“E o povo já pergunta com maldade:
Onde está a honestidade,
Onde está a honestidade?”
(Noel Rosa, “Onde está a honestidade?”)
A pergunta do gostoso samba de Noel atravessou os tempos vividos pela
nossa sociedade, de 1933, quando foi composto, aos episódios recentes
da política nacional.
O samba é um confronto. Canta-se com o dedo apontado para certo tipo:
“Você tem palacete reluzente/ Tem joias e criados à vontade/ Sem ter
nenhuma herança nem parente”. E continua em versos sempre incisivos e
sentidos, como em regra são os de Noel.
A pergunta que o refrão formula sobre o tipo em berlinda, ao final de
cada estrofe, é tratada como pergunta do povo e de fato o é. Daí o
confronto e o amargo conflito de classes que lhe subjazem: “Onde está a
honestidade?”
A questão sugere que quem a formula sabe o que é o honesto. Põe em
dúvida apenas que possa ser encontrado naqueles cujo dinheiro nasce
sem herança, sem parente, talvez até sem trabalho. A inquietação por
trás da pergunta, por isso, não é especulativa, mas prática.
É verdade que os filósofos criam questionamentos profundos sobre o que
são o justo, o honesto e os outros valores morais. Porém, o homem comum
não participa das suas dúvidas e preocupações. Ele sabe o que são tais
valores.
Talvez por isso, definições de valores não apareçam com muita frequência
nos ensinamentos dos antigos jurisconsultos. E, quando aparecem,
verificamos que não são muito problematizadas. Atribui-se a Ulpiano ou a
um glosador medieval a lição recolhida no Digesto (1,10,1) segundo a qual “Os preceitos do direito são estes: viver honestamente, a ninguém lesar, dar a cada um o que é seu”.
Dar a cada um o que é seu, eis uma célebre definição de justiça. Porém, a intenção de gravá-la no Digesto
era muito mais estabilizá-la do que problematizá-la. Claro que a
definição não inibia as mentes abertas de a discutirem. Mas os próprios
escritos de sabedoria, dos provérbios de Salomão aos aforismos de
Confúcio, só se compreendem na medida em que se percebe que estavam
completamente voltados a colocar em circulação e em prática definições
mais ou menos aceites dos valores. Esta era a convenção amplamente
vigente na Antiguidade.
O Direito conservou sua orientação prática ao longo dos séculos. Hoje
como ontem, o que importa a quantos trabalham
com o jurídico não é tanto problematizar os conceitos quanto debater a
sua aplicação prática. A pergunta do legislador, como a do povo, não é
“O que é a honestidade?” É “Onde está a honestidade?”.
Essa é a razão de gelar-me, ao ver o povo indagar com tanta frequência, nestes dias lancinantes, o que vem a ser a honestidade no exercício do poder. O episódio do impeachment presidencial mostrou-o sobejamente. Que é pedalada? Pedalar é honesto? Todos os que governam pedalam? Se eu governar, também pedalarei?
Quantas assinaturas devem ser apostas no processo que faz nascer um
decreto presidencial para que ele seja orientado ao legal e ao honesto?
Essas assinaturas tornam o decreto um ato em cadeia, um ato jurídico
complexo? Se o tornam, o legal e o honesto ou, a contrario, o ilegal e o desonesto se albergam em toda a cadeia de produção do decreto ou apenas numa de suas etapas?
Não estou a afirmar que, enfrentadas a fundo, essas questões devam ser
respondidas desta ou daquela maneira. Não me importa, aqui, tanto a
resposta a dar às perguntas quanto o perguntar e o responder, vale
dizer, o diálogo no qual elas têm sido ultimamente formuladas.
Todo poder emana do povo e em seu nome é exercido. Mas o povo não
entende o que é pedalada, nem as condições e as consequências de um
decreto ser legal e honesto. E os que o representam o fazem
condignamente, pois demonstram que tampouco o compreendem. Fiam-se, por
isso mesmo, em pareceres técnicos lançados em termos conclusivos, os
quais, no entanto, não suprem o desconhecimento profundo do que
realmente ocorre ou ocorreu.
Não há como olhar para esse quadro e não desconfiar de que algo
culturalmente muito equivocado se passa. O discurso do direito, o da
política e o da ética já não supõem verdadeira cognição de valores. Não
supõem que a honestidade, a probidade, a moralidade e outros valores
sejam realmente conhecidos e que, sobre esse conhecimento, possamos
discutir como mantê-los, realizá-los concretamente, talvez maximizá-los.
Um discurso só é coerente quando os que dele participam fazem uso
correto e leal das palavras. Não foi o que vivemos no recente episódio
do impeachment da Presidente da República. Vimos uma discussão ser
travada sobre o que não se entende e dela serem extraídas drásticas
consequências políticas. O que faz pensar que, entre nós, o drama da
construção coerente dos valores constitucionais ainda está longe do fim.
sábado, 17 de setembro de 2016
quinta-feira, 24 de março de 2016
Filosofia e Direito (artigos reunidos) - Parte VI
O ROUBO ONTEM E HOJE
“Senhor, dai
pão a quem tem fome
e fome de
justiça a quem tem pão”
(oração
católica – autor desconhecido)
A oração anônima nos
lembra o duplo flagelo da fome de pão e da falta de fome de justiça. Se fôssemos
flagelados só pela fome, o pão sobre a mesa seria remédio bastante para todos
os nossos males. Mas, sem fome de pão, teríamos imediatamente justiça? A
resposta há de ser não, se o problema da injustiça exceder o do pão, até porque
a fome faz soar bem alto o alerta da falta de pão, ao passo que a justiça falta
sem que qualquer aviso biológico nos desperte. Desse modo, o problema cultural
e não biológico da injustiça se torna o dilema fundamental da existência humana.
A
proibição do roubo, incluída nos Dez Mandamentos, ataca a raiz da desigualdade
antiga, que se baseava no saque. Se interdições semelhantes tivessem sido
respeitadas, nos diferentes povos, seria de duvidar que a desigualdade tivesse
jamais assumido a escala que alcançou nas sociedades pré-capitalistas.
Benjamin Constant, o
político, lembrou que a história da liberdade divide-se em etapas bem
demarcadas, durante as quais sua compreensão se alterou profundamente. Na
Antiguidade, a liberdade reconhecida era a do cidadão. Possuía-a única e exclusivamente
quem não era escravo, e ela lhe valia tão-só para participar da vida da pólis
do modo permitido a cada classe social. Outra espécie de liberdade, muito
distinta, é a que o homem moderno reivindica sob esse nome e que, de algum
modo, se estende sobre as barreiras de classe. A lição de Constant é confirmada
por Fustel de Coulanges, que declarou que os antigos não conheceram a liberdade
individual típica dos tempos modernos[1].
Algo semelhante se passa
com a igualdade. Na Antiguidade, esse valor concebia-se no interior das classes
sociais e não entre os membros delas. Um escravo era igual a outro, e um plebeu
era considerado a réplica social de outro plebeu, do ponto de vista dos
direitos e deveres. Claro que essa igualdade válida no interior das classes se
traduzia em desigualdade fora delas. Porém, as desigualdades só atingiam o grau
máximo ao excederem o território de cada sociedade, mediante a pilhagem, que
podia ser aplicada sem qualquer limite.
No contexto da
Antiguidade, não devemos pensar que a interdição do roubo, incluída nos Dez
Mandamentos, referia-se a atos menores de subtração ou de desrespeito à
propriedade privada. Pelo contrário, o mandamento combatia todas as formas de
roubo, mas principalmente a mais hedionda: a pilhagem, situada à base da
desigualdade antiga.
O dito de Jesus lança
luz sobre toda a legislação de Israel: “Não julgueis conforme a aparência, mas
segundo a reta justiça”[2]. Lembra-nos
que os preceitos divinos têm dois aspectos: a aparência e a justiça interior. A
aparência da norma está associada às suas aplicações comezinhas, literais e
mecânicas. A reta justiça, por outro lado, é o espírito da legislação. O
espírito da proibição do roubo, seu significado mais profundo em termos de justiça,
é o combate à prática da pilhagem, isto é, do roubo em escala.
Entendido sob esse
prisma, o mandamento não diz “não furtarás um pão”. Não coíbe a prática de Jean
Valjean. Diz sobretudo “não pilharás”, “não rapinarás”, “não tomarás qualquer
bem do teu próximo pela força ou pelo engodo”. Nessa sua vertente específica, o
oitavo preceito é um golpe sses-tado na desigualdade.
Não há outro mandamento
econômico além da proibição de roubar, no Decálogo, o que tampouco é sem
significado. Do modo como o respeito aos pais aludido nas palavras “Honrarás
pai e mãe” é o mandamento único e suficiente para fundar a família antiga, a
proibição do roubo é a base de todo agrupamento social maior que a família: a
base da sociedade civil.
O décimo mandamento veicula
uma proibição, de certo modo, mais importante que a do roubo: a proibição da
cobiça. Porém, essa vedação está conectada à do roubo. É o seu antecedente
lógico e necessário. Ninguém furta ou rouba, sem cobiçar. Portanto, o décimo
mandamento complementa o oitavo. Proscreve a raiz do roubo, que é o querer
roubar.
Essas duas partes do dever
social aparecem reunidas em Miqueias 2:2: “Cobiçam campos, e os arrebatam; e
casas, e as tomam”. Não devemos ignorar quanto, por esse duplo interdito, o
cerco à desigualdade fechou-se sobre o homem antigo.
O mais óbvio contraargumento
a essa interpretação do Decálogo é a imputação de arbitrariedade pelo fato de
uma das espécies de roubo (o saque, a rapina) ser encarecida mais do que as
outras. Dirão que a proibição de roubar veiculada no mandamento é genérica,
como a de matar.
De fato, a proibição é
genérica. Mas é possível deixar de reconhecer que o genocídio ofende em maior
medida o valor protegido pela proibição de matar (a vida humana) do que um
homicídio isolado? É possível deixar de reconhecer razão a Jesus, quando
ordenou separar, no mandamento, aparência e justiça? Para Jesus, não faz
sentido pagar o dízimo do endro e do cominho e não praticar a justiça e a
misericórdia[3],
coar o mosquito e deixar passar o camelo[4]. Projetado
no oitavo mandamento, esse princípio não significa que uma coisa é subtrair um
pão, outra é subtrair, por cobiça, um bem de valor significativo e ainda outra
é saquear e pilhar?
Não muito após os Dez
Mandamentos, lemos no texto bíblico: “Se alguém furtar boi ou ovelha, e o
abater ou vender, por um boi pagará cinco bois, e quatro ovelhas por uma
ovelha”[5]. Na
quantificação da restituição o nota-se o grau de ofensividade da transgressão.
Em seguida, outra
hipótese é figurada: “se alguém fizer pastar o seu animal num campo ou numa
vinha, e o largar para comer em campo de outrem, pagará com o melhor do seu
próprio campo e o melhor da sua própria vinha”[6]. Essas
palavras mostram que os grandes princípios da lei, como “não roubarás”,
desdobram-se em diferentes proibições, que devem ser concebidas com base na
reta justiça, o que equivale a dizer não à luz da aparência, mas das intenções
e situações variáveis da vida.
A inclusão de um
preceito no Decálogo tem como consequência a elevação dele ao status de
transgressão capital. Porém, a reta justiça exige que apenas as formas graves
de violação sejam, de fato, tomadas como crimes capitais. Transgressões menores
não hão de ser tomadas da mesma maneira, nem hão de receber o mesmo tratamento.
Isso é particularmente
claro no caso da proibição de roubar. Em Isaías 5:8, lemos: “Ai dos que ajuntam
casa a casa, reúnem campo a campo, até que não haja mais lugar, e ficam como
únicos moradores no meio da terra”. O texto não se refere aos que ajuntam casa
a casa com o fruto do seu trabalho ou por outro motivo justo. Refere-se aos que
tomam a propriedade alheia por meio da força, como Miqueias também enfocou, no texto
anteriormente citado. Esse é o comportamento que o Decálogo elevou a
transgressão capital. É o comportamento que causa e, portanto, explica toda a desigualdade
antiga.
Quando a Doutrina Social
da Igreja critica a acumulação desenfreada da riqueza, a memória das pilhagens
não está ausente, até porque ela é inseparável das fontes dessa doutrina. Gregório
Magno escreveu que “a natureza fez nascer iguais todos os homens, mas, variando
o grau dos seus méritos, a culpa pospõe alguns aos outros”[7].
Rousseau não criou o
princípio da igualdade de todos os homens. E a tampouco foi inventada quando a
Declaração Universal dos Direitos Humanos foi proclamada. Talvez o primeiro
formulador desse grande princípio tenha sido Gregório, que o inseriu no
inventário dos bens que o pensamento cristão trouxe ao mundo.
Mas a citação de
Gregório é só um exemplo. Poderíamos mencionar Basílio de Cesareia e João
Crisóstomo, que pregaram a divisão da riqueza e estabeleceram princípios
segundo os quais ela pode ser levada a efeito de maneira justa. O que tanto
Gregório quanto Basílio e Crisóstomo combateram, no fundo, foi a limitação da igualdade
ao interior de uma classe social. Quiseram substituí-la por uma igualdade de
outra espécie, universal, que eu chamaria moderna, se não tivesse sido
enunciada tão claramente no século VI.
Por muito tempo, o Cristianismo
foi o espaço no qual a consciência da igualdade moderna se formou. A partir do
século XIX, porém, um feliz movimento intensificou a difusão dessa consciência para
a sociedade secular. Refiro-me ao socialismo, que em alguns casos se somou ao Cristianismo
e, em outros, o substituiu como o centro da resistência e da luta contra a
desigualdade.
Hoje, as desigualdades
que o socialismo e os setores sensíveis do Cristianismo combatem não são as que
vigoram no interior das classes sociais, mas as que se estabelecem entre elas. A
unidade da luta autoriza a conclusão de que, no sentido prático e social, as
correntes cristã e socialista possuem uma só causa. E que, assim como não há duas
igualdades modernas por que lutar, elas travam uma só luta.
Claro que o Cristianismo
tem finalidade maior que o combate às desigualdades temporais. Porém, tal combate
continuará a ser parte da sua vocação, enquanto houver injustiça na Terra. De
sorte que, no plano social, Cristianismo e socialismo são uma só coisa: o não
pronunciado à injustiça.
Há, porém, um ponto em
que as mentalidades se turvam e tudo se complica. Refiro-me à discussão dos
postulados, principalmente econômicos, em que a luta pela igualdade se pauta. Nesse
ponto, as dificuldades avultam, não porque as intenções das pessoas se alterem,
mas porque se torna difícil discernir a configuração social da injustiça.
Tornou-se comum a
esquerda responsabilizar o capitalismo pela desigualdade moderna. Leandro
Konder escreveu[8]:
A fonte de inspiração, para os socialistas, continua a
ser a mesma do começo: a revolta contra as desigualdades necessariamente
geradas pelo capitalismo [...] O capitalismo é injusto e os espíritos bem
formados devem combater a injustiça. Os ideais do socialismo, em princípio, são
superiores à aceitação pragmática da desigualdade institucionalizada.
Se retirarmos dessa
citação as alusões à necessária injustiça do regime capitalista, estreitaremos
de modo considerável a distância que
separa o socialismo da pregação cristã da igualdade. Parte importante da
divergência entre a doutrina cristã social e o movimento socialista está na
responsabilização do capitalismo pela desigualdade. E o motivo dessa
divergência não se situa tanto no plano dos princípios quanto nos postulados
secundários de um e de outro.
Não que o Cristianismo
tenha qualquer compromisso com o regime capitalista. Seu aparecimento antecede
tanto a ascensão do capitalismo à condição de regime dominante que não pode manter
relação com ele. Ainda mais relação necessária. Porém, isso é verdade tanto do
ponto de vista da afirmação como da negação. O Cristianismo é tão livre para
defender quanto para criticar o capitalismo, conforme ele se revele justo ou
injusto. Sua relação com o regime do capital deve depender dos fatos, por depender
da verdade. E são os fatos que retiram apoio à conclusão socialista de que o
capital e não os sucedâneos modernos do roubo é o responsável pelas
desigualdades.
Que nos dizem os fatos
sobre os reais motivos da desigualdade? Nos Estados Unidos, há muito, o Condado
de McDowell tem servido de emblema para a desigualdade. O índice de pobreza,
ali, era de 50%, em 1960, caiu consistentemente até atingir 23,5%, em 1980, e voltou
a subir para 38% em 1990[9].
O socialismo
responsabiliza classicamente o capital por fatos como a persistência da pobreza
em McDowell. Mas é possível pensar que as coisas não são tão simples quanto a
explicação pelo capital pressupõe. Desde que as sociedades modernas fecharam o
cerco ao roubo, outras formas de expropriação o substituíram. A exploração do
trabalho é uma delas, porém, como o roubo, ela também deixou de ser universal.
Em McDowell, 47% da renda da população provém de programas do Governo. É, pois,
possível que o aumento da curva da desigualdade, naquele condado, reflita flutuações
dos programas sociais, mais do que a exploração do trabalho pelo capital.
Em O capital, Marx mostrou que o método da acumulação primitiva foi a
pilhagem. Devia saber que, ao fazê-lo, repetia uma antiga lição. Ao lermos
Marx, as dúvidas que nos assaltam não incidem na relação entre capital e roubo,
mas no postulado marxiano de que a expropriação teria mudado de face: de que
ela teria deixado de ser a injustiça da acumulação primitiva e transformado na
mais-valia. Esse é um ponto duvidoso da doutrina da exploração de Marx.
Talvez a mudança da
causa da desigualdade suposta por Marx não tenha ocorrido. Talvez a
desigualdade não tenha perdido a relação com o dolo do saque para radicar na
mecânica da produção. Esta é importante, mas não a ponto de tudo explicar. Sobretudo
não a ponto de explicar, especificamente, a desigualdade.
Talvez o motor histórico
da desigualdade não tenha mudado. Talvez ele tenha apenas perdido o aspecto grosseiro
da rapina e se revestido das sutilezas da micropolítica. Terá com isso mudado
exteriormente, mas não em essência. A luta pelo dinheiro e pela matéria, antes
travada por exércitos, se tornou verbal. A violência simbólica sucedeu
amplamente a física. A invasão de sistemas eletrônicos sucedeu a tomada de
cidades. O discurso forense tomou o lugar da guerra. Talvez, com isso, o logro
e a dissimulação tenham substituído a força. O resultado, porém, permanece o
mesmo: a expropriação.
Estranho mundo este em
que os postulados sociais de uma religião se aproximam tanto de uma doutrina
laica! No plano social, o Cristianismo é, em boa medida, uma forma de
socialismo. Foi o que a Teologia da Libertação percebeu, embora o seu foco e a
sua atuação tenham-se complicado ao ingressar no acidentado terreno da análise
econômica.
A DESIGUALDADE SOCIAL
A proposta desta série é
reunir e ordenar, ou seja, compendiar os pontos fundamentais do trabalho
reflexivo que desenvolvo, há anos, no campo da Filosofia do Direito. Enfatizei,
desde o início, que esse trabalho ocorreu à luz das intuições originais que
orientaram a minha reflexão. Nesta parte final do Compêndio, cumpre-me
demonstrar a orientação social do meu pensamento e o que nele talvez exista de
heurístico.
Reconheço que as ideias
expostas em A função social do lucro[10]
foram mal compreendidas por alguns, que identificaram o pensamento do livro com
o liberalismo, quando a preocupação central da obra é exatamente a melhorada
condição social do proletariado. Defendi que, entre outros meios, esse fim pode
ser favorecido pelo que denominei função social do lucro. O fato de eu ter
afirmado que tal função é produto de uma construção histórica não me transforma
em liberal, embora possa representar uma concessão ao liberalismo.
A construção história a que
me referi decorre de fatos objetivos. Por exemplo, em 1914, Henry Ford reduziu
a jornada e dobrou os salários dos trabalhadores das suas fábricas. O que lhe
permitiu adotar essas medidas foi a invenção da linha de produção, à qual se
seguiu uma revolução social. O ponto nuclear de tal revolução foi o fato de os
salários, que haviam gravitado em redor do mínimo necessário à sobrevivência, terem
descolado daquele valor, a partir da década de 1930.
Bruckberger apresenta os
avanços do fordismo, em contraste com a perspectiva sombria que
pairava sobre o mundo na época[11]:
O crescente fardo das misérias e servidões impostas
aos trabalhadores pela primeira revolução industrial, a crença de que os
recursos do mundo eram limitados, que seriam em breve insuficientes para a
população global, devem ter criado uma atmosfera de catástrofe iminente [...]
Num mundo de recursos limitados, a ordem de urgência impôs aos espíritos
lúcidos a terrível ameaça da miséria generalizada e o problema da sobrevivência
material. Capitalismo e socialismo não viram como o problema poderia ser
examinado de outro modo.
Porém[12],
a
revolução industrial moderna [fordista] coloca o problema e os próprios termos
do problema de maneira inteiramente nova, e por isso permite escapar tanto à solução
socialista quanto à capitalista. Peter Drucker escreveu com razão: “A
expansão é possível, eis a grande descoberta da [segunda] revolução
industrial”.
Por expansão, entendamos
o crescimento da produção capitalista, sem a geração de desequilíbrios
sociais que o inviabilizem. O que acrescentei, em A função social do
lucro, foi que a continuidade do desenvolvimento capitalista, propiciada
por inovações como a do fordismo, tende a melhorar a condição de todas as
classes sociais, inclusive do proletariado. Tende, enfim, a produzir uma
revolução social benéfica.
Poucos livros permitem
testar melhor essa afirmação do que O capital no século XXI, do
economista Thomas Piketty. A obra foi justamente saudada pela contribuição que
oferece à teoria econômica, ao apresentar volume inusitado de estatísticas,
cientificamente coligidas, as quais comprovam que o nível de
desigualdade pouco se alterou, do início da Revolução Industrial até hoje,
nas principais nações capitalistas.
Chama atenção, de saída,
que, embora crítico, o livro não adota posição contrária ao regime capitalista.
“Fui vacinado bem cedo”, escreve Piketty, “contra os discursos anticapitalistas
convencionais e preguiçosos, que parecem às vezes ignorar o fracasso histórico
fundamental do comunismo [...] Não me interessa denunciar a desigualdade ou o
capitalismo”[13].
Nem poderia ser
diferente, pois os dados de Piketty não conduzem, de nenhum modo claro, seja à
condenação, seja ao prognóstico do fim do capitalismo. Na página 337 da obra, ele
esclarece que [14]
o
nível extremo de concentração de riqueza – da ordem de 80-90% do capital detido
pelo décimo superior [10% mais ricos da sociedade], dos quais 50-60% pertenciam
ao centésimo superior [1% mais ricos] – parecia ser mais ou menos o mesmo na
maior parte das sociedades até o século XIX e sobretudo nas sociedades agrárias
tradicionais, tanto na época moderna como na Idade Média e na Antiguidade.
Se o nível de
desigualdade foi aproximadamente o mesmo sob os modos de produção
pré-capitalistas e durante quatro séculos do regime do capital, concluímos que
a responsabilização do regime do capital pela desigualdade deve conduzir à de todos
os outros regimes. Aliás, a condenação dos outros modos de produção deverá ser
mais grave, uma vez que, apenas sob o capitalismo, foi possível reduzir a
desigualdade durante algum tempo (no século XX). O problema é que, se
condenarmos todos os regimes, ficaremos sem um mediante o qual a vida econômica
poderá desenvolver-se.
Piketty mostra que, na
história do capitalismo, o nível de desigualdade só igualou o verificado em
outros modos de produção, em momentos de pico. A média histórica da
desigualdade ocorrida sob o capitalismo foi inferior à dos outros modos de
produção, principalmente quando consideramos os dados do século XX.
As
informações de O capital no século XXI sobre a Suécia são
particularmente reveladoras[15]:
A Suécia apresenta dados [de desigualdade] bastante
detalhados, recolhidos desde os anos 1910”. Porém, esses dados revelam “uma
trajetória muito próximada observada na França e no Reino Unido [...] Em
particular, os dados patrimoniais suecos confirmam o que já havíamos descoberto
graças às declarações de renda: a Suécia não é o país estruturalmente
igualitário que costumamos imaginar. A concentração de riqueza na Suécia
atingiu nos anos 1970-1980 o ponto mais baixo observado em nossas séries
históricas (com um pouco mais de 50% da riqueza total para o décimo superior e
não muito mais do que 15% para o centésimo superior). Entretanto, mesmo se tratando
de uma desigualdade elevada, [ela] aumentou sensivelmente desde os anos
1980-1990 (a concentração de riqueza no início dos anos 2010 parece pouco menor
do que a francesa).
Esses dados sugerem que
o capitalismo é o modo de produção mais igualitário da História. Ou o que menos
agrava aquela espécie de desigualdade que se manifesta como chaga social. E a
soma com outros dados parece apontar, ainda mais fortemente, para essa conclusão.
Não que o capitalismo seja um regime muito especializado na produção da
igualdade. Porém, nas suas etapas mais avançadas de desenvolvimento, ele é o
modo de produção mais igualitário dentre os que já foram historicamente
testados. Ou, se preferirmos a expressão de Delfim Netto, é o mais desigual dos
modos de produção, exceto todos os outros.
Os dados de Piketty são
expressos, quase sempre, em percentuais e não em números absolutos. Por isso, o
significado primordial deles (a manutenção do nível de desigualdade) é que
a participação do décimo e do centésimo mais ricos da população na riqueza
social alterou-se pouco, nos últimos dois séculos, assim como a
participação dos 50% mais pobres. Em outras palavras, a desigualdade que
Piketty informa ter-se mantido tem cunho meramente proporcional, razão por que nada
diz sobre a riqueza ou pobreza absolutas.
Se, além da desigualdade
proporcional, considerarmos a condição de classe das camadas desiguais, veremos
que, embora a desproporção de riqueza se tenha mantido, o acesso de cada camada
a bens e serviços aumentou várias vezes, em termos gerais. Essa última conclusão
é tão fortemente comprovada pelos dados de Piketty quanto a preservação da
desigualdade proporcional.
Por exemplo: no período
de 1820 a 2012, o crescimento médio da economia mundial passou de 0,5% ao ano
para 3% ao ano[16].
O aumento deve ser considerado vertiginoso, em comparação com os
séculos precedentes, o que significa que o nível de acesso à riqueza
aumentou vertiginosamente. O único modo de traçar um retrato, ainda que pálido,
das consequências disso, é comparar os níveis de acesso à riqueza e de
desenvolvimento tecnológico das sociedades pesquisadas, em 1820 e em 2012,
assim como o tamanho das respectivas populações.
Piketty está longe de
negar essa revolução, que assumiu extensões diferentes, em países diversos[17]:
É claro que as condições materiais melhoraram de
maneira extraordinária desde a Revolução Industrial, fornecendo aos habitantes
do planeta formas mais eficazes de se alimentar, vestir, deslocar, informar,
cuidar e assim por diante.
O mesmo vale para
períodos mais curtos[18]:
Nossas vidas foram transformadas radicalmente: no
início dos anos 1980 não existiam nem a internet nem os telefones celulares, os
transportes aéreos eram inacessíveis para um grande número de pessoas, a
maioria das tecnologias de ponta da medicina disponíveis hoje ainda não existia
e apenas uma minoria tinha acesso ao ensino superior.
Desse ponto de vista mais
amplo, podemos concluir, com segurança, que a manutenção do nível de
desigualdade foi acompanhada da melhor do padrão de vida de todas as classes, o
que significa que a condição de classe foi revolucionada, tanto para o
centésimo e o décimo superiores como para os 40% intermediários e os 50% mais
pobres. Negá-lo é negar o significado essencial da evolução econômica observada
no período em questão.
E, se o nível de
desigualdade é importante, a condição de classe o é ainda mais,
pois fornece a melhor medida do acesso efetivo das pessoas aos bens
materiais. Como os dados apresentados por Piketty são relativos às sociedades
mais desenvolvidas do mundo (Estados Unidos e Europa Ocidental), é impossível
não concluir que, onde o capitalismo mais se desenvolveu, a melhoria da
condição das várias classes sociais foi mais acentuada.
Resta estabelecer
em que grau a melhora de vida foi determinada pelos mecanismos da produção
capitalista. Como o acesso aos bens aumentou na mesma intensidade, nos anos
situados entre 1820 e 1913, quando o nível de intervenção estatal era baixo, e
entre1913 e 2012, quando esse nível subiu aceleradamente, é possível
concluir que a causa principal da melhora da condição das classes baixas não
foi a intervenção do Estado. O fato que as estatísticas mais põem em
relevo é que quanto mais intenso o funcionamento da produção, maior tende a ser
o crescimento econômico, e quanto maior o crescimento, mais a
condição das diversas classes é melhorada.
Penso, por isso, que os
dados reunidos por Piketty não refutam, antes confirmam que a produção
capitalista induz a melhoria da condição de todas as classes econômicas, embora
contribua pouco para a redução do nível de desigualdade. Isso é verdade tanto
em sociedades em que o livre mercado foi adotado de maneira mais pura (como os
Estados Unidos) quanto em outras que desenvolveram maximamente o Estado de bem-estar
social (a exemplo da Suécia), já que as estatísticas desses países mostram
níveis de desigualdade semelhantes.
As estatísticas mais
confiáveis apresentadas por Piketty (as da França sobre o período de 1810
a 2010) mostram uma queda da participação do décimo superior na riqueza
global de 80% para 62% e do centésimo superior de 45% para 25%[19]. Portanto,
mesmo a desigualdade proporcional reduziu-se bastante, nesse período. É
importante observar que, nas duas metades dele, a intensidade do processo foi
semelhante e que, em todos os outros países pesquisados por Piketty, ocorreram reduções
análogas.
Piketty afirma que esses
dados refletem a transferência de riqueza das camadas superiores para as
intermediárias da pirâmide social. Porém, ainda assim, ela impacta a
desigualdade medida em termos proporcionais.
Temos, pois, de admitir
que, além de melhorar a condição de todas as classes sociais, ao menos no
período a que esses últimos dados se referem, o capitalismo reduziu a
desigualdade proporcional. Piketty atribui essa redução a duas causas principais:
os choques das duas Guerras Mundiais (1914 a 1945) e o aumento da tributação do
capital, nas nações desenvolvidas, de níveis próximos de zero para cerca
de 30%[20].
Porém, quando muito,
esses dados ajudam a explicar a redução da desigualdade proporcional, não a
revolução ocorrida na condição das várias classes sociais, que sequer se
concentra no período de 1914 e 1945. O benefício que o capitalismo produz para
a condição de classe tem de ser segregado conceitualmente da queda da
desigualdade na primeira metade do século XX, uma vez que eles respondem de
diferentes maneiras a causas diversas. E a conclusão que há de ser extraída da
segregação é que, se o recuo da desigualdade proporcional for atribuído aos
choques e ao aumento dos impostos, ainda assim, a revolução da condição de
classe terá de ser associada à simples continuidade da produção
capitalista.
Popper mostrou que a
ciência se constroi pela não refutação, muito mais do que pela comprovação de seus
postulados. Ao lermos o livro de Piketty, precisamos atentar não só para o que ele
comprova, para os dados que traz e as conclusões que formula, mas ainda mais
para as teses que não refuta. Dentre essas teses, a mais importante, a meu ver,
é a da tendência da produção capitalista a revolucionar a condição de todas as classes
sociais. Como eu já disse, essa é uma const-tação histórica, não uma conclusão
dependente da escolha de uma ideologia.
A revolução da condição
de classe e a redução da desigualdade proporcional são ambas tarefas que
incumbem e devem incumbir, simultaneamente, aos econômicos e ao Estado. Afirmar
que elas cabem a um de modo nenhum implica que o outro não tenha contribuição
relevante a ofertar. Por isso, a tese de que os mecanismos da produção
capitalista tendem a revolucionar a condição de classe não é suficiente para
excluir a contribuição do Estado para a consecução do mesmo fim ou
para caracterizar uma doutrina como liberal.
Em Liberdade e
direito, publicado antes de A
função social do lucro, escrevi[21]:
Se a intervenção do Estado se direcionar a objetivos
expansionistas ou se tornar totalitária [...] os resultados tenderão a ser
catastróficos. Foi o que aconteceu na Alemanha nazista, na União Soviética e em
tantos outros lugares. Porém, se a intervenção estatal tiver em vista a
regulação da economia, para impedir os abusos dos mais fortes em prejuízo dos
mais fracos, assim como o fornecimento de serviços básicos acessíveis à população
carente, então a tendência passará a ser de realização da justiça social, sem
prejuízo das liberdades.
Afirmei ainda, no mesmo
livro, que, “se as desigualdades se manifestam muito profundamente, como é o
caso em diversos países e o mundo em geral, hoje em dia, a prestação de
serviços essenciais passa a ser a missão principal a que o Estado se deve
devotar”[22].
Essa não é uma posição liberal. Só não é uma posição que suponha que, se o
mercado realiza tão bem ou melhor a revolução da condição de classe e a redução
das desigualdades, sua contribuição deva ser rejeitada para que os exaltados possam
morrer enrolados à bandeira da sua ideologia.
POR QUE A DESIGUALDADE
DIMINUIU?
Como o nome da obra já
diz, O capital no século XXI, de Thomas Piketty, é um exercício de
predição do futuro. Porém, chama atenção o fato de que seu autor formula a
antecipação, mediante um olhar para o passado.
Todos sabemos que nenhuma
previsão real do futuro é possível à razão humana. A ciência social não antecipa
acontecimentos melhor do que uma galinha voa. Piketty conhece como poucos essas
limitações. Mesmo assim, arriscou antecipar o que há de suceder nas nove
décadas restantes do século. Um exercício que tudo indica fadar-se ao fracasso.
Nada obstante, não se fala de outra coisa, nos meios especializados.
O mais importante, no
ambiente festivo, nas celebrações e críticas que o livro mereceu, é a sua real
contribuição à ciência. Quanto a isso, para mim, a exígua chance de o exercício
preditivo de Piketty vir a se confirmar não altera o fato de que o olhar para o
passado que ele nos apresenta não tem paralelo na literatura.
Nenhuma outra obra
abrange ou trata de mole tão colossal de dados sobre os últimos 200 anos da
História econômica quanto O capital no século XXI. Claro que outras
características do livro merecem ser encarecidas, depois dessa. Dentre elas,
destacaria a habilidade retórica de Piketty. No entanto, a massa de informações
sobre o período de 1810 a 2010 é, a meu ver, o que precisa ser mais cuidadosamente
assimilado no livro.
Destaco esse corte
temporal, apesar de Piketty esforçar-se para fornecer informações também sobre
os séculos que vão do ano zero a 1800. Em que pese o esforço de pesquisa
empreendido por ele e seus colaboradores sobre essa longa e obscura etapa, a
diferença de qualidade entre os dados relativos aos séculos XIX a XXI e os do
período anterior permanece gritante. Pelo que é mais prudente determo-nos na
análise dos dados dos últimos 200 anos, que elucidam o processo de proletarização
seguido da ascensão das classes baixas disparado pela Revolução Industrial.
Sobre esse ponto,
Piketty considera “ilusório pensar que existem, na estrutura de crescimento
moderno, ou nas leis da economia de mercado, forças de convergência que
conduzam naturalmente a uma redução da desigualdade da riqueza”[23]. Ele prefere
explicar a redução da desigualdade de 1914 a 1945, pelos choques econômicos das
guerras e pelo sucesso das políticas públicas que levaram ao aumento dos
impostos sobre o capital.
Esse é o ponto mais
importante de O capital no século XXI,
pois nele o autor deixa a simples apresentação de dados e passa a
inerpretá-los. Como os dados apontam a queda da desigualdade no século XX, a
interpretação desse fato, constitui o núcleo mais relevante da obra do autor
francês sobre o capital na atualidade. Por isso, dedicarei atenção especial a
ela.
O primeiro problema da
argumentação baseada no choque das guerras e no aumento da carga tributária é
que não é fácil perceber como essas duas causas se entrosam e atuam
simultaneamente. Na verdade, quando submetidas a testes rigorosos, as causas
parecem implicar uma longa série de problemas. Vejamos como isso acontece.
Nas páginas 146 e 147
de O capital, lemos[24]:
Agora que já abordamos a evolução
geral da relação capital/renda e da divisão público-privada no longo prazo, devemos
reto-mar a cronologia e, principalmente, entender as razões para a queda brusca
– seguida da extraordinária recuperação – da relação capital/renda ao longo do
século XX.
[...] Além da destruição física, os
principais fatores que explicam a queda vertiginosa da relação capital/renda
entre 1913 e 1950são, de um lado, o colapso das carteiras de ativos externos e
a baixa poupança que caracterizava o período (somados às destruições, esses
dois fatores acumulados explicam entre dois terços e três quartos da queda) e,
de outro, os baixos níveis de preços dos ativos em vigor no novo contexto
político de propriedade mista e regulada do pós-guerra (entre um quarto e um
terço da queda).
Nesse
passo, Piketty apresenta o que doravante denominarei a sua explicação nº 1 da
redução da desigualdade. Na estrutura dessa explicação, ele trabalha com quatro
causas da redução e chega a determinar o peso de cada uma delas na
reversão da desigualdade. Afirma, por exemplo, que a destruição física de capital,
a queda dos ativos externos e a da poupança, somados, respondem por dois terços
a três quartos da redução da desigualdade observada. Resta a outra terça ou
quarta parte, que ele atribui, vagamente, ao baixo preço de ativos.
A falta de clareza dificulta
a compreensão do peso dessa última causa. Porém, em outra passagem, Piketty descreve
melhor o que entende como queda de valor dos ativos imobiliários e corporativos
(capital das empresas). Nas suas palavras[25],
os
baixos níveis dos preços imobiliários e corporativos do pós-guerra explicam uma
parte nada insignificante – ainda que minoritária– da queda da relação
capital-renda nacional entre 1913 e 1950: entre um quarto e um terço da baixa.
Tanta precisão infunde
respeito, ainda mais se quem a transmite é o principal responsável pelo
levantamento mais expressivo de dados sobre desigualdade até hoje estudados.
Porém, quando examinamos mais atentamente as informações, percebemos que as
conclusões de Piektty não se ajustam aos dados com a precisão que as suas
palavras sugerem. Isso é particularmente verdadeiro em relação à década de 1910
a 1920. Outro problema é que a explicação resumida acima é inconciliável com
outra, que o próprio Piketty fornece na página 364 do seu livro[26]:
A tributação do rendimento do
capital era muito próxima de 0% até 1900-1910 (e, em todo caso, inferior a 5%)
e se estabilizou nos países ricos em torno de 30% a partir dos anos 1950-1980
[...] É possível mostrar que uma taxa de tributação efetiva de 30% – se
aplicada a todas as formas de capital – pode ser suficiente para explicar por
si só uma grande dispersão da riqueza (da mesma ordem que a queda da parcela do
centésimo superior observada historicamente).
Essa é a explicação nº 2
da redução da desigualdade por Piketty. Também aqui, a precisão é buscada,
embora num sentido novo. Nosso autor afirma que a tributação do capital à razão
de 30% conduz a uma queda da participação do centésimo superior idêntica à
observada na História.
Não se trata de uma
sugestão casual ou despretensiosa. A intenção de afirmar que a coincidência dos
números explica a redução da desigualdade é evidente. É o que depreendemos da
afirmativa de que a tributação de 30% conduz, exatamente, à queda da
desigualdade observada no século XX.
Mas, se a explicação 2
dá conta da queda da desigualdade tão bem, para que a 1 foi mencionada antes?
Ou, se a 1 funciona em alguma medida, como a 2 pode explicar sozinha o
fenômeno? Surge daí um conflito entre as explicações que as ideias nucleares de
uma e de outra, por si sós, não implicam.
Admitamos, porém, que
não haja contradição entre as explicações, do modo como Piketty as utiliza.
Suponhamos que ele não esteja a sugerir que a explicação 1 seja incompatível
com a 2. Embora Piketty não concilie claramente as explicações em momento algum
de sua obra, admitamos que tenha sido a sua intenção combiná-las, a fim de
entendermos que implicações isso traz.
Em um ou outro trecho do
livro, sinais obscuros são dados da direção em que a tentativa de conciliação
em análise pode ser empreendida. Por exemplo, no início do parágrafo em que
apresenta a explicação 1, lemos que, “na verdade, os choques orçamentários e políticos
das guerras tiveram um papel ainda mais destrutivo para o capital do que os próprios
combates”[27].
E continua: “Além da destruição física, os principais fatores são, de um lado,
o colapso das carteiras de ativos externos e a baixa poupança [...] e, de
outro, os baixos níveis de preços dos ativos”.
Do modo como encravado
no livro, esse trecho sugere o propósito do seu autor de associar e justapor os
choques das Guerras Mundiais (explicação 1) à atuação estatal formulada na
explicação 2. É o que os adjetivos orçamentários e políticos inseridos na
citação indicam, uma vez que o Estado é quem elabora orçamentos e comanda a
ação política.
Concedamos que, nessas poucas
linhas, Piketty tenha aproximado a explicação das páginas 146-147 da que encontramos
na página 364 da sua obra, associando as quatro causas da redução da
desigualdade à intervenção estatal mediante os “choques orçamentários e
políticos das guerras”. A associação soldaria, assim, as partes da explicação
na mente de Piketty, embora, como já observe, ela não seja analiticamente
formulada no livro.
O problema é que a
diminuição do valor dos ativos externos não guarda relação com qualquer
alteração abrupta do orçamento. As guerras, de fato, introduziram choques
orçamentários que se traduziram no aumento da tributação para fazer frente ao
esforço bélico. Porém, esses choques não estão claramente relacionados à queda
dos ativos externos das potências capitalistas. Não há entre essas causas uma
relação orgânica evidente.
O que levou realmente à
queda do valor dos ativos externos, nas palavras do próprio Piketty, foram “as
expropriações causadas por revoluções e processos de descolonização”[28], que
não têm relação com os orçamentos, nem com as guerras que eles financiaram. Os
ativos externos desapareceram da contabilidade das grandes nações, porque foram
arrebatados pelo rolo compressor da descolonização, não porque as nações
alteraram os seus orçamentos. Assim, a falha na conexão lógica da explicação 1
com a 2 torna-se manifesta.
Digamos, porém, que essa
seja uma impropriedade isolada, um deslize que não compromete a segurança da
interpretação de Piketty. Passemos ao exame de outra das quatro causas da
explicação 1(queda da poupança). Piketty considera que as mudanças estruturais
do orçamento público introduzidas, no período das guerras, está associada à
queda da poupança.
Vejamos o que isso
implica. Na página 174, encontramos[29]: “A
poupança privada compreende dois componentes: a poupança direta dos indivíduos
(a parte da renda disponível das famílias que não é consumida de imediato); e a
poupança das empresas”.
Na página 172, a taxa de
poupança é, de novo, conceituada como a participação da poupança privada na
renda nacional descontada a depreciação dos ativos. Isso sugere que a poupança
a que Piketty se refere é privada, embora seja conceitualmente admissível falar
também de poupança pública.
O problema é que somos
abandonados, de novo, a uma sugestão. Parece que a poupança a que Piketty
se refere é a privada, sem que isso seja claramente afirmado ou posto a salvo
de dúvidas. Temos de nos esforçar para suprir a falta de esclarecimento.
Felizmente, podemos fazê-lo, considerando que a poupança pública foi próxima de
zero, no período de 1914 a 1945, devido à enorme necessidade de dispêndios produzida
pelo esforço de guerra e pela Grande Depressão. Com esse esclarecimento,
podemos confirmar, por exclusão que a taxa de poupança que Piketty afirma ter
decaído é a privada.
Nosso autor está a
afirmar que as economias das famílias e das empresas diminuíram, devido ao
aumento do orçamento público e outras decisões de guerra, e que isso contribuiu
para a redução da desigualdade. Podemos conceder que essas conclusões são
verdadeiras? A primeira sim. Com as guerras, os Estados europeus, de fato,
retiraram das famílias e das empresas os recursos que acrescentaram às rubricas
de gastos militares dos seus orçamentos.
Porém, a sangria da
poupança privada não conduziu à diminuição da desigualdade. Para que isso
tivesse ocorrido, teria sido preciso que a participação das famílias na
poupança houvesse aumentado, o que Piketty não demonstrou ter sucedido.
Pior ainda, por uma
amostra de oito países europeus, Piketty provou que a poupança das famílias foi
superior à das empresas em seis casos, entre 1970 e 2010. Por exemplo, na
França, as famílias pouparam 9% e as empresas, 2,1%da renda nacional, naquele
período; na Alemanha, 9,4% e 2,8%; na Itália, 14,6% e 0,4%[30]. Piketty
não prova que a participação das empresas foi superior à das famílias de 1914 a
1945, o que teria sido necessário para que a queda geral da poupança privada
reduzisse a desproporção entre a renda das empresas e a das famílias em favor
das últimas. A conclusão, simplesmente, não se extrai das premissas postas por
Piketty.
Reiteramos que os percentuais
acima não são do período entreguerras, no qual quase toda a redução da
desigualdade se deu. Porém, Piketty não fornece os dados de poupança relativos
ao próprio período das guerras, o que não nos permite chancelar a conclusão a
que ele chega.
O ônus da prova é dele,
como autor das explicações 1 e 2. Se afirmou que a queda da taxa de poupança
reduziu a desigualdade, cabe-lhe, é claro, fornecer os dados certos para
comprová-lo. Infelizmente, ele não o faz. Pior do que isso: os dados que mais
se ajustam a esse propósito, no livro, levam a conclusão contrária à de
Piketty.
A única possibilidade
restante para a explicação 1 se suster é as outras duas causas em que ela se
divide salvarem-na. Porém, não é o que acontece. Vejamos por quê.
As causas restantes são
a queda dos preços dos imóveis e a destruição do capital durante as guerras.
Pelos gráficos das páginas 118 e 119, no Reino Unido, a redução do valor
dos imóveis, entre 1910 e 1920, correspondeu a cerca de 20% da queda do
capital. Essa média inscreve-se, perfeitamente, na estimativa já mencionada de
que elas responderiam por um quarto a um terço da redução da desigualdade.
Portanto, mesmo que consideremos que nenhum percentual desses imóveis pertencia
à classe média ou aos mais pobres, um quarto ou um terço podem, no máximo,
explicar parte menor do processo de redução da desigualdade.
A avaliação dessa causa é
complicada pela associação da desvalorização dos ativos das empresas à dos
imóveis. Porém, não são fornecidos números sobre esses fatos, o que dificulta a
análise, embora não a impeça, pois o peso total (entre um quarto e um terço)
das desvalorizações dos imóveis e dos ativos das empresas é fornecido. A quantificação
das quedas somadas permite entender que elas respondem por parte menor da
redução do capital entre 1910 e 1920, o que equivale a afirmar que não a
explicam suficientemente.
A última causa da
explicação 1 (a destruição do capital) é a mais eficiente. Podemos admiti-la
como fato, uma vez que a guerra realmente eliminou capitais. Porém, ela não se combina
de modo claro com a redução dos preços dos imóveis, pois, muitas vezes, onde a
desvalorização imobiliária foi mais acentuada, a destruição foi quase nula e
vice-versa. De modo que as duas causas não podem ser facilmente somadas, como Piketty
sugere.
O curioso é que, novamente,
o acesso a essa conclusão é facultado por fatos citados em O capital no século XXI. Por exemplo: “no Reino Unido, a destruição
física foi mais limitada – nula durante a Primeira Guerra Mundial”[31]. No
entanto, o gráfico da página 118 do livro aponta uma queda de 55% no capital
interno do Reino Unido, entre 1910 e 1920. Como é possível quantificar entre
25% e 33,3% a queda somada dos ativos das empresa se dos imóveis, se a destruição
pela guerra foi nula, e o capital interno despencou 55%? O divórcio entre a não
destruição de capital e o mergulho de 55% no valor deste simplesmente não
combina com a imputação do peso de um quarto a um terço às quedas somadas dos
ativos das empresas e dos imóveis.
Em outro trecho de
significado obscuro, lemos que[32]
a
destruição física do capital foi, por certo, substancial, sobretudo na França
durante a Primeira Guerra Mundial (as zonas do front no nordeste do país foram
duramente afetadas) na França e na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial,
com os bombardeios devastadores de 1944-1945 (os combates foram mais curtos que
os de 1914-1918; contudo, a tecnologia era bem mais destrutiva). No total,
essas destruições acumuladas equivaleram a cerca de um ano da renda nacional na
França (entre um quinto e um quarto da redução total da relação capital/renda)
e 1,5 ano na Alemanha (ou um terço da redução total da relação capital/renda).
O início do trecho
transcrito alude à 1ª Guerra, depois à 2ª. Conclui que a destruição total foi
responsável por tal parcela da queda da desigualdade observada, na França, e
por outra parcela, na Alemanha. Perguntamos: para os dois períodos somados ou
apenas para o período mencionado por último (o da 2ª Guerra)? Inclinamo-nos
para a primeira explicação, mas, de novo, falta clareza ao texto em momento
decisivo.
Vemos que as explicações
1 e 2 não podem ser fundidas, pois seus termos não combinam ou faltam elementos
essenciais que permitam combiná-los. Demos, pois, a volta e consideremos se, em
vez de se fundirem, as explicações não se aplicam sucessivamente. Se isso
ocorrer, a explicação 1 mostrará como a redução da desigualdade se deu, entre
1914 e 1945, e a explicação 2 indicará como, num segundo momento, a queda em
razão dos fatores da explicação 1 não foi revertida. Não podemos inverter esses
papeis, antepondo a explicação 2 à 1, pois, em 1914-1945, a intervenção estatal
não tinha a escala, nem as características necessárias para diminuir a
desigualdade. De sorte que a explicação 1 tem de vir antes da 2, se quisermos
usá-las sucessivamente e não ao mesmo tempo.
Infelizmente, ao fazermos
a explicação 1 reduzir a desigualdade e a 2 conservar essa conquista, a explicação
pelo aumento dos tributos passa a depender da outra. Sem a explicação 1, a explicação
2não é capaz de atuar, de sorte que o inteiro arranjo argumentativo passa a
depender da explicação 1. Como vimos que esta não demonstra a queda da
desigualdade, a utilização sucessiva das explicações tampouco dá conta dos
fatos.
Essas razões me constrangem
a retornar à conclusão de que a explicação 1 e a explicação 2da redução das
desigualdades que Piketty fornece não são conciliáveis, entre si ou com os
fatos que ele menciona em seu livro. A explicação pelos choques contradiz a
baseada na intervenção estatal, apesar de o nosso autor às vezes tentar
uni-las.
Somos, por isso,
forçados a retornar à explicação esboçada nos textos anteriores e que será
melhor explicada nos próximos. Claro que os choques das guerras e da Grande
Depressão contribuíram para a redução das desigualdades. Porém, eles não a
fundamentam suficientemente. Explicação pouco melhor do surpreendente fato só
pode ser alcançada, mediante a consideração das contribuições internas da
produção capitalista para o fenômeno. A revolução fordista não é exemplo pouco
conspícuo de tais contribuições.
IGUALDADE INDUZIDA PELA
PRODUÇÃO
Questionaram-me certa vez
por que não fundamentei a tese de A função social do lucro em
dados históricos que comprovassem a ascensão econômica do proletariado. A
verdade simples é que, quando o livro foi escrito, esses dados não existiam. O
desafio posto aos estudiosos da desigualdade era suprir a falta deles, isto é,
comprovar por outros meios se a condição do proletariado melhorara ou não.
Em O capital no
século XXI, Thomas Piketty confirmou que “nenhum trabalho empírico de peso
sobre a dinâmica da desigualdade foi realizado desde a época de Kuznets[33], que
“constatou que uma forte redução da desigualdade de renda havia ocorrido nos
Estados Unidos entre 1913 e 1948”[34]. Portanto,
o trabalho de Kuznets sobre os Estados Unidos permaneceu a única fonte de
informações detalhadas sobre a desigualdade. Não há dúvida de que as conclusões
apresentadas nele favoreceram a formação da consciência hoje relativamente
disseminada entre os economistas de que o desenvolvimento do capitalismo
favorece ou, ao menos, pode favorecer a redução da desigualdade
econômica.
Piketty esclarece que essa
lacuna existente desde a fundação da ciência econômica foi suprida, por ele e
seus colaboradores, que apresentaram a primeira compilação vasta de dados
confiáveis sobre a desigualdade em diversos países[35]:
Comecei meu estudo da questão pela aplicação dos
métodos de Kuznets ao caso da França, o que originou a publicação de uma
primeira obra em 2001. Depois, obtive o apoio de vários colegas – sobretudo de Anthony
Atkinson e Emmanuel Saez – que me permitiram ampliar o projeto e alcançar uma
escala internacional bastante vasta. Anthony Atkinson tratou do caso do Reino
Unido e de muitos outros países, e organizamos juntos dois volumes publicados
em 2007 e 2010 reunindo estudos semelhantes para mais de vinte países de todos
os continentes. Com Emmanuel Saez, alongamos em meio século as séries de
Kuznets para os Estados Unidos. Saez usou o método para estudar diversos países
fundamentais, como o Canadá e o Japão. Vários pesquisadores contribuíram para a
realização desse projeto coletivo: Facundo Alvaredo, em especial, analisou os
casos da Argentina, da Espanha e de Portugal; Fabien Dell, os da Alemanha e da
Suíça; com Abhijit Banerjee, estudei o caso da Índia; graças a Nancy Qian, pude
tratar da China e assim por diante.
Contudo, embora dados
abrangentes não tivessem sido publicados até por volta de 2007, as condições gerais
do capitalismo tinham sido descritas muito antes, numa literatura extremamente
ampla e sofisticada, o que resultou numa situação ambígua: por um lado,
dispúnhamos da literatura sobre a evolução das classes, no interior do
capitalismo; por outro lado, não possuíamos dados que nos permitissem avaliar,
de modo preciso, em que escala as conclusões daquela literatura eram verdadeiras.
Piketty supriu a lacuna
com a publicação dos resultados das pesquisas conduzidas por ele e outros
pesquisadores, os quais foram apresentados e interpretados em O capital
no século XXI. Porém, ao fazê-lo, a interpretação dos dados apresentada nem
sempre parece muito convincente. A interpretação básica da queda geral da
desigualdade, entre 1810 e 2010, sustentada por Piketty, consiste em atribuí-la
aos choques das Guerras Mundiais e às políticas públicas que se seguiram. Um
dos problemas dessa interpretação consiste em não especificar os mecanismos
pelos quais esses fatos (os choques e as políticas públicas) repercutiram na
seara econômica. Raras vezes, Piketty menciona esses mecanismos, de maneira que
a sua interpretação resulta genérica e, por isso, menos convincente do que
seria se os mecanismos fossem especificados.
Ao escrever A
função social do lucro, não dispunha dos dados coligidos por Piketty e seus
colaboradores, pois eles não haviam sido publicados. Por isso, procurei suprir
a lacuna deles por um método que facultasse avaliar se e em que grau a classe
trabalhadora tinha sido beneficiada pelo desenvolvimento do capitalismo
industrial.
Demonstrei que, dadas
três condições (aumento da composição orgânica do capital, descolamento dos salários
em relação ao mínimo necessário à sobrevivência e fim do neocolonialismo), a
situação da classe trabalhadora tendia a melhorar, e a desigualdade, a
decrescer. Todas as três condições ocorreram, entre 1870 e 1950. Resta
demonstrar como elas podem ser reunidas numa estrutura lógica, de modo a
fornecer um mecanismo econômico claro capaz de explicar a ascensão econômica do
proletariado.
Para isso, é fundamental
partir da premissa de que a produção capitalista só se desenvolve se for capaz
de manter-se em equilíbrio com o consumo. Em A função social, expliquei que “três são as causas fundamentais dos
desequilíbrios entre a produção e o consumo no modo de produção capitalista: o
desvio da composição orgânica do capital, [a quantidade relativa de meios de
produção e bens de consumo] e o lucro”[36]. Outras
causas existem, mas não operam num nível tão básico quanto estas.
Por meios de produção
entendemos todos os bens utilizados para produzir, assim como matéria-prima,
energia, equipamentos e os imóveis em que as empresas estão instaladas. Os
gastos com meios de produção compõem o capital constante. Os gastos com
salários chamam-se capital variável. Composição orgânica é a razão entre o
capital cons-tante e o variável.
Em O capital,
Marx representou a produção de um país dividida num setor de meios de produção,
que denominou Departamento I, e outro de bens de consumo (Departamento II).
Para entendermos como as três causas de desequilíbrio atuam, a melhor maneira é
representar cada uma isoladamente num diagrama que inclua a produção dos dois
setores. Se os departamentos usarem as mesmas quantidades de capital constante
e variável, alcançarem o mesmo faturamento e não gerarem mais-valia, a economia
será mantida em equilíbrio, mas não crescerá, como os diagramas a seguir
demonstram.
D1: Composição
orgânica = 1, Produção de meios de produção = Produção de bens de
consumo, Lucro = 0 (Primeiro Período)
|
|||
Capital constante
|
Capital variável
|
Total
|
|
Departamento I
|
1
|
1
|
2
|
Departamento II
|
1
|
1
|
2
|
Total
|
2
|
2
|
4
|
D2: Composição
orgânica = 1, Produção de meios de produção = Produção de bens de
consumo, Lucro = 0 (Segundo Período)
|
|||
Capital constante
|
Capital variável
|
Total
|
|
Departamento I
|
1
|
1
|
2
|
Departamento II
|
1
|
1
|
2
|
Total
|
2
|
2
|
4
|
Nos diagramas, a
produção do Departamento I é inteiramente absorvida pela demanda de capital
constante, e a do Departamento II, pela demanda de capital variável. A
igualdade dos capitais constante e variável, da produção dos dois departamentos
e a inexistência de lucro completam as condições para que a economia permaneça
em perfeito equilíbrio.
Tudo isso indica que,
para um desequilíbrio introduzir-se, é necessário que ocorra a alteração do
valor de uma dessas variáveis: seja da composição orgânica, seja da relação
entre os meios de produção e os bens de consumo, seja do lucro. Vejamos o que
sucede quando cada uma das variáveis escapa da situação de equilíbrio.
D3: Composição
orgânica maior que 1 (Primeiro Período)
|
||||
Capital constante
|
Capital variável
|
Total
|
||
Departamento I
|
2
|
1
|
3
|
|
Departamento II
|
2
|
1
|
3
|
|
Total
|
4
|
2
|
6
|
|
D4: Composição
orgânica maior que 1 (Segundo Período)
|
|||
Capital constante
|
Capital variável
|
Total
|
|
Departamento I
|
3
|
1,5
|
4,5
|
Departamento II
|
1
|
0,5
|
1,5
|
Total
|
4
|
2
|
6
|
Os diagramas acima mostram
que, se a composição orgânica se torna maior do que 1, é gerado um
desequilíbrio entre a produção e o consumo. No Diagrama D3, as 3 unidades de
meios de produção do Departamento I não são suficientes para atender a demanda
de 4 unidades de capital constante. Por outro lado, as 3 unidades de bens de
consumo produzidas pelo Departamento II são mais que suficientes para
fornecer as 2 unidades consumidas com o capital variável. Claro que, se o desequilíbrio
se repetir indefinidamente, o sistema não terá condições de se reproduzir.
Para corrigir esse grave
desequilíbrio, dois tipos de medidas são possíveis. O primeiro, bastante óbvio,
é a intervenção na própria causa de desequilíbrio. Se o que fez a produção
divergir do consumo foi o aumento da composição orgânica, basta diminuí-la para
o equilíbrio ser restaurado. Porém, na prática, se o aumento da composição
orgânica for estrutural, como durante a Revolução Industrial, essa primeira
solução não estará disponível.
Uma solução alternativa
é aumentar a quantidade de meios de produção gerados pelo Departamento I.
Embora esse aumento seja, ele próprio, uma causa de desequilíbrio, as tabelas
mostram que as causas de desequilíbrio, em vez de se somarem, se anulam. Por
isso, no Diagrama 4, as 4,5 unidades do Departamento I são consumidas pelo
capital constante e repõem em parte a falta de 1 unidade do período anterior.
Por sua vez, a unidade e meia do Departamento II e a unidade que sobrara no
período anterior são absorvidas com o capital variável. Assim, o desequilíbrio do
sistema é consideravelmente reduzido.
A ideia de que cada
causa é isoladamente nociva, mas pode ser anulada por outro fator de
desequilíbrio é confirmada pela introdução do lucro nos diagramas. A exemplo da
composição orgânica e das quantidades relativas de meios de produção e bens de
consumo, o lucro é, em si, uma causa de desequilíbrio, porém os desarranjos da
composição orgânica podem ser anulados por ele, e os do lucro, pela composição
orgânica. É o que vemos nos diagramas seguintes.
D5: Composição orgânica maior que 1
(Primeiro Período)
|
||||
Capital constante
|
Capital variável
|
Lucro
|
Produção
|
|
Departamento I
|
2
|
1
|
0
|
3
|
Departamento II
|
2
|
1
|
0
|
3
|
Total
|
4
|
2
|
0
|
6
|
D6(1): Composição orgânica maior que 1
(Segundo Período)
|
||||
Capital constante
|
Capital variável
|
Lucro
|
Produção
|
|
Departamento I
|
2
|
1
|
1
|
4
|
Departamento II
|
1,5
|
1,5
|
1
|
4
|
Total
|
3,5
|
3,5
|
2
|
8
|
D6(2): Composição orgânica maior que 1
(Segundo Período)
|
||||
Capital constante
|
Capital variável
|
Lucro
|
Produção
|
|
Departamento I
|
2
|
1
|
1
|
4
|
Departamento II
|
1
|
1
|
2
|
4
|
Total
|
3
|
2
|
3
|
8
|
Por amor à brevidade,
deixarei de mostrar que a mesma espécie de evolução ocorre quando as outras
causas alteram o equilíbrio entre a produção e o consumo. Como acontece no caso
dos diagramas D5 e D6(2), quando o desequilíbrio é induzido pela quantidade
relativa de meios de produção e bens de consumo ou pelo aumento do lucro, o
sistema pode ser preservado pelo cancelamento recíproco das causas de
desequilíbrio. Assim, não importa que causa se manifeste: todas podem ser
controladas pela alteração moderada das outras causas, de modo a restaurar o
equilíbrio geral do sistema.
A peculiaridade do
desequilíbrio decorrente do incremento da composição orgânica consiste no fato
de que ela representa bastante bem a situação da economia durante a Revolução
Industrial. Marx e outros economistas mostraram que a utilização crescente de
máquinas e equipamentos, a partir daquela revolução, conduziu ao aumento da
composição orgânica. Esse é, portanto, o desequilíbrio específico a ser
estudado para entendermos aonde a Revolução Industrial conduz as sociedades,
pela interação com as outras variáveis fundamentais.
Sob o ângulo das três
variáveis, se o aumento da composição do capital não pode ser sanado
permanentemente pelo lucro, a única alternativa possível é incrementar os
investimentos em capital variável, já que, no nível fundamental da produção
capitalista, não há uma quarta causa que possa ser invocada para resolver o
problema do desequilíbrio.
Por esse método, é
possível medir a escala em que o aumento dos salários opera. Se as outras
variáveis permanecerem constantes, o aumento da composição orgânica produz
desequilíbrios crescentes entre a produção e o consumo que só podem ser
freados, no longo prazo, por um forte aumento proporcional do capital variável.
Nunca afirmei que
esse efeito não possa deixar de ocorrer, mas que as condições que o induzem são
excessivamente fundamentais para serem retiradas. Consistem no aumento da
composição orgânica por um tempo considerável e na manutenção do lucro no nível
mais alto possível sem prejudicar o funcionamento do sistema. Como essas
condições estiveram presentes na primeira metade do século XX, não há por que
não explicar a produção da época por meio deles e concluir que ela forçou o
aumento da participação dos salários na produção e na renda.
Claro que outras
variáveis alteraram o desempenho da economia, além das
três mencionadas. Porém, o fato de elas operarem em níveis menos
fundamentais implica que coexistiram com as alterações retratadas nos diagramas
e não as revertem. Assim, é razoável concluir que a pressão para o aumento dos
salários continuou a exercer-se, em maior ou menor medida, apesar de todas as
oscilações ocorridas, nas décadas iniciais da Revolução Industrial.
Dentre as três variáveis
fundamentais, o aumento da composição orgânica foi a que forçou o crescimento
relativo do capital variável, no século XX. Por isso, para que esse crescimento
fosse significativo, foi preciso que a composição orgânica se mantivesse elevada
por longo tempo, o que as condições da Revolução Industrial garantiram.
Porém, uma vez revertida
a situação e eliminado o excesso de capital constante, os salários se
tornaram mais estáveis, e o rendimento do capital voltou a crescer em termos reais.
Essa parece ser a situação aproximada em que nos encontramos hoje, com exceção
dos salários do centésimo superior da classe trabalhadora, que subiram de modo
exorbitante.
A principal realização
dos diagramas é reduzir o sistema capitalista à operação de suas três variáveis
fundamentais. Essa operação foi representada pelos números mais baixos
possíveis (0,1,2 etc.), a fim de simplificar ainda mais a representação
resultante. Esse caráter fundamental da descrição do sistema com base nas suas
três variáveis fundamentais é exatamente o que confere força explicativa
aos diagramas, que nos falam do que o sistema capitalista realiza, sob pena de
deixar de ser.
É, no mínimo, curioso
que as informações do livro de Piketty sejam, em grande escala, compatíveis com
a representação da economia capitalista com base nas suas três variáveis
fundamentais. Os números apresentados por Piketty são compatíveis com as
tendências representadas nos diagramas que representam as três variáveis.
A DESPROLETARIZAÇÃO
Adam Smith considerava
que o desenvolvimento comercial dos séculos XVI e XVII beneficiara a sociedade
europeia como um todo e não só as classes superiores. De acordo com ele, o
trabalhador jornaleiro da Grã Bretanha ou da Holanda “suporta em seus ombros
todo o edifício da sociedade humana”. Nada parece pior que a sua situação.
Porém, “esse humílimo e desprezadíssimo membro da sociedade evoluída” é mais
rico que um príncipe pele-vermelha, o qual é “o dono absoluto da vida e da
liberdade de um milhar de selvagens nus”[37].
Em O capital no
século XXI, Thomas Piketty mostrou que não dispomos de dados que nos
permitam julgar se essa avaliação do capitalismo dos séculos XVI e XVII é
correta ou não. Só a partir do final do século XVIII, informações
confiáveis sobre as sociedades europeias começaram a ser reunidas. Piketty
utiliza esses dados para mostrar que a participação tanto do décimo como do
centésimo superiores na riqueza do Reino Unido e da França, aumentou de modo
sustentado, durante todo o século XIX[38]. No
Reino Unido, o centésimo mais rico passou de 55% a 70%, e o décimo superior, de
82% a 92% da riqueza total, de 1810 a 1910. Na França, as variações foram de
45% a 60% e de 80% a 89%.
Esses dados comprovam o
que a literatura sempre nos informou, a saber: que a Revolução Industrial do
século XIX, de certo modo, empobreceu a população urbana da Europa. Marx, por
exemplo, escreveu que, “como resultado do movimento industrial [...] já não são
os pobres surgidos naturalmente e oprimidos pela sociedade, mas as camadas
artificialmente empobrecidas pela dissolução drástica da sociedade, sobretudo a
classe média, que vem a formar o proletariado atual”[39].
Esses fatos foram
razoavelmente comprovados. Porém, devemo-nos precaver contra a manipulação
imprecisa deles. O filósofo Olavo de Carvalho preveniu-nos contra esse perigo,
antes mesmo de Piketty ter publicado suas estatísticas[40]:
Saí do Partido [Comunista] [...] e durante 25 anos não
dei palpite em nenhum assunto político, fiquei quietinho no meu canto,
estudando e tentando chegar a conclusões. O material que eu tenho sobre isso é
imenso, e me leva a poder dizer: Marx era um charlatão, Marx era um vigarista.
Por exemplo, para provar que a evolução do mercado tornaria os ricos mais ricos
e os pobres mais pobres, ele se socorreu do quê? Do exemplo que ele tinha à
mão, a Inglaterra, que era o único país da Europa com boas estatísticas na
época, e o melhor material eram os Blue Books, relatórios anuais do Parlamento.
Quando Marx foi ver os relatórios, descobriu que, ao contrário do que ele estava
dizendo, a condição da classe operária tinha melhorado. O que é que ele fez?
Ele tinha todos os relatórios e consultou um por um. Os registros estão na
biblioteca do Museu Britânico até hoje. Ele conhecia todos os registros, mas
como os registros não comprovavam o que ele queria, ele preferiu usar os
registros de trinta anos antes. Se isso não é vigarice, eu não sei o que seja.
Se deixarmos de lado o tom polêmico de Carvalho,
sua afirmativa de que os dados sobre desigualdade disponíveis, na
maior parte das nações, no século XIX, não eram confiáveis coincide,
aproximadamente, com a avaliação de Piketty. E o mais curioso é que eles convergem
até onde parecem divergir, vale dizer, no ponto relativo à condição da classe
trabalhadora. Carvalho afirma que os dados a que Marx teve acesso mostravam que
essa condição melhorara. As informações de Piketty mostram o aumento da
desigualdade a partir de 1810. Porém, já vimos que esse aumento não se confunde
com a piora da condição de classe. Assim, se pudermos juntar os dados de meados
do século XIX (que Carvalho afirma terem sido lidos e omitidos por Marx) com os
de Piketty sobre o período de 1810 a 1910, concluiremos que a condição da
classe trabalhadora melhorou até mesmo na parte do século XIX em que a
desigualdade aumentou.
Porém, no início da
Revolução Industrial, a produção da pobreza, de fato, deixou de ocorrer pelos
antigos métodos de opressão, que foram substituídos pela dissolução de camadas
sociais inteiras, “sobretudo a classe média”. Marx presenciou esse processo e o
registrou, como Smith registrara o anterior. A diferença é que a ciência social
pôde resgatar dados confiáveis do século XIX, que comprovaram o processo
descrito por Marx, porém não dados capazes de atestar o processo a que Smith
aludiu e que teria tornado o menor, “humílimo e desprezadíssimo membro da
sociedade evoluída mais rico que um príncipe pele-vermelha”.
Chamemos proletarização
o processo de pauperização da classe média ocorrido, em certos países da
Europa, entre o fim do século XVIII e o fim do XIX. Sabemos que ele se deveu,
acima de tudo, à substituição da força de trabalho humana por máquinas. Digno
de destaque é que as estatísticas publicadas por Piketty confirmam, com
precisão, esse processo.
É importante observar
que a proletarização não foi revertida pelas altas taxas de crescimento
verificadas durante a Revolução Industrial, que teriam sido suficientes para
melhorar de modo substancial a condição do proletariado, se a substituição
maciça de força de trabalho por máquinas não tivesse ocorrido. Como o
crescimento acima de certo limiar é o fator principal de melhora da condição
das classes sociais, é espantoso que taxas tão elevadas quanto as do século XIX
não tenham sido suficientes para elevar a condição do proletariado. E que os
acontecimentos tenham mostrado que, ainda assim, a proletarização se reverteu,
entre o fim do século XIX e a primeira metade do século XX.
Vale a pena comparar
essas considerações com o que Peter Drucker escreveu no fim do século passado[41]:
Até a Primeira Guerra Mundial, nenhum governo na
história havia conseguido – mesmo em tempo de guerra – obter do seu povo mais
que uma pequena fração da renda nacional do país, talvez 5 ou 6 por cento. Mas
na Primeira Guerra Mundial todos os beligerantes, até mesmo os mais pobres,
descobriram que praticamente não havia limites para aquilo que o governo pode
extrair da população. Quando começou a guerra as economias de todas as nações
beligerantes estavam plenamente monetizadas. Como resultado os dois mais
pobres, a Áustria-Hungria e a Rússia, conseguiram, em vários anos da guerra,
taxar e tomar emprestado mais que a renda total anual das suas respectivas
populações. Elas conseguiram liquidar o capital acumulado ao longo de muitas
décadas e transformá-lo em material bélico. Joseph Schumpeter, que então ainda
vivia na Áustria, entendeu imediatamente o que havia acontecido. Mas os
outros economistas e a maior parte dos governos precisaram de mais uma lição: a
Segunda Guerra Mundial.
Drucker sugere que as
Guerras Mundiais levaram à descoberta dos meios pelos quais o limite de 5 ou 6%
do PIB, ao qual a tributação sempre estivera sujeita, podia ser excedido. A
descoberta teve alcance comparável à invenção do computador, pois nunca mais a
carga tributária foi a mesma. E é indispensável observar que o aumento dela não
se deveu a necessidades incontornáveis, mas à expansão pura e simples da
capacidade arrecadatória dos Estados pela monetização econômica.
Drucker prossegue na sua
análise do fenômeno do Estado fiscal[42]:
A União Soviética, oficialmente dedicada à igualdade,
criou uma grande nomenklatura de funcionários privilegiados, com níveis
de renda muito superiores àqueles dos ricos no tempo dos czares. Quanto mais
estagnava a produtividade soviética, maior se tornava a desigualdade de
renda.
Contudo, os soviéticos
não detinham o monopólio da concentração de riqueza e da desigualdade de renda.
Nos Estados Unidos[43],
a
partir da Guerra do Vietnã, a desigualdade de renda começou a crescer
firmemente, a despeito da taxação. Fez pouca diferença os ricos serem
pesadamente taxados nos governos Nixon e Carter e muito menos taxados no
governo Reagan. Da mesma forma, no Reino Unido, a despeito de um compromisso
declarado com o igualitarismo e de um sistema fiscal concebido para minimizar a
desigualdade de renda, a distribuição de renda vem se tornando cada vez mais
desigual nos últimos trinta anos, quando a produtividade parou de crescer.
Se Drucker tem alguma
razão, o aumento de impostos não pode ser associado necessariamente à queda da
desigualdade. À maior tributação pode ou não se seguir tal queda. Portanto, se
o aumento dos impostos sobre o capital é capaz de explicar, em algum grau, a
queda da desigualdade, no século XX, como Piketty sugere e podemos aceitar, a
capacidade em questão parece específica daquela modalidade tributária. Não se estende
a outras modalidades de impostos. Muito menos à tributação em geral.
Piketty assevera que o
aumento dos impostos promove “uma grande dispersão da riqueza”[44]. Não
há, nessas palavras conclusivas, qualquer garantia de que a “grande dispersão”
equivalha a uma transferência patrimonial do décimo ou do centésimo mais rico
para as camadas pobres da população. Pelo contrário, o próprio Piketty
esclarece que a transferência efetivamente observada, no século passado, se deu
dos estratos superiores para os intermediários da pirâmide social[45].
Digamos, pois,
claramente: se desproletarização é a melhora da condição socioeconômica das
camadas mais desfavorecidas de todas, e o aumento de impostos do século XX reverteu
em favor das classes intermediárias, ele não explica, de maneira alguma, a
desproletarização. Aliás, a cronologia do aumento de impostos fornecida por
Piketty e Drucker dá conta de que a tributação só alcançou o nível atual após a
2ª Guerra, quando a desproletarização já fizera progressos consideráveis, o que
confirma que a relação de causa e efeito entre elas é bastante tênue.
Em A função
social do lucro, propus que a desproletarização foi causada pela alocação
crescente dos investimentos sob a forma de salário. Como é possível testar essa
afirmação com base nos dados fornecidos por Piketty?
No gráfico da página 341
de O capital no século XXI, nosso autor mostra que a participação
do centésimo e do décimo superiores dos Estados Unidos na riqueza total
despencou, entre 1920 e 1940. Na Europa, isso ocorreu, durante um período maior
(1910 a 1970), e foi levado mais longe, resultando em maior transferência
proporcional de riqueza.
O impressionante nesses
dados é o fato de nos revelarem que, nos dois continentes, o mesmo processo de
redução produziu o mesmo resultado básico, no entanto a Europa levou 60 anos
para alcançar esse resultado, e os Estados Unidos, apenas 20. Pensamos que a
rapidez da transformação, nos EUA, deveu-se à maior intensidade de mudanças
revolucionárias no interior do mercado (revolução fordista etc.), enquanto na
Europa ela teve relação também com a atuação estatal. E que, também desse modo,
se confirma a relação entre a redução da desigualdade e a produção capitalista.
Se, na Europa, o período
de queda da desigualdade coincide, em parte, com o aumento da intervenção
estatal, nos Estados Unidos, o aumento foi tão precoce quanto rápido. Ocorreu
entre 1920 e 1940, quando a intervenção estatal ainda era reduzida, e o imposto
sobre o capital não existia[46]. A que
podemos atribuí-lo? Piketty relaciona-o quase inteiramente aos choques
induzidos pelas Guerras Mundiais, mas isso não o dispensa de explicar os mecanismos
pelos quais os conflitos se traduziram em compressão da desigualdade. Esse é, a
meu ver, o principal problema da obra de Thomas Piketty.
Uma das raras passagens
que citam um desses mecanismos é a que se refere à Europa da Belle Époque[47]:
Podemos
calcular que 1% dos herdeiros parisienses mais ricos dispunham, na Belle
Époque, de um patrimônio que lhes permitia financiar um nível de vida da ordem
de oitenta a cem vezes mais alto do que o salário médio da época e ainda
reinvestir uma pequena parte do capital, de modo a aumentar um pouco a riqueza
que foi recebida [...] O equilíbrio se quebra, nitidamente, no entreguerras:o
0,1% dos herdeiros parisienses mais ricos continuam vivendo mais ou menos como
no passado, mas o que eles deixam permite financiar entre trinta e quarenta
vezes o salário médio da época.
Esse foi um mecanismo
específico, pelo qual os choques da 1ª Guerra traduziram-se em redução da
desigualdade. Mas, como já disse, é uma das poucas passagens de O
capital no século XXI em que a alusão genérica aos choques é traduzida
em mecanismos. Mesmo assim, os gráficos de Piketty mostram que a queda do nível
de desigualdade, a partir da 1ª Guerra, foi abrupta demais para não ter relação
com os conflitos bélicos. A relação entre ela e as Guerras foi real, mas quero
ressaltar que, ao menos no caso dos Estados Unidos, entre 1920 e 1940, não é
possível negar que mascara uma causa de todo distinta.
A ilação mais lógica que
se pode estabelecer entre as Guerras e os mecanismos econômicos de redução da
desigualdade é que a destruição contínua do capital (indústrias etc.) pelas
duas Guerras reduziu drasticamente a taxa de retorno dele. Esse deve ter sido o
mecanismo principal, pelo qual os “choques das Guerras” se traduziu em redução
da desigualdade. Porém, o mecanismo só funcionou ali onde houve destruição. Os
Estados Unidos praticamente não sofreram destruição territorial, durante as
Guerras. Pearl Harbor foi exceção e ficava no Havaí. Além disso, a queda da
desigualdade, nos Estados Unidos, no século XX, começou após a 1ª Guerra (1920)
e terminou antes de o país ingressar na 2ª (1940). Por isso, é difícil aceitar
que os “choques das Guerras” tenham sido responsáveis pela redução da
desigualdade americana, no período em questão.
Seria de espantar que
efeito tão espetacular quanto a queda da desigualdade no século XX não tivesse
concausas provindas de mais de um dos subsistemas da sociedade: no caso, do
subsistema político e também do econômico. Piketty quer confinar as causas
primárias ao subsistema político, mas os fatos parecem mostrar que elas
operaram também no outro. A revolução do fordismo é um exemplo claro de causa
econômica que contribuiu, decisivamente, para a queda da desigualdade nos
Estados Unidos, entre 1920 e 1940. E, se contribuiu decisivamente nos Estados
Unidos, deve ter feito o mesmo na Europa.
Os dados que comprovam
mais claramente a desproletarização são os da página 219 do livro de Piketty,
onde lemos que houve “queda da participação do capital observada
no longuíssimo prazo, de 35-40% nos anos 1800-1810 para 25-30% nos anos
2000-2010, e a alta correspondente da participação do trabalho, de 60-65% para
70-75%”[48]. Esses
números constituem prova inequívoca da desproletarização.
É importante frisar que o
aumento da participação do trabalho na renda não espelha só transferências
em prol da classe média, mas da classe trabalhadora em geral: exatamente o
que A função social do lucro postula ter ocorrido no século
XX. Do início da Revolução Industrial à atualidade, a participação dos salários
na renda aumentou quase 20%. O período é longo demais e o processo por demais
sustentado para o considerarmos mero acidente histórico. Trata-se de dados que
comprovam diretamente a desproletarização.
Juntemos, pois, as
conclusões e ajustemo-las: o Estado tem de suportar gastos substanciais
com o funcionalismo, inclusive para fornecer serviços sociais; por isso, o
aumento da arrecadação de impostos, ocorrido em meados do século XX, reverteu
substancialmente para a classe média, o que o livro de Piketty comprova. Não
nego que o aumento tenha contribuído para a redução da desigualdade, mas que
ele tenha redundado em benefício das camadas mais desfavorecidas da população.
Só a redução a favor dessas camadas produz a desproletarização. E os fatos
parecem indicar que ela pode estar mais associada ao desenvolvimento do
capitalismo do que à intervenção estatal.
O ESTADO DE BEM-ESTAR
Enquanto a lei natural
atua, incessantemente, ao longo de milhões de anos, porque as condições que
permitem o seu funcionamento permanecem estáveis, as leis históricas são contingentes,
posto que os pressupostos que permitem a sua atuação são eliminados muito mais
rapidamente. Por exemplo, as condições necessárias à constituição do feudalismo
podem não se verificar ou deixar de existir, após se verificarem, o que conduz
à desorganização fatal do modo de produção feudal.
Por outro lado, embora
os modos de produção sejam regidos por leis, as casualidades e o entrechoque de
forças, que também se verificam neles, fazem com que os resultados da operação
das leis não sejam certos. O que chamei função social do lucro parece resultar do
funcionamento das leis do modo de produção capitalista Porém, os benefícios do
fenômeno podem ser impedidos por fatos contrários ou variar em intensidade, em
razão de casualidades e contingências.
Em outras palavras, o
fato de o capitalismo funcionar de acordo com leis, e essas leis produzirem a
função social do lucro, em condições específicas, não significa que esse resultado
será sempre visível. No primeiro século após a invenção da máquina a vapor,
ocorreu a substituição maciça de investimentos em salários por investimentos em
máquinas, o que fez surgir o exército industrial de reserva (trabalhadores
desempregados), estagnar os salários e explodir a miséria urbana. Nesse
período, os benefícios decorrentes da função social do lucro foram revertidos
por outros fatores sociais.
Impõe-se, portanto, a
conclusão de que a função social da mais-valia das empresas, embora permanente,
nem sempre produz resultados visíveis, pois pode ser contrariada tanto pela
função particular do lucro quanto por outros fatores. Em outras palavras, a
busca do lucro tende a fazer com que os empreendimentos baseados no capital
desenvolvam função social, porém, em determinadas circunstâncias, os benefícios
desse desenvolvimento podem ser suspensos.
Para entendermos quando
e por que a função social do lucro é suspensa, é útil fixarmos com maior
precisão aquele conceito. Uma prática adquire função social quando beneficia
não apenas um segmento, mas toda a sociedade. Particularmente, o lucro assume
função social quando a sua cobrança redunda em benefícios para a sociedade. E,
como a mais-valia é recebida pelo dono do capital situado numa camada
intermediária ou superior da sociedade, sua função social pode ser definida,
precisamente, como a irradiação dos benefícios dela às camadas inferiores.
Essa transmissão é o que
afirmei que pode ou não ocorrer e que, quando ocorre, pode resultar em efeitos
mais ou menos significativos, a depender da intensidade do processo. A função
social será mais forte ou mais fraca, de acordo com tal intensidade. Porém,
sempre consistirá na superação das barreiras que impedem a propagação dos benefícios
do lucro das camadas superiores e médias para os estratos inferiores da
organização social.
A propagação dos
benefícios do lucro às camadas inferiores é diretamente garantida pela geração
de empregos e pelo aumento real dos salários. Por outro lado, ela é também
fomentada pela estreita relação entre o lucro e o crescimento econômico, a qual
estimula o aumento da riqueza e a ampliação do acesso das pessoas a ela. O
próprio Piketty reconhece o potencial distributivo do crescimento, em diversas
passagens da sua obra recente, como ao declarar que[49]
não
há dúvida alguma de que o crescimento econômico proporcionou uma melhoria considerável
das condições de vida durante longos períodos, multiplicando, segundo as
melhores estimativas disponíveis, por um fator maior que dez a renda média
mundial [em termos reais] entre 1700 e 2012 (de 70 euros para 760 euros por
mês) e por um fator maior que vinte no caso dos países mais ricos (de 100 euros
para 2.500 euros por mês).
No entanto, todos esses
benefícios indiscutíveis podem ser revertidos pelo aumento do desemprego e o
arrocho salarial, ainda que o crescimento persista. E é preciso anotar que,
tanto um como o outro, podem tão bem ser causados pelo próprio lucro quanto por
outros fatores. Em todos esses casos, a função social do lucro é compensada por
fatos contrários.
Mas, se o lucro possui
ou pode possuir inequívoca função social, outras instituições também a possuem,
o que cria a necessidade de as compararmos para entendermos as suas vantagens e
desvantagens, bem como o modo como a justiça social pode ser realizada por meio
delas. Dentre as instituições com utilidade social mais manifesta, estão a
previdência social e os serviços públicos de educação e saúde.
Piketty apresenta dados
significativos sobre a carga tributária cobrada, no Reino Unido, na França, nos
Estados Unidos e na Suécia, para financiar a previdência e os serviços públicos
de educação e saúde. Em todos esses países, a carga tributária girava em torno
de 7 ou 8%, antes da 1ª Guerra Mundial. Com o desenvolvimento do Estado de
bem-estar, ela passou a 35% no Reino Unido e 30% nos outros países, por volta
de 1950, e se estabilizou nos seguintes patamares, a partir de 1975: 31% nos
Estados Unidos, 40% no Reino Unido, 45-50% na França e 55% na Suécia[50].
Os 7 ou 8% arrecadados
originalmente pelos quatro países serviam para financiar as funções soberanas
do Estado até a 1ª Guerra: segurança interna e externa, administração pública e
distribuição da justiça. Ainda hoje, os gastos necessários ao desempenho dessas
funções representam menos de 10% do PIB, no Reino Unido, na França, na Suécia e
nos Estados Unidos. Portanto, o aumento da arrecadação observado nesses países
foi utilizado, quase inteiramente, para financiar novas atividades públicas,
que Piketty divide em dois grupos: de um lado, educação e saúde; de outro,
substituição e transferência.
Os gastos dos mesmos Estados
com educação e saúde situam-se, hoje, entre 10% e 15% do PIB. Percentuais quase
idênticos são gastos com substituição e transferência de renda, que incluem o
pagamento de aposentadorias, seguro-desemprego e bolsas de renda mínima[51]. Os
volumes de dispêndios para pagamento desses benefícios são desiguais, pois o
total de gastos com aposentadorias é muito superior às indenizações de
seguro-desemprego, e estas, às bolsas de renda mínima. Porém, números
significativos de pessoas são beneficiados por todos os três gastos.
É possível chegarmos,
assim, a uma conclusão assentada em bases claras, porque estatísticas, a saber:
a de que a arrecadação de tributos, depois da 2ª Guerra Mundial, teve marcada
destinação social. Foi usada, em grande parte, para erradicar a pobreza na
terceira idade, que ainda assolava a Europa, para melhorar a qualidade e a
expectativa de vida, por meio do seguro-saúde, e para aperfeiçoar o desempenho
profissional pela educação.
Parte das realizações
desse período foi induzida pelo aumento do nível dos salários.
O Estado funcionou como garante de que tal aumento não
seria perdido, em casos de desemprego e aposentadoria. Ao mesmo tempo,
assegurou serviços de educação e saúde isentos de custos para os
trabalhadores. Assim, a sua atuação se somou ao aumento do nível salarial
propiciado pela produção capitalista.
Porém, ao olharmos para
essa evolução geral, não podemos deixar de reconhecer que ela envolve um risco
considerável. Refiro-me à
elevada estatização da renda nacional que o Reino Unido, a França, a Suécia e
outros países tiveram de implementar para criar a rede de serviços e benefícios
públicos de seus Estados. Nos países ricos da Europa considerados em conjunto,
cerca de metade da renda total produzida a cada ano vai para o Estado, que a
devolve em forma de serviços e benefícios sociais. Porém, o fato de uma enorme
concentração da renda ser necessária, antes da sua distribuição, cria riscos de
outra forma ausentes. Recorda a estatização ainda maior do patrimônio e da
renda existente na antiga União Soviética e faz suspeitar que, por baixo da
aparência de solidez e avanço civilizatório, fragilidades comparáveis às
soviéticas possam estar em formação.
A crise financeira e a
Grande Recessão que afligiram a economia mundial, entre 2008 e 2011, tiveram
maior repercussão na Europa, entre outras coisas, por causa do peso dos Estados
de bem-estar ali existentes. Ainda que afirmem que os países europeus mais
afetados pela crise foram a Grécia, Portugal, Chipre e, a princípio, também a
Irlanda, não a Suécia ou a Noruega, que têm os Estados de bem-estar mais
dispendiosos, a crise não se agravou apenas em função dos gastos sociais dos
Estados, mas também da capacidade de arrecadação de cada um deles.
Os países da Europa
Ocidental podem ser agrupados em três categorias, de acordo com o perfil
demográfico e o capital. Num primeiro grupo, situam-se os mais abastados e
populosos, como Alemanha, França, Reino Unido e Itália. No segundo grupo, ficam
países também abastados, mas menos populosos, como os da Escandinávia,
Islândia, Irlanda, Holanda, Bélgica, Luxemburgo e Suíça. Por fim, no terceiro
grupo, incluem-se os países com menor relação renda/população, como Portugal,
Grécia e Chipre. Se olharmos atentamente, perceberemos que os países mais
afligidos pela crise europeia foram os do último grupo e os menos ricos dos
dois primeiros. De modo que os problemas europeus parecem ter relação direta
com a capacidade dos Estados comprometidos com gastos elevados de arrecadar
somas adicionais de um setor privado já sobrecarregado.
Ninguém pense que a
Grécia, para nos atermos ao caso dela, não tinha um Estado de bem-estar quando
a crise estourou. Tinha-o, embora ele fosse menos célebre que o da Suécia. A
Grécia empregava 20,55% do PIB em gastos sociais, em 2005, percentual quase
idêntico ao da média dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e o
Desenvolvimento Econômico), que era de 20,57%. Apenas para comparar, naquele
ano, o Reino Unido utilizou 21,29% do PIB para financiar seus serviços sociais.
Não é difícil entender por que, participando do mesmo modelo de Estado social,
mas sendo menos rica que o Reino Unido, a Grécia apresentou mais rapidamente
problemas nas contas públicas.
A Grande Recessão
iniciada em 2008 foi, antes de tudo, uma crise de liquidez. Nos países em que a
renda se concentra no Estado, a adoção de medidas anticíclicas mediante o
aumento dos gastos públicos para impedir uma queda ainda maior da atividade
econômica revelou-se particularmente difícil de realizar. Se o Estado já
recebia ali, em média, 40-50% de tudo o que se produz, como exigir que os que
pagam impostos nesses montantes contribuam com uma fatia ainda maior, se a
renda foi diminuída pela recessão?
Porém, esse exato
sacrifício foi demandado, desde que a recessão se instalou, em 2008. O
resultado foram déficits públicos crescentes, que se acumularam até a situação
se tornar insustentável, por volta de 2010. Portanto, a crise mostrou que,
embora a Europa tivesse a relação capital/renda mais alta de toda a História e
fosse, nesse sentido, o lugar mais rico do mundo, nenhum país mais pobre que
ela sentiu tanto as consequências de médio prazo da crise.
A causa profunda do
problema europeu parece ter sido o peso da estatização de metade da renda
nacional. Nos Estados Unidos, onde a parcela da renda que passa pelas mãos do
Estado é de 30% do PIB, foi mais fácil arrecadar o necessário às políticas
anticíclicas dos que detêm os outros 70% do que foi, para as autoridades
europeias, coletá-lo dos que possuem apenas 50%. Antes de 2008, essa diferença
nas estruturas tributárias dos Estados Unidos e da Europa não era tão sentida.
Coube à crise desnudar os limites lógicos e práticos a que a estrutura
arrecadatória europeia se sujeita em maior medida do que a de outras regiões.
Nesse contexto, não é
espantoso que os Estados Unidos tenham-se recuperado antes e de forma mais
robusta da crise mundial do que as potências europeias, embora a relação
capital/renda seja maior na Europa. A crise desvendou algo não aparente antes,
a saber: que os Estados de bem-estar, embora realizem prodígios distributivos, impõem
limites à arrecadação e, portanto, ao aumento dos gastos públicos em situações
extraordinárias.
Essa face do Estado de
bem-estar social não pode ser ignorada, pois cedo ou tarde está fadada a
aparecer e cobrar o seu preço. Não estou a propor, obviamente, que a rede de
serviços públicos desses Estados seja desmontada, mas que é melhor reduzirmos
as suas proporções onde já foi construída e limitarmos o seu alcance, ali onde
se encontra atualmente em construção, como é o caso do Brasil.
Em que princípio havemos
de nos basear para conter o custo implicado por esse modelo de Estado? Nenhum
princípio parece melhor que o da diferença proposto por Rawls. De acordo com
ele, uma prática só pode ser considerada justa, se beneficiar todas as camadas
da sociedade. Assim, se o Estado de bem-estar contribui para a justiça social,
não há por que substituí-lo, a não ser por uma instituição que o faça melhor do
que ele. Ora, se a empresa capitalista é capaz de desenvolver função social
relevante, ao pagar salários justos, por que não a devemos usar como contrapeso
à estatização da renda nacional? Não que a empresa com função social deva
substituir a atuação do Poder Público, mas elas podem ser somadas para que, da
prova de que não se excluem ao se combinarem, possa quem sabe resultar a melhor
solução já tentada para o problema da desigualdade.
TEORIA SOCIAL E IDEOLOGIA
Dilthey ensinou que as
ciências naturais explicam o seu objeto, ao passo que as ciências do espírito
compreendem, portanto interpretam o seu[52]. Porém,
decorridos cerca de dois séculos do surgimento das ciências sociais[53], elas
parecem incapazes de nos fornecer uma interpretação minimamente verossímil do
funcionamento da sociedade.
Enquanto as ciências
naturais fornecem grande quantidade de explicações bem-sucedidas dos fenômenos
que estudam, as ciências sociais permanecem num estágio muito mais rudimentar
de desenvolvimento. Provam-no a multiplicidade estonteante de doutrinas sobre
fenômenos sociais que permanecem incapazes de fornecer métodos eficazes de
intervenção efetiva neles.
Não dispomos de uma
teoria que nos permita prever a eclosão das guerras, a formação de movimentos
terroristas, escaladas inflacionárias ou crises recessivas. Se dispuséssemos,
poderíamos evitar aqueles males ou, ao menos, minimizá-los e controlá-los todas
as vezes em que ameaçassem desenvolver-se.
As mazelas do nosso
conhecimento dos fatos sociais são tão visíveis que se tornou comum admiti-las.
Com exceção dos dogmáticos e iluminados, os estudiosos em geral reconhecem que
as ciências sociais são muito menos desenvolvidas e bem-sucedidas do que as
naturais.
Porém, nada disso nos
autoriza a afirmar que a ciência social não exista ou ignore completamente o
seu objeto. O problema com que nos deparamos não é a falta de uma ciência
social, mas a sua obscuridade. Dispomos de um volume enorme de conhecimentos
suficientemente falseáveis sobre a sociedade para os considerarmos científicos.
Porém, esses conhecimentos encontram-se em estado tão confuso que não
conseguimos extrair conclusões significativas deles com um mínimo de segurança
e certeza. Muito menos conseguimos utilizar esses conhecimentos para intervir
eficazmente nos fenômenos aos quais eles se referem.
E, se o problema central
das ciências sociais é o estado confuso dos seus conhecimentos, a necessidade
premente dela é de método, não de informação. Não que os pesquisadores sociais não
disponhamos de métodos ou não os utilizemos. Porém, não utilizamos nossos
métodos de análise da sociedade com perseverança e consistência suficientes.
Em seu clássico Discurso do método, Descartes
referiu-se a viajantes que se perdem numa floresta e tentam sair dela,
caminhando a esmo, sem qualquer sucesso. De acordo com o filósofo[54],
Viajantes, quando se veem perdidos numa floresta, não
devem ficar errando de um lado para outro, nem ficar, tampouco, no mesmo lugar,
e sim andar em direção tão reta quanto possível, acompanhando o mesmo rumo, sem
jamais desviar-se da direção tomada, por motivos fúteis, mesmo quando, a
princípio, o acaso tenha sido o fator que determinou a escolha.
O caso dos viajantes
perdidos não foi citado à toa ou para elucidar como alguém deve proceder quando
perdido. É, antes uma ilustração ou analogia que permite entender as
consequências da falta de método e do emprego do método errado para executar
tarefas. O caso é perfeitamente aplicável às ciências sociais, em que o uso de
métodos tornou-se assustadoramente precário.
Darei um exemplo que me
parece o mais fundamental. Marx e Engels desenvolveram um método bem-sucedido
de decifração das relações sociais. Esse método consiste em determinar o modo
ou a técnica de produção vigente numa sociedade para, com base nele, entender
tanto as outras interações econômicas, a exemplo da circulação e do consumo de
produtos, quanto os fatos não econômicos: o Estado, os outros fatores reais de
poder, o uso da força, a política, as leis, a jurisprudência, as instituições
sociais, o parentesco, a organização familiar, os costumes, a adoração a Deus,
os ritos religiosos, a ciência, a ideologia etc.
Contudo, a profusão dos
fatores do devir social arrolados e que poderiam ser arrolados impede o
desenvolvimento da confiança na primazia de um deles (a produção) e, por aí, a
fidelidade ao método de Marx e Engels. Não empregamos esse método de modo
constante e com a confiança devida, assim como não empregamos qualquer outro
que envolva enunciados a priori sobre
a realidade social.
Toda ciência baseia-se
no apriorismo. À força de observar exaustivamente os fatos e de interrogar os
dados colhidos na observação, o cientista enuncia quais são as leis gerais manifestas
neles. Desde esse instante, ele não precisa mais observar para confirmar suas
leis. Toma-as por autoevidentes, usa-as como enunciados dotados de validade a priori, com base nos quais ele parte
em busca de novos conhecimentos. Anda, por isso, numa só direção, indicada
pelas leis, e não em todas.
Assim ocorre não com um
ou outro cientista, mas com todos eles. Equipes inteiras pertencentes a
instituições as mais variadas adotam ao mesmo tempo os enunciados a priori aceites. E, quando elas se aposentam,
outras equipes procedem exatamente da mesma maneira.
Nas ciências sociais,
não reconhecemos qualquer enunciado a
priori válido. Comportamo-nos como um cientista natural hipotético que põe
em dúvida a existência da gravidade. Marx e Engels provaram tão bem quanto
possível que as forças produtivas e as relações de produção determinam o curso
da História mais decisivamente que qualquer outra causa. Com isso
forneceram-nos um conhecimento perfeitamente a priori. Porém, quase ninguém o utiliza, porque quase ninguém
respeita um a priori em ciências
sociais. Um pesquisador nos Estados Unidos ou na Europa pode ignorar a
prevalência das causas produtivas ao elaborar sua ciência tão bem quanto
aceitá-la.
Os enunciados a priori que faltam à ciência social sobram
à ideologia. É próprio da ideologia extrair um a priori de outro, deste ainda outro e assim sucessivamente. O
ideólogo marxista ou religioso tem o alforje carregado de tantas verdades a priori que precisa reforçá-lo para não
arrebentar. Costura, por isso, no alforje, o remendo do dogma para que o mundo
cabalmente explicado que ele carrega não lhe fique pelo caminho.
Por um bom tempo, a
ciência social confundiu-se com a ideologia. É que ela precisava de enunciados a priori e os encontrou na ideologia,
onde eles pululavam. Daí as duas terem-se avizinhado. Daí também os
liberalismos, os marxismos, os socialismos e outros ismos, nos quais uma ou
outra lei verdadeira misturava-se à profusão de outras falsas.
O colapso das ideologias,
hoje consumado, livrou a ciência social do peso morto das falsas leis, porém a
relegou à mais absoluta carência de enunciados a priori. Com isso, o mundo dessas ciências só não ruiu, porque lhe
sobraram alguns a priori verdadeiros,
com os quais ela foi escorada.
Resta-nos reconstruir
esse mundo em colapso. E a melhor maneira de fazê-lo é com métodos científicos.
Mas, para construir um método científico, é preciso aceitar conhecimentos a priori sobre a realidade.
O estado confuso da
ciência social exige resolução não quanto às conclusões a atingir, mas quanto
aos métodos a utilizar. Inclusive quanto aos métodos que envolvem proposições a priori sobre a realidade social.
A rejeição de métodos
dessa espécie é tão generalizada, no nosso tempo, que se tornou indispensável
decidir se vamos admitir o seu uso (e usá-los efetivamente) ou proibi-los.
Enquanto não tomarmos uma resolução quanto a isso, continuaremos como os
viajantes mencionados por Descartes, caminhando sempre e em todas as direções,
mas sem chegar ao destino.
As preocupações
metodológicas expostas acima explicam por que, na Parte V desta série, ao
tratar da Fenomenologia Jurídica, que é parte da Fenomenologia Social,
dediquei-me a temas econômicos. É perfeitamente claro que o social não se
esgota no econômico, porém a necessidade de partir da conquista metodológica de
Marx e Engels e de não a desperdiçar levou-me a basear a análise dos fenômenos
jurídicos na consideração do seu alicerce econômico.
Os motivos de tal escolha foram metodológicos.
Se não posso e não sei refletir sobre tudo, especialmente sobre o que é maior e
mais volumoso, devo cogitar do mais básico. E caminhar numa só direção ao
fazê-lo.
Em O capital, Marx aplicou o seu método de
análise histórica da maneira mais extensa e mais pura. Embora a influência da
filosofia de Hegel e da dialética, em particular, seja marcante, o que temos,
em O capital, é análise econômica e
análise muito bem-sucedida. No Manifesto
do Partido Comunista, ocorre algo diferente. Ali, o pressuposto que permite
interpretar a História a partir da produção se funde mais completamente com a
dialética. E, dessa fusão completa e visível, torna-se claro que a contradição
sobrepõe-se ao pressuposto produtivo. Na abertura do Manifesto, Marx e Engels explicam[55]:
A
história das sociedades até aqui existentes é a história da luta de classes.
Homens
livres e escravos, patrícios e plebeus, senhores e servos, mestres de
corporação e jornaleiros, numa palavra, opressores e oprimidos estiveram em
oposição constante e recíproca, sustentaram uma luta ininterrupta, ora oculta,
ora aberta, luta que, em cada caso, resultou na reconstituição revolucionária
da sociedade toda ou na ruína comum das classes antagônicas.
As páginas seguintes do Manifesto fazem jus a essa abertura.
Nada mais são que o desenvolvimento da ideia semeada nela. Por isso, no Manifesto, o pressuposto econômico
recebe a mais forte coloração de luta de classes.
Não direi que, em O capital, ocorre coisa distinta. O
método de análise histórica de O capital
é o mesmo do Manifesto. Porém, o
entretecimento do a priori econômico com a dialética não é tão visível na
primeira quanto na última obra. Por isso, o Manifesto deve ser tomado como
ponto de partida para a compreensão do modo como Marx e Engels utilizam o seu
pressuposto econômico.
Em síntese, no Manifesto, o antagonismo de classes é
claramente acrescido ao pressuposto econômico de Marx e Engels. Desde dentão,
já não é a produção, como pura transformação da matéria, que determina os
acontecimentos históricos, mas os conflitos que ela deflagra.
Ao receber essa coloração
dialética, o pressuposto econômico de que Marx e Engels partem sofre uma
modificação essencial. Compreendido em si mesmo, ele não envolve oposição de
classes. Porém, ao ser entendido dialeticamente, ele passa a ter como núcleo a
oposição de classes.
Não
me parece claro que essa introdução do elemento dialético na base econômica do
método de Marx e Engels sustente-se em bases empíricas. A aplicação da
dialética à matéria, animada e inanimada, em Hegel, Marx ou Engels, não se
baseia em evidências empíricas conclusivas. Decorre de uma escolha
indemonstrável, uma vez que não é possível provar que a contradição seja mais
determinante do que a harmonia ou a cooperação, na natureza ou na História.
Se esvaziarmos o pressuposto
metodológico que demonstramos de suas implicações dialéticas, ele perderá toda
conexão com a ideia de exploração. Claro que, ainda assim, poderá ou não
existir exploração numa sociedade, mas isso dependerá de uma constatação
empírica, não será consequência de um pressuposto a priori.
A remoção da dialética do método
de análise social conduz a resultados relevantes, pois a desigualdade observada
nos modos de produção deixa de resultar de atos de exploração. Não que a
relação entre luta de classes e desigualdade não possa ocorrer, mas terá de ser
comprovada empiricamente para ser admitida. Não constituirá, por isso, um dado
de partida, mas de chegada.
Quero propor que o pressuposto
produtivo de análise social não implica qualquer antagonismo necessário, luta
de classes ou exploração inescapáveis. A produção exerce o mais forte
condicionamento sobre os fatos. Ela marca a História, mas não com o sinal
necessário da espoliação.
A última parte desta série tem o
sentido que essas considerações metodológicas sugerem. Nela, analisamos os
dados sobre a desigualdade fornecidos por Thomas Piketty em O capital no século
XXI, à parte da pré-compreensão que neles vê indicadores inequívocos de
exploração. Da análise dos dados extraímos a conclusão de que a desigualdade
econômica, passada e presente, em regra, não resulta de processos de
exploração.
Era
preciso demonstrar que o Direito e as outras disciplinas sociais podem ser
pensados sobre essas bases metodológicas, se o referencial derradeiro deles for
a História. O que equivale a dizer se o Direito não for a quinta essência que
alguns veem nele: a vida idealizada pelo pensamento ou o pensamento realizado
na vida.
[1]COULANGES, Fustel. A cidade antiga –
estudo sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. São
Paulo: Edipro, 1998. p. 191.
[2]Jo 7:24.
[3]Mt 23:23.
[4]Mt 23:24.
[5]Êx 22:1.
[6]Êx 22:5.
[7]MAGNO, Gregório. Regra pastoral. São
Paulo: Paulus, 2010. p. 75.
[8]KONDER, Leandro. História das idéias
socialistas no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2003. p. 94.
[10]
MORAIS, Luís Fernando Lobão. São Paulo:
Themis, 2008.
[11]BRUCKBERGER, R. L. A república
americana. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1960. p. 287.
[12]
Idem. p. 288.
[13]PIKETTY, Thomas. O capital no século
XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. p. 37.
[14]Idem. p. 337.
[15]Idem. p. 336-337.
[16]
Idem. p.348.
[17]
Idem. p. 93.
[18]
Idem. p. 99.
[19]
Idem. p. 331-332.
[20]
Idem. p. 364.
[21]MORAIS, Luís Fernando Lobão. Liberdade
e direito. Campinas: Copola, 2000. p. 432.
[22]
Idem. p. 434.
[23]PIKETTY, Thomas. O capital no século
XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. p. 367.
[24]
Idem. pp.146-147.
[25]
Idem. p. 149.
[26]
Idem. p. 364.
[27]
Idem. p. 147.
[28]
Idem. p. 147.
[29]
Idem. p. 174.
[30]
Idem. p. 175.
[31]
Idem. p. 146.
[32]
Idem.
[33]PIKETTY, Thomas. O capital no século
XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. p. 38.
[34]
Idem. p.20.
[35]
Idem. p. 24.
[36]MORAIS, Luís Fernando Lobão. A função
social do lucro – e a sociedade pós-capitalista. São Paulo; Themis, 2008.
p. 352.
[37]
SMITH, Adam. Citado em COLLETTI,
Lucio. Ultrapassando o marxismo – e as ideologias. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1983. p. 159.
[38]PIKETTY, Thomas. O capital no século
XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. p. 332, 335.
[39]MARX,
Karl. Critique of Hegel’s Philosophy of Right. Introduction. Disponível
em www.marxists.org.
[40]
CARVALHO, Olavo de. Disponível em http://www.olavodecarvalho. org/textos/debate_usp_1.htm. Acesso em
14/01/15.
[41]DRUCKER, Peter. Sociedade
pós-capitalista. São Paulo: Pioneira, 1993. p. 90-91.
[42]
Idem. p. 95.
[43]
Idem. p. 96.
[44]PIKETTY, Thomas. Ob. cit. p. 364.
[45]
Idem. p. 329, 364.
[46]
Idem. p. 518-519.
[47]
Idem. p. 360.
[48]
Idem. p. 219.
[49]PIKETTY, Thomas. O capital no século
XXI. Rio de Janeiro: Intrín-seca, 2014. p. 96.
[50] Idem. p. 463.
[51]
Idem. p. 465.
[52]
Dilthey apresenta, pela primeira vez, o estatuto das ciências do espírito em Psicologia e teoria do conhecimento,
onde lemos: “As ciências do espírito partem da conexão psíquica dada pela
experiência interna. A diferença fundamental entre o conhecimento psicológico e
o conhecimento da natureza radica no fato de que a conexão no mundo psíquico se
dá de um modo primário, e nisto consiste também a primeira e fundamental peculiaridade
das ciências do espírito”. Porém, seu projeto definitivo de fundamentação das
ciências do espírito, Dilthey o apresenta em Estudos para a fundamentação das ciências do espírito e em A construção do mundo histórico nas
ciências humanas. Nessa última obra, Dilthey esclarece que a natureza, como
objeto das ciências naturais, “só pode ser construída, mas nunca compreendida;
espreitando na natureza o seu sentido, um sentido que ela, contudo, nunca nos
deixa conhecer”. Por outro lado, “a humanidade pode ser delimitada como o nível
no qual aparecem o conceito, o juízo de valor, a concretização de fins, a
responsabilidade e a consciência do significado da vida. A propriedade mais
comum ao nosso grupo de ciências [humanas], por nós determinada, é a ligação
comum com o homem, com a humanidade”. Em síntese, a diferença [entre as
ciências humanas e as naturais] reside na tendência, na qual seu objeto é
formado. Ela reside no procedimento que constitui esses grupos [de ciências].
No primeiro caso, um objeto espiritual surge no compreender; o objeto físico no
conhecer” (DILTHEY, Wilhelm. A
construção do mundo histórico nas ciências humanas. São Paulo: UNESP, 2006.
p. 24-25, 27).
[53]
As ciências do espírito, afirma Dilthey, “são a história, as ciências econômica
e jurídica e a ciência do Estado, a ciência da religião, o estudo da literatura
e da poesia, da arquitetura e da música, das visões de mundo e dos sistemas
filosóficos e, por fim, a psicologia” (idem. p. 24).
[54]
DESCARTES, René. Discurso do método.
São Paulo: Hemus. p. 52.
[55]
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto
do Partido Comunista. In Great books of the western world. 2ª
ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 50. p. 419.
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