quinta-feira, 31 de julho de 2014

A Nova Aliança

Do modo como as Sagradas Escrituras se dividem em Antiga e Nova Aliança, a história dos estudos especializados delas também se bifurca em etapas que podem ser designadas por essas palavras. Durante um primeiro período (séculos I a XV), o estudo das Escrituras apoiou-se de forma cada vez mais ampla em conhecimentos filosóficos, ao passo que, do século XVI ao XXI, ele se baseou e continua a basear-se cada vez mais fortemente em subsídios científicos.
A palavra aliança pode ser utilizada para designar essas duas etapas, porque a combinação de saberes que as caracteriza é tão estreita e enraizada em princípios que constitui verdadeiro pacto. Tanto na Antiga Aliança como na Nova, o conhecimento bíblico desenvolveu-se atrelado a saberes não bíblicos (filosóficos, durante a primeira etapa, científicos, na segunda). Tão clara é essa situação que as alianças não devem ser consideradas invenções de teólogos ou historiadores, mas fatos históricos observados e muito bem documentados.
Realmente, desde o século I, observamos um inegável interesse dos teólogos pela Filosofia grega. Quanto mais a literatura cristã se adensa, nesse período, quanto mais ela se aprofunda do ponto de vista reflexivo, mais conteúdo filosófico absorve. Não precisamos sair do âmbito do Novo Testamento para nos apercebermos disso. O grande especialista em cultura clássica, Werner Jaeger, deixou isso claro numa obra nem sempre lembrada, mas que esclarece como se deu o contato do cristianismo com a Filosofia grega. Refiro-me ao livro Cristianismo primitivo e paideia grega (Lisboa: Edições 70, 1961). Mas quem não quiser mergulhar em estudos históricos tão especializados, poderá aquilatar a presença dos elementos filosóficos a que me refiro pelo exame da Epístola aos Hebreus com ajuda de um bom comentário bíblico.
O que mais chama atenção, no período da Antiga Aliança, é que, conforme a reflexão dos teólogos se torna mais elaborada, a Filosofia é cada vez mais usada nos textos. O processo não diminui em intensidade, ao menos até a Reforma. Pelo contrário, ele se intensifica tanto que o interessado em História da Igreja é levado a indagar se a concepção de verdade que vigorou, entre os séculos I e XVI, não envolve tão fortemente as Escrituras quanto a razão natural.
A combinação dos dois elementos faz mesmo indagar se a verdade cristã não será bivalente por natureza. Se não será, ao mesmo tempo, bíblica e filosófica, revelada nas Escrituras e também à razão. Um dos problemas que o estudo da História da Igreja apresenta é a quantidade de respostas pueris e incrivelmente simples que foram oferecidas a essas perguntas. Em todos os séculos, sempre houve quem erguesse bem alto a voz para banir a verdade racional do âmbito do cristianismo, como algo grego, portanto pagão. No entanto, um olhar mais percuciente mostrará que essas opiniões sempre foram rejeitadas com bons argumentos. Pergunto-me se a fusão da Teologia com a Filosofia, que a História mostra, não constitui a demonstração acabada do triunfo de tais argumentos. É o que me parece.
Mas podemos ir além desse ponto. Quanto mais de perto observamos a combinação de saberes característica da Antiga Aliança, mais específica ela se revela. A aliança não se estabelece entre a Teologia e a Filosofia inteira, mas, de modo privilegiado, com uma parte dela: a Metafísica. É verdade que a Lógica é ensinada e mantém sua importância, durante toda a Idade Média, mas a mistura com a Teologia não a envolve tanto quanto a Metafísica. Na Antiguidade e na Idade Média, a Lógica sempre foi vista como uma das sete artes, portanto uma técnica que não depende de um saber abstrato como a Teologia e devia ser mantida um pouco mais distante com dela.
Diferente é o caso da Metafísica, cuja relação com a Teologia foi muito mais estreita, durante a Idade Média. Quanto mais a reflexão se aprofunda, nesse período, mais forte se faz a crença de que um número incalculável de proposições teológicas pode ser alterado por proposições metafísicas. Isso se torna palpável no aceso debate travado a respeito dos universais.
Sempre se soube que o conhecimento pode ter por objeto entes individuais e universais. Sócrates e Platão são indivíduos. Homem é um objeto universal. Pouco se discute que os objetos individuais podem ou não existir. Sócrates e Platão foram pessoas reais; a Esfinge de Édipo Rei, não. De sorte que a diferença entre indivíduos existentes e inexistentes é fácil de perceber.
Muito mais controvertida é a existência dos universais. Vimos que o gênero homem é um universal. Não dispomos de prova alguma de que esse gênero exista, embora Platão tenha proposto a existência das ideias num mundo à parte. Porém, e a cor azul: existe efetivamente nos corpos? A resistência é uma propriedade intrínseca dos materiais? Podemos considerá-la presente neles? E a extensão, existe efetivamente nos corpos? Esses problemas são muito mais nebulosos que o da existência ou não de objetos individuais.
A discussão sobre a objetividade dos universais tem consequências não só para o conhecimento comum como para a Teologia. Se o amor (um universal) não existe, Deus não pode ser amor. Se a justiça não existe, Paulo discorre em vão sobre ela. Não há homens justos, e Deus não pode justificar quem quer que seja. Isso basta para exemplificar como a discussão de temas metafísicos pode influenciar não só a visão que temos do mundo como o que conhecemos de Deus.
Quando digladiava sobre os universais, o homem medieval estava longe de considerar o tema supérfluo, porque todas as correntes que se constituíram sobre o problema, até o nominalismo de Ockham, admitiam a existência de ao menos alguns universais. Tal era o consenso sobre esse ponto que, ao discutirem a questão, os homens daquele tempo tinham certeza de que discutiam a realidade. Somente quando os universais foram entendidos como criações do intelecto, sem a menor correspondência com o real, o debate a respeito deles foi considerado injustificável por alguns.
Vemos que o interesse da Idade Média por questões metafísicas não se deveu a uma inclinação desmedida ao abstrato, alienação ou coisa semelhante. Tampouco se explica pela tolice ou falta de senso prático do homem daquela época. A Metafísica só se entreteceu tão profundamente com a Teologia, porque se pensava que o conhecimento da realidade material e imaterial podia ser alterado pela primeira. Essa possibilidade era particularmente evidente na Teologia. O que pensamos ser Deus (e é preciso ter presente quanto Deus era real para o homem medieval) pode ser profundamente alterado, pelo exame de proposições metafísicas. Daí o interesse que essa parte da Filosofia despertava.
A Antiga Aliança foi o desenvolvimento da reflexão teológica com apoio cada vez maior na Metafísica. Considerar esse desenvolvimento o resultado de uma alienação doentia é não o compreender absolutamente. O que a reflexão teológica realizou, principalmente entre os séculos IX e XV, foi explorar até as últimas consequências o incrível repertório de conceitos metafísicos que os antigos gregos tinham forjado. A obra daquela época pode ser, de algum modo, comparada à exploração da Antártida pelo homem. O Polo Sul podia ou não ser explorado: o homem optou por explorá-lo. Com isso, aumentou o seu conhecimento e eliminou muitas dúvidas. Não foi diferente com o vasto empreendimento metafísico do homem medieval, que explorou um continente ainda mais difícil de penetrar que a Antártida, lutando contra dificuldades também mais tremendas.
É possível imaginar o impacto das ideias de Guilherme de Ockham, quando ele propôs, pela primeira vez na História, que os universais não apenas não existem como não têm qualquer semelhança com dados da realidade. Para Ockham, a semelhança que afirmamos entre esses conceitos e os entes individuais designados por meio deles é uma construção do intelecto, não um dado real. A afirmativa é tão profunda que, quase meio milênio depois, Kant desenvolveu uma das mais extraordinárias filosofias da História, a fim de justificar exatamente a mesma conclusão. Não parece provável que uma filosofia altamente reconhecida como a de Kant tenha sido erguida sobre especulação tão vã quanto a que se costuma atribuir ao homem medieval.
Assim se formou a Antiga Aliança. A Nova surgiu com a Reforma, cujos herdeiros e continuadores negaram progressivamente a Filosofia. Coube aos continuadores da obra de Lutero e Calvino criar um conhecimento cada vez mais exclusivamente bíblico. Tão bíblico que, em algum momento, se tornou pequeno e sectário. Não há, via de regra, no Protestantismo, sinais evidentes da Nova Aliança, já que ele se tornou um conhecimento bíblico puro e simples, enquanto em outra parte esse conhecimento continuou a ser cultivado, mas também foi associado à ciência.
O Protestantismo costuma orgulhar-se da sua adesão exclusiva à Bíblia. Sola Scriptura sempre foi e continua a ser o seu lema. O que poucos percebem é que esse lema foi afirmado de um modo, no início, e de outro muito diferente hoje. Lutero proclamou o sola Scriptura, com base numa formação que incluía não só a Teologia, mas também a Filosofia. Firmou-o numa reflexão pessoal que negava, sem dúvida, a Filosofia, mas o fazia por meio dela própria. Lutero usou Ockham para estabelecer a independência radical da Teologia em relação à Metafísica. De fato, para aquele filósofo, se não têm qualquer semelhança com o que existe, os universais não podem ser utilizados para modificar o conhecimento do real. Como Deus é real, o que conhecemos das suas obras pelos sentidos e as Escrituras é tudo o que pode ser conhecido. Essa era, porém, a premissa filosófica de que muitos reformadores partiram. Não era a afirmativa preconceituosa e exclusivista que depois se tornou.
Em regra, o Protestantismo não cultivou a Filosofia, nem a ciência. Não criou nem aderiu, portanto, a aliança alguma. Coube aos cultores da Crítica Histórica e Literária das Escrituras colocar a ciência em estreita relação com a Teologia. Desse modo, surgiu o que acima denominei Nova Aliança. Surgiu um conhecimento que liga a Teologia à ciência e, de modo particular, à História e à Arqueologia.
Difícil é fazer a Teologia retroceder desse ponto. Difícil é fazê-la negar a Nova Aliança estabelecida com aqueles saberes. Sobretudo é difícil fazê-lo, a fim de sustentar compromissos obscurantistas com velhas e empoeiradas interpretações das Escrituras. Quando a roda da História gira em certa direção, é impossível forçá-la a se movimentar no sentido oposto. Isso significa que a Teologia do futuro poderá ser crítica ou anticrítica. Só não poderá se desenvolver sem consciência da Crítica que a fez transformar-se numa Nova Aliança. Crítica que precisará, por certo, ser cada vez mais expandida para cumprir seu propósito, como a Metafísica o foi no passado para alcançar o seu.
De fato, não é mais possível uma Teologia sem Crítica ou sem consciência dos avanços que se obtiveram pela Nova Aliança. Fazer Teologia, hoje, significa conservar o bom depósito, o depósito insubstituível das Escrituras, mas também aliá-lo a estudos históricos, arqueológicos e científicos de modo geral. Para lembrar a polêmica frase de Monteiro Lobato, o que disso se afasta não passa de paranoia ou mistificação.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

José do Egito

Por todo o livro de Gênesis, encontramos relatos derivados de fontes antiquíssimas, umas escritas, outras orais, a respeito da Pré-História Bíblica. Essa derivação sugere que a base do texto é histórica, embora o autor interprete os acontecimentos narrados em termos da sua relação com Iahweh.
Quando chegamos à história de José, porém, tudo muda. As evidências de derivação de fontes antigas não desaparecem completamente, mas se tornam tênues. Por outro lado, a criação literária de narrativas e seus pormenores intensifica-se. De real, nessa história, permanece a menção de cargos egípcios típicos, como os de copeiro-chefe, padeiro-chefe (Gn 40:2), mágico (Gn 46:26-34), mordomo (Gn 39:4) e administrador do reino, posição ocupada pelo próprio José, assim como os costumes egípcios que menciona. Permanecem os pormenores que o texto cita e que se referem a fatos cuja existência foi comprovada por uma enorme coleção de fragmentos da época.
O arqueólogo John Thompson, de Cambridge, fornece elementos que permitem interpretar os relatos de José como ficção. De acordo com ele, “os reis hicsos formaram as dinastias XV e XVI [do Egito] e reinaram durante cerca de 140 anos. Eles estabeleceram uma segunda capital no delta oriental, em Avaris. Esses faraós semitas adotaram os costumes dos reis egípcios locais e usaram a administração egípcia de então, empregando oficiais egípcios de acordo com o antigo regime. No decorrer do tempo, oficiais semitas naturalizados ocuparam muitos desses cargos. Entre eles achava-se um certo Hur, que era uma espécie de chanceler” (THOMPSON, John Arthur. A Bíblia e a Arqueologia – quando a ciência descobre a fé. p. 60). As informações de Thompson permitem pensar que o costume hicso de empregar administradores semitas inspirou a criação de relatos parecidos com o de José.
Por outro lado, dados do texto bíblico, como a perfeição do caráter de José (tão destoante do de seus irmãos), a extensão dos dons sobrenaturais que possuía e a sua ascensão meteórica à testa do reino do Egito, indicam que a falta de informações precisas sobre esse patriarca pode ter sido preenchida com noções do imaginário judaico sobre o Período Hicso. Não é impossível que a criação tenha-se inspirado na figura histórica do chanceler egípcio Hur, mencionado por Thompson, ou em outra personagem semita que tenha ocupado cargo de destaque na administração do Egito, naquela época.
Não estou a afirmar que José viveu durante as Dinastias XV e XVI do Egito. A inspiração do relato bíblico em determinadas pessoas só indicará que José viveu na época delas, se os dados da sua história forem entendidos literalmente. Porém, não é essa a conclusão mais verossímil. Sabemos que os hicsos se estabeleceram, no Delta do Nilo, por volta de 1.790 a. C. A família de Jacó (Israel) tinha migrado para esse lugar, mais de dois séculos antes. Portanto, o José real, que foi filho de Jacó, viveu aproximadamente em 2.000 a. C. As narrativas bíblicas sobre ele, porém, ao que tudo indica, foram criadas mais de dois séculos depois, num contexto marcado pela presença dos hicsos ou pela lembrança deles.
Um dos motivos para a redação da história pode ter sido o fato de José ter arrebatado a primogenitura a Rúben, assim como seu pai, Jacó, a tomara a Esaú. A atribuição da primogenitura a José é comprovada pelo fato de seus filhos Manassés e Efraim terem recebido herança dobrada em Israel (Gn 48). Portanto, a história de José pode ter sido escrita, a partir de dados do Período Hicso, para explicar essa mudança inusitada.
Gênesis está longe de dissimular o caráter de ficção da história desse patriarca. Após ter narrado episódios da vida de Abraão, Isaque e Jacó e de os ter interpretado teologicamente, o autor do livro passa, repentinamente, a reproduzir uma série de padrões literários cujo caráter imaginativo não passa despercebido. Logo na primeira página da história de José, quando ele vai ao encontro de seus irmãos, que apascentam o rebanho e o avistam, eles têm tempo de discutir, traçar e pactuar um plano para tirar a vida do irmão mais novo, antes de ele chegar ao lugar em que estavam:
“De longe o viram e, antes que chegasse, conspiraram contra ele para o matar. E dizia um ao outro: Vem lá o tal sonhador! Vinde, pois, agora, matemo-lo, e lancemo-lo numa destas cisternas; e diremos: Um animal selvagem o comeu; e vejamos em que lhe darão os sonhos. Mas Rúben, ouvindo isso, livrou-o das mãos deles, e disse: Não lhe tiremos a vida. Também lhes disse Rúben: Não derrameis sangue; lançai-o nesta cisterna, que está no deserto, e não ponhais mão sobre ele; isto disse, para o livrar deles, a fim de o restituir ao pai (Gn 37:18-22).
A formulação, discussão e deliberação de um plano tão lógico estão, por si sós, muito além do que é razoavelmente possível, do ponto de vista cotidiano. Os irmãos de José estavam longe de ser figuras muito racionais ou calculistas. Alguns deles são descritos como pessoas sanguíneas e impulsivas. Ao menos é o que Gênesis coloca além de toda dúvida.
Porém, o livro não se limita a afirmar que os patriarcas criaram, discutiram e deliberaram adotar o seu plano perfeito, durante o tempo que José despendeu para chegar até eles. Acrescenta que eles realizaram a sua façanha deliberativa contra a vontade do primogênito Rúben, o que torna o relato ainda mais difícil de conceber, do ponto de vista dos costumes e instituições da época. Em 2.000 a. C., se existia uma chance de dez irmãos deliberarem uma pequena parte do que Gênesis 37 afirma que deliberaram, ela dependia da concordância do primogênito, negada expressamente pelo texto bíblico. Isso nos leva a concluir que o autor sagrado não tratou o relato da venda de José por seus irmãos como fato histórico.
Ainda mais impressionante é que o padrão deliberativo adotado pelos irmãos se repete, quando a caravana de ismaelitas se aproxima: “Olharam e viram que uma caravana de ismaelitas vinha de Gileade; seus camelos traziam arômatas, bálsamo e mirra, que levavam para o Egito. Então disse Judá a seus irmãos: De que nos aproveita matar o nosso irmão e esconder-lhe o sangue? Vinde, vendamo-lo aos ismaelitas; não ponhamos sobre ele a nossa mão, pois é nosso irmão e nossa carne. Seus irmãos concordaram. E, passando os mercadores midianitas, os irmãos de José o alçaram e o tiraram da cisterna e o venderam por vinte siclos de prata, aos ismaelitas; estes levaram José ao Egito. Tendo Rúben voltado à cisterna, eis que José não estava nela; então rasgou as suas vestes. E, voltando a seus irmãos, disse: Não está lá o menino (Gn 37:25-30).
Pela segunda vez, no mesmo capítulo, observamos a formulação de um plano complexo, sua discussão e a convergência de todos os irmãos contra a vontade do primogênito. Exatamente o que era inconcebível, no século XX e também depois. Claro que o imponderável pode ter ocorrido, mas não é comum as Escrituras o registrarem de modo tão diametralmente contrário aos costumes da época. Somos, pois, levados a concluir que o texto bíblico não dissimula o caráter imaginário dos pormenores da venda de José como escravo aos ismaelitas. Pelo contrário, admite-o implicitamente. E podemos acrescentar que essas mesmas características de criação repetem-se, nos capítulos seguintes da história do patriarca.
Não menos digno de nota é o fato de o verso 37:28, transcrito acima, identificar os viajantes que levaram José, sucessivamente, como midianitas e ismaelitas: "Passando os mercadores midianitas, os irmãos de José o alçaram e o tiraram da cisterna e o venderam por vinte siclos de prata, aos ismaelitas". Desde o desenvolvimento da chamada hipótese documentária, considera-se que a menção dos dois povos deve-se ao fato de a história de José sobrepor duas fontes (escritos originais) conhecidas como E (Eloísta) e J (Javista), que foram reunidas em Gênesis 37 a 50. Como considerava os dois relatos sagrados, o editor judeu utilizou-se delas, sem se atrever a apagar as suas contradições.
Essa interpretação de Gênesis leva-nos à conclusão de que José de fato existiu. Pode inclusive ter sido vendido como escravo por seus irmãos e ido parar no Egito, antes deles. Porém, ele não governou o país, já que os registros bastante completos daquele povo, relativos à época patriarcal, o calam completamente. A história de José registrada em Gênesis 39 a 47 foi criada para justificar a herança dobrada que os filhos desse patriarca receberam. Por isso, tem o nítido caráter de parábola bíblica.
A forma literária do relato imaginativo, cujas espécies são a lenda, o mito, a parábola, o apólogo, entre muitas outras, não é incompatível com o texto bíblico. Não há dúvida de que, nas Escrituras, prevalece o elemento histórico, porém o relato imaginativo não está ausente nelas. Quando se põe a ensinar por parábolas, Jesus não cria algo novo, renova uma prática antiga, até mesmo ancestral. O próprio conceito de parábola, para os judeus, era bastante elástico. Incluía numerosas espécies de textos imaginativos, como Joachin Jeremais mostrou numa obra que se fez clássica (JEREMIAS, Joachin. As parábolas de Jesus. São Paulo: Paulinas, 1976). O relato de José deve ser considerado um feixe ou conjunto de parábolas históricas, nesse sentido amplo do termo.
Porém, o relato é interceptado, após o episódio da venda de José aos ismaelitas, pela abrupta separação de Judá de seus irmãos (Gn 38). A intenção da interceptação pode ter sido relacionar a longa temporada de Judá numa família cananeia e a sua união a uma mulher local com a intervenção violenta dele na venda de José. O relato inserido nada tem de nobre. Está longe de exaltar Judá. Mas serve de elo inicial para a longa história posterior do desenvolvimento apartado da Tribo de Judá.
Nada há de ofensivo à inspiração divina da Bíblia, no emprego de textos imaginativos, como os encontrados na história de José. Até porque a intenção do escritor de Gênesis nunca foi iludir, alterar ou falsificar a verdade histórica, como ficou claro na discussão de Gênesis 37 desenvolvida acima. O desenvolvimento da pesquisa bíblica torna indispensável que o intérprete saiba reconhecer o caráter imaginativo de um texto, quando chega a ele, em vez de considerar que todas as narrativas têm o mesmo caráter. A atribuição de caráter histórico a todos os textos era típica do intérprete antigo. A atitude do moderno há de ser outra, mais consoante com o tempo atual e tanto mais necessária quanto a Teologia permanece carente de renovação nos nossos dias.