“E o povo já pergunta com maldade:
Onde está a honestidade,
Onde está a honestidade?”
(Noel Rosa, “Onde está a honestidade?”)
A pergunta do gostoso samba de Noel atravessou os tempos vividos pela
nossa sociedade, de 1933, quando foi composto, aos episódios recentes
da política nacional.
O samba é um confronto. Canta-se com o dedo apontado para certo tipo:
“Você tem palacete reluzente/ Tem joias e criados à vontade/ Sem ter
nenhuma herança nem parente”. E continua em versos sempre incisivos e
sentidos, como em regra são os de Noel.
A pergunta que o refrão formula sobre o tipo em berlinda, ao final de
cada estrofe, é tratada como pergunta do povo e de fato o é. Daí o
confronto e o amargo conflito de classes que lhe subjazem: “Onde está a
honestidade?”
A questão sugere que quem a formula sabe o que é o honesto. Põe em
dúvida apenas que possa ser encontrado naqueles cujo dinheiro nasce
sem herança, sem parente, talvez até sem trabalho. A inquietação por
trás da pergunta, por isso, não é especulativa, mas prática.
É verdade que os filósofos criam questionamentos profundos sobre o que
são o justo, o honesto e os outros valores morais. Porém, o homem comum
não participa das suas dúvidas e preocupações. Ele sabe o que são tais
valores.
Talvez por isso, definições de valores não apareçam com muita frequência
nos ensinamentos dos antigos jurisconsultos. E, quando aparecem,
verificamos que não são muito problematizadas. Atribui-se a Ulpiano ou a
um glosador medieval a lição recolhida no Digesto (1,10,1) segundo a qual “Os preceitos do direito são estes: viver honestamente, a ninguém lesar, dar a cada um o que é seu”.
Dar a cada um o que é seu, eis uma célebre definição de justiça. Porém, a intenção de gravá-la no Digesto
era muito mais estabilizá-la do que problematizá-la. Claro que a
definição não inibia as mentes abertas de a discutirem. Mas os próprios
escritos de sabedoria, dos provérbios de Salomão aos aforismos de
Confúcio, só se compreendem na medida em que se percebe que estavam
completamente voltados a colocar em circulação e em prática definições
mais ou menos aceites dos valores. Esta era a convenção amplamente
vigente na Antiguidade.
O Direito conservou sua orientação prática ao longo dos séculos. Hoje
como ontem, o que importa a quantos trabalham
com o jurídico não é tanto problematizar os conceitos quanto debater a
sua aplicação prática. A pergunta do legislador, como a do povo, não é
“O que é a honestidade?” É “Onde está a honestidade?”.
Essa é a razão de gelar-me, ao ver o povo indagar com tanta frequência, nestes dias lancinantes, o que vem a ser a honestidade no exercício do poder. O episódio do impeachment presidencial mostrou-o sobejamente. Que é pedalada? Pedalar é honesto? Todos os que governam pedalam? Se eu governar, também pedalarei?
Quantas assinaturas devem ser apostas no processo que faz nascer um
decreto presidencial para que ele seja orientado ao legal e ao honesto?
Essas assinaturas tornam o decreto um ato em cadeia, um ato jurídico
complexo? Se o tornam, o legal e o honesto ou, a contrario, o ilegal e o desonesto se albergam em toda a cadeia de produção do decreto ou apenas numa de suas etapas?
Não estou a afirmar que, enfrentadas a fundo, essas questões devam ser
respondidas desta ou daquela maneira. Não me importa, aqui, tanto a
resposta a dar às perguntas quanto o perguntar e o responder, vale
dizer, o diálogo no qual elas têm sido ultimamente formuladas.
Todo poder emana do povo e em seu nome é exercido. Mas o povo não
entende o que é pedalada, nem as condições e as consequências de um
decreto ser legal e honesto. E os que o representam o fazem
condignamente, pois demonstram que tampouco o compreendem. Fiam-se, por
isso mesmo, em pareceres técnicos lançados em termos conclusivos, os
quais, no entanto, não suprem o desconhecimento profundo do que
realmente ocorre ou ocorreu.
Não há como olhar para esse quadro e não desconfiar de que algo
culturalmente muito equivocado se passa. O discurso do direito, o da
política e o da ética já não supõem verdadeira cognição de valores. Não
supõem que a honestidade, a probidade, a moralidade e outros valores
sejam realmente conhecidos e que, sobre esse conhecimento, possamos
discutir como mantê-los, realizá-los concretamente, talvez maximizá-los.
Um discurso só é coerente quando os que dele participam fazem uso
correto e leal das palavras. Não foi o que vivemos no recente episódio
do impeachment da Presidente da República. Vimos uma discussão ser
travada sobre o que não se entende e dela serem extraídas drásticas
consequências políticas. O que faz pensar que, entre nós, o drama da
construção coerente dos valores constitucionais ainda está longe do fim.