sábado, 17 de setembro de 2016

A Pergunta do Povo

 “E o povo já pergunta com maldade:
Onde está a honestidade,
Onde está a honestidade?”
(Noel Rosa, “Onde está a honestidade?”)

A pergunta do gostoso samba de Noel atravessou os tempos vividos pela nossa sociedade, de 1933, quando foi composto, aos episódios recentes da política nacional.
O samba é um confronto. Canta-se com o dedo apontado para certo tipo: “Você tem palacete reluzente/ Tem joias e criados à vontade/ Sem ter nenhuma herança nem parente”. E continua em versos sempre incisivos e sentidos, como em regra são os de Noel.
A pergunta que o refrão formula sobre o tipo em berlinda, ao final de cada estrofe, é tratada como pergunta do povo e de fato o é. Daí o confronto e o amargo conflito de classes que lhe subjazem: “Onde está a honestidade?”
A questão sugere que quem a formula sabe o que é o honesto. Põe em dúvida apenas que possa ser encontrado naqueles cujo dinheiro nasce sem herança, sem parente, talvez até sem trabalho. A inquietação por trás da pergunta, por isso, não é especulativa, mas prática.
É verdade que os filósofos criam questionamentos profundos sobre o que são o justo, o honesto e os outros valores morais. Porém, o homem comum não participa das suas dúvidas e preocupações. Ele sabe o que são tais valores.
Talvez por isso, definições de valores não apareçam com muita frequência nos ensinamentos dos antigos jurisconsultos. E, quando aparecem, verificamos que não são muito problematizadas. Atribui-se a Ulpiano ou a um glosador medieval a lição recolhida no Digesto (1,10,1) segundo a qual “Os preceitos do direito são estes: viver honestamente, a ninguém lesar, dar a cada um o que é seu”.
Dar a cada um o que é seu, eis uma célebre definição de justiça. Porém, a intenção de gravá-la no Digesto era muito mais estabilizá-la do que problematizá-la. Claro que a definição não inibia as mentes abertas de a discutirem. Mas os próprios escritos de sabedoria, dos provérbios de Salomão aos aforismos de Confúcio, só se compreendem na medida em que se percebe que estavam completamente voltados a colocar em circulação e em prática definições mais ou menos aceites dos valores. Esta era a convenção amplamente vigente na Antiguidade.
O Direito conservou sua orientação prática ao longo dos séculos. Hoje como ontem, o que importa a quantos trabalham com o jurídico não é tanto problematizar os conceitos quanto debater a sua aplicação prática. A pergunta do legislador, como a do povo, não é “O que é a honestidade?” É “Onde está a honestidade?”.
Essa é a razão de gelar-me, ao ver o povo indagar com tanta frequência, nestes dias lancinantes, o que vem a ser a honestidade no exercício do poder. O episódio do impeachment presidencial mostrou-o sobejamente. Que é pedalada? Pedalar é honesto? Todos os que governam pedalam? Se eu governar, também pedalarei?
Quantas assinaturas devem ser apostas no processo que faz nascer um decreto presidencial para que ele seja orientado ao legal e ao honesto? Essas assinaturas tornam o decreto um ato em cadeia, um ato jurídico complexo? Se o tornam, o legal e o honesto ou, a contrario, o ilegal e o desonesto se albergam em toda a cadeia de produção do decreto ou apenas numa de suas etapas?
Não estou a afirmar que, enfrentadas a fundo, essas questões devam ser respondidas desta ou daquela maneira. Não me importa, aqui, tanto a resposta a dar às perguntas quanto o perguntar e o responder, vale dizer, o diálogo no qual elas têm sido ultimamente formuladas.
Todo poder emana do povo e em seu nome é exercido. Mas o povo não entende o que é pedalada, nem as condições e as consequências de um decreto ser legal e honesto. E os que o representam o fazem condignamente, pois demonstram que tampouco o compreendem. Fiam-se, por isso mesmo, em pareceres técnicos lançados em termos conclusivos, os quais, no entanto, não suprem o desconhecimento profundo do que realmente ocorre ou ocorreu.
Não há como olhar para esse quadro e não desconfiar de que algo culturalmente muito equivocado se passa. O discurso do direito, o da política e o da ética já não supõem verdadeira cognição de valores. Não supõem que a honestidade, a probidade, a moralidade e outros valores sejam realmente conhecidos e que, sobre esse conhecimento, possamos discutir como mantê-los, realizá-los concretamente, talvez maximizá-los.
Um discurso só é coerente quando os que dele participam fazem uso correto e leal das palavras. Não foi o que vivemos no recente episódio do impeachment da Presidente da República. Vimos uma discussão ser travada sobre o que não se entende e dela serem extraídas drásticas consequências políticas. O que faz pensar que, entre nós, o drama da construção coerente dos valores constitucionais ainda está longe do fim.

quinta-feira, 24 de março de 2016

Filosofia e Direito (artigos reunidos) - Parte VI



O ROUBO ONTEM E HOJE

                                                                      “Senhor, dai pão a quem tem fome
                                                                      e fome de justiça a quem tem pão”
                                                                      (oração católica – autor desconhecido)

                        A oração anônima nos lembra o duplo flagelo da fome de pão e da falta de fome de justiça. Se fôssemos flagelados só pela fome, o pão sobre a mesa seria remédio bastante para todos os nossos males. Mas, sem fome de pão, teríamos imediatamente justiça? A resposta há de ser não, se o problema da injustiça exceder o do pão, até porque a fome faz soar bem alto o alerta da falta de pão, ao passo que a justiça falta sem que qualquer aviso biológico nos desperte. Desse modo, o problema cultural e não biológico da injustiça se torna o dilema fundamental da existência humana. 
                        A proibição do roubo, incluída nos Dez Mandamentos, ataca a raiz da desigualdade antiga, que se baseava no saque. Se interdições semelhantes tivessem sido respeitadas, nos diferentes povos, seria de duvidar que a desigualdade tivesse jamais assumido a escala que alcançou nas sociedades pré-capitalistas.
                        Benjamin Constant, o político, lembrou que a história da liberdade divide-se em etapas bem demarcadas, durante as quais sua compreensão se alterou profundamente. Na Antiguidade, a liberdade reconhecida era a do cidadão. Possuía-a única e exclusivamente quem não era escravo, e ela lhe valia tão-só para participar da vida da pólis do modo permitido a cada classe social. Outra espécie de liberdade, muito distinta, é a que o homem moderno reivindica sob esse nome e que, de algum modo, se estende sobre as barreiras de classe. A lição de Constant é confirmada por Fustel de Coulanges, que declarou que os antigos não conheceram a liberdade individual típica dos tempos modernos[1].
                        Algo semelhante se passa com a igualdade. Na Antiguidade, esse valor concebia-se no interior das classes sociais e não entre os membros delas. Um escravo era igual a outro, e um plebeu era considerado a réplica social de outro plebeu, do ponto de vista dos direitos e deveres. Claro que essa igualdade válida no interior das classes se traduzia em desigualdade fora delas. Porém, as desigualdades só atingiam o grau máximo ao excederem o território de cada sociedade, mediante a pilhagem, que podia ser aplicada sem qualquer limite.
                        No contexto da Antiguidade, não devemos pensar que a interdição do roubo, incluída nos Dez Mandamentos, referia-se a atos menores de subtração ou de desrespeito à propriedade privada. Pelo contrário, o mandamento combatia todas as formas de roubo, mas principalmente a mais hedionda: a pilhagem, situada à base da desigualdade antiga.
                        O dito de Jesus lança luz sobre toda a legislação de Israel: “Não julgueis conforme a aparência, mas segundo a reta justiça”[2]. Lembra-nos que os preceitos divinos têm dois aspectos: a aparência e a justiça interior. A aparência da norma está associada às suas aplicações comezinhas, literais e mecânicas. A reta justiça, por outro lado, é o espírito da legislação. O espírito da proibição do roubo, seu significado mais profundo em termos de justiça, é o combate à prática da pilhagem, isto é, do roubo em escala.
                        Entendido sob esse prisma, o mandamento não diz “não furtarás um pão”. Não coíbe a prática de Jean Valjean. Diz sobretudo “não pilharás”, “não rapinarás”, “não tomarás qualquer bem do teu próximo pela força ou pelo engodo”. Nessa sua vertente específica, o oitavo preceito é um golpe sses-tado na desigualdade.
                        Não há outro mandamento econômico além da proibição de roubar, no Decálogo, o que tampouco é sem significado. Do modo como o respeito aos pais aludido nas palavras “Honrarás pai e mãe” é o mandamento único e suficiente para fundar a família antiga, a proibição do roubo é a base de todo agrupamento social maior que a família: a base da sociedade civil.
                        O décimo mandamento veicula uma proibição, de certo modo, mais importante que a do roubo: a proibição da cobiça. Porém, essa vedação está conectada à do roubo. É o seu antecedente lógico e necessário. Ninguém furta ou rouba, sem cobiçar. Portanto, o décimo mandamento complementa o oitavo. Proscreve a raiz do roubo, que é o querer roubar.
                        Essas duas partes do dever social aparecem reunidas em Miqueias 2:2: “Cobiçam campos, e os arrebatam; e casas, e as tomam”. Não devemos ignorar quanto, por esse duplo interdito, o cerco à desigualdade fechou-se sobre o homem antigo.
                        O mais óbvio contraargumento a essa interpretação do Decálogo é a imputação de arbitrariedade pelo fato de uma das espécies de roubo (o saque, a rapina) ser encarecida mais do que as outras. Dirão que a proibição de roubar veiculada no mandamento é genérica, como a de matar.
                        De fato, a proibição é genérica. Mas é possível deixar de reconhecer que o genocídio ofende em maior medida o valor protegido pela proibição de matar (a vida humana) do que um homicídio isolado? É possível deixar de reconhecer razão a Jesus, quando ordenou separar, no mandamento, aparência e justiça? Para Jesus, não faz sentido pagar o dízimo do endro e do cominho e não praticar a justiça e a misericórdia[3], coar o mosquito e deixar passar o camelo[4]. Projetado no oitavo mandamento, esse princípio não significa que uma coisa é subtrair um pão, outra é subtrair, por cobiça, um bem de valor significativo e ainda outra é saquear e pilhar?
                        Não muito após os Dez Mandamentos, lemos no texto bíblico: “Se alguém furtar boi ou ovelha, e o abater ou vender, por um boi pagará cinco bois, e quatro ovelhas por uma ovelha”[5]. Na quantificação da restituição o nota-se o grau de ofensividade da transgressão.
                        Em seguida, outra hipótese é figurada: “se alguém fizer pastar o seu animal num campo ou numa vinha, e o largar para comer em campo de outrem, pagará com o melhor do seu próprio campo e o melhor da sua própria vinha”[6]. Essas palavras mostram que os grandes princípios da lei, como “não roubarás”, desdobram-se em diferentes proibições, que devem ser concebidas com base na reta justiça, o que equivale a dizer não à luz da aparência, mas das intenções e situações variáveis da vida.
                        A inclusão de um preceito no Decálogo tem como consequência a elevação dele ao status de transgressão capital. Porém, a reta justiça exige que apenas as formas graves de violação sejam, de fato, tomadas como crimes capitais. Transgressões menores não hão de ser tomadas da mesma maneira, nem hão de receber o mesmo tratamento.
                        Isso é particularmente claro no caso da proibição de roubar. Em Isaías 5:8, lemos: “Ai dos que ajuntam casa a casa, reúnem campo a campo, até que não haja mais lugar, e ficam como únicos moradores no meio da terra”. O texto não se refere aos que ajuntam casa a casa com o fruto do seu trabalho ou por outro motivo justo. Refere-se aos que tomam a propriedade alheia por meio da força, como Miqueias também enfocou, no texto anteriormente citado. Esse é o comportamento que o Decálogo elevou a transgressão capital. É o comportamento que causa e, portanto, explica toda a desigualdade antiga.
                        Quando a Doutrina Social da Igreja critica a acumulação desenfreada da riqueza, a memória das pilhagens não está ausente, até porque ela é inseparável das fontes dessa doutrina. Gregório Magno escreveu que “a natureza fez nascer iguais todos os homens, mas, variando o grau dos seus méritos, a culpa pospõe alguns aos outros”[7].
                        Rousseau não criou o princípio da igualdade de todos os homens. E a tampouco foi inventada quando a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi proclamada. Talvez o primeiro formulador desse grande princípio tenha sido Gregório, que o inseriu no inventário dos bens que o pensamento cristão trouxe ao mundo.
                        Mas a citação de Gregório é só um exemplo. Poderíamos mencionar Basílio de Cesareia e João Crisóstomo, que pregaram a divisão da riqueza e estabeleceram princípios segundo os quais ela pode ser levada a efeito de maneira justa. O que tanto Gregório quanto Basílio e Crisóstomo combateram, no fundo, foi a limitação da igualdade ao interior de uma classe social. Quiseram substituí-la por uma igualdade de outra espécie, universal, que eu chamaria moderna, se não tivesse sido enunciada tão claramente no século VI.
                        Por muito tempo, o Cristianismo foi o espaço no qual a consciência da igualdade moderna se formou. A partir do século XIX, porém, um feliz movimento intensificou a difusão dessa consciência para a sociedade secular. Refiro-me ao socialismo, que em alguns casos se somou ao Cristianismo e, em outros, o substituiu como o centro da resistência e da luta contra a desigualdade.
                        Hoje, as desigualdades que o socialismo e os setores sensíveis do Cristianismo combatem não são as que vigoram no interior das classes sociais, mas as que se estabelecem entre elas. A unidade da luta autoriza a conclusão de que, no sentido prático e social, as correntes cristã e socialista possuem uma só causa. E que, assim como não há duas igualdades modernas por que lutar, elas travam uma só luta.
                        Claro que o Cristianismo tem finalidade maior que o combate às desigualdades temporais. Porém, tal combate continuará a ser parte da sua vocação, enquanto houver injustiça na Terra. De sorte que, no plano social, Cristianismo e socialismo são uma só coisa: o não pronunciado à injustiça.
                        Há, porém, um ponto em que as mentalidades se turvam e tudo se complica. Refiro-me à discussão dos postulados, principalmente econômicos, em que a luta pela igualdade se pauta. Nesse ponto, as dificuldades avultam, não porque as intenções das pessoas se alterem, mas porque se torna difícil discernir a configuração social da injustiça.
                        Tornou-se comum a esquerda responsabilizar o capitalismo pela desigualdade moderna. Leandro Konder escreveu[8]:

A fonte de inspiração, para os socialistas, continua a ser a mesma do começo: a revolta contra as desigualdades necessariamente geradas pelo capitalismo [...] O capitalismo é injusto e os espíritos bem formados devem combater a injustiça. Os ideais do socialismo, em princípio, são superiores à aceitação pragmática da desigualdade institucionalizada.

                        Se retirarmos dessa citação as alusões à necessária injustiça do regime capitalista, estreitaremos de modo  considerável a distância que separa o socialismo da pregação cristã da igualdade. Parte importante da divergência entre a doutrina cristã social e o movimento socialista está na responsabilização do capitalismo pela desigualdade. E o motivo dessa divergência não se situa tanto no plano dos princípios quanto nos postulados secundários de um e de outro.
                        Não que o Cristianismo tenha qualquer compromisso com o regime capitalista. Seu aparecimento antecede tanto a ascensão do capitalismo à condição de regime dominante que não pode manter relação com ele. Ainda mais relação necessária. Porém, isso é verdade tanto do ponto de vista da afirmação como da negação. O Cristianismo é tão livre para defender quanto para criticar o capitalismo, conforme ele se revele justo ou injusto. Sua relação com o regime do capital deve depender dos fatos, por depender da verdade. E são os fatos que retiram apoio à conclusão socialista de que o capital e não os sucedâneos modernos do roubo é o responsável pelas desigualdades.
                        Que nos dizem os fatos sobre os reais motivos da desigualdade? Nos Estados Unidos, há muito, o Condado de McDowell tem servido de emblema para a desigualdade. O índice de pobreza, ali, era de 50%, em 1960, caiu consistentemente até atingir 23,5%, em 1980, e voltou a subir para 38% em 1990[9].
                        O socialismo responsabiliza classicamente o capital por fatos como a persistência da pobreza em McDowell. Mas é possível pensar que as coisas não são tão simples quanto a explicação pelo capital pressupõe. Desde que as sociedades modernas fecharam o cerco ao roubo, outras formas de expropriação o substituíram. A exploração do trabalho é uma delas, porém, como o roubo, ela também deixou de ser universal. Em McDowell, 47% da renda da população provém de programas do Governo. É, pois, possível que o aumento da curva da desigualdade, naquele condado, reflita flutuações dos programas sociais, mais do que a exploração do trabalho pelo capital.
                        Em O capital, Marx mostrou que o método da acumulação primitiva foi a pilhagem. Devia saber que, ao fazê-lo, repetia uma antiga lição. Ao lermos Marx, as dúvidas que nos assaltam não incidem na relação entre capital e roubo, mas no postulado marxiano de que a expropriação teria mudado de face: de que ela teria deixado de ser a injustiça da acumulação primitiva e transformado na mais-valia. Esse é um ponto duvidoso da doutrina da exploração de Marx.
                        Talvez a mudança da causa da desigualdade suposta por Marx não tenha ocorrido. Talvez a desigualdade não tenha perdido a relação com o dolo do saque para radicar na mecânica da produção. Esta é importante, mas não a ponto de tudo explicar. Sobretudo não a ponto de explicar, especificamente, a desigualdade.
                        Talvez o motor histórico da desigualdade não tenha mudado. Talvez ele tenha apenas perdido o aspecto grosseiro da rapina e se revestido das sutilezas da micropolítica. Terá com isso mudado exteriormente, mas não em essência. A luta pelo dinheiro e pela matéria, antes travada por exércitos, se tornou verbal. A violência simbólica sucedeu amplamente a física. A invasão de sistemas eletrônicos sucedeu a tomada de cidades. O discurso forense tomou o lugar da guerra. Talvez, com isso, o logro e a dissimulação tenham substituído a força. O resultado, porém, permanece o mesmo: a expropriação.
                        Estranho mundo este em que os postulados sociais de uma religião se aproximam tanto de uma doutrina laica! No plano social, o Cristianismo é, em boa medida, uma forma de socialismo. Foi o que a Teologia da Libertação percebeu, embora o seu foco e a sua atuação tenham-se complicado ao ingressar no acidentado terreno da análise econômica.



A DESIGUALDADE SOCIAL

                        A proposta desta série é reunir e ordenar, ou seja, compendiar os pontos fundamentais do trabalho reflexivo que desenvolvo, há anos, no campo da Filosofia do Direito. Enfatizei, desde o início, que esse trabalho ocorreu à luz das intuições originais que orientaram a minha reflexão. Nesta parte final do Compêndio, cumpre-me demonstrar a orientação social do meu pensamento e o que nele talvez exista de heurístico.
                        Reconheço que as ideias expostas em A função social do lucro[10] foram mal compreendidas por alguns, que identificaram o pensamento do livro com o liberalismo, quando a preocupação central da obra é exatamente a melhorada condição social do proletariado. Defendi que, entre outros meios, esse fim pode ser favorecido pelo que denominei função social do lucro. O fato de eu ter afirmado que tal função é produto de uma construção histórica não me transforma em liberal, embora possa representar uma concessão ao liberalismo.
                        A construção história a que me referi decorre de fatos objetivos. Por exemplo, em 1914, Henry Ford reduziu a jornada e dobrou os salários dos trabalhadores das suas fábricas. O que lhe permitiu adotar essas medidas foi a invenção da linha de produção, à qual se seguiu uma revolução social. O ponto nuclear de tal revolução foi o fato de os salários, que haviam gravitado em redor do mínimo necessário à sobrevivência, terem descolado daquele valor, a partir da década de 1930.
                      Bruckberger apresenta os avanços do fordismo, em contraste com a perspectiva sombria que pairava sobre o mundo na época[11]:

O crescente fardo das misérias e servidões impostas aos trabalhadores pela primeira revolução industrial, a crença de que os recursos do mundo eram limitados, que seriam em breve insuficientes para a população global, devem ter criado uma atmosfera de catástrofe iminente [...] Num mundo de recursos limitados, a ordem de urgência impôs aos espíritos lúcidos a terrível ameaça da miséria generalizada e o problema da sobrevivência material. Capitalismo e socialismo não viram como o problema poderia ser examinado de outro modo.

                        Porém[12],

a revolução industrial moderna [fordista] coloca o problema e os próprios termos do problema de maneira inteiramente nova, e por isso permite escapar tanto à solução socialista quanto à capitalista. Peter Drucker escreveu com razão: “A expansão é possível, eis a grande descoberta da [segunda] revolução industrial”.

                        Por expansão, entendamos o crescimento da produção capitalista, sem a geração de desequilíbrios sociais que o inviabilizem. O que acrescentei, em A função social do lucro, foi que a continuidade do desenvolvimento capitalista, propiciada por inovações como a do fordismo, tende a melhorar a condição de todas as classes sociais, inclusive do proletariado. Tende, enfim, a produzir uma revolução social benéfica.
                        Poucos livros permitem testar melhor essa afirmação do que O capital no século XXI, do economista Thomas Piketty. A obra foi justamente saudada pela contribuição que oferece à teoria econômica, ao apresentar volume inusitado de estatísticas, cientificamente coligidas, as quais comprovam que o nível de desigualdade pouco se alterou, do início da Revolução Industrial até hoje, nas principais nações capitalistas.
                        Chama atenção, de saída, que, embora crítico, o livro não adota posição contrária ao regime capitalista. “Fui vacinado bem cedo”, escreve Piketty, “contra os discursos anticapitalistas convencionais e preguiçosos, que parecem às vezes ignorar o fracasso histórico fundamental do comunismo [...] Não me interessa denunciar a desigualdade ou o capitalismo”[13]
                        Nem poderia ser diferente, pois os dados de Piketty não conduzem, de nenhum modo claro, seja à condenação, seja ao prognóstico do fim do capitalismo. Na página 337 da obra, ele esclarece que [14]

o nível extremo de concentração de riqueza – da ordem de 80-90% do capital detido pelo décimo superior [10% mais ricos da sociedade], dos quais 50-60% pertenciam ao centésimo superior [1% mais ricos] – parecia ser mais ou menos o mesmo na maior parte das sociedades até o século XIX e sobretudo nas sociedades agrárias tradicionais, tanto na época moderna como na Idade Média e na Antiguidade.

                        Se o nível de desigualdade foi aproximadamente o mesmo sob os modos de produção pré-capitalistas e durante quatro séculos do regime do capital, concluímos que a responsabilização do regime do capital pela desigualdade deve conduzir à de todos os outros regimes. Aliás, a condenação dos outros modos de produção deverá ser mais grave, uma vez que, apenas sob o capitalismo, foi possível reduzir a desigualdade durante algum tempo (no século XX). O problema é que, se condenarmos todos os regimes, ficaremos sem um mediante o qual a vida econômica poderá desenvolver-se.
                        Piketty mostra que, na história do capitalismo, o nível de desigualdade só igualou o verificado em outros modos de produção, em momentos de pico. A média histórica da desigualdade ocorrida sob o capitalismo foi inferior à dos outros modos de produção, principalmente quando consideramos os dados do século XX.
                        As informações de O capital no século XXI sobre a Suécia são particularmente reveladoras[15]:

A Suécia apresenta dados [de desigualdade] bastante detalhados, recolhidos desde os anos 1910”. Porém, esses dados revelam “uma trajetória muito próximada observada na França e no Reino Unido [...] Em particular, os dados patrimoniais suecos confirmam o que já havíamos descoberto graças às declarações de renda: a Suécia não é o país estruturalmente igualitário que costumamos imaginar. A concentração de riqueza na Suécia atingiu nos anos 1970-1980 o ponto mais baixo observado em nossas séries históricas (com um pouco mais de 50% da riqueza total para o décimo superior e não muito mais do que 15% para o centésimo superior). Entretanto, mesmo se tratando de uma desigualdade elevada, [ela] aumentou sensivelmente desde os anos 1980-1990 (a concentração de riqueza no início dos anos 2010 parece pouco menor do que a francesa).

                        Esses dados sugerem que o capitalismo é o modo de produção mais igualitário da História. Ou o que menos agrava aquela espécie de desigualdade que se manifesta como chaga social. E a soma com outros dados parece apontar, ainda mais fortemente, para essa conclusão. Não que o capitalismo seja um regime muito especializado na produção da igualdade. Porém, nas suas etapas mais avançadas de desenvolvimento, ele é o modo de produção mais igualitário dentre os que já foram historicamente testados. Ou, se preferirmos a expressão de Delfim Netto, é o mais desigual dos modos de produção, exceto todos os outros.
                        Os dados de Piketty são expressos, quase sempre, em percentuais e não em números absolutos. Por isso, o significado primordial deles (a manutenção do nível de desigualdade) é que a participação do décimo e do centésimo mais ricos da população na riqueza social alterou-se pouco, nos últimos dois séculos, assim como a participação dos 50% mais pobres. Em outras palavras, a desigualdade que Piketty informa ter-se mantido tem cunho meramente proporcional, razão por que nada diz sobre a riqueza ou pobreza absolutas.
                        Se, além da desigualdade proporcional, considerarmos a condição de classe das camadas desiguais, veremos que, embora a desproporção de riqueza se tenha mantido, o acesso de cada camada a bens e serviços aumentou várias vezes, em termos gerais. Essa última conclusão é tão fortemente comprovada pelos dados de Piketty quanto a preservação da desigualdade proporcional.
                        Por exemplo: no período de 1820 a 2012, o crescimento médio da economia mundial passou de 0,5% ao ano para 3% ao ano[16]. O aumento deve ser considerado vertiginoso, em comparação com os séculos precedentes, o que significa que o nível de acesso à riqueza aumentou vertiginosamente. O único modo de traçar um retrato, ainda que pálido, das consequências disso, é comparar os níveis de acesso à riqueza e de desenvolvimento tecnológico das sociedades pesquisadas, em 1820 e em 2012, assim como o tamanho das respectivas populações.
                        Piketty está longe de negar essa revolução, que assumiu extensões diferentes, em países diversos[17]:

É claro que as condições materiais melhoraram de maneira extraordinária desde a Revolução Industrial, fornecendo aos habitantes do planeta formas mais eficazes de se alimentar, vestir, deslocar, informar, cuidar e assim por diante.


                        O mesmo vale para períodos mais curtos[18]:

Nossas vidas foram transformadas radicalmente: no início dos anos 1980 não existiam nem a internet nem os telefones celulares, os transportes aéreos eram inacessíveis para um grande número de pessoas, a maioria das tecnologias de ponta da medicina disponíveis hoje ainda não existia e apenas uma minoria tinha acesso ao ensino superior.

                        Desse ponto de vista mais amplo, podemos concluir, com segurança, que a manutenção do nível de desigualdade foi acompanhada da melhor do padrão de vida de todas as classes, o que significa que a condição de classe foi revolucionada, tanto para o centésimo e o décimo superiores como para os 40% intermediários e os 50% mais pobres. Negá-lo é negar o significado essencial da evolução econômica observada no período em questão.
                        E, se o nível de desigualdade é importante, a condição de classe o é ainda mais, pois fornece a melhor medida do acesso efetivo das pessoas aos bens materiais. Como os dados apresentados por Piketty são relativos às sociedades mais desenvolvidas do mundo (Estados Unidos e Europa Ocidental), é impossível não concluir que, onde o capitalismo mais se desenvolveu, a melhoria da condição das várias classes sociais foi mais acentuada.
                        Resta estabelecer em que grau a melhora de vida foi determinada pelos mecanismos da produção capitalista. Como o acesso aos bens aumentou na mesma intensidade, nos anos situados entre 1820 e 1913, quando o nível de intervenção estatal era baixo, e entre1913 e 2012, quando esse nível subiu aceleradamente, é possível concluir que a causa principal da melhora da condição das classes baixas não foi a intervenção do Estado. O fato que as estatísticas mais põem em relevo é que quanto mais intenso o funcionamento da produção, maior tende a ser o crescimento econômico, e quanto maior o crescimento, mais a condição das diversas classes é melhorada.
                        Penso, por isso, que os dados reunidos por Piketty não refutam, antes confirmam que a produção capitalista induz a melhoria da condição de todas as classes econômicas, embora contribua pouco para a redução do nível de desigualdade. Isso é verdade tanto em sociedades em que o livre mercado foi adotado de maneira mais pura (como os Estados Unidos) quanto em outras que desenvolveram maximamente o Estado de bem-estar social (a exemplo da Suécia), já que as estatísticas desses países mostram níveis de desigualdade semelhantes.
                        As estatísticas mais confiáveis apresentadas por Piketty (as da França sobre o período de 1810 a 2010) mostram uma queda da participação do décimo superior na riqueza global de 80% para 62% e do centésimo superior de 45% para 25%[19]. Portanto, mesmo a desigualdade proporcional reduziu-se bastante, nesse período. É importante observar que, nas duas metades dele, a intensidade do processo foi semelhante e que, em todos os outros países pesquisados por Piketty, ocorreram reduções análogas.
                        Piketty afirma que esses dados refletem a transferência de riqueza das camadas superiores para as intermediárias da pirâmide social. Porém, ainda assim, ela impacta a desigualdade medida em termos proporcionais.
                        Temos, pois, de admitir que, além de melhorar a condição de todas as classes sociais, ao menos no período a que esses últimos dados se referem, o capitalismo reduziu a desigualdade proporcional. Piketty atribui essa redução a duas causas principais: os choques das duas Guerras Mundiais (1914 a 1945) e o aumento da tributação do capital, nas nações desenvolvidas, de níveis próximos de zero para cerca de 30%[20]
                        Porém, quando muito, esses dados ajudam a explicar a redução da desigualdade proporcional, não a revolução ocorrida na condição das várias classes sociais, que sequer se concentra no período de 1914 e 1945. O benefício que o capitalismo produz para a condição de classe tem de ser segregado conceitualmente da queda da desigualdade na primeira metade do século XX, uma vez que eles respondem de diferentes maneiras a causas diversas. E a conclusão que há de ser extraída da segregação é que, se o recuo da desigualdade proporcional for atribuído aos choques e ao aumento dos impostos, ainda assim, a revolução da condição de classe terá de ser associada à simples continuidade da produção capitalista.
                        Popper mostrou que a ciência se constroi pela não refutação, muito mais do que pela comprovação de seus postulados. Ao lermos o livro de Piketty, precisamos atentar não só para o que ele comprova, para os dados que traz e as conclusões que formula, mas ainda mais para as teses que não refuta. Dentre essas teses, a mais importante, a meu ver, é a da tendência da produção capitalista a revolucionar a condição de todas as classes sociais. Como eu já disse, essa é uma const-tação histórica, não uma conclusão dependente da escolha de uma ideologia.
                        A revolução da condição de classe e a redução da desigualdade proporcional são ambas tarefas que incumbem e devem incumbir, simultaneamente, aos econômicos e ao Estado. Afirmar que elas cabem a um de modo nenhum implica que o outro não tenha contribuição relevante a ofertar. Por isso, a tese de que os mecanismos da produção capitalista tendem a revolucionar a condição de classe não é suficiente para excluir a contribuição do Estado para a consecução do mesmo fim ou para caracterizar uma doutrina como liberal.
                        Em Liberdade e direito, publicado antes de A função social do lucro, escrevi[21]:

Se a intervenção do Estado se direcionar a objetivos expansionistas ou se tornar totalitária [...] os resultados tenderão a ser catastróficos. Foi o que aconteceu na Alemanha nazista, na União Soviética e em tantos outros lugares. Porém, se a intervenção estatal tiver em vista a regulação da economia, para impedir os abusos dos mais fortes em prejuízo dos mais fracos, assim como o fornecimento de serviços básicos acessíveis à população carente, então a tendência passará a ser de realização da justiça social, sem prejuízo das liberdades.

                        Afirmei ainda, no mesmo livro, que, “se as desigualdades se manifestam muito profundamente, como é o caso em diversos países e o mundo em geral, hoje em dia, a prestação de serviços essenciais passa a ser a missão principal a que o Estado se deve devotar”[22]. Essa não é uma posição liberal. Só não é uma posição que suponha que, se o mercado realiza tão bem ou melhor a revolução da condição de classe e a redução das desigualdades, sua contribuição deva ser rejeitada para que os exaltados possam morrer enrolados à bandeira da sua ideologia.

POR QUE A DESIGUALDADE DIMINUIU?

                        Como o nome da obra já diz, O capital no século XXI, de Thomas Piketty, é um exercício de predição do futuro. Porém, chama atenção o fato de que seu autor formula a antecipação, mediante um olhar para o passado.
                        Todos sabemos que nenhuma previsão real do futuro é possível à razão humana. A ciência social não antecipa acontecimentos melhor do que uma galinha voa. Piketty conhece como poucos essas limitações. Mesmo assim, arriscou antecipar o que há de suceder nas nove décadas restantes do século. Um exercício que tudo indica fadar-se ao fracasso. Nada obstante, não se fala de outra coisa, nos meios especializados.
                        O mais importante, no ambiente festivo, nas celebrações e críticas que o livro mereceu, é a sua real contribuição à ciência. Quanto a isso, para mim, a exígua chance de o exercício preditivo de Piketty vir a se confirmar não altera o fato de que o olhar para o passado que ele nos apresenta não tem paralelo na literatura.
                        Nenhuma outra obra abrange ou trata de mole tão colossal de dados sobre os últimos 200 anos da História econômica quanto O capital no século XXI. Claro que outras características do livro merecem ser encarecidas, depois dessa. Dentre elas, destacaria a habilidade retórica de Piketty. No entanto, a massa de informações sobre o período de 1810 a 2010 é, a meu ver, o que precisa ser mais cuidadosamente assimilado no livro.
                        Destaco esse corte temporal, apesar de Piketty esforçar-se para fornecer informações também sobre os séculos que vão do ano zero a 1800. Em que pese o esforço de pesquisa empreendido por ele e seus colaboradores sobre essa longa e obscura etapa, a diferença de qualidade entre os dados relativos aos séculos XIX a XXI e os do período anterior permanece gritante. Pelo que é mais prudente determo-nos na análise dos dados dos últimos 200 anos, que elucidam o processo de proletarização seguido da ascensão das classes baixas disparado pela Revolução Industrial.
                        Sobre esse ponto, Piketty considera “ilusório pensar que existem, na estrutura de crescimento moderno, ou nas leis da economia de mercado, forças de convergência que conduzam naturalmente a uma redução da desigualdade da riqueza”[23]. Ele prefere explicar a redução da desigualdade de 1914 a 1945, pelos choques econômicos das guerras e pelo sucesso das políticas públicas que levaram ao aumento dos impostos sobre o capital.
                        Esse é o ponto mais importante de O capital no século XXI, pois nele o autor deixa a simples apresentação de dados e passa a inerpretá-los. Como os dados apontam a queda da desigualdade no século XX, a interpretação desse fato, constitui o núcleo mais relevante da obra do autor francês sobre o capital na atualidade. Por isso, dedicarei atenção especial a ela.
                        O primeiro problema da argumentação baseada no choque das guerras e no aumento da carga tributária é que não é fácil perceber como essas duas causas se entrosam e atuam simultaneamente. Na verdade, quando submetidas a testes rigorosos, as causas parecem implicar uma longa série de problemas. Vejamos como isso acontece.
                        Nas páginas 146 e 147 de O capital, lemos[24]:

            Agora que já abordamos a evolução geral da relação capital/renda e da divisão público-privada no longo prazo, devemos reto-mar a cronologia e, principalmente, entender as razões para a queda brusca – seguida da extraordinária recuperação – da relação capital/renda ao longo do século XX.
            [...] Além da destruição física, os principais fatores que explicam a queda vertiginosa da relação capital/renda entre 1913 e 1950são, de um lado, o colapso das carteiras de ativos externos e a baixa poupança que caracterizava o período (somados às destruições, esses dois fatores acumulados explicam entre dois terços e três quartos da queda) e, de outro, os baixos níveis de preços dos ativos em vigor no novo contexto político de propriedade mista e regulada do pós-guerra (entre um quarto e um terço da queda).
           
                        Nesse passo, Piketty apresenta o que doravante denominarei a sua explicação nº 1 da redução da desigualdade. Na estrutura dessa explicação, ele trabalha com quatro causas da redução e chega a determinar o peso de cada uma delas na reversão da desigualdade. Afirma, por exemplo, que a destruição física de capital, a queda dos ativos externos e a da poupança, somados, respondem por dois terços a três quartos da redução da desigualdade observada. Resta a outra terça ou quarta parte, que ele atribui, vagamente, ao baixo preço de ativos.
                        A falta de clareza dificulta a compreensão do peso dessa última causa. Porém, em outra passagem, Piketty descreve melhor o que entende como queda de valor dos ativos imobiliários e corporativos (capital das empresas). Nas suas palavras[25],

os baixos níveis dos preços imobiliários e corporativos do pós-guerra explicam uma parte nada insignificante – ainda que minoritária– da queda da relação capital-renda nacional entre 1913 e 1950: entre um quarto e um terço da baixa.

                        Tanta precisão infunde respeito, ainda mais se quem a transmite é o principal responsável pelo levantamento mais expressivo de dados sobre desigualdade até hoje estudados. Porém, quando examinamos mais atentamente as informações, percebemos que as conclusões de Piektty não se ajustam aos dados com a precisão que as suas palavras sugerem. Isso é particularmente verdadeiro em relação à década de 1910 a 1920. Outro problema é que a explicação resumida acima é inconciliável com outra, que o próprio Piketty fornece na página 364 do seu livro[26]:

            A tributação do rendimento do capital era muito próxima de 0% até 1900-1910 (e, em todo caso, inferior a 5%) e se estabilizou nos países ricos em torno de 30% a partir dos anos 1950-1980 [...] É possível mostrar que uma taxa de tributação efetiva de 30% – se aplicada a todas as formas de capital – pode ser suficiente para explicar por si só uma grande dispersão da riqueza (da mesma ordem que a queda da parcela do centésimo superior observada historicamente).

                        Essa é a explicação nº 2 da redução da desigualdade por Piketty. Também aqui, a precisão é buscada, embora num sentido novo. Nosso autor afirma que a tributação do capital à razão de 30% conduz a uma queda da participação do centésimo superior idêntica à observada na História.
                        Não se trata de uma sugestão casual ou despretensiosa. A intenção de afirmar que a coincidência dos números explica a redução da desigualdade é evidente. É o que depreendemos da afirmativa de que a tributação de 30% conduz, exatamente, à queda da desigualdade observada no século XX.
                        Mas, se a explicação 2 dá conta da queda da desigualdade tão bem, para que a 1 foi mencionada antes? Ou, se a 1 funciona em alguma medida, como a 2 pode explicar sozinha o fenômeno? Surge daí um conflito entre as explicações que as ideias nucleares de uma e de outra, por si sós, não implicam.
                        Admitamos, porém, que não haja contradição entre as explicações, do modo como Piketty as utiliza. Suponhamos que ele não esteja a sugerir que a explicação 1 seja incompatível com a 2. Embora Piketty não concilie claramente as explicações em momento algum de sua obra, admitamos que tenha sido a sua intenção combiná-las, a fim de entendermos que implicações isso traz.
                        Em um ou outro trecho do livro, sinais obscuros são dados da direção em que a tentativa de conciliação em análise pode ser empreendida. Por exemplo, no início do parágrafo em que apresenta a explicação 1, lemos que, “na verdade, os choques orçamentários e políticos das guerras tiveram um papel ainda mais destrutivo para o capital do que os próprios combates”[27]. E continua: “Além da destruição física, os principais fatores são, de um lado, o colapso das carteiras de ativos externos e a baixa poupança [...] e, de outro, os baixos níveis de preços dos ativos”.
                        Do modo como encravado no livro, esse trecho sugere o propósito do seu autor de associar e justapor os choques das Guerras Mundiais (explicação 1) à atuação estatal formulada na explicação 2. É o que os adjetivos orçamentários e políticos inseridos na citação indicam, uma vez que o Estado é quem elabora orçamentos e comanda a ação política.
                        Concedamos que, nessas poucas linhas, Piketty tenha aproximado a explicação das páginas 146-147 da que encontramos na página 364 da sua obra, associando as quatro causas da redução da desigualdade à intervenção estatal mediante os “choques orçamentários e políticos das guerras”. A associação soldaria, assim, as partes da explicação na mente de Piketty, embora, como já observe, ela não seja analiticamente formulada no livro.
                        O problema é que a diminuição do valor dos ativos externos não guarda relação com qualquer alteração abrupta do orçamento. As guerras, de fato, introduziram choques orçamentários que se traduziram no aumento da tributação para fazer frente ao esforço bélico. Porém, esses choques não estão claramente relacionados à queda dos ativos externos das potências capitalistas. Não há entre essas causas uma relação orgânica evidente.
                        O que levou realmente à queda do valor dos ativos externos, nas palavras do próprio Piketty, foram “as expropriações causadas por revoluções e processos de descolonização”[28], que não têm relação com os orçamentos, nem com as guerras que eles financiaram. Os ativos externos desapareceram da contabilidade das grandes nações, porque foram arrebatados pelo rolo compressor da descolonização, não porque as nações alteraram os seus orçamentos. Assim, a falha na conexão lógica da explicação 1 com a 2 torna-se manifesta.
                        Digamos, porém, que essa seja uma impropriedade isolada, um deslize que não compromete a segurança da interpretação de Piketty. Passemos ao exame de outra das quatro causas da explicação 1(queda da poupança). Piketty considera que as mudanças estruturais do orçamento público introduzidas, no período das guerras, está associada à queda da poupança.
                        Vejamos o que isso implica. Na página 174, encontramos[29]: “A poupança privada compreende dois componentes: a poupança direta dos indivíduos (a parte da renda disponível das famílias que não é consumida de imediato); e a poupança das empresas”.
                        Na página 172, a taxa de poupança é, de novo, conceituada como a participação da poupança privada na renda nacional descontada a depreciação dos ativos. Isso sugere que a poupança a que Piketty se refere é privada, embora seja conceitualmente admissível falar também de poupança pública.
                        O problema é que somos abandonados, de novo, a uma sugestão. Parece que a poupança a que Piketty se refere é a privada, sem que isso seja claramente afirmado ou posto a salvo de dúvidas. Temos de nos esforçar para suprir a falta de esclarecimento. Felizmente, podemos fazê-lo, considerando que a poupança pública foi próxima de zero, no período de 1914 a 1945, devido à enorme necessidade de dispêndios produzida pelo esforço de guerra e pela Grande Depressão. Com esse esclarecimento, podemos confirmar, por exclusão que a taxa de poupança que Piketty afirma ter decaído é a privada.
                        Nosso autor está a afirmar que as economias das famílias e das empresas diminuíram, devido ao aumento do orçamento público e outras decisões de guerra, e que isso contribuiu para a redução da desigualdade. Podemos conceder que essas conclusões são verdadeiras? A primeira sim. Com as guerras, os Estados europeus, de fato, retiraram das famílias e das empresas os recursos que acrescentaram às rubricas de gastos militares dos seus orçamentos.
                        Porém, a sangria da poupança privada não conduziu à diminuição da desigualdade. Para que isso tivesse ocorrido, teria sido preciso que a participação das famílias na poupança houvesse aumentado, o que Piketty não demonstrou ter sucedido.
                        Pior ainda, por uma amostra de oito países europeus, Piketty provou que a poupança das famílias foi superior à das empresas em seis casos, entre 1970 e 2010. Por exemplo, na França, as famílias pouparam 9% e as empresas, 2,1%da renda nacional, naquele período; na Alemanha, 9,4% e 2,8%; na Itália, 14,6% e 0,4%[30]. Piketty não prova que a participação das empresas foi superior à das famílias de 1914 a 1945, o que teria sido necessário para que a queda geral da poupança privada reduzisse a desproporção entre a renda das empresas e a das famílias em favor das últimas. A conclusão, simplesmente, não se extrai das premissas postas por Piketty.
                        Reiteramos que os percentuais acima não são do período entreguerras, no qual quase toda a redução da desigualdade se deu. Porém, Piketty não fornece os dados de poupança relativos ao próprio período das guerras, o que não nos permite chancelar a conclusão a que ele chega.
                        O ônus da prova é dele, como autor das explicações 1 e 2. Se afirmou que a queda da taxa de poupança reduziu a desigualdade, cabe-lhe, é claro, fornecer os dados certos para comprová-lo. Infelizmente, ele não o faz. Pior do que isso: os dados que mais se ajustam a esse propósito, no livro, levam a conclusão contrária à de Piketty.
                        A única possibilidade restante para a explicação 1 se suster é as outras duas causas em que ela se divide salvarem-na. Porém, não é o que acontece. Vejamos por quê.
                        As causas restantes são a queda dos preços dos imóveis e a destruição do capital durante as guerras. Pelos gráficos das páginas 118 e 119, no Reino Unido, a redução do valor dos imóveis, entre 1910 e 1920, correspondeu a cerca de 20% da queda do capital. Essa média inscreve-se, perfeitamente, na estimativa já mencionada de que elas responderiam por um quarto a um terço da redução da desigualdade. Portanto, mesmo que consideremos que nenhum percentual desses imóveis pertencia à classe média ou aos mais pobres, um quarto ou um terço podem, no máximo, explicar parte menor do processo de redução da desigualdade.
                        A avaliação dessa causa é complicada pela associação da desvalorização dos ativos das empresas à dos imóveis. Porém, não são fornecidos números sobre esses fatos, o que dificulta a análise, embora não a impeça, pois o peso total (entre um quarto e um terço) das desvalorizações dos imóveis e dos ativos das empresas é fornecido. A quantificação das quedas somadas permite entender que elas respondem por parte menor da redução do capital entre 1910 e 1920, o que equivale a afirmar que não a explicam suficientemente.
                        A última causa da explicação 1 (a destruição do capital) é a mais eficiente. Podemos admiti-la como fato, uma vez que a guerra realmente eliminou capitais. Porém, ela não se combina de modo claro com a redução dos preços dos imóveis, pois, muitas vezes, onde a desvalorização imobiliária foi mais acentuada, a destruição foi quase nula e vice-versa. De modo que as duas causas não podem ser facilmente somadas, como Piketty sugere.
                        O curioso é que, novamente, o acesso a essa conclusão é facultado por fatos citados em O capital no século XXI. Por exemplo: “no Reino Unido, a destruição física foi mais limitada – nula durante a Primeira Guerra Mundial”[31]. No entanto, o gráfico da página 118 do livro aponta uma queda de 55% no capital interno do Reino Unido, entre 1910 e 1920. Como é possível quantificar entre 25% e 33,3% a queda somada dos ativos das empresa se dos imóveis, se a destruição pela guerra foi nula, e o capital interno despencou 55%? O divórcio entre a não destruição de capital e o mergulho de 55% no valor deste simplesmente não combina com a imputação do peso de um quarto a um terço às quedas somadas dos ativos das empresas e dos imóveis.
                        Em outro trecho de significado obscuro, lemos que[32]

a destruição física do capital foi, por certo, substancial, sobretudo na França durante a Primeira Guerra Mundial (as zonas do front no nordeste do país foram duramente afetadas) na França e na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, com os bombardeios devastadores de 1944-1945 (os combates foram mais curtos que os de 1914-1918; contudo, a tecnologia era bem mais destrutiva). No total, essas destruições acumuladas equivaleram a cerca de um ano da renda nacional na França (entre um quinto e um quarto da redução total da relação capital/renda) e 1,5 ano na Alemanha (ou um terço da redução total da relação capital/renda).


                        O início do trecho transcrito alude à 1ª Guerra, depois à 2ª. Conclui que a destruição total foi responsável por tal parcela da queda da desigualdade observada, na França, e por outra parcela, na Alemanha. Perguntamos: para os dois períodos somados ou apenas para o período mencionado por último (o da 2ª Guerra)? Inclinamo-nos para a primeira explicação, mas, de novo, falta clareza ao texto em momento decisivo.
                        Vemos que as explicações 1 e 2 não podem ser fundidas, pois seus termos não combinam ou faltam elementos essenciais que permitam combiná-los. Demos, pois, a volta e consideremos se, em vez de se fundirem, as explicações não se aplicam sucessivamente. Se isso ocorrer, a explicação 1 mostrará como a redução da desigualdade se deu, entre 1914 e 1945, e a explicação 2 indicará como, num segundo momento, a queda em razão dos fatores da explicação 1 não foi revertida. Não podemos inverter esses papeis, antepondo a explicação 2 à 1, pois, em 1914-1945, a intervenção estatal não tinha a escala, nem as características necessárias para diminuir a desigualdade. De sorte que a explicação 1 tem de vir antes da 2, se quisermos usá-las sucessivamente e não ao mesmo tempo.
                        Infelizmente, ao fazermos a explicação 1 reduzir a desigualdade e a 2 conservar essa conquista, a explicação pelo aumento dos tributos passa a depender da outra. Sem a explicação 1, a explicação 2não é capaz de atuar, de sorte que o inteiro arranjo argumentativo passa a depender da explicação 1. Como vimos que esta não demonstra a queda da desigualdade, a utilização sucessiva das explicações tampouco dá conta dos fatos.
                        Essas razões me constrangem a retornar à conclusão de que a explicação 1 e a explicação 2da redução das desigualdades que Piketty fornece não são conciliáveis, entre si ou com os fatos que ele menciona em seu livro. A explicação pelos choques contradiz a baseada na intervenção estatal, apesar de o nosso autor às vezes tentar uni-las.
                        Somos, por isso, forçados a retornar à explicação esboçada nos textos anteriores e que será melhor explicada nos próximos. Claro que os choques das guerras e da Grande Depressão contribuíram para a redução das desigualdades. Porém, eles não a fundamentam suficientemente. Explicação pouco melhor do surpreendente fato só pode ser alcançada, mediante a consideração das contribuições internas da produção capitalista para o fenômeno. A revolução fordista não é exemplo pouco conspícuo de tais contribuições.

IGUALDADE INDUZIDA PELA PRODUÇÃO

                        Questionaram-me certa vez por que não fundamentei a tese de A função social do lucro em dados históricos que comprovassem a ascensão econômica do proletariado. A verdade simples é que, quando o livro foi escrito, esses dados não existiam. O desafio posto aos estudiosos da desigualdade era suprir a falta deles, isto é, comprovar por outros meios se a condição do proletariado melhorara ou não.
                        Em O capital no século XXI, Thomas Piketty confirmou que “nenhum trabalho empírico de peso sobre a dinâmica da desigualdade foi realizado desde a época de Kuznets[33], que “constatou que uma forte redução da desigualdade de renda havia ocorrido nos Estados Unidos entre 1913 e 1948”[34]. Portanto, o trabalho de Kuznets sobre os Estados Unidos permaneceu a única fonte de informações detalhadas sobre a desigualdade. Não há dúvida de que as conclusões apresentadas nele favoreceram a formação da consciência hoje relativamente disseminada entre os economistas de que o desenvolvimento do capitalismo favorece ou, ao menos, pode favorecer a redução da desigualdade econômica. 
                        Piketty esclarece que essa lacuna existente desde a fundação da ciência econômica foi suprida, por ele e seus colaboradores, que apresentaram a primeira compilação vasta de dados confiáveis sobre a desigualdade em diversos países[35]:

Comecei meu estudo da questão pela aplicação dos métodos de Kuznets ao caso da França, o que originou a publicação de uma primeira obra em 2001. Depois, obtive o apoio de vários colegas – sobretudo de Anthony Atkinson e Emmanuel Saez – que me permitiram ampliar o projeto e alcançar uma escala internacional bastante vasta. Anthony Atkinson tratou do caso do Reino Unido e de muitos outros países, e organizamos juntos dois volumes publicados em 2007 e 2010 reunindo estudos semelhantes para mais de vinte países de todos os continentes. Com Emmanuel Saez, alongamos em meio século as séries de Kuznets para os Estados Unidos. Saez usou o método para estudar diversos países fundamentais, como o Canadá e o Japão. Vários pesquisadores contribuíram para a realização desse projeto coletivo: Facundo Alvaredo, em especial, analisou os casos da Argentina, da Espanha e de Portugal; Fabien Dell, os da Alemanha e da Suíça; com Abhijit Banerjee, estudei o caso da Índia; graças a Nancy Qian, pude tratar da China e assim por diante.

                        Contudo, embora dados abrangentes não tivessem sido publicados até por volta de 2007, as condições gerais do capitalismo tinham sido descritas muito antes, numa literatura extremamente ampla e sofisticada, o que resultou numa situação ambígua: por um lado, dispúnhamos da literatura sobre a evolução das classes, no interior do capitalismo; por outro lado, não possuíamos dados que nos permitissem avaliar, de modo preciso, em que escala as conclusões daquela literatura eram verdadeiras.
                        Piketty supriu a lacuna com a publicação dos resultados das pesquisas conduzidas por ele e outros pesquisadores, os quais foram apresentados e interpretados em O capital no século XXI. Porém, ao fazê-lo, a interpretação dos dados apresentada nem sempre parece muito convincente. A interpretação básica da queda geral da desigualdade, entre 1810 e 2010, sustentada por Piketty, consiste em atribuí-la aos choques das Guerras Mundiais e às políticas públicas que se seguiram. Um dos problemas dessa interpretação consiste em não especificar os mecanismos pelos quais esses fatos (os choques e as políticas públicas) repercutiram na seara econômica. Raras vezes, Piketty menciona esses mecanismos, de maneira que a sua interpretação resulta genérica e, por isso, menos convincente do que seria se os mecanismos fossem especificados.
                        Ao escrever A função social do lucro, não dispunha dos dados coligidos por Piketty e seus colaboradores, pois eles não haviam sido publicados. Por isso, procurei suprir a lacuna deles por um método que facultasse avaliar se e em que grau a classe trabalhadora tinha sido beneficiada pelo desenvolvimento do capitalismo industrial.
                        Demonstrei que, dadas três condições (aumento da composição orgânica do capital, descolamento dos salários em relação ao mínimo necessário à sobrevivência e fim do neocolonialismo), a situação da classe trabalhadora tendia a melhorar, e a desigualdade, a decrescer. Todas as três condições ocorreram, entre 1870 e 1950. Resta demonstrar como elas podem ser reunidas numa estrutura lógica, de modo a fornecer um mecanismo econômico claro capaz de explicar a ascensão econômica do proletariado.
                        Para isso, é fundamental partir da premissa de que a produção capitalista só se desenvolve se for capaz de manter-se em equilíbrio com o consumo. Em A função social, expliquei que “três são as causas fundamentais dos desequilíbrios entre a produção e o consumo no modo de produção capitalista: o desvio da composição orgânica do capital, [a quantidade relativa de meios de produção e bens de consumo] e o lucro”[36]. Outras causas existem, mas não operam num nível tão básico quanto estas.
                        Por meios de produção entendemos todos os bens utilizados para produzir, assim como matéria-prima, energia, equipamentos e os imóveis em que as empresas estão instaladas. Os gastos com meios de produção compõem o capital constante. Os gastos com salários chamam-se capital variável. Composição orgânica é a razão entre o capital cons-tante e o variável.
                        Em O capital, Marx representou a produção de um país dividida num setor de meios de produção, que denominou Departamento I, e outro de bens de consumo (Departamento II). Para entendermos como as três causas de desequilíbrio atuam, a melhor maneira é representar cada uma isoladamente num diagrama que inclua a produção dos dois setores. Se os departamentos usarem as mesmas quantidades de capital constante e variável, alcançarem o mesmo faturamento e não gerarem mais-valia, a economia será mantida em equilíbrio, mas não crescerá, como os diagramas a seguir demonstram.

D1: Composição orgânica = 1, Produção de meios de produção = Produção de bens de consumo, Lucro = 0 (Primeiro Período)

Capital constante
Capital variável
Total
Departamento I
1
1
2
Departamento II
1
1
2
Total
2
2
4

D2: Composição orgânica = 1, Produção de meios de produção = Produção de bens de consumo, Lucro = 0 (Segundo Período)

Capital constante
Capital variável
Total
Departamento I
1
1
2
Departamento II
1
1
2
Total
2
2
4

                        Nos diagramas, a produção do Departamento I é inteiramente absorvida pela demanda de capital constante, e a do Departamento II, pela demanda de capital variável. A igualdade dos capitais constante e variável, da produção dos dois departamentos e a inexistência de lucro completam as condições para que a economia permaneça em perfeito equilíbrio.
                        Tudo isso indica que, para um desequilíbrio introduzir-se, é necessário que ocorra a alteração do valor de uma dessas variáveis: seja da composição orgânica, seja da relação entre os meios de produção e os bens de consumo, seja do lucro. Vejamos o que sucede quando cada uma das variáveis escapa da situação de equilíbrio.

D3: Composição orgânica maior que 1 (Primeiro Período)


Capital constante
Capital variável
Total
Departamento I
2
1
3
Departamento II
2
1
3
Total
4
2
6






D4: Composição orgânica maior que 1 (Segundo Período)

Capital constante
Capital variável
Total
Departamento I
3
1,5
4,5
Departamento II
1
0,5
1,5
Total
4
2
6

                        Os diagramas acima mostram que, se a composição orgânica se torna maior do que 1, é gerado um desequilíbrio entre a produção e o consumo. No Diagrama D3, as 3 unidades de meios de produção do Departamento I não são suficientes para atender a demanda de 4 unidades de capital constante. Por outro lado, as 3 unidades de bens de consumo produzidas pelo Departamento II são mais que suficientes para fornecer as 2 unidades consumidas com o capital variável. Claro que, se o desequilíbrio se repetir indefinidamente, o sistema não terá condições de se reproduzir.
                        Para corrigir esse grave desequilíbrio, dois tipos de medidas são possíveis. O primeiro, bastante óbvio, é a intervenção na própria causa de desequilíbrio. Se o que fez a produção divergir do consumo foi o aumento da composição orgânica, basta diminuí-la para o equilíbrio ser restaurado. Porém, na prática, se o aumento da composição orgânica for estrutural, como durante a Revolução Industrial, essa primeira solução não estará disponível.
                        Uma solução alternativa é aumentar a quantidade de meios de produção gerados pelo Departamento I. Embora esse aumento seja, ele próprio, uma causa de desequilíbrio, as tabelas mostram que as causas de desequilíbrio, em vez de se somarem, se anulam. Por isso, no Diagrama 4, as 4,5 unidades do Departamento I são consumidas pelo capital constante e repõem em parte a falta de 1 unidade do período anterior. Por sua vez, a unidade e meia do Departamento II e a unidade que sobrara no período anterior são absorvidas com o capital variável. Assim, o desequilíbrio do sistema é consideravelmente reduzido.
                        A ideia de que cada causa é isoladamente nociva, mas pode ser anulada por outro fator de desequilíbrio é confirmada pela introdução do lucro nos diagramas. A exemplo da composição orgânica e das quantidades relativas de meios de produção e bens de consumo, o lucro é, em si, uma causa de desequilíbrio, porém os desarranjos da composição orgânica podem ser anulados por ele, e os do lucro, pela composição orgânica. É o que vemos nos diagramas seguintes.
           
D5: Composição orgânica maior que 1 (Primeiro Período)

Capital constante
Capital variável
Lucro
Produção
Departamento I
2
1
0
3
Departamento II
2
1
0
3
Total
4
2
0
6

D6(1): Composição orgânica maior que 1 (Segundo Período)

Capital constante
Capital variável
Lucro
Produção
Departamento I
2
1
1
4
Departamento II
1,5
1,5
1
4
Total
3,5
3,5
2
8

D6(2): Composição orgânica maior que 1 (Segundo Período)

Capital constante
Capital variável
Lucro
Produção
Departamento I
2
1
1
4
Departamento II
1
1
2
4
Total
3
2
3
8

                        Por amor à brevidade, deixarei de mostrar que a mesma espécie de evolução ocorre quando as outras causas alteram o equilíbrio entre a produção e o consumo. Como acontece no caso dos diagramas D5 e D6(2), quando o desequilíbrio é induzido pela quantidade relativa de meios de produção e bens de consumo ou pelo aumento do lucro, o sistema pode ser preservado pelo cancelamento recíproco das causas de desequilíbrio. Assim, não importa que causa se manifeste: todas podem ser controladas pela alteração moderada das outras causas, de modo a restaurar o equilíbrio geral do sistema.
                         A peculiaridade do desequilíbrio decorrente do incremento da composição orgânica consiste no fato de que ela representa bastante bem a situação da economia durante a Revolução Industrial. Marx e outros economistas mostraram que a utilização crescente de máquinas e equipamentos, a partir daquela revolução, conduziu ao aumento da composição orgânica. Esse é, portanto, o desequilíbrio específico a ser estudado para entendermos aonde a Revolução Industrial conduz as sociedades, pela interação com as outras variáveis fundamentais.
                        Sob o ângulo das três variáveis, se o aumento da composição do capital não pode ser sanado permanentemente pelo lucro, a única alternativa possível é incrementar os investimentos em capital variável, já que, no nível fundamental da produção capitalista, não há uma quarta causa que possa ser invocada para resolver o problema do desequilíbrio.
                        Por esse método, é possível medir a escala em que o aumento dos salários opera. Se as outras variáveis permanecerem constantes, o aumento da composição orgânica produz desequilíbrios crescentes entre a produção e o consumo que só podem ser freados, no longo prazo, por um forte aumento proporcional do capital variável.
                        Nunca afirmei que esse efeito não possa deixar de ocorrer, mas que as condições que o induzem são excessivamente fundamentais para serem retiradas. Consistem no aumento da composição orgânica por um tempo considerável e na manutenção do lucro no nível mais alto possível sem prejudicar o funcionamento do sistema. Como essas condições estiveram presentes na primeira metade do século XX, não há por que não explicar a produção da época por meio deles e concluir que ela forçou o aumento da participação dos salários na produção e na renda.
                        Claro que outras variáveis alteraram o desempenho da economia, além das três mencionadas. Porém, o fato de elas operarem em níveis menos fundamentais implica que coexistiram com as alterações retratadas nos diagramas e não as revertem. Assim, é razoável concluir que a pressão para o aumento dos salários continuou a exercer-se, em maior ou menor medida, apesar de todas as oscilações ocorridas, nas décadas iniciais da Revolução Industrial.
                        Dentre as três variáveis fundamentais, o aumento da composição orgânica foi a que forçou o crescimento relativo do capital variável, no século XX. Por isso, para que esse crescimento fosse significativo, foi preciso que a composição orgânica se mantivesse elevada por longo tempo, o que as condições da Revolução Industrial garantiram. 
                        Porém, uma vez revertida a situação e eliminado o excesso de capital constante, os salários se tornaram mais estáveis, e o rendimento do capital voltou a crescer em termos reais. Essa parece ser a situação aproximada em que nos encontramos hoje, com exceção dos salários do centésimo superior da classe trabalhadora, que subiram de modo exorbitante.
                        A principal realização dos diagramas é reduzir o sistema capitalista à operação de suas três variáveis fundamentais. Essa operação foi representada pelos números mais baixos possíveis (0,1,2 etc.), a fim de simplificar ainda mais a representação resultante. Esse caráter fundamental da descrição do sistema com base nas suas três variáveis fundamentais é exatamente o que confere força explicativa aos diagramas, que nos falam do que o sistema capitalista realiza, sob pena de deixar de ser.
                        É, no mínimo, curioso que as informações do livro de Piketty sejam, em grande escala, compatíveis com a representação da economia capitalista com base nas suas três variáveis fundamentais. Os números apresentados por Piketty são compatíveis com as tendências representadas nos diagramas que representam as três variáveis.

A DESPROLETARIZAÇÃO

                        Adam Smith considerava que o desenvolvimento comercial dos séculos XVI e XVII beneficiara a sociedade europeia como um todo e não só as classes superiores. De acordo com ele, o trabalhador jornaleiro da Grã Bretanha ou da Holanda “suporta em seus ombros todo o edifício da sociedade humana”. Nada parece pior que a sua situação. Porém, “esse humílimo e desprezadíssimo membro da sociedade evoluída” é mais rico que um príncipe pele-vermelha, o qual é “o dono absoluto da vida e da liberdade de um milhar de selvagens nus”[37].
                        Em O capital no século XXI, Thomas Piketty mostrou que não dispomos de dados que nos permitam julgar se essa avaliação do capitalismo dos séculos XVI e XVII é correta ou não. Só a partir do final do século XVIII, informações confiáveis sobre as sociedades europeias começaram a ser reunidas. Piketty utiliza esses dados para mostrar que a participação tanto do décimo como do centésimo superiores na riqueza do Reino Unido e da França, aumentou de modo sustentado, durante todo o século XIX[38]. No Reino Unido, o centésimo mais rico passou de 55% a 70%, e o décimo superior, de 82% a 92% da riqueza total, de 1810 a 1910. Na França, as variações foram de 45% a 60% e de 80% a 89%.
                        Esses dados comprovam o que a literatura sempre nos informou, a saber: que a Revolução Industrial do século XIX, de certo modo, empobreceu a população urbana da Europa. Marx, por exemplo, escreveu que, “como resultado do movimento industrial [...] já não são os pobres surgidos naturalmente e oprimidos pela sociedade, mas as camadas artificialmente empobrecidas pela dissolução drástica da sociedade, sobretudo a classe média, que vem a formar o proletariado atual”[39].
                        Esses fatos foram razoavelmente comprovados. Porém, devemo-nos precaver contra a manipulação imprecisa deles. O filósofo Olavo de Carvalho preveniu-nos contra esse perigo, antes mesmo de Piketty ter publicado suas estatísticas[40]:

Saí do Partido [Comunista] [...] e durante 25 anos não dei palpite em nenhum assunto político, fiquei quietinho no meu canto, estudando e tentando chegar a conclusões. O material que eu tenho sobre isso é imenso, e me leva a poder dizer: Marx era um charlatão, Marx era um vigarista. Por exemplo, para provar que a evolução do mercado tornaria os ricos mais ricos e os pobres mais pobres, ele se socorreu do quê? Do exemplo que ele tinha à mão, a Inglaterra, que era o único país da Europa com boas estatísticas na época, e o melhor material eram os Blue Books, relatórios anuais do Parlamento. Quando Marx foi ver os relatórios, descobriu que, ao contrário do que ele estava dizendo, a condição da classe operária tinha melhorado. O que é que ele fez? Ele tinha todos os relatórios e consultou um por um. Os registros estão na biblioteca do Museu Britânico até hoje. Ele conhecia todos os registros, mas como os registros não comprovavam o que ele queria, ele preferiu usar os registros de trinta anos antes. Se isso não é vigarice, eu não sei o que seja.

                        Se deixarmos de lado o tom polêmico de Carvalho, sua afirmativa de que os dados sobre desigualdade disponíveis, na maior parte das nações, no século XIX, não eram confiáveis coincide, aproximadamente, com a avaliação de Piketty. E o mais curioso é que eles convergem até onde parecem divergir, vale dizer, no ponto relativo à condição da classe trabalhadora. Carvalho afirma que os dados a que Marx teve acesso mostravam que essa condição melhorara. As informações de Piketty mostram o aumento da desigualdade a partir de 1810. Porém, já vimos que esse aumento não se confunde com a piora da condição de classe. Assim, se pudermos juntar os dados de meados do século XIX (que Carvalho afirma terem sido lidos e omitidos por Marx) com os de Piketty sobre o período de 1810 a 1910, concluiremos que a condição da classe trabalhadora melhorou até mesmo na parte do século XIX em que a desigualdade aumentou.
                        Porém, no início da Revolução Industrial, a produção da pobreza, de fato, deixou de ocorrer pelos antigos métodos de opressão, que foram substituídos pela dissolução de camadas sociais inteiras, “sobretudo a classe média”. Marx presenciou esse processo e o registrou, como Smith registrara o anterior. A diferença é que a ciência social pôde resgatar dados confiáveis do século XIX, que comprovaram o processo descrito por Marx, porém não dados capazes de atestar o processo a que Smith aludiu e que teria tornado o menor, “humílimo e desprezadíssimo membro da sociedade evoluída mais rico que um príncipe pele-vermelha”.
                        Chamemos proletarização o processo de pauperização da classe média ocorrido, em certos países da Europa, entre o fim do século XVIII e o fim do XIX. Sabemos que ele se deveu, acima de tudo, à substituição da força de trabalho humana por máquinas. Digno de destaque é que as estatísticas publicadas por Piketty confirmam, com precisão, esse processo.
                        É importante observar que a proletarização não foi revertida pelas altas taxas de crescimento verificadas durante a Revolução Industrial, que teriam sido suficientes para melhorar de modo substancial a condição do proletariado, se a substituição maciça de força de trabalho por máquinas não tivesse ocorrido. Como o crescimento acima de certo limiar é o fator principal de melhora da condição das classes sociais, é espantoso que taxas tão elevadas quanto as do século XIX não tenham sido suficientes para elevar a condição do proletariado. E que os acontecimentos tenham mostrado que, ainda assim, a proletarização se reverteu, entre o fim do século XIX e a primeira metade do século XX.
                        Vale a pena comparar essas considerações com o que Peter Drucker escreveu no fim do século passado[41]:

Até a Primeira Guerra Mundial, nenhum governo na história havia conseguido – mesmo em tempo de guerra – obter do seu povo mais que uma pequena fração da renda nacional do país, talvez 5 ou 6 por cento. Mas na Primeira Guerra Mundial todos os beligerantes, até mesmo os mais pobres, descobriram que praticamente não havia limites para aquilo que o governo pode extrair da população. Quando começou a guerra as economias de todas as nações beligerantes estavam plenamente monetizadas. Como resultado os dois mais pobres, a Áustria-Hungria e a Rússia, conseguiram, em vários anos da guerra, taxar e tomar emprestado mais que a renda total anual das suas respectivas populações. Elas conseguiram liquidar o capital acumulado ao longo de muitas décadas e transformá-lo em material bélico. Joseph Schumpeter, que então ainda vivia na Áustria, entendeu imediatamente o que havia acontecido. Mas os outros economistas e a maior parte dos governos precisaram de mais uma lição: a Segunda Guerra Mundial.

                        Drucker sugere que as Guerras Mundiais levaram à descoberta dos meios pelos quais o limite de 5 ou 6% do PIB, ao qual a tributação sempre estivera sujeita, podia ser excedido. A descoberta teve alcance comparável à invenção do computador, pois nunca mais a carga tributária foi a mesma. E é indispensável observar que o aumento dela não se deveu a necessidades incontornáveis, mas à expansão pura e simples da capacidade arrecadatória dos Estados pela monetização econômica.
                        Drucker prossegue na sua análise do fenômeno do Estado fiscal[42]

A União Soviética, oficialmente dedicada à igualdade, criou uma grande nomenklatura de funcionários privilegiados, com níveis de renda muito superiores àqueles dos ricos no tempo dos czares. Quanto mais estagnava a produtividade soviética, maior se tornava a desigualdade de renda. 

                        Contudo, os soviéticos não detinham o monopólio da concentração de riqueza e da desigualdade de renda. Nos Estados Unidos[43],

a partir da Guerra do Vietnã, a desigualdade de renda começou a crescer firmemente, a despeito da taxação. Fez pouca diferença os ricos serem pesadamente taxados nos governos Nixon e Carter e muito menos taxados no governo Reagan. Da mesma forma, no Reino Unido, a despeito de um compromisso declarado com o igualitarismo e de um sistema fiscal concebido para minimizar a desigualdade de renda, a distribuição de renda vem se tornando cada vez mais desigual nos últimos trinta anos, quando a produtividade parou de crescer.

                        Se Drucker tem alguma razão, o aumento de impostos não pode ser associado necessariamente à queda da desigualdade. À maior tributação pode ou não se seguir tal queda. Portanto, se o aumento dos impostos sobre o capital é capaz de explicar, em algum grau, a queda da desigualdade, no século XX, como Piketty sugere e podemos aceitar, a capacidade em questão parece específica daquela modalidade tributária. Não se estende a outras modalidades de impostos. Muito menos à tributação em geral.
                        Piketty assevera que o aumento dos impostos promove “uma grande dispersão da riqueza”[44]. Não há, nessas palavras conclusivas, qualquer garantia de que a “grande dispersão” equivalha a uma transferência patrimonial do décimo ou do centésimo mais rico para as camadas pobres da população. Pelo contrário, o próprio Piketty esclarece que a transferência efetivamente observada, no século passado, se deu dos estratos superiores para os intermediários da pirâmide social[45].
                        Digamos, pois, claramente: se desproletarização é a melhora da condição socioeconômica das camadas mais desfavorecidas de todas, e o aumento de impostos do século XX reverteu em favor das classes intermediárias, ele não explica, de maneira alguma, a desproletarização. Aliás, a cronologia do aumento de impostos fornecida por Piketty e Drucker dá conta de que a tributação só alcançou o nível atual após a 2ª Guerra, quando a desproletarização já fizera progressos consideráveis, o que confirma que a relação de causa e efeito entre elas é bastante tênue.
                        Em A função social do lucro, propus que a desproletarização foi causada pela alocação crescente dos investimentos sob a forma de salário. Como é possível testar essa afirmação com base nos dados fornecidos por Piketty?
                        No gráfico da página 341 de O capital no século XXI, nosso autor mostra que a participação do centésimo e do décimo superiores dos Estados Unidos na riqueza total despencou, entre 1920 e 1940. Na Europa, isso ocorreu, durante um período maior (1910 a 1970), e foi levado mais longe, resultando em maior transferência proporcional de riqueza. 
                        O impressionante nesses dados é o fato de nos revelarem que, nos dois continentes, o mesmo processo de redução produziu o mesmo resultado básico, no entanto a Europa levou 60 anos para alcançar esse resultado, e os Estados Unidos, apenas 20. Pensamos que a rapidez da transformação, nos EUA, deveu-se à maior intensidade de mudanças revolucionárias no interior do mercado (revolução fordista etc.), enquanto na Europa ela teve relação também com a atuação estatal. E que, também desse modo, se confirma a relação entre a redução da desigualdade e a produção capitalista.
                        Se, na Europa, o período de queda da desigualdade coincide, em parte, com o aumento da intervenção estatal, nos Estados Unidos, o aumento foi tão precoce quanto rápido. Ocorreu entre 1920 e 1940, quando a intervenção estatal ainda era reduzida, e o imposto sobre o capital não existia[46]. A que podemos atribuí-lo? Piketty relaciona-o quase inteiramente aos choques induzidos pelas Guerras Mundiais, mas isso não o dispensa de explicar os mecanismos pelos quais os conflitos se traduziram em compressão da desigualdade. Esse é, a meu ver, o principal problema da obra de Thomas Piketty.
                        Uma das raras passagens que citam um desses mecanismos é a que se refere à Europa da Belle Époque[47]:

Podemos calcular que 1% dos herdeiros parisienses mais ricos dispunham, na Belle Époque, de um patrimônio que lhes permitia financiar um nível de vida da ordem de oitenta a cem vezes mais alto do que o salário médio da época e ainda reinvestir uma pequena parte do capital, de modo a aumentar um pouco a riqueza que foi recebida [...] O equilíbrio se quebra, nitidamente, no entreguerras:o 0,1% dos herdeiros parisienses mais ricos continuam vivendo mais ou menos como no passado, mas o que eles deixam permite financiar entre trinta e quarenta vezes o salário médio da época.

                        Esse foi um mecanismo específico, pelo qual os choques da 1ª Guerra traduziram-se em redução da desigualdade. Mas, como já disse, é uma das poucas passagens de O capital no século XXI em que a alusão genérica aos choques é traduzida em mecanismos. Mesmo assim, os gráficos de Piketty mostram que a queda do nível de desigualdade, a partir da 1ª Guerra, foi abrupta demais para não ter relação com os conflitos bélicos. A relação entre ela e as Guerras foi real, mas quero ressaltar que, ao menos no caso dos Estados Unidos, entre 1920 e 1940, não é possível negar que mascara uma causa de todo distinta.
                        A ilação mais lógica que se pode estabelecer entre as Guerras e os mecanismos econômicos de redução da desigualdade é que a destruição contínua do capital (indústrias etc.) pelas duas Guerras reduziu drasticamente a taxa de retorno dele. Esse deve ter sido o mecanismo principal, pelo qual os “choques das Guerras” se traduziu em redução da desigualdade. Porém, o mecanismo só funcionou ali onde houve destruição. Os Estados Unidos praticamente não sofreram destruição territorial, durante as Guerras. Pearl Harbor foi exceção e ficava no Havaí. Além disso, a queda da desigualdade, nos Estados Unidos, no século XX, começou após a 1ª Guerra (1920) e terminou antes de o país ingressar na 2ª (1940). Por isso, é difícil aceitar que os “choques das Guerras” tenham sido responsáveis pela redução da desigualdade americana, no período em questão.
                        Seria de espantar que efeito tão espetacular quanto a queda da desigualdade no século XX não tivesse concausas provindas de mais de um dos subsistemas da sociedade: no caso, do subsistema político e também do econômico. Piketty quer confinar as causas primárias ao subsistema político, mas os fatos parecem mostrar que elas operaram também no outro. A revolução do fordismo é um exemplo claro de causa econômica que contribuiu, decisivamente, para a queda da desigualdade nos Estados Unidos, entre 1920 e 1940. E, se contribuiu decisivamente nos Estados Unidos, deve ter feito o mesmo na Europa.
                        Os dados que comprovam mais claramente a desproletarização são os da página 219 do livro de Piketty, onde lemos que houve “queda da participação do capital observada no longuíssimo prazo, de 35-40% nos anos 1800-1810 para 25-30% nos anos 2000-2010, e a alta correspondente da participação do trabalho, de 60-65% para 70-75%”[48]. Esses números constituem prova inequívoca da desproletarização.
                        É importante frisar que o aumento da participação do trabalho na renda não espelha só transferências em prol da classe média, mas da classe trabalhadora em geral: exatamente o que A função social do lucro postula ter ocorrido no século XX. Do início da Revolução Industrial à atualidade, a participação dos salários na renda aumentou quase 20%. O período é longo demais e o processo por demais sustentado para o considerarmos mero acidente histórico. Trata-se de dados que comprovam diretamente a desproletarização.
                        Juntemos, pois, as conclusões e ajustemo-las: o Estado tem de suportar gastos substanciais com o funcionalismo, inclusive para fornecer serviços sociais; por isso, o aumento da arrecadação de impostos, ocorrido em meados do século XX, reverteu substancialmente para a classe média, o que o livro de Piketty comprova. Não nego que o aumento tenha contribuído para a redução da desigualdade, mas que ele tenha redundado em benefício das camadas mais desfavorecidas da população. Só a redução a favor dessas camadas produz a desproletarização. E os fatos parecem indicar que ela pode estar mais associada ao desenvolvimento do capitalismo do que à intervenção estatal. 


O ESTADO DE BEM-ESTAR

                        Enquanto a lei natural atua, incessantemente, ao longo de milhões de anos, porque as condições que permitem o seu funcionamento permanecem estáveis, as leis históricas são contingentes, posto que os pressupostos que permitem a sua atuação são eliminados muito mais rapidamente. Por exemplo, as condições necessárias à constituição do feudalismo podem não se verificar ou deixar de existir, após se verificarem, o que conduz à desorganização fatal do modo de produção feudal.
                        Por outro lado, embora os modos de produção sejam regidos por leis, as casualidades e o entrechoque de forças, que também se verificam neles, fazem com que os resultados da operação das leis não sejam certos. O que chamei função social do lucro parece resultar do funcionamento das leis do modo de produção capitalista Porém, os benefícios do fenômeno podem ser impedidos por fatos contrários ou variar em intensidade, em razão de casualidades e contingências.
                        Em outras palavras, o fato de o capitalismo funcionar de acordo com leis, e essas leis produzirem a função social do lucro, em condições específicas, não significa que esse resultado será sempre visível. No primeiro século após a invenção da máquina a vapor, ocorreu a substituição maciça de investimentos em salários por investimentos em máquinas, o que fez surgir o exército industrial de reserva (trabalhadores desempregados), estagnar os salários e explodir a miséria urbana. Nesse período, os benefícios decorrentes da função social do lucro foram revertidos por outros fatores sociais.
                        Impõe-se, portanto, a conclusão de que a função social da mais-valia das empresas, embora permanente, nem sempre produz resultados visíveis, pois pode ser contrariada tanto pela função particular do lucro quanto por outros fatores. Em outras palavras, a busca do lucro tende a fazer com que os empreendimentos baseados no capital desenvolvam função social, porém, em determinadas circunstâncias, os benefícios desse desenvolvimento podem ser suspensos.
                        Para entendermos quando e por que a função social do lucro é suspensa, é útil fixarmos com maior precisão aquele conceito. Uma prática adquire função social quando beneficia não apenas um segmento, mas toda a sociedade. Particularmente, o lucro assume função social quando a sua cobrança redunda em benefícios para a sociedade. E, como a mais-valia é recebida pelo dono do capital situado numa camada intermediária ou superior da sociedade, sua função social pode ser definida, precisamente, como a irradiação dos benefícios dela às camadas inferiores.
                        Essa transmissão é o que afirmei que pode ou não ocorrer e que, quando ocorre, pode resultar em efeitos mais ou menos significativos, a depender da intensidade do processo. A função social será mais forte ou mais fraca, de acordo com tal intensidade. Porém, sempre consistirá na superação das barreiras que impedem a propagação dos benefícios do lucro das camadas superiores e médias para os estratos inferiores da organização social.
                        A propagação dos benefícios do lucro às camadas inferiores é diretamente garantida pela geração de empregos e pelo aumento real dos salários. Por outro lado, ela é também fomentada pela estreita relação entre o lucro e o crescimento econômico, a qual estimula o aumento da riqueza e a ampliação do acesso das pessoas a ela. O próprio Piketty reconhece o potencial distributivo do crescimento, em diversas passagens da sua obra recente, como ao declarar que[49]

não há dúvida alguma de que o crescimento econômico proporcionou uma melhoria considerável das condições de vida durante longos períodos, multiplicando, segundo as melhores estimativas disponíveis, por um fator maior que dez a renda média mundial [em termos reais] entre 1700 e 2012 (de 70 euros para 760 euros por mês) e por um fator maior que vinte no caso dos países mais ricos (de 100 euros para 2.500 euros por mês). 

                        No entanto, todos esses benefícios indiscutíveis podem ser revertidos pelo aumento do desemprego e o arrocho salarial, ainda que o crescimento persista. E é preciso anotar que, tanto um como o outro, podem tão bem ser causados pelo próprio lucro quanto por outros fatores. Em todos esses casos, a função social do lucro é compensada por fatos contrários.
                        Mas, se o lucro possui ou pode possuir inequívoca função social, outras instituições também a possuem, o que cria a necessidade de as compararmos para entendermos as suas vantagens e desvantagens, bem como o modo como a justiça social pode ser realizada por meio delas. Dentre as instituições com utilidade social mais manifesta, estão a previdência social e os serviços públicos de educação e saúde.
                        Piketty apresenta dados significativos sobre a carga tributária cobrada, no Reino Unido, na França, nos Estados Unidos e na Suécia, para financiar a previdência e os serviços públicos de educação e saúde. Em todos esses países, a carga tributária girava em torno de 7 ou 8%, antes da 1ª Guerra Mundial. Com o desenvolvimento do Estado de bem-estar, ela passou a 35% no Reino Unido e 30% nos outros países, por volta de 1950, e se estabilizou nos seguintes patamares, a partir de 1975: 31% nos Estados Unidos, 40% no Reino Unido, 45-50% na França e 55% na Suécia[50].
                        Os 7 ou 8% arrecadados originalmente pelos quatro países serviam para financiar as funções soberanas do Estado até a 1ª Guerra: segurança interna e externa, administração pública e distribuição da justiça. Ainda hoje, os gastos necessários ao desempenho dessas funções representam menos de 10% do PIB, no Reino Unido, na França, na Suécia e nos Estados Unidos. Portanto, o aumento da arrecadação observado nesses países foi utilizado, quase inteiramente, para financiar novas atividades públicas, que Piketty divide em dois grupos: de um lado, educação e saúde; de outro, substituição e transferência.
                        Os gastos dos mesmos Estados com educação e saúde situam-se, hoje, entre 10% e 15% do PIB. Percentuais quase idênticos são gastos com substituição e transferência de renda, que incluem o pagamento de aposentadorias, seguro-desemprego e bolsas de renda mínima[51]. Os volumes de dispêndios para pagamento desses benefícios são desiguais, pois o total de gastos com aposentadorias é muito superior às indenizações de seguro-desemprego, e estas, às bolsas de renda mínima. Porém, números significativos de pessoas são beneficiados por todos os três gastos.
                        É possível chegarmos, assim, a uma conclusão assentada em bases claras, porque estatísticas, a saber: a de que a arrecadação de tributos, depois da 2ª Guerra Mundial, teve marcada destinação social. Foi usada, em grande parte, para erradicar a pobreza na terceira idade, que ainda assolava a Europa, para melhorar a qualidade e a expectativa de vida, por meio do seguro-saúde, e para aperfeiçoar o desempenho profissional pela educação.
                        Parte das realizações desse período foi induzida pelo aumento do nível dos salários. O Estado funcionou como garante de que tal aumento não seria perdido, em casos de desemprego e aposentadoria. Ao mesmo tempo, assegurou serviços de educação e saúde isentos de custos para os trabalhadores. Assim, a sua atuação se somou ao aumento do nível salarial propiciado pela produção capitalista.
                        Porém, ao olharmos para essa evolução geral, não podemos deixar de reconhecer que ela envolve um risco considerável.            Refiro-me à elevada estatização da renda nacional que o Reino Unido, a França, a Suécia e outros países tiveram de implementar para criar a rede de serviços e benefícios públicos de seus Estados. Nos países ricos da Europa considerados em conjunto, cerca de metade da renda total produzida a cada ano vai para o Estado, que a devolve em forma de serviços e benefícios sociais. Porém, o fato de uma enorme concentração da renda ser necessária, antes da sua distribuição, cria riscos de outra forma ausentes. Recorda a estatização ainda maior do patrimônio e da renda existente na antiga União Soviética e faz suspeitar que, por baixo da aparência de solidez e avanço civilizatório, fragilidades comparáveis às soviéticas possam estar em formação.
                        A crise financeira e a Grande Recessão que afligiram a economia mundial, entre 2008 e 2011, tiveram maior repercussão na Europa, entre outras coisas, por causa do peso dos Estados de bem-estar ali existentes. Ainda que afirmem que os países europeus mais afetados pela crise foram a Grécia, Portugal, Chipre e, a princípio, também a Irlanda, não a Suécia ou a Noruega, que têm os Estados de bem-estar mais dispendiosos, a crise não se agravou apenas em função dos gastos sociais dos Estados, mas também da capacidade de arrecadação de cada um deles.
                        Os países da Europa Ocidental podem ser agrupados em três categorias, de acordo com o perfil demográfico e o capital. Num primeiro grupo, situam-se os mais abastados e populosos, como Alemanha, França, Reino Unido e Itália. No segundo grupo, ficam países também abastados, mas menos populosos, como os da Escandinávia, Islândia, Irlanda, Holanda, Bélgica, Luxemburgo e Suíça. Por fim, no terceiro grupo, incluem-se os países com menor relação renda/população, como Portugal, Grécia e Chipre. Se olharmos atentamente, perceberemos que os países mais afligidos pela crise europeia foram os do último grupo e os menos ricos dos dois primeiros. De modo que os problemas europeus parecem ter relação direta com a capacidade dos Estados comprometidos com gastos elevados de arrecadar somas adicionais de um setor privado já sobrecarregado.
                        Ninguém pense que a Grécia, para nos atermos ao caso dela, não tinha um Estado de bem-estar quando a crise estourou. Tinha-o, embora ele fosse menos célebre que o da Suécia. A Grécia empregava 20,55% do PIB em gastos sociais, em 2005, percentual quase idêntico ao da média dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), que era de 20,57%. Apenas para comparar, naquele ano, o Reino Unido utilizou 21,29% do PIB para financiar seus serviços sociais. Não é difícil entender por que, participando do mesmo modelo de Estado social, mas sendo menos rica que o Reino Unido, a Grécia apresentou mais rapidamente problemas nas contas públicas.
                        A Grande Recessão iniciada em 2008 foi, antes de tudo, uma crise de liquidez. Nos países em que a renda se concentra no Estado, a adoção de medidas anticíclicas mediante o aumento dos gastos públicos para impedir uma queda ainda maior da atividade econômica revelou-se particularmente difícil de realizar. Se o Estado já recebia ali, em média, 40-50% de tudo o que se produz, como exigir que os que pagam impostos nesses montantes contribuam com uma fatia ainda maior, se a renda foi diminuída pela recessão?
                        Porém, esse exato sacrifício foi demandado, desde que a recessão se instalou, em 2008. O resultado foram déficits públicos crescentes, que se acumularam até a situação se tornar insustentável, por volta de 2010. Portanto, a crise mostrou que, embora a Europa tivesse a relação capital/renda mais alta de toda a História e fosse, nesse sentido, o lugar mais rico do mundo, nenhum país mais pobre que ela sentiu tanto as consequências de médio prazo da crise.
                        A causa profunda do problema europeu parece ter sido o peso da estatização de metade da renda nacional. Nos Estados Unidos, onde a parcela da renda que passa pelas mãos do Estado é de 30% do PIB, foi mais fácil arrecadar o necessário às políticas anticíclicas dos que detêm os outros 70% do que foi, para as autoridades europeias, coletá-lo dos que possuem apenas 50%. Antes de 2008, essa diferença nas estruturas tributárias dos Estados Unidos e da Europa não era tão sentida. Coube à crise desnudar os limites lógicos e práticos a que a estrutura arrecadatória europeia se sujeita em maior medida do que a de outras regiões.
                        Nesse contexto, não é espantoso que os Estados Unidos tenham-se recuperado antes e de forma mais robusta da crise mundial do que as potências europeias, embora a relação capital/renda seja maior na Europa. A crise desvendou algo não aparente antes, a saber: que os Estados de bem-estar, embora realizem prodígios distributivos, impõem limites à arrecadação e, portanto, ao aumento dos gastos públicos em situações extraordinárias.
                        Essa face do Estado de bem-estar social não pode ser ignorada, pois cedo ou tarde está fadada a aparecer e cobrar o seu preço. Não estou a propor, obviamente, que a rede de serviços públicos desses Estados seja desmontada, mas que é melhor reduzirmos as suas proporções onde já foi construída e limitarmos o seu alcance, ali onde se encontra atualmente em construção, como é o caso do Brasil.
                        Em que princípio havemos de nos basear para conter o custo implicado por esse modelo de Estado? Nenhum princípio parece melhor que o da diferença proposto por Rawls. De acordo com ele, uma prática só pode ser considerada justa, se beneficiar todas as camadas da sociedade. Assim, se o Estado de bem-estar contribui para a justiça social, não há por que substituí-lo, a não ser por uma instituição que o faça melhor do que ele. Ora, se a empresa capitalista é capaz de desenvolver função social relevante, ao pagar salários justos, por que não a devemos usar como contrapeso à estatização da renda nacional? Não que a empresa com função social deva substituir a atuação do Poder Público, mas elas podem ser somadas para que, da prova de que não se excluem ao se combinarem, possa quem sabe resultar a melhor solução já tentada para o problema da desigualdade.

TEORIA SOCIAL E IDEOLOGIA

                        Dilthey ensinou que as ciências naturais explicam o seu objeto, ao passo que as ciências do espírito compreendem, portanto interpretam o seu[52]. Porém, decorridos cerca de dois séculos do surgimento das ciências sociais[53], elas parecem incapazes de nos fornecer uma interpretação minimamente verossímil do funcionamento da sociedade.
                        Enquanto as ciências naturais fornecem grande quantidade de explicações bem-sucedidas dos fenômenos que estudam, as ciências sociais permanecem num estágio muito mais rudimentar de desenvolvimento. Provam-no a multiplicidade estonteante de doutrinas sobre fenômenos sociais que permanecem incapazes de fornecer métodos eficazes de intervenção efetiva neles.
                        Não dispomos de uma teoria que nos permita prever a eclosão das guerras, a formação de movimentos terroristas, escaladas inflacionárias ou crises recessivas. Se dispuséssemos, poderíamos evitar aqueles males ou, ao menos, minimizá-los e controlá-los todas as vezes em que ameaçassem desenvolver-se.
                        As mazelas do nosso conhecimento dos fatos sociais são tão visíveis que se tornou comum admiti-las. Com exceção dos dogmáticos e iluminados, os estudiosos em geral reconhecem que as ciências sociais são muito menos desenvolvidas e bem-sucedidas do que as naturais.
                        Porém, nada disso nos autoriza a afirmar que a ciência social não exista ou ignore completamente o seu objeto. O problema com que nos deparamos não é a falta de uma ciência social, mas a sua obscuridade. Dispomos de um volume enorme de conhecimentos suficientemente falseáveis sobre a sociedade para os considerarmos científicos. Porém, esses conhecimentos encontram-se em estado tão confuso que não conseguimos extrair conclusões significativas deles com um mínimo de segurança e certeza. Muito menos conseguimos utilizar esses conhecimentos para intervir eficazmente nos fenômenos aos quais eles se referem.
                        E, se o problema central das ciências sociais é o estado confuso dos seus conhecimentos, a necessidade premente dela é de método, não de informação. Não que os pesquisadores sociais não disponhamos de métodos ou não os utilizemos. Porém, não utilizamos nossos métodos de análise da sociedade com perseverança e consistência suficientes.
                        Em seu clássico Discurso do método, Descartes referiu-se a viajantes que se perdem numa floresta e tentam sair dela, caminhando a esmo, sem qualquer sucesso. De acordo com o filósofo[54],

Viajantes, quando se veem perdidos numa floresta, não devem ficar errando de um lado para outro, nem ficar, tampouco, no mesmo lugar, e sim andar em direção tão reta quanto possível, acompanhando o mesmo rumo, sem jamais desviar-se da direção tomada, por motivos fúteis, mesmo quando, a princípio, o acaso tenha sido o fator que determinou a escolha.

                        O caso dos viajantes perdidos não foi citado à toa ou para elucidar como alguém deve proceder quando perdido. É, antes uma ilustração ou analogia que permite entender as consequências da falta de método e do emprego do método errado para executar tarefas. O caso é perfeitamente aplicável às ciências sociais, em que o uso de métodos tornou-se assustadoramente precário.
                        Darei um exemplo que me parece o mais fundamental. Marx e Engels desenvolveram um método bem-sucedido de decifração das relações sociais. Esse método consiste em determinar o modo ou a técnica de produção vigente numa sociedade para, com base nele, entender tanto as outras interações econômicas, a exemplo da circulação e do consumo de produtos, quanto os fatos não econômicos: o Estado, os outros fatores reais de poder, o uso da força, a política, as leis, a jurisprudência, as instituições sociais, o parentesco, a organização familiar, os costumes, a adoração a Deus, os ritos religiosos, a ciência, a ideologia etc.
                        Contudo, a profusão dos fatores do devir social arrolados e que poderiam ser arrolados impede o desenvolvimento da confiança na primazia de um deles (a produção) e, por aí, a fidelidade ao método de Marx e Engels. Não empregamos esse método de modo constante e com a confiança devida, assim como não empregamos qualquer outro que envolva enunciados a priori sobre a realidade social.
                        Toda ciência baseia-se no apriorismo. À força de observar exaustivamente os fatos e de interrogar os dados colhidos na observação, o cientista enuncia quais são as leis gerais manifestas neles. Desde esse instante, ele não precisa mais observar para confirmar suas leis. Toma-as por autoevidentes, usa-as como enunciados dotados de validade a priori, com base nos quais ele parte em busca de novos conhecimentos. Anda, por isso, numa só direção, indicada pelas leis, e não em todas.
                        Assim ocorre não com um ou outro cientista, mas com todos eles. Equipes inteiras pertencentes a instituições as mais variadas adotam ao mesmo tempo os enunciados a priori aceites. E, quando elas se aposentam, outras equipes procedem exatamente da mesma maneira.
                        Nas ciências sociais, não reconhecemos qualquer enunciado a priori válido. Comportamo-nos como um cientista natural hipotético que põe em dúvida a existência da gravidade. Marx e Engels provaram tão bem quanto possível que as forças produtivas e as relações de produção determinam o curso da História mais decisivamente que qualquer outra causa. Com isso forneceram-nos um conhecimento perfeitamente a priori. Porém, quase ninguém o utiliza, porque quase ninguém respeita um a priori em ciências sociais. Um pesquisador nos Estados Unidos ou na Europa pode ignorar a prevalência das causas produtivas ao elaborar sua ciência tão bem quanto aceitá-la.
                        Os enunciados a priori que faltam à ciência social sobram à ideologia. É próprio da ideologia extrair um a priori de outro, deste ainda outro e assim sucessivamente. O ideólogo marxista ou religioso tem o alforje carregado de tantas verdades a priori que precisa reforçá-lo para não arrebentar. Costura, por isso, no alforje, o remendo do dogma para que o mundo cabalmente explicado que ele carrega não lhe fique pelo caminho.
                        Por um bom tempo, a ciência social confundiu-se com a ideologia. É que ela precisava de enunciados a priori e os encontrou na ideologia, onde eles pululavam. Daí as duas terem-se avizinhado. Daí também os liberalismos, os marxismos, os socialismos e outros ismos, nos quais uma ou outra lei verdadeira misturava-se à profusão de outras falsas.
                        O colapso das ideologias, hoje consumado, livrou a ciência social do peso morto das falsas leis, porém a relegou à mais absoluta carência de enunciados a priori. Com isso, o mundo dessas ciências só não ruiu, porque lhe sobraram alguns a priori verdadeiros, com os quais ela foi escorada.   
                        Resta-nos reconstruir esse mundo em colapso. E a melhor maneira de fazê-lo é com métodos científicos. Mas, para construir um método científico, é preciso aceitar conhecimentos a priori sobre a realidade.
                        O estado confuso da ciência social exige resolução não quanto às conclusões a atingir, mas quanto aos métodos a utilizar. Inclusive quanto aos métodos que envolvem proposições a priori sobre a realidade social.
                        A rejeição de métodos dessa espécie é tão generalizada, no nosso tempo, que se tornou indispensável decidir se vamos admitir o seu uso (e usá-los efetivamente) ou proibi-los. Enquanto não tomarmos uma resolução quanto a isso, continuaremos como os viajantes mencionados por Descartes, caminhando sempre e em todas as direções, mas sem chegar ao destino.
                        As preocupações metodológicas expostas acima explicam por que, na Parte V desta série, ao tratar da Fenomenologia Jurídica, que é parte da Fenomenologia Social, dediquei-me a temas econômicos. É perfeitamente claro que o social não se esgota no econômico, porém a necessidade de partir da conquista metodológica de Marx e Engels e de não a desperdiçar levou-me a basear a análise dos fenômenos jurídicos na consideração do seu alicerce econômico.
                          Os motivos de tal escolha foram metodológicos. Se não posso e não sei refletir sobre tudo, especialmente sobre o que é maior e mais volumoso, devo cogitar do mais básico. E caminhar numa só direção ao fazê-lo.
               Em O capital, Marx aplicou o seu método de análise histórica da maneira mais extensa e mais pura. Embora a influência da filosofia de Hegel e da dialética, em particular, seja marcante, o que temos, em O capital, é análise econômica e análise muito bem-sucedida. No Manifesto do Partido Comunista, ocorre algo diferente. Ali, o pressuposto que permite interpretar a História a partir da produção se funde mais completamente com a dialética. E, dessa fusão completa e visível, torna-se claro que a contradição sobrepõe-se ao pressuposto produtivo. Na abertura do Manifesto, Marx e Engels explicam[55]:

           A história das sociedades até aqui existentes é a história da luta de classes.
           Homens livres e escravos, patrícios e plebeus, senhores e servos, mestres de corporação e jornaleiros, numa palavra, opressores e oprimidos estiveram em oposição constante e recíproca, sustentaram uma luta ininterrupta, ora oculta, ora aberta, luta que, em cada caso, resultou na reconstituição revolucionária da sociedade toda ou na ruína comum das classes antagônicas.

                              As páginas seguintes do Manifesto fazem jus a essa abertura. Nada mais são que o desenvolvimento da ideia semeada nela. Por isso, no Manifesto, o pressuposto econômico recebe a mais forte coloração de luta de classes.
                              Não direi que, em O capital, ocorre coisa distinta. O método de análise histórica de O capital é o mesmo do Manifesto. Porém, o entretecimento do a priori econômico com a dialética não é tão visível na primeira quanto na última obra. Por isso, o Manifesto deve ser tomado como ponto de partida para a compreensão do modo como Marx e Engels utilizam o seu pressuposto econômico.
                              Em síntese, no Manifesto, o antagonismo de classes é claramente acrescido ao pressuposto econômico de Marx e Engels. Desde dentão, já não é a produção, como pura transformação da matéria, que determina os acontecimentos históricos, mas os conflitos que ela deflagra.
                              Ao receber essa coloração dialética, o pressuposto econômico de que Marx e Engels partem sofre uma modificação essencial. Compreendido em si mesmo, ele não envolve oposição de classes. Porém, ao ser entendido dialeticamente, ele passa a ter como núcleo a oposição de classes.
                               Não me parece claro que essa introdução do elemento dialético na base econômica do método de Marx e Engels sustente-se em bases empíricas. A aplicação da dialética à matéria, animada e inanimada, em Hegel, Marx ou Engels, não se baseia em evidências empíricas conclusivas. Decorre de uma escolha indemonstrável, uma vez que não é possível provar que a contradição seja mais determinante do que a harmonia ou a cooperação, na natureza ou na História.
                              Se esvaziarmos o pressuposto metodológico que demonstramos de suas implicações dialéticas, ele perderá toda conexão com a ideia de exploração. Claro que, ainda assim, poderá ou não existir exploração numa sociedade, mas isso dependerá de uma constatação empírica, não será consequência de um pressuposto a priori.
                              A remoção da dialética do método de análise social conduz a resultados relevantes, pois a desigualdade observada nos modos de produção deixa de resultar de atos de exploração. Não que a relação entre luta de classes e desigualdade não possa ocorrer, mas terá de ser comprovada empiricamente para ser admitida. Não constituirá, por isso, um dado de partida, mas de chegada.
                              Quero propor que o pressuposto produtivo de análise social não implica qualquer antagonismo necessário, luta de classes ou exploração inescapáveis. A produção exerce o mais forte condicionamento sobre os fatos. Ela marca a História, mas não com o sinal necessário da espoliação.
                              A última parte desta série tem o sentido que essas considerações metodológicas sugerem. Nela, analisamos os dados sobre a desigualdade fornecidos por Thomas Piketty em O capital no século XXI, à parte da pré-compreensão que neles vê indicadores inequívocos de exploração. Da análise dos dados extraímos a conclusão de que a desigualdade econômica, passada e presente, em regra, não resulta de processos de exploração.
                               Era preciso demonstrar que o Direito e as outras disciplinas sociais podem ser pensados sobre essas bases metodológicas, se o referencial derradeiro deles for a História. O que equivale a dizer se o Direito não for a quinta essência que alguns veem nele: a vida idealizada pelo pensamento ou o pensamento realizado na vida.


[1]COULANGES, Fustel. A cidade antiga – estudo sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. São Paulo: Edipro, 1998. p. 191.
[2]Jo 7:24.
[3]Mt 23:23.
[4]Mt 23:24.
[5]Êx 22:1.
[6]Êx 22:5.
[7]MAGNO, Gregório. Regra pastoral. São Paulo: Paulus, 2010. p. 75.
[8]KONDER, Leandro. História das idéias socialistas no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2003. p. 94.
[9]The New York Times. Em colaboração com Folha de S. Paulo. 06/05/14. p. 1 e 3.
[10] MORAIS, Luís Fernando Lobão. São Paulo: Themis, 2008.
[11]BRUCKBERGER, R. L. A república americana. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1960. p. 287.
[12] Idem. p. 288.
[13]PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. p. 37.
[14]Idem. p. 337.
[15]Idem. p. 336-337.
[16] Idem. p.348.
[17] Idem. p. 93.
[18] Idem. p. 99.
[19] Idem. p. 331-332.
[20] Idem. p. 364.
[21]MORAIS, Luís Fernando Lobão. Liberdade e direito. Campinas: Copola, 2000. p. 432.
[22] Idem. p. 434.
[23]PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. p. 367.
[24] Idem. pp.146-147.
[25] Idem. p. 149.
[26] Idem. p. 364.
[27] Idem. p. 147.
[28] Idem. p. 147.
[29] Idem. p. 174.
[30] Idem. p. 175.
[31] Idem. p. 146.
[32] Idem.
[33]PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. p. 38.
[34] Idem. p.20.
[35] Idem. p. 24.
[36]MORAIS, Luís Fernando Lobão. A função social do lucro – e a sociedade pós-capitalista. São Paulo; Themis, 2008. p. 352.
[37] SMITH, Adam. Citado em COLLETTI, Lucio. Ultrapassando o marxismo – e as ideologias. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1983. p. 159.
[38]PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. p. 332, 335.
[39]MARX, Karl. Critique of Hegel’s Philosophy of Right. Introduction. Disponível em www.marxists.org.
[40] CARVALHO, Olavo de. Disponível em http://www.olavodecarvalho. org/textos/debate_usp_1.htm. Acesso em 14/01/15.
[41]DRUCKER, Peter. Sociedade pós-capitalista. São Paulo: Pioneira, 1993. p. 90-91.
[42] Idem. p. 95.
[43] Idem. p. 96.
[44]PIKETTY, Thomas. Ob. cit. p. 364.
[45] Idem. p. 329, 364.
[46] Idem. p. 518-519.
[47] Idem. p. 360.
[48] Idem. p. 219.
[49]PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrín-seca, 2014. p. 96.
[50] Idem. p. 463.
[51] Idem. p. 465.
[52] Dilthey apresenta, pela primeira vez, o estatuto das ciências do espírito em Psicologia e teoria do conhecimento, onde lemos: “As ciências do espírito partem da conexão psíquica dada pela experiência interna. A diferença fundamental entre o conhecimento psicológico e o conhecimento da natureza radica no fato de que a conexão no mundo psíquico se dá de um modo primário, e nisto consiste também a primeira e fundamental peculiaridade das ciências do espírito”. Porém, seu projeto definitivo de fundamentação das ciências do espírito, Dilthey o apresenta em Estudos para a fundamentação das ciências do espírito e em A construção do mundo histórico nas ciências humanas. Nessa última obra, Dilthey esclarece que a natureza, como objeto das ciências naturais, “só pode ser construída, mas nunca compreendida; espreitando na natureza o seu sentido, um sentido que ela, contudo, nunca nos deixa conhecer”. Por outro lado, “a humanidade pode ser delimitada como o nível no qual aparecem o conceito, o juízo de valor, a concretização de fins, a responsabilidade e a consciência do significado da vida. A propriedade mais comum ao nosso grupo de ciências [humanas], por nós determinada, é a ligação comum com o homem, com a humanidade”. Em síntese, a diferença [entre as ciências humanas e as naturais] reside na tendência, na qual seu objeto é formado. Ela reside no procedimento que constitui esses grupos [de ciências]. No primeiro caso, um objeto espiritual surge no compreender; o objeto físico no conhecer” (DILTHEY, Wilhelm. A construção do mundo histórico nas ciências humanas. São Paulo: UNESP, 2006. p. 24-25, 27).
[53] As ciências do espírito, afirma Dilthey, “são a história, as ciências econômica e jurídica e a ciência do Estado, a ciência da religião, o estudo da literatura e da poesia, da arquitetura e da música, das visões de mundo e dos sistemas filosóficos e, por fim, a psicologia” (idem. p. 24).
[54] DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Hemus. p. 52.
[55] MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. In Great books of the western world. 2ª ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 50. p. 419.