terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

O Jovem Rico

“Que devo fazer para herdar a vida eterna?” perguntou o jovem a Jesus (Mc 10:17). O restante da história é bem conhecido: Jesus disse-lhe que guardasse os mandamentos, ao que o moço lhe respondeu que os tinha observado “desde a juventude” (Mc 10:20). Então, o Mestre mandou-o vender tudo o que tinha, dar o dinheiro aos pobres e segui-lo. E o jovem se retirou triste, pois tinha muitos bens.
Lucas registra o espanto dos discípulos com essas palavras de Jesus ao jovem (Mc 10:24). Mesmo quando lhes foi explicado que elas não se referiam à posse, mas à confiança nos bens materiais, os discípulos ainda “ficaram sobremaneira maravilhados” (Mc 10:26). Então, Jesus concluiu: “Para o homem é impossível [salvar-se], mas não para Deus; porque para Deus tudo é possível” (Mc 10:27).
As palavras de Pedro, após esse diálogo, mostram que os Doze foram os primeiros a renunciar aos seus bens para seguir Jesus: “Eis que nós deixamos tudo e te seguimos” (Mc 10:28). Nas eras imediatas, muitos outros círculos de cristãos desprovidos de bens materiais se formaram. No século XIII, a proliferação das ordens mendicantes, de um lado, e o acúmulo de riquezas por parte da Igreja, de outro, haviam chegado a tal ponto que uma das mais explosivas querelas teológicas da História emergiu: a discussão sobre o sentido do mandamento de Jesus ao jovem. A própria questão das indulgências, que serviu de estopim à Reforma, não deixou de prender-se àquela discussão.
Tanto o estarrecimento dos discípulos como a controvérsia posterior sobre a pobreza deveram-se à interpretação literal do mandamento ao jovem rico. No entanto, dificilmente se pode concluir que as palavras de Jesus foram pronunciadas para serem observadas de modo literal. Vender tudo o que tem era uma expressão favorita de Jesus. Ele a usou tanto em frases com o sentido de mandamentos, como no caso do jovem rico, quanto em parábolas como a do tesouro escondido e a da pérola. Na primeira dessas histórias, o homem que acha o tesouro vende tudo o que tem e compra o campo em que ele se encontra (Mt 13:44). Na segunda, o negociante vende todos os seus bens para adquirir a pérola preciosa (Mt 13:46). Se a possibilidade existe de o mandamento de Jesus ao jovem ser interpretado literalmente, o mesmo não se pode afirmar das palavras das duas parábolas.
Isso mostra que o propósito de Jesus, ao ordenar que seus discípulos vendessem tudo o que tinham, ia além do despojamento literal de bens materiais e da redução à pobreza. Como as parábolas do tesouro e da pérola indicam, a venda de bens não se confunde com o despojamento da matéria. Ela representa o despojamento de si, daquilo que 1ª de João 2:16 denomina a soberba da vida, ou seja, o orgulho que se confunde com o viver do homem sem Deus.
O mandamento de Jesus ao jovem não deve ser entendido em dissonância com a frase “vende tudo o que tem”, inserida nas duas parábolas. Jesus não quis dizer que o rico devia vender literalmente tudo e dar aos pobres. Nem os Doze o haviam feito. Na resposta à provocação sempre espontânea e pronta de Pedro, ele disse que os discípulos haviam renunciado a "irmãos, irmãs, pai, mãe e filhos"; só ao final acrescentou a renúncia aos campos (às propriedades). Sabemos que os seguidores mais próximos de Jesus tinham uma bolsa comum, da qual retiravam o sustento. No entanto, nem deles Jesus afirmou que haviam deixado mais do que campos. Tampouco disse que os campos deixados tinham sido vendidos ou que o produto da venda tinha sido entregue aos pobres. Portanto, nem mesmo os Doze venderam tudo o que tinham e deram aos pobres. Não é preciso lembrar que, nos capítulos 2 e 4 de Atos, nada além de campos e casas foi vendido, pelos primeiros discípulos, e que o produto da venda não foi doado aos pobres, mas lançado no fundo comum da igreja em Jerusalém.
Portanto, se os Doze e os outros discípulos não venderam tudo o que tinham, como Jesus pode tê-lo exigido daquele jovem rico? Não, o sentido das ternas palavras do Mestre ao discípulo que, de joelhos, lhe perguntou “Mestre, que hei de fazer para herdar a vida eterna?” (Mc 10:17) não foi tal exigência. Aquele que, ao responder a pergunta, amou o jovem, não pretendia que ele vendesse literalmente tudo. Jesus queria que o jovem vendesse a si mesmo, que ele deixasse de enxergar só a si, o que envolvia os bens materiais, mas não se limitava a eles.
A confiança nas riquezas é uma das formas que o homem tem de enxergar só a si, de se colocar no centro do mundo, o que é de todos o maior erro humano: o único que o impede de entrar no reino de Deus. Necessário é ao homem deixar o centro do mundo. Deixar de ser rico e fazer-se pobre.

“Jó discutiu durante 40 capítulos para tentar provar que mantinha íntegra a sua justiça. Quão difícil é ao homem rico em retidão despojar-se dela! É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que o rico em justiça entrar no reino de Deus.”

Não raro, o tesouro de um homem é a sua justiça, a sua ética, numa palavra: a sua retidão. Jó foi tão justo que até Deus disse a Satanás: “Viste o meu servo Jó?” (Jó 2:3). A retidão é a honra do caráter. O homem que não é reto cobre-se de desonra. Por isso, quando o destino o destitui de tudo, quando o faz nu como Jó, que foi despojado dos sete filhos e três filhas, das sete mil ovelhas, dos três mil camelos, das quinhentas juntas de bois, das quinhentas jumentas e da “muitíssima gente” ao seu serviço (Jó 1:2-3), o homem ainda costuma abraçar-se àquela honra, àquela vestimenta do caráter, que é a retidão pessoal. Jó discutiu durante 40 capítulos para tentar provar que mantinha íntegra a sua justiça. Só ao cabo dessa discussão, ele foi destituído da sua justiça própria. Quão difícil é ao homem rico em retidão despojar-se dela! É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que o rico em justiça entrar no reino de Deus.
Por isso, Jesus pôs todos os mandamentos do mundo nas costas do jovem que amou: “Não matarás; não adulterarás; não furtarás; não dirás falso testemunho; a ninguém defraudarás; honra a teu pai e a tua mãe” (Mc 10:19). E, como se não bastasse, ainda disse: “Vai vende tudo quanto tens e dá-o aos pobres” (Mc 10:21). Em dois versículos, Jesus apresentou todos os 40 capítulos de Jó àquele triste homem. Seu objetivo não era que ele guardasse aquilo, assim como não pretendia que ele vendesse literalmente tudo o que possuía. Jesus desejava, antes, que o jovem se despojasse da justiça própria que impede o entrar no reino de Deus.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Amarrar o Valente

Quando Jesus expulsou o demônio mudo de um homem, escribas provenientes de Jerusalém afirmaram que ele estava possuído por Belzebu e expelia demônios por meio deste (Mc 3:22).  De modo impressionante, Jesus refutou essa acusação sem investir contra o pano de fundo teológico da época, que considerava Belzebu um líder do mal distinto de Satã. Pelo contrário, ele afirmou que, se expulsava demônios por Belzebu, então Satanás combatia o próprio Satanás: Lúcifer digladiava com um grande demônio.
Na mitologia cananeia e filisteia, Belzebu era considerado a segunda ou terceira maior autoridade dos infernos. Um maioral dos demônios. Por isso, a afirmação dos escribas implicava que o reino do mal estava dividido. Mas a resposta de Jesus, diametralmente contrária à afirmação dos eruditos da época, significava que estes estavam errados, pois a divisão das forças do mal que preconizavam não era verdadeira.
Por um lado, com a sua resposta, Jesus confirmou a crença farisaica na existência de espíritos maus e mesmo de um reino do mal. Claro que não devemos pensar nesse reino como algo tão estruturado e perfeito quanto o de Deus. Longe disso. Porém, ainda assim, o mal não deixa de ser um reino, com líderes, principados, potestades e maiorais.
O Novo Testamento revela que o reino de Deus subjuga e conquista o do mal, assim como os romanos conquistaram a Síria, a Judeia e o Egito, entre muitos outros territórios. Isso se dá na medida em que os espíritos malignos são imobilizados por Cristo e seus seguidores movidos pelo Espírito Santo.
Infelizmente, nos nossos dias, tornou-se moda não crer no mal. Os que não aceitam a inexistência do mal como moda tomam-na como convenção científica. O resultado é a crença de que todo mal é humano. Não há mal sobre-humano. Esse é um dos fundamentos específicos e diferenciadores da cultura contemporânea.
O Novo Testamento revela algo diferente dessa moda e dessa convenção. Revela que ao reino de Deus opõe-se o do mal. Desvela outrossim que a vinda do reino de Deus subjuga as forças das trevas, como Jesus exprimiu na parábola: “Quando o valente [homem forte] bem armado, guarda a sua própria casa, ficam em segurança todos os seus bens. Sobrevindo, porém, outro mais valente [forte] do que ele, vence-o, tira-lhe a armadura em que confiava, e lhe divide os despojos” (Lc 11:21-22).
A parábola está associada aos versos seguintes: “Quando o espírito imundo sai do homem, anda por lugares áridos, procurando repouso; e não o achando, diz: Voltarei para minha casa, donde saí. E tendo voltado, a encontra varrida e adornada. Então vai, e leva consigo outros sete espíritos, piores do que ele, e, entrando, habitam ali; e o último estado daquele homem se torna pior do que o primeiro” (Lc 11:24-26).
Ao contrário do que pode parecer a um primeiro exame, o texto do espírito imundo é também uma parábola. Era comum Jesus pronunciar histórias consecutivas sobre um mesmo tema. É o que se passa aqui. Se a história do espírito imundo não fosse parábola, não deveria conter o solilóquio (próprio desse tipo de texto alegórico): “não o achando, diz: Voltarei para minha casa, donde saí”. De modo que, a uma parábola, se segue outra.
Vejamos, então, o que cada história traz e como elas se conectam. Na que é contada a princípio, um homem forte é amarrado por outro ainda mais forte que ele. Santo Agostinho identificou esse amarrar com o aprisionamento de Satanás, durante o reino milenar (Ap 20:2). A interpretação contém uma verdade profunda, porém não devemos ir ao ponto de aproximar ou fundir textos simbólicos tão distantes quanto a parábola do valente e as profecias de Apocalipse 20. O acorrentamento de Satanás, em Apocalipse, não é idêntico ao amarrar do valente, nos Evangelhos, pois este se passa agora, e o reino milenar ainda não é chegado. Quando chegar, o aprisionamento do Diabo será muito mais pleno, completo e irrestrito do que é hoje. Portanto, as imobilizações do mal na parábola do valente e em Apocalipse são acontecimentos distintos.
A segunda parábola ajuda-nos a entender isso. Ao ser expelido do homem, o espírito vaga por lugares áridos, até deparar-se com a ocasião de voltar à casa de onde saiu. Então, ele a acha varrida e adornada. As práticas de varrer e adornar não eram muito comuns em residências palestinas do primeiro século, cuja imensa maioria era rústica e dotada de piso muito irregular. Só por motivos especiais, como o retratado no texto da dracma perdida, uma residência era varrida. Tampouco era costume judeu adornar muito as casas. Isso leva a crer que a casa a que Jesus se referiu era mais sofisticada que uma residência. Era um edifício público ou mesmo um palácio.
Sob esse ponto de vista, a volta do espírito imundo à sua casa significa o retorno das forças do mal não a um indivíduo, mas a grandes coletividades, até mesmo a nações (no caso, Israel), que elas haviam possuído e de que tinham sido expulsas, por ocasião do advento do reino de Deus. Essa conclusão torna-se clara na versão de Mateus que, após afirmar que o último estado do homem veio a ser pior que o primeiro, conclui: “Assim há de acontecer também a esta geração perversa” (Mt 12:45). A casa não é um indivíduo; é a geração.
Assim conjugadas, as parábolas do homem forte e do espírito imundo formam um retrato da História espiritual da humanidade, da vinda de Jesus Cristo até hoje. Essa História é muito diferente da História social geralmente narrada nos livros. De acordo com ela, muitos povos abraçaram o evangelho, conheceram a verdade e foram libertados da escravidão às forças do mal, mas estas voltaram a possuí-los, e o último estado deles veio a ser pior que o primeiro. Esse é o testemunho bíblico.

“Nada disso é muito aceito hoje em dia. Uma orquestração se formou contra a História espiritual dos Evangelhos, o que é mau. Porém, o pior é que, a muitos dos que não creem em tais realidades, será dado um sinal diferente do de Jonas.”

A História espiritual implícita nas parábolas do valente e do espírito imundo mostra a alternância de períodos de maior luz e de prevalência das trevas, na trajetória dos povos. Quando João e Jesus começaram a pregar, subitamente, a luz dissipou as trevas (Jo 1:4-5). Porém, estas logo tornaram a prevalecer (Jo 3:19). Com a expansão do evangelho entre os gentios, de novo a escuridão recuou, em muitos lugares. Quando Graciano renunciou ao título de Sumo Pontífice das religiões pagãs, no fim do século IV, ela sofreu um revés poucas vezes visto. Mesmo quando essa condição especial se perdeu, a casa de muitos povos ainda permaneceu vazia, como Mateus acrescenta: “chegando, [o espírito imundo] acha-a desocupada, varrida e adornada” (Mt 12:44). No entanto, as trevas sempre refluíram, sempre voltaram a ocupar e governar o mundo. Este jaz no maligno (1 Jo 5:19) não por ser mau, mas por ter sido dominado por forças do mal.
Nada disso é muito aceito hoje em dia. Uma orquestração se formou contra a História espiritual dos Evangelhos, o que é mau. Porém, o pior é que, a muitos dos que não creem em tais realidades, será dado um sinal diferente do de Jonas.