'”[17].

Em O drama do direito, referi-me a “juízos inquestionáveis, assim como a regra universal de que a quem empresta cinco é justo restituir cinco, a menos que outras transações venham a compensar os valores”[18]. Premissa desse juízo é a equação matemática que iguala as cinco unidades de moeda tomadas em empréstimo às cinco devolvidas. Trata-se de uma verdade tão universal quanto alei que governa a combustão do fogo.
Porém, quando aplicada às relações jurídicas, a igualdade matemática sofre alterações ditadas por circunstâncias não convencionais, como a passagem do tempo, que pode ser tomada como causa da cobrança de juros razoáveis e, assim, implica a obrigação de devolver mais do que cinco unidades. É o que está implícito na parte da citação em que disse “a menos que outras transações venham a compensar os valores”.
A devolução das cinco unidades, sem acréscimo de juros, se não tiver escoado um tempo relevante, ou de mais de cinco, se houver, são exemplos de atos justos por natureza. Podemos afirmar que, no primeiro caso, a justiça implicada é universal e imutável, pois, se não decorrer tempo algum, o valor a ser devolvido será sempre igual a cinco. No segundo caso, porém, a justiça imanente à transação, sem deixar de ser natural, sofrerá mutação devida a uma circunstância não convencional (entre outras possíveis): a passagem do tempo. Por essas razões, parece-me correto fazer referência a uma justiça natural imutável e a outra sujeita a mudanças.
Desse modo, Aristóteles desmembrou a justiça política numa parte natural e outra convencional. E acrescentou que nem tudo o que é justo por natureza é imutável. Portanto, há uma justiça natural imutável, à qual o exemplo do fogo se aplica, e outra mutável e particular, à qual ele não se aplica. Infelizmente, essa ideia de uma justiça natural não universal foi, ao depois, amplamente abandonada, visto que o jusnaturalismo se desenvolveu como a doutrina de um direito ideal e imutável.
A lição quase universalmente repetida, hoje, é a de que o justo natural, em Aristóteles, é sempre e apenas universal. O próprio Bobbio o ratificou[19]. Porém, ao examinarmos a Ética a Nicômaco de perto, percebemos que a justiça por natureza pode também ser mutável. E, ao nos voltarmos para o quadro atual das discussões jusfilosóficas, com essa informação em vista, ocorre-nos quanto a admissão de um direito natural mutável assumiu importância vital, eu diria até mesmo crítica, para o pensamento jusnaturalista. Foi o que concluímos no capítulo sobre o jusnaturalismo integral, ao perceber que cada ordenamento jurídico possui um núcleo lógico distinto não apenas das normas que o integram, mas também dos núcleos de outros ordenamentos.


O DIREITO NATURAL SEGUNDO CÍCERO

Cícero conhecia o pensamento de Aristóteles sobre a justiça, que utilizou senão como fonte principal, ao menos como uma das bases da sua fundamentação do direito natural. Por possuir ampla formação jurídica e filosófica e tê-la utilizado amplamente em obras como De legibus e De republica, Cícero é, em geral, considerado o fundador da Filosofia do Direito.
Embora o seu pensamento jurídico não fosse original, a fundamentação sólida e expandida que proveu às ideias de Aristóteles e dos estoicos, no De legibus, fez desse diálogo o mais importante texto de direito natural em toda a Antiguidade.
Não é possível compreender o fio da argumentação de Cícero, na sua obra jurídica fundamental, sem perceber que ele parte do vocábulo pelo qual a desenvolve. Examina-o em grego e explica, em seguida, o motivo da escolha do termo latino lex para traduzi-lo[20]:

"A palavra grega para lei (nomos) deriva do verbo nemo, distribuir, que traduz a natureza do objeto indicado, a saber: dar a cada um o que é seu. De minha parte, imagino que a essência moral da lei exprime-se melhor por meio do vocábulo em latim (lex), que transmite a ideia de escolha ou discriminação. Em síntese, para os gregos, o termo implica uma distribuição equitativa de bens, ao passo que, para os romanos, aponta para uma discriminação equitativa entre o bem e o mal".

Cícero não hesita em usar o termo lex para exprimir, em latim, o que os estoicos queriam dizer ao se referirem a um nomos que vigora em toda parte, sem mudança alguma. Esse nomos, Cícero o denomina lex naturalis. A arqueologia do termo, ele a fornece sucintamente, por um raciocínio eclético, pois associa à ideia estoica de lei natural o que os filósofos da primeira Academia, entre os quais arrola Aristóteles[21], pensavam sobre o fundamento da Ética.
A associação não é, de modo algum fácil ou natural, mas Cícero a desenvolve com segurança[22]:

"Todos os filósofos que floresceram na antiga Academia, com Euspesipo, Xenócrates e Polemon, ou aqueles que seguiram Aristóteles e Teofrasto, concordando com os primeiros na doutrina, embora diferissem no método, a exemplo também de Zenão [de Cítio], preservaram os mesmos princípios, mas alteraram os termos da exposição".

Nesse período complexo e um pouco obscuro, Cícero agrupa os representantes da antiga Academia em dois Cítio, considerado o fundador do estoicismo. É, sem dúvida, uma posição acentuadamente eclética.
No entanto, a complexa aproximação de escolas e pensadores é deliberadamente almejada por Cícero, pois, alguns parágrafos depois, reafirma: “Não vejo muita dificuldade em harmonizar os pontos de vista da antiga Academia e dos estoicos”[23]. E explica[24]:

"Os antigos acadêmicos eram unânimes em afirmar que o bem consiste na concordância com a natureza e a ordem natural. Os estoicos, por sua vez, não reconhecem qualquer outro bem além da honra e da virtude [...] Assim, embora os primeiros afirmassem que a honra era o bem supremo e o seu oposto, o maior mal, enquanto Zenão e os estoicos sustentam que ela é o único bem, e seu oposto, o único mal, posto ainda que os acadêmicos considerassem as riquezas, a saúde, a beleza e outros bens como vantagens, comodidades e conveniências, e a pobreza, a tristeza e a dor como inconveniências, na verdade, os estoicos concordam com [os acadêmicos] Xenócrates e Aristóteles, embora expressem sua opinião em termos diferentes".

Cícero quer realmente conciliar o platonismo original (de Platão, Euspesipo, Xenócrates, Polemon, Aristóteles e Teofrasto) com o estoicismo e, particularmente, com a doutrina de Zenão de Cítio. Mas o que nos interessa, nessa harmonização, não são os seus reflexos em outras partes da Filosofia, mas na Filosofia do Direito. A esse respeito, nosso autor é particularmente claro, pois identifica no uso de sua época um significado culto e outro popular do termo lei, os quais concordam com a etimologia dos vocábulos em grego e latim[25]:

"A verdadeira definição de lei deve incluir essas duas características [derivadas dos significados originais de nomos e lex]. Se pudermos conceder isso como coisa quase auto-evidente, a origem da justiça deverá ser buscada na lei divina da moralidade eterna e imutável. Essa é a verdadeira energia da natureza, a alma e essência da sabedoria, assim como o teste da virtude e do vício. Mas, como toda discussão deve referir-se a um tema encontrado com frequência na linguagem popular, teremos de admitir algumas vezes os termos utilizados pelo vulgo e de nos conformar à terminologia comum que emprega a palavra lei, a fim de indicar todos os regulamentos arbitrários encontrados nas nossas normas escritas, os quais impõem ou proíbem certas condutas".

Esses os dois significados da lei, que Cícero encontra em seu próprio tempo. O primeiro é o significado na linguagem culta dos jurisconsultos, que era da preferência particular do nosso filósofo. O outro é o significado comum e inquinado de contradições que o povo (escravos excluídos) adotava.
Na língua dos jurisperitos romanos, lei não é qualquer proposição. É[26]

"a razão comum à natureza divina e humana, a qual nada mais pode ser do que a razão certa. E, posto que essa razão é o que chamamos Lei, Deus e os homens são por ela consorciados, pois onde há comunhão de Lei há também comunicação de Justiça".

Contudo[27],

"práticas corruptas violam cruelmente a razão certa. Pois todos os homens, sem distinção, são aprisionados pela voluptuosidade, que é um vício degradante, embora pareça ter relação com o bem, visto que, por meio de indulgências e luxúrias aprazíveis, o erro insinua-se na mente".

Essa recta ratio, razão sempre certa, é a mesma em todos os povos, embora, em cada um, possa ser colocada a serviço de fins diferentes. Por isso, Cícero indaga[28]:

"Em que nação a bondade, a benignidade, a gratidão e a lembrança dos benefícios recebidos não são recomendados? E em que nação, ao contrário, a arrogância, a malícia, a crueldade e a ingratidão não são reprovadas e abominadas?"

Por isso também[29],

"se a vontade do povo, os decretos do Senado, as decisões dos magistrados fossem suficientes para estabelecer a justiça, bastaria obter sufrágios e os votos da maioria para que a corrupção, a espoliação e a falsa manifestação de vontade se tornassem lícitas [...] transformando o mal em bem, e o bem, em mal".

Cícero propõe que o bem, para ser verdadeiro, tem de ser o que é em si mesmo, independentemente do que qualquer ser humano afirma que ele é. Pois, no momento em que admitimos que o bem e a justiça, como uma de suas formas, dependem de deliberações humanas, tornamos possível que a deliberação converta o mais abjeto mal em bem, assim como o mais elevado bem em mal.
Toda lei verdadeira é expressão do bem e da recta ratio. Esse é um dado inafastável da lex romana, como Cícero a compreende. Sua interpretação da palavra lex e do direito nela alicerçado pode parecer altamente idealista, mas não se trata só disso. Cícero é idealista, porque o Direito Romano era idealizado. Mas é necessário entender que a idealização não foi inventada por ele: estava na ordem das coisas, assim como o Estado idealizado a que ele se refere no De republica e no próprio De legibus não era apenas idealizado: era a república romana real elevada à condição de modelo.
Claro que, por derivar do real, o modelo tinha suas limitações. Uma das principais era a baixa publicidade de que as leis romanas gozavam. Não que as leis não fossem publicadas, em Roma, mas isso estava longe de garantir qualquer coisa mais que um conhecimento quase nulo delas, inclusive pelos magistrados[30]:

"O conhecimento das nossas leis está excessivamente restrito aos copistas [dos textos]. Observo que muitos magistrados ignoram as suas próprias leis, não conhecem delas mais do que os oficiais que os auxiliam resolvem contar-lhes".

“As suas próprias leis”, a que o texto se refere, são os editos dos magistrados, que eram mais conhecidos do que as leis promulgadas pelo Senado e, mais tarde, pelo Imperador. Na verdade, os editos supriam o baixo grau de conhecimento das leis apontado no texto de Cícero. Portanto, se estiverem indicados pela expressão “suas próprias leis”, teremos de concluir que quem conhecia melhor os editos dos magistrados, na época de Cícero, não eram as autoridades em cujo nome eram publicados, mas os auxiliares delas. E é evidente que, se não conheciam os editos que publicavam, os magistrados estavam ainda menos familiarizados com as outras leis.
Se acrescentarmos a isso que o pequeno conhecimento que o povo e os magistrados tinham das leis era cheio de contradições, como Cícero esclarece, teremos um quadro bastante vívido da extensão da ignorância legal que vigorava naquele tempo, embora os romanos fossem o povo no qual o espírito do direito mais se desenvolveu.
Nesse contexto de amplo desconhecimento da lei emanada do Estado, era natural que a palavra lex, no uso comum, fosse impregnada até a medula do significado de norma particular. Por muito tempo, para o cidadão comum, a palavra lex, significou as cláusulas de um contrato e coisas análogas. Por isso, para o jurista Othon Sidou, “num balanço histórico, observa-se que [em Roma] as normas de direito público emanaram ordinariamente dos comícios centuriatos, enquanto as de direito privado foram produto dos concílios da plebe”[31].
A dualidade é explicada pelo pequeno interesse do povo pelas leis estatais e explica, por outro lado, o sentido derivado de atos particulares que a palavra lex ostentou por um longo tempo. O próprio Cícero declara que “as leis devem ser propostas com sucessivas alegações e cláusulas”[32].
Todos esses significados estavam impregnados no conceito de lex naturalis de Cícero. Claro que, ao contribuir para consagrar a expressão, o filósofo romano escolheu elevá-la às alturas do uso culto da palavra lex. Mas ele nunca separou esse uso do outro, comum e popular, antes reconheceu que as duas acepções do vocábulo deviam ser reunidas para perfazer o sentido total da lei.
Num esforço de síntese, podemos, pois, concluir que o direito natural, para Cícero, era sempre universal, pois em momento nenhum admitiu, como Aristóteles, uma lei natural mutável e particular. Porém, na sua universalidade, estava compreendida a gama de significados destoantes das leis profusas e essencialmente diversificadas dos povos.
De modo nenhum, aquelas variações apagavam o caráter universal da lei ou eram apagadas por ele. As duas coisas conviviam. A única alternativa a isso é considerar que o grande advogado, o erudito em leis, o orador experimentado não tinha noção da abundância de disposições entrelaçadas, algumas conflitantes, que o Direito Romano continha?
Mas, se assim era, por que Cícero depositava tanta ênfase no caráter racional, universal e imutável do direito em sua essência? Ele o fazia porque, como vimos no texto sobre a justiça em Aristóteles, o homem antigo concebia a profusa diversidade das leis e dos costumes sob a força unificadora do Estado. Sabia que muitas divergências subsistiam nos sistemas legais, mas as considerava sob a ótica da atuação das instituições e das normas estatais sobre elas.
Enxergar a lei desse modo era inescapável para Cícero, que considerava que o homem à parte do Estado tende à sua natureza bestial e à pura violência. Para ele, a única alternativa possível à sociedade provida de Estado é a condição bruta que Hobbes mais tarde chamaria estado de natureza e descreveria como a luta de todos contra todos. Mas Cícero não admitia que a justiça e o direito universalizados fossem concebidos do ponto de vista da violência ou reduzidos à força bruta dos Estados. Daí ao direito natural não faltava mais do que um passo. Para transitar da ordem universal do direito das gentes (jus gentium) ao jus naturale, basta substituir a força pela razão. Foi o que Cícero fez. E, ao fazê-lo, brindou-nos com um novo ramo da Filosofia e a mais completa fundamentação do direito natural que encontramos na Antiguidade.


A LEI NATURAL EM SANTO AGOSTINHO

Os estoicos e os peripatéticos (seguidores de Aristóteles) associavam a lei natural à razão divina, o que os levava a diferir, nesse ponto, apenas em razão do modo como concebiam Deus. Para os estoicos e Cícero, Deus era uma inteligência difusa e impessoal. Para os peripatéticos, ele era dotado de atributos pessoais.
Embora os peripatéticos derivassem sua ideia de inteligência divina de Aristóteles, cujas obras rarearam até quase desaparecerem do Ocidente, a partir dos primeiros séculos da era cristã, a concepção de Deus que eles preservaram foi absorvida por pensadores de outras escolas, a exemplo de Orígenes e Santo Agostinho. Por isso também, a noção aristotélica da inteligência divina foi transmitida aos primeiros filósofos cristãos mais pelos peripatéticos do que por meio das obras do próprio Aristóteles.
O modelo de pensador cristão da Antiguidade foi Santo Agostinho, em quem a influência grecorromana e as tendências do pensamento patrístico se harmonizaram no mais elevado grau. Ao longo da sua vida, Agostinho foi o protótipo do homem romano que era, ao mesmo tempo, pensador cristão. Por isso, nele se reúnem o melhor da cultura clássica e da tradição judaicocristã.
Tão vasta é a recepção da cultura clássica, e particularmente de Cícero, nas obras de Santo Agostinho que não parece provável que o De legibus ou o De republica não tenham sido absorvidos por ele. Cícero é uma influência fortíssima em Agostinho. Tão forte que é temerário admiti-la apenas nos anos que antecederam e sucederam imediatamente a sua conversão.
Não é possível afirmar o mesmo da influência de Aristóteles sobre Santo Agostinho. O desaparecimento do corpus aristotélico do mundo latino, no fim do século IV, impediu que Agostinho assimilasse aquele filósofo na intensidade e profundidade com que absorveu a obra de Cícero. E esse diferencial de assimilação sugere que o santo tenha concebido a lei natural mais em termos ciceronianos do que aristotélicos.
Isso implica entender a ratio legis à maneira prática dos romanos e não à moda especulativa dos gregos. E muito mais no interior das instituições de direito do que nas regiões do hiperurânio.
Para Cícero, a ratio legis era mais do que uma lógica formal. Era o método pelo qual as instituições jurídicas funcionavam efetivamente. Assim, por exemplo, uma relação de filiação ou de compra e venda tinha a sua ratio própria. As interpretações das normas que as definiam podia variar, no entanto os advogados e os jurisperitos enfrentavam as questões de interpretação com base na mesma lógica de natureza material e não formal.
Ainda hoje, a lógica geral do direito é intensamente a mesma. É possível ilustrar o funcionamento dela tão bem em instituições dos antigos romanos quanto dos povos modernos. Por exemplo, a concessão de serviços públicos, no nosso tempo, não obedece apenas às regras da Lógica Formal, mas também e principalmente a ratio material do instituto. O mesmo sucede com a função social da propriedade, cuja interpretação mais restrita ou extensa é intensamente debatida, sem que se discuta que, em tantos países, ela coexiste com a propriedade privada. Portanto que a lógica jurídica, ao aplicar-se no campo da propriedade, está sujeita a esse limite material.
Podemos, por isso, fazer a lógica do direito coincidir com a ratio legis de Cícero e Santo Agostinho, o que importa entendê-las não em termos formais, mas materiais. Claro que nem em Cícero, nem em Agostinho os princípios da Lógica Formal estão excluídos. Pelo contrário, a Lógica Jurídica resulta de mutações a que a Lógica Formal é sujeita em razão dos limites materiais a que o pensamento se sujeita no campo particular do direito.
Em muitos países, é vedado negar função social da propriedade ou afirmar que essa função social exclua o feixe de faculdades que a propriedade privada assegura. A função social da propriedade e as faculdades inerentes à propriedade privada não são apenas mandamentos do legislador. São ao mesmo tempo princípios que informam a Lógica Jurídica. E, ao menos em linhas gerais, ouso pensar que isso pouco mudou do Direito Romano a esta parte.
Embora ressaltasse a relação da lei humana com a ordem imutável do cosmos, Cícero não ia ao ponto de afirmar, com Aristóteles, que ela existisse à parte das instituições sociais. Pelo contrário, para ele, a ratio legis derivava de escolhas práticas do legislador.
Por isso, ao abraçar a concepção de direito de Cícero, Agostinho não lhe imprimiu a coloração metafísica que tinha em Aristóteles. Lei humana, para Agostinho como para Cícero, não era um dado natural. Não derivava da ordem das coisas, mas de escolhas sociais e políticas. Era criação do costume e do legislador, conforme o direito natural, ou então a lei não seria lei. E, por ser criação, não descoberta.
Essa diferença entre o conceito de lei humana de Cícero e Agostinho em relação ao de Aristóteles aprofunda-se ainda mais, conforme o santo vincula a ratio legis ao Deus cristão e não à ordem das coisas. Por originar-se de Deus, a razão jurídica é concebida como um reflexo, embora esmaecido, da lei divina. Consequência prática disso é que ela é mais negativa do que positiva, visto que a função da lei, no pensamento apostólico, é reavivar o pecado.
É nesse ponto que a concepção de direito de Santo Agostinho afasta-se da de Cícero. Como reflexo da lei divina na consciência, a lei humana não promove a bondade, antes estabelece a culpabilidade do homem. Esse ponto de vista jurídico é o que, sobretudo, autoriza Agostinho a pronunciar a sentença condenatória do mundo romano encontrada em A cidade de Deus. De acordo com Agostinho, a ratio legis não foi capaz de conduzir os pagãos a outro destino que não a ruína. Por isso, embora benigna, a queda do homem a tornou tão frágil que ela permanece incapaz de prover os povos de bens duradouros.
Essa fundamentação da tese central de A cidade de Deus, derivada da ideia agostiniana de direito, é inequívoca. Prende-se de tal maneira ao entorno de Santo Agostinho que se torna uma só coisa com os fatos. Diferentemente do que acontece à concepção jurídica de Aristóteles, a de Santo Agostinho repousa mais claramente no curso dos acontecimentos da sua época. A História roeu o legado de Roma, na medida em que a causa do intenso brilho daquela civilização, sua adesão à ratio legis, provou-se impotente para salvá-la.
E o fragoroso fracasso do direito romano não é casual. Tem, em Agostinho, uma motivação perfeitamente clara[33]:

"Considerações de justiça à parte, que são reinos a não ser grandes bandos de salteadores? E que são bandos de salteadores, senão pequenos reinos? O bando é formado por homens. Governa-o um príncipe. Sua coesão é mantida por um pacto de solidariedade, e os despojos são divididos com base na lei consentida por todos. E, se, pela incorporação de homens abandonados, esse domínio cruel se expande a ponto de possuir casas, cidades e povos, passa a chamar-se reino".

A glória de um reino e o esplendor extraordinário dos maiores deles não anula o fato de um reino não ser outra coisa que a hipertrofia de uma injustiça. E o fundamento desse modo de ver os reinos e o direito, em Agostinho, é a doutrina cristã do pecado original. Para o santo de Hipona, o direito é destituído da força necessária para cumprir sua função civilizatória, porque o homem é fraco. E o homem é fraco, porque sobre ele pesa a sentença de Deus em razão do pecado.
Claro que a fonte de uma doutrina não se confunde com a prova de sua verdade. A fonte da concepção de direito de Santo Agostinho é a doutrina cristã do homem, mas o que a coroa e lhe imprime o timbre da veracidade é a confirmação dos fatos. E que fatos: a queda do mais glorioso império da História. Nisso Agostinho estriba o seu juízo sobre o direito e a civilização romana: na constatação de que a mais consistente adesão à racionalidade da lei é incapaz levar a qualquer resultado prático que não seja a completa ruína!
Busco a fonte profunda do pensamento de Santo Agostinho sobre o direito na formação romana, no lado ciceroniano e clássico da formação bifronte o grande teólogo, lado que, como sabemos, foi preponderante na sua juventude, mas que Agostinho nunca renegou. E, em meio às obras que mais espelham esse aspecto da alma agostiniana, encontro tal fonte mais límpida e perfeitamente enunciada em A cidade de Deus.
Contudo, não foi nessa obra que Santo Agostinho explicitou de modo direto o seu pensamento sobre a lei natural e a justiça, mas em O livre arbítrio. Dedicarei, pois, atenção especial também a esse livro, no qual Agostinho parte da reflexão sobre um estado social idealizado que se parece, em certos aspectos, com aquele ao qual, tanto tempo depois, Rawls dedicou suas melhores atenções[34]:

"Quando um povo for de costumes moderados e dignos, guardião diligente da utilidade pública, a ponto de cada um preferir o bem comum ao seu interesse particular, não seria justo ao dito povo poder promulgar uma lei que lhe permitisse nomear para si magistrados encarregados de administrar os seus negócios, isto é, os negócios públicos?
[...] Contudo, no caso de esse mesmo povo ir caindo aos poucos, depravando-se, e caso ponha o seu interesse particular acima do interesse público, e vier a vender o seu sufrágio livre por dinheiro? Além do mais, corrompido por aqueles que ambicionam as honras, confiar o governo a homens malvados e criminosos, não seria justo – caso ainda se encontrasse um só homem de bem, revestido de influência excepcional – que esse homem tirasse do povo a faculdade de poder distribuir as honras, para depositar a decisão nas mãos de alguns poucos cidadãos honestos ou mesmo de um só que fosse?
[...] Eis, pois, duas leis que parecem estar em contradição entre si. Uma delas confere ao povo o poder de eleger os seus magistrados; a outra recusa-lhe essa prerrogativa. E a segunda lei mostra-se expressa em tais moldes que as duas não podem de modo algum coexistir juntas, na mesma cidade. Assim sendo, haveríamos de dizer que uma delas é injusta e não deveria ter sido promulgada?
[...] Denominemos, pois, se o quiseres, de temporal, a essa lei que a princípio é justa, entretanto, conforme as circunstâncias dos tempos, pode ser mudada, sem injustiça.
[...] Mas quanto àquela lei que é chamada a Razão suprema de tudo, à qual é preciso obedecer sempre e em virtude da qual os bons merecem vida feliz e os maus vida infeliz, é ela o fundamento da retidão e das modificações daquela outra lei que justamente denominamos temporal, como já explicamos? Poderá a lei eterna parecer, a quem quer que reflita a esse respeito, não ser imutável e eterna ou, em outros termos, poderá ela ser alguma vez considerada injusta, quando os maus tornam-se desventurados e os bons, bem-aventurados, ao passo que a um povo dissoluto e pervertido seja-lhe retirado esse direito?
[...] Na lei temporal dos homens nada existe de justo e legítimo que não tenha sido tirado da lei eterna. Assim, no mencionado exemplo do povo que, às vezes, tem justamente o direito de eleger seus magistrados e, às vezes, não menos justamente, não goza mais desse direito, a justiça dessas diversidades temporais procede da lei eterna, conforme a qual é sempre justo que um povo sensato eleja seus governantes e que um povo irresponsável não o possa.
[...] Então, para exprimir em poucas palavras, o quanto possível, a noção impressa em nosso espírito dessa lei eterna, direi que ela é aquela lei em virtude da qual é justo que todas as coisas estejam perfeitamente ordenadas".

Não é necessário mais que um exame acurado dessa passagem, a meu ver antológica, para entender quanto Agostinho retira de Cícero o seu pensamento sobre o direito e a justiça temporais. Claro que, em Santo Agostinho, encontramos esse pensamento perfeitamente cristianizado, porém não desnaturado, não contrafeito. A Razão suprema, a que Agostinho se refere, é a razão que tudo governa, a mente divina do Universo que Cícero denomina Deus. É duvidoso que, ao ser invocada pelo santo de Hipona, essa Razão seja submetida a uma metamorfose teológica. Para supor tal coisa, seria preci-o provar, primeiro, que a razão universal dos estoicos é incompatível com o Cristianismo, o que não parece fácil de demonstrar. Mais provável é que Agostinho invoque a Razão suprema do modo como os estoicos a entendiam e apenas a complementasse pela noção propriamente cristã da razão que constitui atributo de um Deus pessoal. De qualquer modo, temos, nessa passagem, uma síntese privilegiada do encontro da herança romana com o pensamento cristão patrístico.
Duas são, pois, as doutrinas básicas do direito natural que os tempos prestigiaram mais do que as outras: uma, a de Cícero, reinou nos últimos séculos da Antiguidade; outra, a de Santo Agostinho, triunfou da queda de Roma ao fim da Alta Idade Média. Uma terceira concepção, a de São Tomás, seria proposta no século XIII e regeria boa parte do pensamento jusnaturalista, no restante da Idade Média e no Período Moderno.
A voga das ideias de Tomás só não foi ainda maior, porque o direito natural foi colocado em bases totalmente novas por Kant e seus seguidores, o que reduziu a influência da concepção tomista. Mas temos boas razões para desconfiar da solidez da revolução kantiana nesse terreno, como indiquei em outro capítulo. E, se as três ou quatro opções a que acabo de me referir representam um balanço das discussões ocorridas em torno do direito natural, ao longo da História, é indispensável manter consciência delas ao tomar o partido dos que se colocam a favor ou contra essa doutrina.
Pode parecer que, ao fazer o jusnaturalismo depender da conexão entre direito e moral, e o juspositivismo da separação entre eles, Alexy põe o problema diferentemente[35]. Mas não creio tratar-se disso. Em sentido especulativo, a querela do jusnaturalismo com o positivismo é, de fato, uma questão de conexão ou separação entre direito e moral. Porém, em sentido prático, o problema resolve-se no reconhecimento de que a conexão ou separação põem-se no plano da ratio das instituições jurídicas e dos costumes, mais que no dos valores. O que está longe de ser destituído de consequências filosóficas.

SÃO TOMÁS E OS PRINCÍPIOS DA LEI NATURAL

No século XIV, Duns Escoto e Guilherme de Ockham afirmaram que a causa da ordem do mundo não é a razão de Deus, mas a sua vontade. Com o tempo, essa opinião provou-se um dos pontos a partir dos quais o pensamento humano mais divergiu de suas antigas fontes racionais.
No entanto, a opinião de Escoto e de Ockham encontra um limite claro no mal, que não pode de modo algum proceder da vontade divina. Deus não quer, nunca quis o mal, o que desconecta o mundo da sua vontade. Porém, ele quis o mundo, com o mal que lhe é inerente por ser inseparável do livre arbítrio das criaturas. É como se o vínculo do mal à liberdade (das criaturas), como dado de ordem racional, houvesse limitado o querer de Deus.
Para Agostinho não menos do que para Tomás, Deus governa o mundo racionalmente, o que significa que nada há, no Universo, que se deva à vontade sem dever-se também à razão divina. Por isso, a diferença primordial entre aqueles dois luminares do pensamento cristão, no tocante ao papel da razão, não se põe no plano divino, mas no humano. Tanto Agostinho quanto Tomás aceitam a doutrina da pecaminosidade humana depois da queda. Porém o primeiro leva-a mais longe ao estender os efeitos da rejeição de Adão a toda obra humana, inclusive as de índole racional, ao passo que Tomás considera que a razão é capaz de operar sem erro.
Essa diferença relacionada à antropologia, mais que a aproximação de Agostinho em relação a Platão e de Tomás para com Aristóteles, explica as dessemelhanças entre o agostinismo e o tomismo. Interessa-nos, aqui, o fato de a diferença repercutir mais intensamente no campo do Direito do que em qualquer outro território do conhecimento.
Vimos que a queda de Roma e o declínio da civilização clássica desempenharam um papel decisivo no pensamento de Santo Agostinho. Todavia, na época de Tomás, em contraste com a de Agostinho, a Cristandade pareceu realizar o que os romanos não foram capazes de produzir, a saber: uma civilização culta, estável e baseada no temor ao único Deus. Essa interpretação do momento histórico inclinou o pensamento de Tomás numa direção diferente e até mesmo oposta à de Santo Agostinho.
Pareceu a Tomás que a concepção otimista da lei natural de Aristóteles moldava-se perfeitamente ao contexto da sua época, pois permitia explicar o triunfo da civilização cristã com base nos pendores do homem à ordem natural. Não se passava o mesmo com a ideia de direito de Santo Agostinho, que supunha uma diferença de natureza entre a cidade terrena e a de Deus.
Essas diferenças marcantes de contexto histórico e de inspiração filosófica refletiu-se no conceito de lei natural de Agostinho e Tomás. Para o primeiro, a lei, natural ou humana, tinha um sentido prático negativo, pois servia o propósito de tornar o homem culpável diante de Deus. Essa conclusão Agostinho extraiu-a da interpretação da lei pelo apóstolo Paulo.
Em Tomás, ao contrário, a lei natural tem um sentido positivo, por constituir inclinação para um ato e um fim adequados[36]. É a mais alta participação possível na lei eterna, pela qual Deus rege todas as coisas e cujo conteúdo só ele conhece.
Divide-se a lei natural nos seus primeiros princípios e nas conclusões extraídas deles. Tais conclusões são incontáveis, pois não há termo para o processo de particularização da lei natural, a fim de atender as diversificadas necessidades da vida, ao longo do tempo e do espaço. Quanto mais longe se estende o processo, mais a lei natural se particulariza. E quanto mais variadas as necessidades que o ditam, mais ela se diversifica, a fim de atendê-las.
Daí Tomás afirmar que, por constituir uma medida, a lei deve ser homogênea àquilo que mede, isto é, o justo e o injusto humanos[37]. Mas a lei só pode alcançar essa plasticidade, só pode moldar-se à variada matéria da vida humana ao submeter-se ao processo de particularização mencionado acima.
Esse processo realiza-se mediante a contínua promulgação das leis pelo poder soberano. Por mais que as conclusões atingidas ao longo desse processo se distanciem dos primeiros princípios, elas não se desnaturam, enquanto se limitam a particularizá-los. De sorte que o resultado prodigioso da particularização dos primeiros princípios da lei natural vem a ser o imenso sistema do justo humano, com suas leis, decisões e execuções.
Esse sistema tão diversificado quanto às situações que a vida apresenta tem, para Tomás, uma só natureza da primeira à última norma e da primeira à última aplicação delas, a saber: a natureza do justo. É, por isso, essencialmente bom. Estas as linhas gerais da concepção de direito de Tomás de Aquino.
A diferença entre ela e a concepção de Agostinho avulta quanto mais nos aprofundamos nos dois autores. Para Tomás, a lei é boa, assim como muitos dos atos humanos medidos por ela, ou não seria capaz de medi-los. E o sistema legal é bom, ou não teria razão de ser.
Agostinho não se opõe ao processo de particularização do justo a partir dos seus primeiros princípios, como Tomás o descreve. Também ele concebe o direito como sistema produzido a partir dos primeiros princípios da lei natural. Porém, Agostinho diverge de Tomás (ou vice-versa) ao atribuir caráter negativo ao processo. E, de novo, a sua divergência enraíza-se no fato de pensar o homem incapaz de virtude, ao passo que Tomás o concebia dotado de uma razão inclinada ao bem.
Nesse ponto, um dos dois luminares do pensamento cristão há de equivocar-se, posto que afirmam coisas opostas. Pode parecer que Agostinho labora em erro, uma vez que Tomás alinha-se manifestamente com o pensamento jurídico de sua época. Porém, a favor de sua posição, Agostinho invoca o texto bíblico.
Para o santo de Hipona, de fato, as questões de direito não dependem da lógica humana, mas do julgamento de Deus. Agostinho encontra esse particular julgamento nos textos bíblicos que afirmam que Deus considera pecados as ações não nascidas da graça divina, pelo modo como seus autores vivem a oscilar entre o bom e o mau e entre o mau e o pior.
Claro que São Tomás também embasou sua doutrina jurídica no texto bíblico. E que, em suma, o que temos, nas obras dos dois gigantes do pensamento cristão, são posições ligeiramente distintas das quais decorrem diferenças drásticas. Tanto Agostinho quanto Tomás tomam o texto bíblico como candeia para interpretar suas épocas. E tanto um como o outro desenvolvem uma doutrina que reflete, de modo assombrosamente coerente, a interpretação geral que dão ao seu tempo.
Agostinho percebeu que, do ponto do qual emergira (o primitivo seio da loba) àquele ao qual se alçara, Roma havia traçado o mais prodigioso percurso da História, mas, mesmo assim, caíra fragorosamente, ante Alarico e o olhar atônito dos homens do quarto século. Tomás, por sua vez, assistiu à triunfante civilização cristã medieval arrancar para a opulência e o poder que a caracterizariam. Não assistiu, porém, à sua derrocada. Talvez isso explique, mais do que outros fatores, a desconfiança de um no direito dos homens e a confiança do outro.
Agostinho escreveu sobre o saque sofrido por Roma em 410. Pressentiu que a ruína definitiva a rondava, apesar de tudo o que erguera e das virtualidades do seu sistema jurídico. A partir dessa constatação, generalizando o princípio da derrocada romana, previu a de todas as civilizações, no estertor da cidade terrena. Esta a aposta de Santo Agostinho, ao aquilatar que, no fundo e em princípio, todas as civilizações e todas as cidades formam uma só cidade. Tomás dobrou a aposta, talvez por pensar que a intuição de Agostinho não era extensível à civilização da cruz. O enigma das duas interpretações da História atravessou o tempo e ecoa ainda hoje. Antes de o decifrar, permanecemos necessitados de entendê-lo.


O DIREITO CANÔNICO

Após a queda do Império Romano Ocidental, em 476 d. C., o direito romano continuou a ser cultivado e não raro a vigorar, sob a forma de codificações influentes, como o Corpus juris civilis de Justiniano, ou de compilações complementares do direito local.
Na Idade Média, um dos casos conspícuos de combinação do direito romano com fontes que recolhiam influências muito diversas foi o Direito Canônico. É comum os historiadores atribuírem a primeira codificação desse direito de cunho eclesiástico a Graciano, cujo Decreto produzido no século XII serviu a extensão ordenada do poder papal a quase todo o mundo ocidental.
A base do Direito Canônico é eminentemente metafísica. Mais do que isso, para a Igreja como para São Tomás, a lei é uma só: sua parte humana, chamada também positiva, contém-se na lei natural, e esta, na lei eterna. As consequências disso são drásticas, mas na maior parte do tempo permanecem encobertas aos olhos do observador e do estudioso do direito eclesiástico.
Ora, se a lei positiva, com nuanças tão numerosas quanto as situações e os contextos que a vida apresenta, está compreendida na lei natural, e a lei natural participa da lei eterna, como Tomás não cansa de enfatizar, não há, no Universo, a não ser uma lei. E a diversidade das normas que contemplamos outra coisa não é que aparência. No fundo, a diversidade profusa das fontes do direito é percorrida por um fio unificador, que as remete e vincula ao Criador.
No entanto, se a lei é uma só e se funda nos pensamentos pelos quais Deus governa todas as coisas, segue-se que o direito é de índole metafísica, e o que dele afirmamos, e as aplicações às vezes contraditórias que lhe damos não podem alterar essa sua natureza. Quando muito, as interpretações e aplicações multifacetadas que damos ao direito temporal recobrem e ocultam a natureza metafísica dele.
Consequência sumamente interessante disso são os efeitos do tempo no mundo jurídico. Se a lei humana é parte da lei natural que, por sua vez, integra a lei eterna, toda lei é, no fundo, eterna. Não se cria, nem se revoga, mas permanece imutável em Deus. Assim, o ato de promulgação não constitui propriamente a lei. Limita-se a propagar a ideia da lei da consciência divina, onde remanesce, às consciências humanas. Semelhantemente, ao ser revogada, a lei não se desconstitui: apenas deixa de ser obrigatória.
Nesse quadro, a crítica às concepções do direito natural que afirmam a existência de normas não imperativas não se justifica, pois os teóricos do direito natural cristão jamais afirmaram que a lei pode ser meramente assertiva. Assertiva é a lei científica, que descreve o modo como o Universo físico se comporta. A lei natural é posta por Deus a seres livres que, como tais, podem deixar de observá-la. Por isso, ela é dotada de um grau de imperatividade.
Por essa razão, a crítica que analisamos só tem procedência no que concerne às formulações do direito natural que o confundem com o princípio do comportamento animal, a exemplo da que encontramos nas Institutas de Justiniano[38]. De acordo com Tomás, a lei eterna é dada a conhecer pelo hábito e pela razão. A manifestação da lei natural no hábito é típica dos animais e resulta na conformação involuntária da conduta à lei. Porém, por ocorrer no plano inconsciente, ela não implica que os animais obedeçam à lei natural. E, se eles não lhe obedecem, a lei natural não é imperativa para eles. Por isso não é correto afirmar que a conformação do comportamento animal à lei eterna envolva a sua sujeição à lei natural.
Por isso, a promulgação não inaugura a lei, só aumenta a sua imperatividade, a fim de reja as vontades débeis que tendem a se apartar das condutas almejadas pelo legislador. Tomás enfatiza, porém, que a lei, após promulgada, pode embotar-se nas consciências. Quando isso ocorre, ela perde imperatividade e regride ao estado anterior à promulgação.
Por assemelhar-se ao hábito animal, o costume dos povos não é fonte de direito, a não ser quando confirmado por uma autoridade. No Brasil, essa confirmação dá-se por regras como a do artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que prevê a aplicação do costume em casos de lacuna da lei.
No Código de Direito Canônico, a elevação do costume a lei está prevista no cânon 23. O cânon 24 acrescenta que ela só ocorre se o costume não contrariar o direito divino, entendido como a parte da lei eterna não promulgada por autoridade[39]. Por isso, o tempo não cria, nem extingue as leis, só aumenta ou diminui a sua imperatividade em relação a pessoas determinadas.
Esse efeito não se observa apenas no tocante à lei, mas também aos direitos subjetivos que, no Direito Canônico (como no comum), sujeitam-se à prescrição. Porém, à diferença do direito comum, no canônico, a prescrição só corre quando as pessoas beneficiadas por ela conduzem-se com boa fé[40].
Assim, no Direito Canônico, se o devedor se evadir do credor para não pagar a dívida, ela não prescreverá. Poderá ser cobrada a qualquer momento. No direito comum, ao contrário, a prescrição ocorrerá independentemente da boa fé ou má fé do devedor. Portanto, a dívida não poderá ser cobrada.
O trato que o direito comum dispensa à prescrição pode parecer equivocado. Porém, o caso e mais de opção que de equívoco. O direito comum diferencia a prescrição aquisitiva da extintiva não apenas por acrescer o patrimônio do sujeito de um novo direito, mas também pela boa fé exigida na modalidade aquisitiva da prescrição e não na extintiva. O Direito Canônico, ao contrário, não cuida da prescrição aquisitiva, embora reconheça os efeitos civis que produz.
Assim, em direito comum, a prescrição aquisitiva confere à pessoa um direito pelo decurso de um prazo. A usucapião é o exemplo clássico: por ela, a pessoa conquista a propriedade de um bem ao exercer a sua posse durante certo tempo. Nem toda posse, porém, produz a prescrição aquisitiva. Para que esta se consume, é preciso que a posse seja qualificada por certas características, uma das quais é a boa fé. A propriedade não se adquire, se o possuidor não se porta com boa fé.
Essa qualidade da posse não é exigível na prescrição extintiva do direito comum, pois o legislador entende que o credor pode evitar que a prescrição, cobrando a ação em juízo. No Brasil, a citação válida do devedor interrompe a prescrição, que não volta a correr até o trânsito em julgado. Por isso, o legislador não considerou necessário cercar o direito do credor da garantia adicional da imprescritibilidade.
O que o Direito Canônico tutela, portanto, com a exigência da boa fé para que se opere a prescrição extintiva, não é só o direito do credor, mas a própria boa fé, com o selo da imprescritibilidade. Assim, não só o credor é posto numa posição mais cômoda como a má fé não é coroada com a abolição das dívidas de quem a observa.
Em suma, o Direito Canônico é e pretende ser a realização da lei natural no tempo e no espaço. Quando olhamos para as suas normas, vemos a corporificação dos ditames daquela lei. A forma visível da lei natural, no Direito Canônico, podemos afirmar, é a particularização dos institutos jurídicos, o feixe de consequências miúdas dos primeiros princípios em cada setor da vida como os institutos a espelham.
Não podemos deixar de observar ainda que, no direito assim concebido, a lei natural assume um sentido mais amplo do que em Cícero ou Santo Agostinho. Se quisermos delimitar o conteúdo da lei natural num e noutro caso, teremos de admitir que, para Cícero e Agostinho, ela inclui somente as normas derivadas da lei eterna em situações concretas de vida, enquanto, na filosofia tomista, inclui toda a cadeia de derivação de normas a partir dos primeiros princípios, o que torna o direito natural muito mais metafísico: um verdadeiro megadireito.
Como advogado e jurisconsulto, Cícero não situava a ratio legis nas regiões hiperurânias, mas no interior das instituições do Direito Romano. Agostinho seguiu-o nesse particular. Assim como Cícero, ele entendeu a lei natural como o feixe limitado de consequências dos primeiros princípios a que chegamos mediante contato com as necessidades da vida e as instituições jurídicas.
Podemos afirmar que, por isso, o direito natural ciceroniano e agostiniano é de teor metafísico, mas de um teor que podemos considerar leve. Tomás, ao contrário, por atribuir caráter jurídico a toda a cadeia de consequências que vai dos primeiros princípios à ratio particular das instituições, faz surgir um direito muito mais metafísico que o dos grandes autores da Antiguidade Clássica e Cristã. E o Direito Canônico, seguindo as pegadas de São Tomás, pretende-se a enunciação minudente daquela cadeia de consequências relativamente às condições históricas de certo tempo e lugar.
Embora consistente, essa concepção do direito é excessivamente abstrata e, por isso, pesada demais. Não é o direito a disciplina da própria vida? Se o é, por que nos caberia sobrecarregá-lo com abstrações que o homem comum nunca realiza e que não são necessárias à preservação da ordem social? Nos costumes e nas instituições sociais encontramos o tanto de abstração que o direito há de incorporar. Não é preciso ir além desse ponto. Ao contrário, é preciso resistir à tentação de estender a razão jurídica além de fronteira já tão remota.
A incapacidade de observar suficientemente essa limitação transformou-se no problema específico e mais assinalado do pensamento medieval. É ainda hoje a tentação dos que concebem o direito canônico do ponto de vista escolástico.
O ordinário, nos nossos dias, é o inverso da tentação medieval: não é o excesso de metafísica, mas o excesso de rejeição dela. Tentação que os monumentos jurídicos do nosso tempo rechaçam. Por que as Constituições contemporâneas não cuidam de abstrações metafísicas, mas de instituições sociais e jurídicas? Não é porque o constituinte se sinta investido da missão de rejeitar algo (a metafísica), mas porque ele reconhece a dívida do nosso tempo com a mais estreita adesão à ordem institucional.
O constituinte sabe que o seu dever não é rejeitar ou excluir, mas abraçar e incluir. Por isso, ele tudo inclui sob o pálio da Constituição. Da mais insignificante minoria à prática social mais limítrofe do crime, tudo recebe o matiz liberal da permissão constitucional. Por que conceber que a lógica essencial ao direito estaria excluída? Por que conceber que a modernização dos costumes se dá em prejuízo da racionalidade comum a todas as épocas? Por puro medo da palavra metafísica?

KANT E O DIREITO

Se houver exagero nessa avaliação ou, por outra, se for possível concluir que o ideal de Aristóteles não consistia tanto em concluir quanto em iniciar e regular a ciência por meio de definições, como suspeito, ainda assim, a influência do ideal exposto por Sócrates atravessou os séculos. Não apenas o próprio Sócrates, Platão e Aristóteles, mas toda uma legião de filósofos posteriores, por influência deles, viram o conhecimento a partir das essências.
Coube a Emmanuel Kant desafiar com bons argumentos a concepção acima. Kant mostrou que os conceitos mais abstratos e universais são forjados sob influência muito maior de pré-conhecimentos do sujeito do que da essência das coisas como elas são em si mesmas. A esse pré-conhecimento Kant denominou a priori e ao conhecimento forjado em consonância com ele, a partir dos sentidos, chamou a posteriori.

O fato de tanto a cognição a priori como aquela a posteriori depender mais do sujeito do que do objeto subverte a conexão historicamente reconhecida entre o conhecimento e as essências das coisas. O elo socrático é ameaçado e até mesmo rompido por tal dependência cuja descrição veio a constituir a grande contribuição de Kant à Filosofia.
Cerca de quatro anos após ter proposto o seu novo e revolucionário modo de ver o conhecimento na Crítica da razão pura, Kant lançou outra obra, com o objetivo de fundar não mais o conhecimento em geral, mas a Ética e o Direito na base não essencialista que construíra. Essa obra de maturidade veio a ser a Metafísica dos costumes.
Por essa novel disciplina, a Metafísica dos Costumes, Kant entende um sistema de princípios tão absoluta-mente a priori que não podem ser derivados da experiência como os juízos sintéticos a priori da ciência natural. Para traçar devidamente o contraste entre esses dois sistemas, o da ciência natural e o da moralidade, Kant recorda que a física newtoniana deriva da experiência a lei da ação e reação e que os químicos extraem da observação as leis de transformação das substâncias. Aduz que não é absolutamente assim com as leis morais, que são conhecidas à parte da experiência e, por isso, são absolutas.
Notem, nesse passo, a clara conexão entre a Metafísicas dos costumes e a Crítica da razão pura. A moral não é absoluta, nem vale absolutamente por motivos que podem ser separados da razão pura. Pelo contrário, a moral vale absolutamente por constituir um sistema de razão prática que, como tal, não conflita com a razão pura, antes expressa as exigências desta no território peculiar dos costumes.
Isso equivale a afirmar que o imperativo categórico em que a moral e o direito repousam nada tem de irracional. É, ao contrário, a expressão acabada de exigências da razão pura na esfera da conduta humana. Como a razão tem o seu fundamento em si mesma, como ela vale, por assim dizer, independentemente de sua conexão com o mundo externo, é natural que a moralidade e o direito, que nada mais são que a razão aplicada aos costumes, sejam igualmente absolutos. Já por isso, para Kant, a moral repousa no imperativo categórico, e o direito, nas primeiras normas do direito natural.
O fundamento das leis morais que Kant investiga é, por isso, tão certo quanto os primeiros princípios da razão prática a que São Tomás alude. O filósofo de Königsberg o identifica com a liberdade e a ele se refere como única lei inata da razão prática [41]:



"A liberdade [...] é o único direito original pertencente a todos os homens em virtude da humanidade destes. Este princípio de liberdade inata implica as seguintes competências: [...] igualdade inata, isto é, independência de ser obrigado por outros mais do que se pode, por sua vez, obrigá-los; daí uma qualidade humana de ser o seu próprio senhor (sui iuris), bem como ser um ser humano irrepreensível (iusti), visto que, antes de realizar qualquer ato que afete direitos, não causou dano algum a ninguém; e, finalmente, está autorizado a fazer aos outros qualquer coisa que em si mesma não reduza o que é deles".

Essa liberdade, que Kant considera “completamente suprassensível” [42], constitui a base absoluta do meritório (virtude), do devido (direito) e do culpável (delito)[43]. Porém, como “nenhuma dedução teórica pode ser dada à possibilidade desse conceito de liberdade”, os princípios jurídicos que dele deduzimos “se perdem no inteligível e não representam ampliação alguma do conhecimento”[44].
A liberdade na qual o direito e a ética se fundam não é a que constitui um princípio regulativo da razão especulativa, que não tem significado algum em termos de realidade[45]. A liberdade a que a razão prática se refere “não pode ser apresentada teoricamente como noumeno”[46], no entanto[47]

"prova sua realidade através de princípios práticos, que são leis de uma causalidade da razão pura para determinação da escolha, independentemente de quaisquer condições empíricas (da sensibilidade em geral) e revelam uma vontade pura em nós".

Embora seja possível extrair consequências diversas do princípio original de liberdade, este não é deduzido de qualquer outro conhecimento. Por isso, em direito e em moral, não é possível produzir qualquer conhecimento novo. Tudo o que é enunciado permanece um desdobramento do princípio original da liberdade.
Mas isso não significa que o dever não possua uma ordenação, como o ser tem a sua, embora nem um, nem outro sistema tenha o seu conteúdo determinado pelas coisas em si. “No que tange à ciência natural, a qual diz respeito a objetos sensorialmente externos, é preciso contar com princípios a priori e é possível, com efeito necessário, prestabelecer um sistema desses princípios”[48].
Portanto, a ciência da natureza é um sistema. E, semelhantemente, “a doutrina do direito deseja estar certa de que aquilo que pertence a cada um foi determinado (com precisão matemática)”, embora precisão semelhante “não possa constituir expectativa da doutrina da virtude, a qual não pode recusar algum espaço para exceções”[49].
Ao menos a doutrina do direito é tão certa e determinada quanto a ciência da natureza, com sua precisão matemática. Nesse sentido é que Kant reconhece, naquela doutrina, um sistema de direito natural. Reconhece nela também, de maneira expressa, uma metafísica.
Ao lado desse direito natural e dessa metafísica, subsiste o direito positivo, que não se confunde, nem é parte integrante do natural. Direito positivo, para Kant, é o conjunto de leis regentes do comportamento humano, cuja obrigatoriedade a razão não reconhece a priori, mas somente a posteriori[50]. Desse modo, Kant funda o binômio direito natural – direito positivo na diferenciação que enuncia entre a parte do conhecimento que permanece independente e a que depende da experiência.
Essa fundamentação do direito empresta força absoluta não só ao princípio da liberdade, do qual as normas jurídicas derivam, mas a cada uma das suas partes, pois até as normas do direito positivo, embora dependentes da experiência, se fundam numa “lei natural que [...] estabelece a autoridade do legislador (isto é, a autorização [que ele tem] de obrigar os outros mediante sua mera escolha)”[51]. Desse modo, não apenas o princípio fundamental (a liberdade) é absolutizado, mas o sistema todo. Em cada uma de suas partes, o direito reveste-se de validade absoluta, assim como cada postulado da ciência natural é incontrastável e, por isso, não comporta exceções.
Vemos que, sem se reduzir à de São Tomás, a doutrina do direito de Kant é tão metafísica, perfeita e completa quanto ela. Tanto o filósofo medieval como o moderno realizam, de modos diversos, os ideais de racionalidade e completude que permitem elevar o conhecimento jurídico à condição de verdadeira ciência. Daí o atrativo perene de suas filosofias.


Porém, quando examinada a fundo, a doutrina de Kant revela-se desprovida de base demonstrativa, posto que a igualdade ou outro valor poderia ser posto tão bem como seu fundamento quanto a liberdade. Sem mencionar que a ciência kantiana do direito permanece distante das instituições e dos próprios costumes. Incorre, por isso, no mesmo equívoco das lógicas cerebrinas e pouco aplicáveis à vida.
Incorre, porém, acima de tudo, nos mesmos vícios que maculam as premissas de que toda a Crítica da razão pura depende e que estão associadas ao apriorismo excessivo de Kant. É provável que o giro copernicano atribua ao sujeito mais do que lhe é devido. Na parte desta obra dedicada à Gnoseologia Jurídica, tratarei de mostrar que esse é o caso e que os vícios do giro de Kant só podem ser remediados por um movimento de vários graus em sentido contrário.
De natureza diversa é o direito natural dos romanos e, particularmente, de Cícero. De natureza diversa é o de Santo Agostinho. Embora muito menos abrangentes que o escolástico e o kantiano, esses direitos têm a decisiva vantagem de ser possível e poder ser aplicado por crescer rente à vida.
Com admiração, mas também com energia, devemos, pois, rechaçar as concepções idealizadas, mas impraticáveis do direito metafísico. Com energia devemos, não menos, reconhecer que, onde o kantismo se fez influente, a tarefa de conduzir a doutrina do direito ao seu prumo foi dificultada pela multiplicação de complexidades inteiramente desnecessárias.
O velho problema do peso morto da metafísica revela, aqui, sua forma contemporânea e avançada. Não sem os mais nobres motivos intelectuais, é certo. Motivos tão nobres que o peso morto kantiano é até hoje saudado como avanço egrégio, enquanto a metafísica muito mais proporcionada, cujo fio o tempo não embotou, é motivo de risos sarcásticos e dissimulados. Como se, para o homem, o infinito e não a finitude e a modéstia pudesse constituir a medida certa.


A JUSTIÇA EM O ARGUMENTO A PARTIR DA INJUSTIÇA

Dois elementos inserem-se no primeiro plano da obra O argumento a partir da injustiça, de Robert Alexy. O primeiro é a problematização da justiça com base nas transformações que o nacional-socialismo introduziu na Alemanha. O outro é o arcabouço conceitual e linguístico que Alexy moblizou para demonstrar os equívocos do positivismo jurídico.
Em histórica decisão proferida em 1954, a Corte Constitucional Federal da Alemanha declarou: “Direito e justiça não estão abandonados ao poder discricionário do legislador. A ideia de que o constituinte pode dispor as coisas como bem entender tem como corolário a reversão à postura mental típica do positivismo independente de valores. Há muito tempo, essa postura se tornou obsoleta, tanto na ciência jurídica quanto na prática”.
Alexy raciocina a partir dessa e de uma série de outras decisões no mesmo sentido que a Suprema Corte alemã proferiu, após a amarga experiência nazista. Ao fazê-lo, o autor de The argument from injustice assenta cuidadosamente os pés em cada pisada que outro ícone da Filosofia do Direito alemã, Gustav Radbruch, deu antes dele na mesma direção.
Um caso do qual, cedo ou tarde, os interessados em Filosofia do Direito tomavam conhecimento, no ambiente acadêmico do final do século passado, em que vivi, era o da transição (verdadeira conversão) de Radbruch do positivismo ao jusnaturalismo. Alexy retoma-a, em sua obra. Cita trechos de 1933 do primeiro Radbruch e os compara com o que denomina a “célebre fórmula” enunciada após a Guerra[52]:

"O conflito entre justiça e certeza jurídica pode ser resolvido da seguinte maneira: o direito positivo, tutelado pela legislação e pelo poder, tem precedência até mesmo quando o seu conteúdo é injusto e disfuncional, a menos que o conflito entre a lei e a justiça torne-se tão intolerável que a lei, como direito antijurídico, deva ceder à justiça".

Declarações como as acima transcritas de Radbruch e da Suprema Corte alemã só podem ser compreendidas à luz dos acontecimentos que levaram a Alemanha à Segunda Guerra Mundial. No pano de fundo das duas declarações está a necessidade de determinar até que ponto devemos obediência a leis injustas, como as do regime nazista, visto que o positivismo havia deixado claro que alguma obediência lhes era devida. Radbruch propõe a fixação de um marco que permita tratar e, quem sabe, solucionar o grave problema. Ao conteúdo da fórmula por ele proposta Alexy atribui o nome de argumento a partir da injustiça.
De acordo com Alexy, o positivismo tende a separar moral e direito, e o jusnaturalismo, a associá-los[53]:

"Somente no caso extremo e improvável de um sistema de normas que não demanda qualquer correção [inclusive moral] a tese da separação [entre moral e direito] alcança um limite. Quadro muito diferente emerge, se considerarmos o direito da perspectiva de um participante, por exemplo um juiz. Dessa perspectiva, a tese da separação é inadequada, e a da conexão é correta. Para estabelecê-lo, três argumentos serão considerados: o argumento a partir da correção, o argumento a partir da injustiça e o argumento a partir dos princípios".

Do argumento a partir da correção tratei em detalhes no capítulo sobre a falácia naturalista. Basta lembrar, aqui, que “a exigência de correção necessariamente ligada ao direito, por incluir a exigência de correção moral, é o motivo de, abaixo do limiar da injustiça extrema, a violação da moral correta não conduzir por necessidade à perda do caráter legal, mas implicar um defeito jurídico”[54].
É o que Alexy pensa, ao menos do ponto de vista de um participante situado dentro do sistema, como o juiz. Ele admite que, para um observador (externo), o critério da correção pode parecer secundário ou totalmente irrelevante, porém não para o participante, que sempre leva em conta o funcionamento correto do sistema. Por isso, o participante considera as injustiças extremas violações ou, ao menos, imperfeições do sistema.
Nosso jusfilósofo pensa os princípios em oposição às regras. De acordo com ele,

"regras são normas que, satisfeitas as condições nela especificadas, prescrevem certa consequência jurídica [...] A forma característica de aplicação delas é a subsunção. Em contraste, princípios são comandos otimizadores. Como tais, eles impõem que algo se realize na maior medida que as condições factuais e jurídicas permitirem. Isso significa que os princípios podem ser realizados em vários graus e que a extensão da sua realização depende não só da possibilidade factual, mas também da jurídica. A possibilidade jurídica de realizar um princípio, além de determinada por regras, é essencialmente condicionada por princípios concorrentes, o que implica que um princípio pode e deve ser balanceado em relação a outro. Esse balanceamento constitui a forma característica da aplicação dos princípios".

A técnica do balanceamento a que Alexy se refere tornou-se conhecida como princípio da proporcionalidade. Só pode ser aplicada na presença de um conflito específico entre dois princípios. Exemplo clássico é o da prova furtada ou obtida por qualquer outro meio ilícito. A Constituição brasileira não apenas proíbe o uso dessa espécie de prova[55] como erige a proibição num princípio de todo o processo civil, penal e administrativo. Porém, é possível conceber o caso em que a única prova que o acusado de um crime possui tenha sido obtida por meio ilícito. Nessa hipótese, o princípio da proibição das provas ilícitas entra em conflito com o direito à ampla defesa, que é garantido pela Constituição[56] e constitui igualmente um princípio. Na verdade, o conflito se estende à liberdade de ir e vir, que as penas passíveis de serem aplicadas no processo penal põem em risco.
O balanceamento de princípios opostos a que Alexy se refere consiste em priorizar ora um, ora outro, ora ainda outro deles, à luz de cada caso. Não necessariamente o balanceamento se dá entre dois e somente dois princípios. Em alguns casos, como o do acusado que só dispõe de uma prova ilícita, ele pode envolver mais princípios. Vimos que, em situações como essa, a liberdade e a ampla defesa prevalecem sobre a proibição da prova ilícita. Portanto, a prova produzida por meio ilícito deve ser admitida. Porém, num caso em que duas pessoas litigam, digamos, por dez mil reais, e a liberdade de uma ou de outra não está sob ameaça, a prova ilícita não há de ser admitida, ainda quando for a única de que um dos litigantes disponha.
Pouca dúvida há de que o balanceamento de princípios deve ser aplicado a certos conflitos. É de suma relevância observar que, no Brasil, o procedimento está consagrado expressamente no artigo 489 do novo Código de Processo Civil, que prevê que, "“no caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão” (§ 2º). A questão que coloco é se o balanceamento ou ponderação é suficiente para resolver todos os conflitos de princípios. Por um motivo principal, considero que não. É que a solução do conflito à luz de casos concretos sugere que os princípios são incluídos uns ao lado dos outros no ordenamento, de modo que não é possível admitir preferência por um em detrimento de outro, antes da aplicação a casos concretos. Essa impossibilidade parece-me simplesmente falsa.
Em muitos sistemas jurídicos, os princípios não estão dispostos de maneira horizontal rígida, o que equivale a afirmar que nem todos estão num único nível do ordenamento. Mais comum é a distribuição dos princípios em diferentes níveis. Chega a ser inescapável que, num ordenamento dessa espécie, com vários níveis (por exemplo, o nível constitucional, o da lei ordinária e o das normas regulamentares), os princípios distribuam-se entre eles e que o desnível entre os princípios constitucionais, legais e regulamentares (e entre eles e as outras normas) constitui o principal critério pelo qual o ordenamento é concebido.
Mas, se o ordenamento possui vários níveis, cada qual com princípios próprios, é intuitivo que os conflitos entre essas normas podem ser resolvidos não só por critérios a posteriori fornecidos pelas circunstâncias de cada caso, mas também por critérios a priori decorrentes da ordenação das normas em níveis diferenciados. Isso porque, se um conflito se estabelece entre princípios de níveis diversos, é admissível dar preferência ao princípio superior, independentemente das circunstâncias do caso concreto. Afinal, por mais relevantes que possam ser, aquelas circunstâncias jamais terão o condão de abolir a estrutura básica do sistema.
Se entendermos a subsunção como o enquadramento de uma espécie (caso concreto) num gênero (norma aplicável a vários casos), a solução do conflito por critérios a priori não será outra coisa que a subsunção de um caso a um princípio identificado como superior a outros também aplicáveis. E, se de fato estivermos a realizar subsunção nesse caso, torna-se claro que a técnica em questão é aplicável não só às regras, mas também aos princípios.
Embora oponha a aplicação de regras por subsunção à de princípios por balanceamento, o texto de Alexy não obsta a subsunção a princípios. Quando afirma que os princípios são “comandos otimizadores”, ele se refere à otimização da subsunção. Portanto, admite a subsunção aos princípios. Mas o caso complica-se quando consideramos que o encaixe do fato na regra é um procedimento antes de tudo gramatical: admitida a semelhança entre eles, realiza-se a aplicação de um ao outro sem mais considerações. A subsunção aos princípios é diferente por envolver algo mais: por envolver a minimização do prejuízo para a assimilação do fato a outro princípio.
Quando o juiz aplica uma regra, a incidência de outras é excluída. Quando aplica um princípio, ao contrário, outros princípios são ao mesmo tempo aplicados. Essa espécie de aplicação simultânea dos princípios é o que garante a subsunção ótima deles. De modo que falar da aplicação de princípios é necessariamente falar de subsunção, embora de uma espécie diversa da que realizamos ao aplicar regras.
A subsunção normativa é, ao mesmo tempo, semântica, funcional e contextual. Semântica porque se estabelece em razão do significado dos termos da norma. Funcional por realizar-se mediante institutos, que são complexos semânticos definidos em normas difusas ou agregadas. E contextual porque normas com o mesmo fraseado situadas em níveis diversos do ordenamento abrangem mais ou menos casos, conforme o contexto a que cada nível as refere.
Otimizar a subsunção aos princípios envolve reconhecer toda a extensão semântica deles e referi-los tanto aos institutos jurídicos que integram como aos casos que o seu nível hierárquico admite. Os princípios não são suscetíveis de interpretação restritiva, pois estreitar o significado deles é não lhes atribuir a maior extensão semântica que comportam. Esse é um dado importante, mas não suficiente, pois, além de não poderem ser interpretados de modo a reduzir seus sentidos possíveis, os princípios tampouco podem ser aplicados restritivamente, de modo a mutilá-los dos institutos que integram ou de seccioná-los de casos a que o nível hierárquico em que eles se situam os refere.
Com pequenas adaptações, o cabedal de conceitos de São Tomás permite esclarecer esse ponto pela divisão dos princípios em primeiros e consequentes. Primeiros princípios de um sistema são os referidos ao contexto mais amplo possível: o contexto total do ordenamento. Princípios consequentes são subprincípios ou consequências próximas dos princípios primeiros. Eles podem ser referidos ao contexto total do ordenamento ou a parte dele. Se forem referidos a todo o sistema, os subprincípios serão tão gerais quanto os princípios de que derivam; se forem referidos só a parte do ordenamento, constituirão princípios setoriais, portanto princípios de um nível distinto dos primeiros.
Se os princípios são normas otimizadoras tanto do ponto de vista semântico quanto funcional e contextual, eles não podem ser interpretados restritivamente, não podem deixar de ser inseridos nos institutos corretos, nem de ser aplicados a todas as relações jurídicas a que o seu nível hierárquico os refere necessariamente. Essas três exigências balizam a interpretação e aplicação dos princípios, razão pela qual constituem critérios a priori de resolução de conflitos entre princípios.
Ademais, a aplicação dos princípios apresenta peculiaridades em relação à das normas que não constituem princípios. Estas podem ser superiores umas às outras sem serem mais gerais do que elas. Porém, um princípio não pode situar-se num nível superior, sem ser mais geral que os dos níveis inferiores. Isso simplifica consideravelmente a resolução a priori dos conflitos de princípios, pois permite fundir os brocardos Lex superior derogat inferior, Lex specialis derogat generalis e Lex posterior derogat priori num só enunciado aplicável a todos os casos, a saber: Lei superior e geral afasta a aplicação da inferior e especial, ainda que esta lhe seja posterior.
Consequência da fusão das regras de resolução de conflitos é que, se o critério da superioridade permite decidir o princípio a ser priorizado, a proporcionalidade só intervirá nos casos em que os princípios conflitantes forem do mesmo nível e estiverem em vigência ao mesmo tempo. Em todos os outros casos, a resolução do conflito ocorrerá a priori e não a posteriori.
Alexy concluiu[57]:

"O direito é um sistema que (1) atende a demanda de correção, (2) consiste na totalidade das normas de uma Constituição globalmente eficaz que não são extremamente injustas, e na totalidade das normas promulgadas em conformidade com ela e (3) compreende princípios e outros argumentos normativos, nos quais o processo ou procedimento de aplicação do direito baseia-se ou deve basear-se para atender a exigência de correção".

Nessa notável síntese, a justiça aparece não só como valor jurídico, mas também moral. É quanto basta para ligar o direito à moral, afastar o positivismo e afirmar o jus-naturalismo não só como concepção teórica, mas também prática, porquanto imposta pela mais trágica experiência histórica de que temos notícia. Experiência, aliás, tão trágica quanto educativa, se Cervantes tiver escrito com alguma razão que “a história é mãe da verdade, êmula do tempo, depositária das ações, testemunha do passado, manifestação do presente, advertência sobre o futuro”.
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[1] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. In Great books of the western world. 2ª ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 8, Livro V, Capítulo 6, p. 382.
[2] SANDEL, Michael. Justiça – o que é fazer a coisa certa. 13ª ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. p. 235.
[3] Idem. p. 237.
[4] Idem. p. 322.
[5] Idem. p. 323.
[6] ARISTÓTELES. Ob. Cit. Livro V, Cap. 1 e 2. p. 377.
[7] Idem. Livro V, Cap. 2. p. 378.
[8]POUND, Roscoe. Justiça conforme a lei. 2ª ed., São Paulo: Ibrasa, 1976. p. 4-5.
[9] Idem.
[10] Idem. p. 21.
[11]ARISTÓTELES. Ob. cit. Livro V, Cap. 7, p. 382.
[12]BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico – lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1999. p. 17.
[13]ARISTÓTELES. Ob. cit. Loc. cit.
[14]ARISTÓTELES. Ob. cit. Loc. cit.
[15]ARISTÓTELES. Retórica. In Great books of the western world. 2ª ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 8, Livro I, Cap. 13. p. 617.
[16] SÓFOCLES. Antígona. 456, 7.
[17] EMPÉDOCLES. 380.
[18] MORAIS, Luís Fernando Lobão. O drama do direito - teoria e prática de uma visão jusfilosófica. Campinas: Julex, 1991. p. 107.
[19]BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 22.
[20]CÍCERO, Marco Túlio. De legibus. Livro I, nº 34. Disponível em www.oll.libertyfund.org/titles/545.
[21] Idem. nº 44.
[22] Idem.
[23] Idem.
[24] Idem.
[25] Idem. nº 34.
[26] Idem. nº 40.
[27] Idem.
[28]
[29]Idem. nº 44.
[30] Idem. nº 171.
[31] SIDOU, J. M. Othon. In Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1977. Verbete Lex – I. Vol. 49, p. 303.
[32] Idem. nº 167.
[33] HIPONA, Agostinho de. The city of God. In Great books of the western world. 2ª ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 16, p. 231.
[34]HIPONA, Agostinho de. O livre arbítrio. São Paulo: Paulus, 1995. p. 40-41. O livre arbítrio, como várias outras obras filosóficas de Santo Agostinho, foi escrito em forma de diálogo. Transcrevi o longo trecho acima por refletir, de modo exemplar, a influência do De legibus e do De republica que defendo ocorrer em Santo Agostinho. Os colchetes ocultam curtíssimas intervenções do interlocutor de Agostinho, no diálogo citado: seu filho Evódio. Elas foram suprimidas apenas para permitir apreensão mais imediata do fio argumentativo desenvolvido pelo autor do texto.
[35]ALEXY, Robert. The argument from injustice – a reply to legal positivism. New York: Oxford, 2002. p. 3-4.
[36] AQUINO, Tomás de. Suma teológica. “Tratado sobre a lei”. 2ª ed., 4ª impr., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 18. Questão 91, art. 2, p. 209. O texto citado afirma: “Posto que todas as coisas sujeitas à providência de Deus são governadas e reguladas pela lei eterna, como afirmamos antes, é evidente que elas participam da mesma lei, na medida em que derivam dela as suas inclinações aos atos e fins que as definem”.
[37] Idem. Questão 96, art. 2, p. 231. Diz o texto citado: “A lei é dada como medida dos atos humanos. Ora, uma medida deve ser homogênea àquilo que ela mede, como vemos na Metafísica [de Aristóteles], uma vez que coisas diferentes medem-se por medidas também diversas. Assim, as leis dadas ao homem devem corresponder à condição humana, posto que, segundo Isidoro, as leis devem ser possíveis “tanto de acordo com a natureza quanto do ponto de vista dos costumes dos povos”.
[38] JUSTINIANO, Flávio Pedro. Institutas. São Paulo: RT, 2000. Título II, p. 23.
[39] Código de Direito Canônico. Cânon 1.059.
[40] Código de Direito Canônico. Cânon 198.
[41] KANT, Emmanuel. A metafísica dos costumes. São Paulo: Edipro, 2003. p. 83-84.
[42] Idem. p. 85.
[43] Idem. p. 70.
[44] Idem. p. 93.
[45] Idem. 64.
[46] Idem. p. 69.
[47] Idem. 64.
[48] Idem. p. 57.
[49] Idem. p. 79.
[50] Idem. p. 67.
[51] Idem.
[52] RADBRUCH, Gustav. GUR 107. Citado em ALEXY, Robert. The argument from injustice – a reply to legal positivism. New York: Oxford, 2002. p. 28.
[53] Idem. p. 35.
[54] Idem. p. 79.
[55] Constituição Federal. Art. 5º, LVI.
[56] Constituição Federal. Art. 5º, LIV.
[57] Idem. p. 127.